unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP CAIO SANTARSIERE A AUSTERIDADE COMO SUSTENTÁCULO POLÍTICO DO CAPITALISMO MODERNO ARARAQUARA – S.P. 2025 CAIO SANTARSIERE A AUSTERIDADE COMO SUSTENTÁCULO POLÍTICO DO CAPITALISMO MODERNO. Tese de Doutorado apresentada ao Conselho, Programa de Pós-graduação em Economia da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Economia. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Strachman ARARAQUARA – S.P. 2025 S233a Santarsiere, Caio A austeridade como sustentáculo político do capitalismo moderno. / Caio Santarsiere. -- Araraquara, 2025 66 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Eduardo Strachman 1. Macroeconomia. 2. Austeridade. 3. Liberalismo. 4. Fascismo. 5. Nazismo. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). IMPACTO POTENCIAL DESSA PESQUISA O potencial dessa pesquisa está na sua capacidade de analisar, por meio de uma análise crítica ancorada na econômica política histórica, os processos e as consequências da naturalização da austeridade como instrumento ideológico. Ao trata-la como uma narrativa de cunho moral, a austeridade se legitimou como um mecanismo de manutenção das hierarquias capitalistas. Com isto dado, a pesquisa tenta contribuir na compreensão das interfaces entre economia, linguagem e poder, demonstrando como a construção hegemônica de consensos em momentos de crise pode resultar em graves custos sociais no tecido democrático onde a austeridade é aplicada. Ao procurar “rehistoricizar” a austeridade na qualidade de um projeto político – e não como fatalidade técnica –, esta pesquisa auxilia na reconfiguração do campo discursivo sobre alternativas econômicas à austeridade, afirmando a democracia substantiva como antídoto à racionalidade tecnocrática. POTENTIAL IMPACT OF THIS RESEARCH The potential of this research lies in its capacity to critically analyze, through a lens grounded in historical political economy, the processes and consequences of the naturalization of austerity as an ideological instrument. By framing it as a moralistic narrative, austerity is legitimized as a mechanism for sustaining capitalist hierarchies. In this context, the research seeks to advance the understanding of the interfaces between economy, language, and power, demonstrating how the hegemonic construction of consensus during crises can result in severe social costs to the democratic fabric where austerity is imposed. By attempting to "rehistoricize" austerity as a political project — rather than a technical inevitability — this research contributes to reconfiguring the discursive field on economic alternatives to austerity, asserting substantive democracy as an antidote to technocratic rationality. Dissertação de mestrado apresentado à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, para obtenção do título de Mestre em Economia . Data da Defesa: 26/02/2025. Os membros componentes da Banca Examinadora: __________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Strachman, Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” __________________________________________ Prof. Dr. Ramón Vicente Garcia Fernandéz, Universidade Federal do ABC __________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Perreira Serra, Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” A AUSTERIDADE COMO SUSTENTÁCULO POLÍTICO DO CAPITALISMO MODERNO CAIO SANTARSIERE AGRADECIMENTOS Ao meu pai, Brás Santarsiere, e à minha mãe, Cintia Rauscher Oliveira, aos quais serei eternamente grato por sempre estimularem os meus estudos e me proporcionarem para realizá- los com tranquilidade e dedicação durante toda a graduação e pós-graduação. À minha irmã, Thaís Santarsiere, pela companhia e amizades durante todos os meus anos de vida. Ao Prof. Eduardo, pelas aulas, ensinamentos, orientação, e pelo apoio à minha pesquisa. Certamente eu não poderia ter feito uma melhor escolha, a quem sou, desde a primeira aula da graduação, muito grato. Aos professores Gustavo Pereira Serra e Ramón Vicente Garcia Fernandéz, pelos conselhos e solicitude em relação aos meus estudos e meus prazos. À minha melhor amiga e namorada, Pietra Del Bello, pelo apoio e carinho que me foram dados nos meses que antecederam a conclusão dessa pesquisa. Aos meus amigos e companheiros de república, os quais contribuíram para tornar essa etapa possível e prazerosa. E, por último, a toda a comunidade da UNESP, em especial, a todos da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. RESUMO A austeridade não é uma ideia recente nem exclusiva da era neoliberal. Suas raízes são as mesmas raízes do liberalismo econômico clássico, no qual o mercado é concebido como um sistema autônomo e autorregulado e que qualquer alternativa é considerada antieconômica. Desde sua origem, a austeridade foi promovida não apenas como uma medida econômica, mas também como um princípio moral, onde o sacrifício presente se justificaria por benefícios futuros. Com o tempo, essa visão se consolidou como uma abordagem “técnica”, “objetiva” e “virtuosa” da economia, separando-a de qualquer questão ética, social ou política, reforçando, assim, a noção de interferências estatais ou sociais comprometeriam a eficiência do mercado. Entretanto, nessa pesquisa, a austeridade é definida de um modo diferente do que o habitual, pois será analisada através de uma perspectiva classista. Dessa forma, ela não será analisada como uma resposta às crises econômicas, a qual busca equilibrar as contas públicas e reduzir déficits fiscais, mas como uma ferramenta política e ideológica que serve aos interesses das classes dominantes. Assim sendo, o objetivo final da austeridade não seria o de resolver crises econômicas, mas o de consolidar a hierarquia social, econômica e política do capitalismo às custas do nível e da qualidade de emprego. O discurso austero, visto por essa ótica, perde o seu caráter “técnico”, “objetivo”, “neutro”, “apolítico” e de alheidade à sociedade ao seu redor, pois passa a ser entendido como um projeto de classe criado pelas elites com o intuito de barrar o avanço das demandas populares por direitos sociais e redistribuição de riqueza, independente do período histórico analisado. Desse modo, ao retirar a tecnicidade do discurso, a austeridade perde o véu que lhe garantia o status da virtuosidade, demonstrando como, historicamente, ela foi utilizada como elemento central das maiores barbáries que existiram no século XX. Palavras Chave: Austeridade, Tecnicidade, Liberalismo, Fascismo e Nazismo. ABSTRACT Austerity is not a recent idea, nor is it exclusive to the neoliberal era. Its roots are the same as those of classical economic liberalism, in which the market is conceived as an autonomous and self-regulating system and any alternative is considered uneconomic. Since its origins, austerity has been promoted not only as an economic measure, but also as a moral principle, where present sacrifices are justified by future benefits. Over time, this vision has become consolidated as a “technical”, “objective” and “virtuous” approach to the economy, separating it from any ethical, social or political issues, thus reinforcing the notion that state or social interference would compromise market efficiency. However, in this research, austerity is defined differently than usual, as it will be analyzed from a class perspective. Thus, it will not be analyzed as a response to economic crises, which seeks to balance public accounts and reduce fiscal deficits, but as a political and ideological tool that serves the interests of the dominant classes. Therefore, the ultimate goal of austerity would not be to resolve economic crises, but to consolidate the social, economic and political hierarchy of capitalism at the expense of the level and quality of employment. Seen from this perspective, austerity discourse loses its “technical”, “objective”, “neutral”, “apolitical” character and its detachment from the society around it, as it comes to be understood as a class project created by the elites with the aim of blocking the advancement of popular demands for social rights and redistribution of wealth, regardless of the historical period analyzed. Thus, by removing the technicality of the discourse, austerity loses the veil that guaranteed it the status of virtuousness, demonstrating how, historically, it was used as a central element of the greatest barbarities that existed in the 20th century. Key Words: Austerity, Technicality, Liberalism, Fascism and Nazism. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO. ................................................................................................. 10 2. A ORIGEM DA AUSTERIDADE. .................................................................... 14 2.1 Smith e a Criação do Mercado Auto-Regulado ...................................... 14 2.2 A Lei de Ferro dos Salários e a “Moralidade” Liberal. ......................... 17 3. A AUSTERIDADE COMO UM PROJETO POLÍTICO .................................. 23 3.1 A Tríade Progressiva ................................................................................ 23 3.2 A Tríade Austera ....................................................................................... 29 4. AUSTERIDADE NA PRÁTICA: O PERÍODO ENTREGUERRAS. .............. 37 4.1 O Caso Britânico ....................................................................................... 37 4.2 O Caso Italiano .......................................................................................... 43 4.3 O Caso Alemão .......................................................................................... 49 5. CONCLUSÃO .................................................................................................... 61 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 64 10 1. INTRODUÇÃO A austeridade é frequentemente apresentada, por seus defensores, como uma política técnica e neutra: um conjunto de medidas racionais com o intuito de equilibrar as contas públicas, garantir a "confiança dos mercados" e assegurar a estabilidade macroeconômica. Ao ser reduzida a uma questão de matemática fiscal – gastar menos do que se arrecada –, a dimensão política e ideológica da austeridade é sistematicamente apagada. Essa narrativa, no entanto, omite que a austeridade nunca foi apenas uma ferramenta contábil, mas um projeto de poder que sustenta e reproduz a ordem capitalista. Longe de ser um remédio para crises, a austeridade é um sintoma da própria lógica do capital, que transforma a exploração econômica em disciplina social e a desigualdade em imperativo sistêmico. Este trabalho propõe, a partir dessa análise, uma redefinição crítica do conceito de austeridade, deslocando-a do campo estreito da economia ortodoxa para o terreno da luta de classes. A austeridade não é um fenômeno recente ou contingente, mas uma estratégia histórica do liberalismo para consolidar hierarquias sociais, desmobilizar demandas populares e garantir a acumulação privada de riqueza. Sua essência antidemocrática reside justamente em sua capacidade de naturalizar a privação social como inevitável, enquanto transfere recursos públicos para elites sob o véu da “responsabilidade econômica”. A crítica aqui desenvolvida dialoga com a tradição teórica de Karl Polanyi (1944), para quem a subordinação da vida social às leis do mercado gera um "desencaixe" destrutivo, e com as contribuições de Clara Mattei (2023), que desvela a austeridade como uma tecnologia de dominação de classe. Como Mattei demonstra em sua análise do pós-Primeira Guerra Mundial, ajustes fiscais, monetários e industriais foram usados para desmantelar conquistas trabalhistas e deslegitimar a ação coletiva, pavimentando o caminho para regimes autoritários. Essa tese, portanto, visa contribuir com o debate sobre a austeridade ao apresenta-la como um sustentáculo político do capitalismo moderno, em alternativa à visão ortodoxa de que ela seja uma solução técnica e necessária para se alcançar o equilíbrio econômico. Ao rejeitar a ideia de que a austeridade é um mal necessário, esta tese busca desnaturalizar seu discurso e revelar suas raízes na manutenção da hegemonia capitalista. Seu aporte teórico não se limita à economia política, mas avança para uma crítica da democracia sob o 11 (neo)liberalismo, onde a participação popular é substituída por governança tecnocrática, e a justiça social é subordinada aos ditames do capital. Para isso, estruturamos este trabalho em três capítulos. O capítulo inicial se propõe a discutir a origem da austeridade, mostrando como ela não é fruto da ordem neoliberal, mas sim uma ferramenta do capital usada desde a origem do capitalismo moderno. Para isso, o capítulo inicia-se com a discussão referente a relação do Estado e da moeda na visão clássica, a qual, ao compreender que o mercado, movido pelo interesse individual, se autorregula eficientemente, limita a função do Estado em relação à econômica e às questões sociais. Ao reduzirem questões sociais a cálculos técnicos, os economistas clássicos legitimaram as desigualdades do sistema capitalista como “inevitáveis”, excluindo questões éticas do debate. Essa “tecnicidade” deu base à austeridade, que não é neutra, mas uma ferramenta histórica do capitalismo para manter hierarquias de classe, moldando subjetividades e impondo a lógica de mercado como única moralmente válida. Assim, a austeridade transcende o neoliberalismo: é um mecanismo estrutural do capitalismo, reforçando poder via disciplina econômica e controle social, sob o véu da “técnica” e da “neutralidade”. Para tanto, esta tese estrutura-se em três capítulos. O primeiro capítulo dedica-se à análise da origem da austeridade, mostrando como sua implementação não se restringe ao contexto neoliberal, pois ela está enraizada nas dinâmicas estruturais do capitalismo moderno desde sua conformação histórica. Inicialmente, examina-se a relação entre Estado e moeda na perspectiva clássica, a qual, ao postular que o mercado — movido pelo interesse individual — autorregula-se eficientemente, delimita a atuação estatal às esferas jurídico-repressivas, marginalizando intervenções socioeconômicas. Nesse contexto, evidencia-se como a redução das questões sociais a parâmetros técnicos, operada pelos economistas clássicos, sustentou a legitimação das desigualdades inerentes ao sistema capitalista como fenômenos “inevitáveis”, excluindo dimensões éticas e políticas do campo teórico. Nesse sentido, argumenta-se que a primazia da técnica sobre a ética consolidou os alicerces discursivos da austeridade, revelando-a não como um instrumento neutro, mas como uma ferramenta histórica de manutenção de hierarquias classistas, atuando tanto na conformação de subjetividades alinhadas à racionalidade mercantil quanto na naturalização de sacrifícios sociais como imperativos morais. 12 O segundo capítulo refere-se ao período pós-IGM, o qual a austeridade deixa de ser apenas um fruto da “racionalidade” liberal e passa a ser um projeto de contra-ataque aos ganhos políticos, sociais e econômicos da classe trabalhadora. A Primeira Guerra Mundial transformou o Estado em agente econômico central, rompendo com a sacralização capitalista da propriedade privada e das relações salariais. Esse contexto abriu espaço para questionamentos estruturais ao mercado autorregulado. Protestos trabalhistas exigiram políticas fiscais, monetárias e industriais progressivas, que buscavam subordinar a economia às necessidades coletivas, não ao lucro. A crise de legitimidade do capitalismo abriu brecha para “reembutir” a economia na esfera política e democrática. A austeridade, porém, surge como contraofensiva, restaurando a separação entre econômico e político, naturalizando a exploração e sufocando qualquer possibilidade de melhorias populares. As políticas de austeridade, assim, consolidam-se não como uma resposta a crises, mas como um mecanismo de preservação do poder capitalista, o qual atravessa diferentes contextos históricos. A austeridade é, dessa forma, um projeto político classista que sustenta a dominação capitalista através de três eixos interligados: fiscal (cortes orçamentários e tributação regressiva), monetário (juros altos e redução de crédito) e industrial (precarização laboral e desindustrialização). Juntas, essas políticas reduzem o poder de barganha dos trabalhadores, ampliam o desemprego e transferem recursos para elites, naturalizando a desigualdade. A retórica da “neutralidade técnica” mascara o caráter antidemocrático da austeridade que, ao despolitizar a economia, fragiliza demandas coletivas, aliena trabalhadores e transforma crises sistêmicas em “falhas individuais”. Ao retroalimentar estagnação e concentração de renda, a austeridade normaliza a crise como ferramenta de controle, minando alternativas democráticas e alimentando tensões sociais. Assim, a austeridade não é uma resposta a crises, mas um mecanismo de perpetuação da exploração, transformando a economia em um instrumento de dominação hierárquica, onde a “eficiência” técnica legitima a opressão e a injustiça social. A partir dessa base teórica, o terceiro capítulo busca fazer uma análise empírica da austeridade no período pós-Primeira Guerra Mundial, investigando sua implementação concreta e seus impactos sociopolíticos em três contextos nacionais europeus: Grã-Bretanha, Itália e Alemanha. Apesar das particularidades históricas e institucionais de cada caso, há, nos três países, uma convergência paradigmática: os três países promoveram o desmantelamento progressivo das políticas expansionistas de bem-estar social vigentes no imediato pós-guerra, substituindo-as por programas austeros, os quais operaram como instrumentos de contenção 13 das reivindicações democráticas da classe trabalhadora. Mediante a adoção dos mecanismos da austeridade – como ajustes fiscais, restrições monetárias e reformas laborais –, esses governos efetivaram um esvaziamento da soberania popular, subordinando-a aos imperativos discursivos da “estabilidade econômica”. Tal processo não apenas cristalizou desigualdades estruturais, mas também pavimentou o caminho para rupturas democráticas, como o avanço de regimes autoritários na Europa, ao corroer as bases materiais da participação popular nas decisões políticas e econômicas e legitimar a concentração de poder em entidades tecnocráticas não eleitas, como, por exemplo, os Bancos Centrais independentes. Assim, a austeridade revela-se, também nos casos práticos, não como uma resposta a crises econômicas, tal qual os seus defensores dizem ser, mas como um projeto político articulado e com o objetivo de reconfigurar relações de poder em favor das elites, tal qual evidenciado pela sincronicidade dos efeitos regressivos nesses três países. O capítulo quatro, para encerrar, é dedicado para as considerações finais. 14 2. A ORIGEM DA AUSTERIDADE. “A austeridade não é nova e nem o produto da chamada era neoliberal, que começou no fim dos anos 1970” (Mattei, 2023, p. 19). Por mais que o termo “austeridade” seja relativamente novo no vocabulário econômico, a austeridade econômica, enquanto ideia, é exaltada pelo liberalismo econômico clássico desde Smith, Ricardo e Malthus, ainda que o termo “austeridade” como política econômica explícita não tenha sido adotado por eles. Porém, o sentimento e a “moralidade” austera existem desde muito antes do próprio termo “austeridade”. 2.1 Smith e a Criação do Mercado Auto-Regulado Smith (1776/1996) admite o Estado como eticamente necessário. Para ele, não existiria mercado sem o Estado, pois cabe a este fornecer defesa externa e justiça interna - ou seja, Smith defende a ideia de que o governo é necessário para proteger os cidadãos contra a violência – além de serviços e bens necessários para o bem-estar da sociedade e que o mercado não é capaz de fornecer de forma eficiente, como nos casos de infraestrutura e educação básica. Entretanto, essas são algumas das poucas áreas em que Smith acredita que o Estado deve complementar as normas morais e éticas que emergem da sociedade1 privada, pois ele vê a economia como uma esfera relativamente autônoma, na qual os agentes racionais buscam maximizar seu interesse próprio. Dessa forma, a intervenção do Estado em questões econômicas poderia prejudicar a eficiência do mercado auto-regulado na alocação dos recursos, além de restringir a liberdade individual dos cidadãos e, assim, limitar o bem coletivo. O mercado, nessa visão, funcionaria como um sistema de coordenação descentralizado, no qual as decisões individuais se ajustam mutuamente sem a necessidade de um planejador central. A oferta se ajustaria à demanda, e os recursos seriam direcionados para onde são mais necessários. A base para o raciocínio de Smith sobre o papel do Estado é a interpretação dele sobre a origem do mercado. Para ele, a divisão do trabalho na sociedade de sua época dependia da 1 Em sua obra de 1759, Smith dá mais ênfase aos valores humanos. É na ética e moral discutida nessa obra que ele alicerça sua análise em “A Riqueza das Nações”. 15 existência dos mercados, os quais só existem por conta “[d]a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra” (Smith, 1776/1996, p. 69). Dessa forma, teria sido a propensão humana ao escambo (a troca direta de bens e serviços) que teria sido a origem do mercado, para Smith. Ao propor a origem do mercado auto-regulado no escambo, Smith pressupõe uma divisão social muito mais complexa do que a existente para aquela época. Para imaginar uma sociedade na qual o escambo se fazia comum entre todos, precisa-se, por exemplo, imaginar conjuntamente uma sociedade na qual existiam prisões e policiamento, com o intuito de evitar furtos, roubos e/ou outros tipos de crimes, afinal o escambo aconteceria entre pessoas que, primeiro, podem não se conhecer – e geralmente não se conhecem – e, segundo, não possuem interesse de, na base da honestidade, criar relações duradouras de respeitabilidade mútua. Ou seja, Smith pensava na sociedade em que ele vivia, com as normas sociais e econômicas nas quais ele estava inserido e na qual as pessoas já estavam acostumadas a usar o dinheiro, mas que, por algum motivo, ainda não possuía moeda (Innes, 1913/2004)2. Para Graeber (2016), a questão não era se o escambo existiu ou não existiu, mas que o escambo “quase nunca era empregado como ele (Smith) imaginava” (p. 43). Como será visto, não foi o mercado formal que originou a moeda, mas sim o contrário3. Smith compreendia a origem da moeda como um facilitador da dupla coincidência de desejos ocasionada pelo escambo. Para ele, o surgimento da moeda teria sido fruto de um processo espontâneo e evolutivo da sociedade e, dessa maneira, a moeda teria sido uma solução encontrada pelos agentes econômicos do mercado que buscava de mais qualidade e eficiência nas trocas. Para Goodhart (2009), entretanto, não foi pela espontaneidade, naturalidade ou facilidade proveniente do mercado ou de um “homo economicus” que a moeda foi originada, 2 Hicks, ao analisar a história da teoria monetária, interpreta que ela está mais intrinsecamente ligada a fatores históricos do que a fatores econômicos. Para ele, toda teorização econômica é simplificadora, pois, na escolha do que é importante e do que não é, tenta-se criar um caminho para compreender a realidade: “Por vezes, o que se procura é uma compreensão geral; mas na teoria monetária é mais frequente uma compreensão particular - uma compreensão dirigida a um problema particular, normalmente um problema da época em que a obra em questão é escrita” (Hicks, 1967, p. 156). 3 Polanyi (1944/2000), ao se referir sobre a relação entre o mercado e a sociedade de Smith, disse que “em retrospecto, pode-se dizer que nenhuma leitura errada do passado foi tão profética do futuro” (p. 63). 16 pois ela antecede o desenvolvimento dos mercados formais. Knapp (1924) também critica a narrativa clássica da origem da moeda e dos mercados, pois, para ele, a moeda não pode ser vista como uma geração espontânea do mercado, mas sim enquanto uma criação do Estado, devido à sua capacidade de estabelecer uma unidade de conta para a economia e determinar o meio de pagamento referente a esta unidade4. Ou seja, o Estado cria, pela força da lei, uma moeda que será aceita pelos agentes credores da economia, no encerramento dos débitos da economia. Knapp, portanto, compreende que a moeda não foi, em sua origem, apenas um meio de troca ou uma unidade de conta, mas uma instituição social criada e regulamentada pelo Estado. Em outras palavras, o surgimento de uma classe mercantil – e consequentemente do mercado – só teria sido possível graças à moeda e o surgimento da moeda só teria possível graças ao Estado. Se, por um lado, a compreensão da moeda como uma geração espontânea do mercado, como propõe o liberalismo clássico, implica tratá-la como um objeto de neutralidade técnica, ou seja, dissociando-a de juízos éticos e de projetos políticos (pois a sua função seria apenas a de otimizar transações), Knapp, por outro lado, interpreta a moeda como um objeto no qual está embutida as relações de poder e das escolhas coletivas. Ao defender que a moeda é, antes de tudo, uma “criatura do Estado5”, Knapp não apenas politiza a origem da moeda, mas também revela seu potencial ético, pois ela deixa de ser vista apenas como um instrumento neutro e passa a ser entendida como um mecanismo de governança, capaz de reproduzir desigualdades ou, alternativamente, de promover justiça social. Assim, enquanto a visão clássica naturaliza a moeda como alheia às vontades humanas (reduzindo-a a uma questão de eficiência mercantil), Knapp a coloca no centro do debate democrático, questionando para quem ela serve, como é gerida e quais fins públicos deveria priorizar. Essa distinção conceitual, em relação aos clássicos, sobre a origem da moeda e do mercado, como criações históricas, ao invés de fenômenos naturais, é essencial para a compreensão da inseparabilidade do caráter político, social e cultural em relação ao econômico. Compreender isso pavimenta 4 Qualquer objeto com valor econômico poderia ser utilizado como meio de pagamento (o que poderia ocorrer, no entanto, é que, devido a sua falta de liquidez, o objeto perca valor de mercado). O ponto chave é quem tem o poder de determinar a moeda e por qual motivo as pessoas aceitariam essa moeda. 5 Lerner (1943) ao descrever a moeda como uma “criatura do Estado”, enfatiza que a moeda é, acima de tudo, uma instituição política e que, portanto, sua existência, valor e função dependem de escolhas coletivas sobre como organizar a sociedade – e não de “leis naturais do mercado”. 17 caminhos para compreensões mais profundas sobre o papel da moeda, do mercado e, principalmente, do Estado. 2.2 A Lei de Ferro dos Salários e a “Moralidade” Liberal. Diferentemente de Smith, que compreendia que o mercado deveria estar subordinado a valores éticos e sociais, Ricardo (1817/1996) tinha uma visão do mercado como um sistema autônomo que operava de acordo com “leis naturais”. Para ele, o Estado possuía apenas a função de garantir a propriedade privada, pois as intervenções do Estado distorceriam as leis econômicas “naturais”, que ajustariam automaticamente a relação entre salários e população. Quando o preço de mercado do trabalho é inferior ao seu preço natural, a situação dos trabalhadores torna-se miserável: sua pobreza priva-os daqueles confortos que o hábito torna absolutamente necessários. Somente depois que as privações reduziram o número de trabalhadores [...] o preço de mercado do trabalho subirá até o preço natural, e o trabalhador então terá os confortos moderados que a taxa natural de salários lhe permite. (RICARDO, 1817/1996, p. 68). Ricardo descreve o preço natural do trabalho como o valor mínimo necessário para que os trabalhadores possam sustentar a si mesmos e suas famílias, permitindo a reposição da força de trabalho, ao longo do tempo. O preço de mercado do trabalho, por outro lado, é o salário efetivo pago aos trabalhadores, determinado pelas forças de oferta e demanda, no mercado de trabalho. Quando o preço de mercado está abaixo do nível de preços natural, os trabalhadores entram em um estado de miséria e privação. Essa situação, no entanto, seria temporária, porque a miséria reduziria a população trabalhadora (por mortalidade elevada, devido à pobreza extrema), o que eventualmente elevaria os salários de volta ao nível natural. Essa era a lei de ferro dos salários, a qual, para ele, era algo inevitável6. Para Polanyi (1944/2000), essa visão desumaniza os indivíduos e ignora as obrigações morais e sociais da sociedade para com seus membros, afinal, para ele, a pobreza não é natural, mas um produto das condições sociais e econômicas criadas pelo mercado auto-regulável. A tentativa de tratá-la como algo inevitável ou técnico expõe os limites éticos da análise clássica, 6 Ricardo acreditava que os salários possuíam uma tendência natural de se equilibrarem apenas quando correspondiam ao nível de subsistência. Ele descrevia esse processo não como algo ético ou desejoso, mas como uma condição técnica e inevitável da sociedade de mercado. 18 pois subordina as questões sociais aos desejos do mercado e serve como uma justificativa para a perpetuação de desigualdades. Uma economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado. [...] Uma economia de mercado deve compreender todos os componentes da indústria, incluindo trabalho, terra e dinheiro. [...] Acontece, porém, que o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o ambiente natural no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado. (POLANYI, 1944/2000, p. 93). O liberalismo econômico, com sua ênfase na auto-regulação dos mercados, tornou-se não apenas uma prática econômica, mas também uma ideologia ou, como diria Polanyi, um “credo”, que moldou as instituições, as políticas públicas e a visão de mundo da modernidade. No credo liberal, o mercado é considerado uma “ordem natural”, pois ele teria emergido espontaneamente de supostas leis inatas do comportamento humano e das forças econômicas universais, como a oferta e a demanda, o que mascara o fato de que os mercados auto- regulados foram deliberadamente criados e impostos. Dessa forma, ao interpretar que o mercado é fruto de uma ordem natural, qualquer regulação estatal, ou mesmo social, é vista como uma interferência antinatural, a qual pode ser interpretada como prejudicial ao funcionamento do mercado. Além disso, apresentar o mercado como uma “lei da natureza” confere-lhe um caráter lógico de inevitabilidade, dificultando sua contestação. Assim, a suposta eficiência que permeia o discurso liberal ao retratar o mercado como um auto-regulador perfeito, sendo, mesmo em situações de forte exploração e miséria, um ótimo alocador de recursos, bens e força de trabalho, não é questionada. Para o credo liberal, tudo isso se justifica. Qualquer sacrifício presente é a chave para ganhos futuros. Os economistas clássicos, com exceção de Smith, acreditavam que o mercado de trabalho só funcionava quando os trabalhadores eram obrigados a aceitar empregos para evitar a inanição, ou seja, que a necessidade de sobrevivência (a ameaça da fome) era o único incentivo suficientemente forte para compelir os trabalhadores a entrarem no mercado e aceitarem salários baixos. Malthus (1798/1996) propôs que a população tende a crescer mais rapidamente do que os meios de subsistência, levando inevitavelmente à escassez e à fome, o que, por sua vez, pressionaria os trabalhadores a aceitarem empregos para sobreviver. Mill 19 (1826) afirmava que os salários dos trabalhadores são regulados pelas condições de oferta e demanda no mercado de trabalho, vinculando isso à ideia de subsistência, de forma semelhante a Ricardo: os trabalhadores só aceitariam os salários oferecidos porque a alternativa a eles seria a miséria. Para ele, como para Ricardo, os salários, ao caírem abaixo do nível de subsistência, reduziriam a oferta de mão de obra e fariam com que os salários subissem novamente. Essa era a força reguladora do mercado de trabalho. Os crescentes sacrifícios vividos pelos trabalhadores não eram por acaso, pois eles seriam a chave para os ganhos futuros. A base teórica da austeridade como um sentimento, que perdura até os dias atuais, nasce desse discurso dúbio, no qual a exploração da força de trabalho humana, que é a base da acumulação de riqueza capitalista, seria o que levaria o indivíduo explorado ao seu próprio enriquecimento. Essa forma de explicação da economia foi amplamente aceita, pois ela introduziu à dinâmica econômica uma abordagem lógica e matemática, que se distanciava de explicações baseadas em tradições políticas ou filosóficas. Tal perspectiva concedeu aos economistas liberais o título de “técnicos”, pois estavam tentando qualificar e defender o funcionamento da economia em sua forma “pura”, por meio de uma análise objetiva e sistemática, sem julgamentos morais explícitos7. Dessa forma, qualquer aspecto social, político ou mesmo humano foi considerado secundário, perante as dimensões econômicas. “Um mercado auto- regulável exige, no mínimo, a separação institucional da sociedade em esferas econômica e política” (Polanyi, 1944/2000, p. 92). Como será apresentado adiante, essa separação é um pilar fundamental da austeridade. Por ora, o foco está em como essa separação dos aspectos políticos e sociais dos econômicos fez com que houvesse, também, uma separação dos economistas denominados “técnicos” daqueles que não seguiam a mesma abordagem “sistemática” e “racional”, os quais passaram a ser denominados de “utópicos” ou “ideológicos”. 7 Ricardo, por exemplo, não defendia politicamente a miséria, ele apenas acreditava que ela era uma consequência inevitável das forças de mercado e que nada poderia ser feito em relação a isso. Ele não propunha que a sociedade devesse permitir que os trabalhadores vivessem na miséria, mas sim que isso era a “ordem natural” do sistema econômico. Essa “ordem natural”, portanto, era o retrato da realidade e, por isso, não era vista como algo bom ou ruim, mas sim como uma explicação das forças impessoais e objetivos que governam a economia 20 Economistas que viam a economia como parte de um debate ético mais amplo, por centrarem seus argumentos em valores humanos e justiça sociais, ao invés da lógica do mercado auto-regulado, deixaram de ser considerados economistas técnicos, ou mesmo sérios. Essa tendência dos economistas liberais de reduzirem os aspectos sociais, políticos e humanos às dimensões econômicas, além de centralizarem o mercado como elemento principal na organização da sociedade, justificou as formas de exploração da força de trabalho, apresentando-as como necessárias, ou inevitáveis, para o progresso econômico: “O preconceito econômico foi ao mesmo tempo a fonte da teoria da exploração cruel do capitalismo primitivo e do equívoco, não menos cruel, porém mais erudito, que negou mais tarde a existência de uma catástrofe social” (POLANYI, 1944/2000, p. 195). A “tecnicidade” influenciou de dois modos a forma como a sociedade passou a ser vista e organizada: o primeiro se refere ao prestígio que os economistas passaram a ter em detrimento de outros cientistas sociais, pois qualquer fato social se tornou secundário quando comparado aos econômicos. O segundo se dá na maneira como esses economistas moldaram a própria economia. Essas duas frentes, ao andarem em conjunto, deram ao economista liberal um amplo poder imenso. Ao partirem dessa posição, que lhes garantia certo prestígio, suas opiniões mascararam-se como essencialmente técnicas e, dessa forma, estabeleceram “verdades”, pois essas opiniões foram postuladas de maneira a-histórica. Assim, os argumentos postulados por estes economistas modificaram, a favor de determinada classe social, a própria realidade econômica que eles analisaram. Na verdade, eles também partiram de opiniões cobertas de juízo de valores, ou seja, suas interpretações da realidade da sociedade por eles analisadas, e, junto a essas interpretações, suas posições políticas, não eram neutras, nem poderiam ter sido. Em última instância, é por isto que o controle do sistema econômico pelo mercado é consequência fundamental para toda a organização da sociedade: significa, nada menos, dirigir a sociedade como se fosse um acessório do mercado. Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico. A importância vital do fator econômico para a existência da sociedade antecede qualquer outro resultado. Desta vez, o sistema econômico é organizado em instituições separadas, baseado em motivos específicos e concedendo um status especial. A sociedade tem que ser modelada de maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as suas próprias leis. Este é o significado da afirmação familiar de que uma economia de mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado. (POLANYI, 1944/2000, p. 77). 21 Para Polanyi, no entanto, a ideia de um mercado auto-regulável simbolizava uma completa utopia, pois, em sua visão, o mercado só poderia existir às custas dos padrões de vida da sociedade em que ele fosse aplicado. Como mencionado, para existir um mercado auto-regulado, é necessária uma sociedade de mercado, a qual exige grandes sacrifícios das relações sociais, do meio ambiente e da estrutura da sociedade, como um todo, o que inevitavelmente pode desestabilizar a base da sociedade, gerando tensões, desigualdades e crises. A emergência do mercado auto-regulável, portanto, implicou uma transformação radical, na qual a economia deixou de ser uma função da sociedade e passou a dominá-la e, dessa forma, a vida social e as instituições políticas foram subordinadas às demandas do mercado, ou seja, a sociedade passou a ser uma função da economia. Assim, a economia de mercado passou a ser considerada como apenas um conjunto de trocas econômicas e não como uma construção institucional, dependente de regras, estruturas e práticas específicas para existir e operar. Essa construção institucional, para além de uma transformação econômica radical, transformou as bases discursivas e epistemológicas do liberalismo, ao longo do tempo. No início do liberalismo clássico, havia uma tentativa de descrever as dinâmicas econômicas como fenômenos naturais, regidos por leis universais, desvinculadas de julgamentos morais e, assim, sendo inevitáveis. Os economistas clássicos buscavam, então, descrever o mundo como ele realmente funcionava, não se preocupando em debater como o mundo deveria funcionar. Para eles, tentar moralizar o mercado ou a economia era, muitas vezes, sinônimo de ignorância ou utopia. Essa “imoralidade” era, paradoxalmente, um sinal de rigor científico. O mercado auto-regulável seria, nesse sentido, “imoral”. Essa mudança ocorre quando tal “ordem natural” deixa de ser apenas uma descrição técnica e passa a ser normativamente defendida como um ideal. Isso significa que o mercado não deveria apenas ser eficiente; ele seria, então, também justo. A ideia de que o mercado recompensa o mérito individual e penaliza a ineficiência, portanto, passou a ser considerada uma justificativa moral. O que era tido como “imoral”, dessa forma, passou a ser considerado “moral”. A miséria e o sofrimento causados pela lei de ferro dos salários, por exemplo, tornavam-se símbolos de uma moralidade virtuosa, pois refletiriam a “justa recompensa” pelos esforços individuais, estimulando o trabalho duro, a inovação e a disciplina. O mercado, em vista disso, passou a ser interpretado como um espaço, para além de eficiente e técnico, no qual a liberdade e as virtudes humanas podem ser 22 exercidas plenamente e qualquer intervenção em seu funcionamento passam a ser vistas não só como ineficientes, mas como imorais, pois restringiriam a eficiência e a autonomia dos indivíduos. É em um tal contexto ideológico que surge a austeridade, ainda que sobretudo como sentimento, além de uma busca por eficiência econômica e pública: enquanto o liberalismo era uma forma de reorganizar a sociedade em torno da lógica de mercado, a austeridade busca especificamente manter o poder e a hierarquia de classe, promovendo disciplina econômica e social, através dessas narrativas “morais”. Assim como o liberalismo, a austeridade rompe a linha do econômico, pois há nela um caráter mais amplo, que se relaciona também a questões do conhecimento e das práticas humanas. A austeridade é mais do que uma resposta às crises, afinal ela não pode ser definida apenas por práticas políticas e econômicas: ela é um sustentáculo da estrutura de pensamento liberal, moldando subjetividades e racionalidades em diversas esferas (educação, saúde, cultura, etc.), reforçando um horizonte cognitivo amplo do liberalismo (e, futuramente, do neoliberalismo), que reestrutura como os sujeitos percebem o mundo e a si mesmos. Desse modo, é de suma importância a compreensão do sentimento austero como algo que, desde a origem do liberalismo, fez parte ativa do planejamento e da implementação da sociedade de mercado; de como o “preconceito do economista” deu a essa implementação um viés autoritário, ainda que lógico, classificando qualquer alternativa a ela como “utópica”, “irrealista” ou “ideológica”; e como essa implementação forçada moldou a compreensão da liberdade e da subjetividade humana, através de distorções das definições do que é considerado “racional”, “virtuoso” e “técnico”. Isso, mais uma vez, porque os mercados seriam uma “autoridade cognitiva”, que moldam as decisões, em diferentes esferas, não apenas a econômica. A austeridade, portanto, não é uma criação neoliberal, mas sim uma ferramenta histórica recorrente, que atravessa diferentes regimes econômicos e políticos. Ela transcende a era neoliberal porque é um método histórico e estrutural de controle do capitalismo, o qual será melhor detalhado no próximo capítulo. 23 3. A AUSTERIDADE COMO UM PROJETO POLÍTICO 3.1 A Tríade Progressiva Durante a I Guerra Mundial, o Estado tornou-se o pivô da economia de todos os países nela envolvidos. Na maioria dos casos, os Estados apossaram-se direta ou indiretamente de parte dos meios de produção. Somado a isso, o investimento público alcançou níveis nunca antes vistos. Os impactos econômicos da I Guerra Mundial não poderiam ter sido imaginados antes de ela, de fato, ter acontecido. Afinal, a propriedade privada dos meios de produção e as relações salariais entre proprietários e trabalhadores foram, muitas vezes, controladas pelo braço estatal durante aquela guerra. Dessa forma, pelas noções de inviolabilidade e de naturalidade da propriedade privada e das relações salariais (os dois pilares do capitalismo de mercado) terem sido rompidas, o cenário sócio-político do pós guerra tinha potencial para alterar as estruturas do capitalismo baseadas no “livre mercado” e, assim, formas de pensamento totalmente novas se tornaram possíveis. Em seu memorando sobre a reconstituição do financiamento ao governo, Addison8 foi inflexível em afirmar que “não seria defensável dizer que propostas vitais não foram aprovadas por falta de dinheiro. Ninguém vai acreditar nisso.” (MATTEI, 2023, p.93). Para Polanyi, a mercantilização do trabalho (a base das relações assalariadas) e da terra (a base da propriedade privada) não são naturais, mas frutos de uma mercantilização “fictícia”. Para ele, a ideia de que trabalho, terra e dinheiro podem ser tratados como mercadorias é um fenômeno destrutivo dos tecidos sociais dentro de uma sociedade de mercado, pois transforma elementos fundamentais da vida em objetos de troca, ignorando que suas funções sociais, culturais e ecológicas vitais não podem ser reduzidas à lógica mercantil. Trabalho, terra e dinheiro, por essência, não são mercadorias, pois não atendem à sua definição: algo produzido para ser vendido no mercado. Trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria. Eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e 8 Christopher Addison (1869-1951) foi um político inglês que, durante a IGM, serviu como Ministro das Munições e, posteriormente, como ministro da saúde. Ele argumentava que, tal qual houve um grande aumento dos gastos governamentais durante a guerra, deveria haver no pós guerra. 24 vendido tem que ser produzido para venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para venda, mas por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido, mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia. (POLANYI, 1944/2000, p. 94). Ao tratar o trabalho como mercadoria, a economia de mercado exige que a força de trabalho humana seja comprada e vendida como qualquer outro produto. Isso desconsidera que o trabalho está intrinsecamente ligado à vida humana, com suas necessidades e dignidade. Esta suposta mercadoria, “a força de trabalho”, não pode ser impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não-utilizada, sem afetar também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar. Ao dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do “homem” ligado a essa etiqueta. (POLANYI, 1944/2000, p. 95). Além disso, com a terra (meios de subsistência) transformada em mercadoria e a economia organizada em torno do salário, os trabalhadores perdem a liberdade de viver do seu próprio trabalho, sendo, assim, forçados a vender sua força de trabalho para evitar a fome. Como exemplificado no capítulo anterior, o mercado auto-regulável promoveu a concepção de que a liberdade humana encontra sua expressão máxima nas trocas voluntárias do mercado. Essa “liberdade”, exaltada pelo mercado, ao mesmo tempo em que, para Polanyi, excluiu a maior parte dos indivíduos (os trabalhadores) da possibilidade de uma existência digna e segura, a assegurou para outra menor parte (os poupadores). A mercantilização dos fatores de produção reorganizou as relações de poder hierárquicas do capitalismo. Ao dividir a sociedade entre trabalhadores e poupadores, a mercantilização também os separou moralmente: enquanto os indivíduos que poupam e investem são compreendidos como seres moralmente superiores, dotados de virtudes como disciplina, ética e racionalidade, os trabalhadores, que não conseguem acumular riqueza, são associados à imprudência, falta de planejamento ou até mesmo carência de qualidades morais. Essa narrativa, além de classista, ignora as condições materiais e estruturais que determinam quem pode ou não poupar, afinal, para poupar, é necessário sobrar dinheiro após a os gastos essenciais para garantir a sobrevivência, o que, para trabalhadores precarizados, não ocorre. 25 A “escolha” de um trabalhador precarizado de poupar é, portanto, inexistente, pois a narrativa econômica por trás de caricatura do “poupador racional” é, na verdade, um discurso de poder que transforma desigualdades materiais em hierarquias morais. Zini (1920), questiona a noção de liberdade da economia de mercado, centrada no indivíduo. Para o filósofo italiano, “liberdade e o trabalho são termos conjugativos9”. Essa interpretação “espiritualiza o trabalho, tornando-o, finalmente, um valor de civilização”, algo que nunca foi dentro da sociedade de mercado. Ou seja, ao analisar o período Pós I Guerra Mundial, no qual as reivindicações populares estavam colhendo maiores frutos, o trabalho passara a ser interpretado como algo mais elevado e significativo, indo além de sua dimensão material. Gramsci também interpreta essa questão de forma dual: se, por um lado, a tecnocracia austera trata a classe operária como um rebanho, como animais desprovidos de qualquer virtude, por outro lado, ao passo em que o trabalho deixa de ser apenas uma necessidade econômica ou uma obrigação física para se tornar algo “civilizatório” - ou seja, um elemento que contribui para o progresso moral e cultural da humanidade e, dessa forma, reconhece-se sua dignidade e virtude intrínsecas – ele humaniza o trabalhador. O trabalhador, nesse contexto, é mais do que posse, engrenagem, objeto ou um ser irracional: é um ser humano. O ser humano, ao consumir, está utilizando o trabalho de outro. Assim, em um mundo onde todos são consumidores, faz-se necessário, ao consumir o trabalho do outro, fornecer algo em compensação. Dessa forma, aquele que vive somente dos frutos do trabalho do outro é alguém nocivo à sociedade. O poupador-investidor, na ótica de Zini, é um parasita do trabalho e, portanto, da liberdade alheia e, consequentemente, toda sua riqueza seria ilegítima. As desigualdades das posições nas relações de produção impossibilitam relações genuinamente democráticas entre seres humanos “livres e iguais”. Se uns possuem a liberdade de viver apenas da poupança, isso se dá às custas da servidão de outros. A pobreza moderna, então, não é um reflexo de falta de riqueza, mas de como a riqueza é produzida e distribuída sob o capitalismo. Os ganhos econômicos são frequentemente alcançados pela exploração de 9 Zini, ao afirmar que liberdade e trabalho são “termos conjugativos”, está relacionando um ao outro de forma complementar e interdependente. Ou seja, ao invés de serem conceitos separados, liberdade e trabalho se influenciam mutuamente. Além disso, ao “espiritualizar o trabalho”, Zini propõe uma “elevação” do conceito de trabalho, pois ele deixaria de ser apenas uma imposição da “ordem” econômica e passaria a ser visto como um elemento essencial da dignidade humana e do progresso civilizatório. 26 recursos humanos, o que enquanto gera riqueza para alguns, gera pobreza para outros. A miséria dentro do sistema de mercado não é um acidente, mas uma característica intrínseca de como as econômicas geralmente funcionam. Entretanto, enquanto o trabalho, através de sua relação com a liberdade e com o coletivo, humaniza os trabalhadores para Zini, em contrapartida, para os economistas da austeridade, seria a falta de virtudes morais dos trabalhadores que faria do trabalho nada além do que uma mercadoria complementar do processo econômico. As intervenções públicas de Pantaleoni 10 demonstravam sua crença em que a condição econômica das classes trabalhadoras refletia sua falta de méritos sociais e econômicos: “Levando tudo em consideração, parece óbvio que as classes de renda mais baixa são significativamente deficientes em qualidades comparadas às outras. De modo que essa deficiência é a causa da renda mais baixa, não é a renda mais baixa a causa da deficiência”. Os membros das classes trabalhadoras eram assim porque sofriam de vícios incuráveis, como o consumo excessivo, e porque dependiam de um sistema econômico mais perfeito, povoado por poupadores. Ser pobre ou da classe trabalhadora era uma escolha e uma patologia. (MATTEI, 2023, p. 303). Nessa concepção, o capital é priorizado em relação ao trabalho. Para Marx (1867/2013), no entanto, o capital é um processo de acumulação incessante que ocorre através da exploração da força de trabalho do proletariado. Desse modo, o capital é uma relação social, econômica e política de dominação e exploração da classe burguesa sobre a classe operária. Essa relação se perpetua ao longo da história através da posse da propriedade privada dos meios de produção, por uma minoria, e da necessidade da venda da força de trabalho em troca de salários, pela maioria. Assim, a compreensão do trabalho como uma mercadoria secundária, ou seja, como uma mercadoria como qualquer outra, baseia-se em uma percepção do capital como uma força autônoma da sociedade, quando, em sua essência, ele não é autônomo, pois depende da exploração do trabalhador. O trabalho - ou melhor, a força de trabalho - é a mercadoria central do sistema capitalista, pois ela é a única tanto capaz de possuir quanto de gerar valor. Dessa forma, a economia de mercado, a qual retira do trabalho seu fator humano e o mercantiliza como se fosse uma mercadoria qualquer, é uma economia fadada a tensões políticas, humanas e econômicas. 10 Maffeo Pantaleoni foi um importante economista italiano, arquiteto da austeridade e, posteriormente, conselheiro da ditadura de Mussolini, o qual será melhor destacado durante a discussão sobre o caso italiano. 27 De fato, a natureza utópica de uma sociedade de mercado não pode ser mais bem ilustrada do que através dos absurdos com os quais a ficção mercadoria, em relação ao trabalho, envolve a comunidade. A greve, essa arma normal de barganha da ação industrial, era considerada, cada vez com mais frequência, como uma interrupção injustificada do trabalho socialmente útil e que ao mesmo tempo diminuía o dividendo social do qual em última instância provinham os salários. As greves de apoio provocavam ressentimentos, as greves gerais eram vistas como ameaça à existência da comunidade. De fato, as greves nos serviços vitais e de utilidade pública mantinham os cidadãos presos, enquanto os envolviam nos problemas labirínticos das verdadeiras funções de um mercado de trabalho. Supõe-se que o trabalho encontre o seu preço no mercado, e qualquer preço além do estabelecido por ele é considerado antieconômico. Enquanto o trabalho corresponde a essa responsabilidade, ele comportar-se-á como um elemento na provisão daquilo que ele é, a mercadoria “trabalho”, e recusar-se-á a vender abaixo do preço que o comprador pode se permitir pagar. Seguido esse raciocínio, isto significa que a principal obrigação do trabalho é estar em greve quase que continuamente. A proposição pode ser considerada um mero disparate, mas ela é a única inferência lógica a partir da teoria do trabalho como mercadoria. A fonte da incoerência entre teoria e prática é que o trabalho não é realmente uma mercadoria, e se o seu fornecimento fosse sustado para atingir um preço satisfatório (como acontece com o abastecimento de todas as outras mercadorias, em circunstâncias similares), a sociedade logo teria que se dissolver por falta de sustento. (POLANYI, 1944/2000, p. 269). Protestos por emancipação social passaram a ser constantes em vários países da Europa no pós I Guerra Mundial. Em resposta aos sacrifícios a que foi submetida durante a guerra, a classe trabalhadora, através de greves, almejava por mudanças estruturais nas condições econômicas no imediato pós guerra, por meio de políticas fiscais, monetárias e industriais expansionistas que valorizassem o trabalho e o trabalhador, como, por exemplo, seguro obrigatórios contra acidentes de trabalho, valorização salarial, educação e saúde universais, impostos progressivos, política de crédito favorável, juros baixos e uma política de harmonia industrial, através do maior controle dos trabalhadores nas empresas. A produção para o lucro não prevaleceria mais sobre a produção para a necessidade coletiva e, dessa forma, a centralidade e eticidade do trabalho, como um garantidor de liberdade e democracia, estaria garantida. Para Mattei, “essa ‘trindade progressiva’ de políticas fiscais, monetárias e industriais garantiria eficiência, altos níveis de emprego e justiça social” (2023, p 94). As prioridades do sistema econômico no Pós Guerra mudaram. Uma crise na legitimidade do mercado auto-regulador fez com que o limite do politicamente possível fosse expandido. Recursos foram transferidos do capital privado para a coletividade e o velho credo econômico do laissez-faire parecia ter sido superado. Um novo horizonte parecia possível: o de uma sociedade que não se limitasse apenas à “liberdade” promovida pelo mercado, mas uma liberdade que, nos termos de Polanyi, “reembutisse” o horizonte econômico no campo 28 democrático. A linha que separava o econômico do político estava cada vez mais tênue, pois a emancipação política só se faz possível junto à econômica. O real valor histórico desse movimento, para Gramsci (1920), não consistia apenas em uma nova forma de interpretar a realidade, mas na possibilidade de mudá-la. Os homens devem pôr em prática um sistema de relações sociais e de organização econômica que consiga a máxima liberdade e expansão de cada indivíduo. Esta liberdade mede-se, na prática, pela transformação que o homem é capaz de realizar no meio em que vive, tornando-o cada vez menos cego, cada vez menos fatal, de modo a poder mover-se nele de tal forma que a realidade adira intimamente a ele, sem o sufocar, sem o arrastar. (GRAMSCI, 1920. Tradução própria). Além disso, como mencionado anteriormente, a produção para o lucro não prevaleceria mais sobre a produção para o uso. O objeto central da ciência econômica não poderia mais ser considerado o lucro, mas o ser humano. Entretanto, não é qualquer ser humano que Gramsci está se referindo: eram os proletários, que assumiriam a condição de protagonistas de um processo político rumo a um novo sistema econômico. O que significa estudar objetivamente as leis da riqueza? Nós também somos favoráveis a esta “objetividade”, quando ela inclui a consideração do homem como um todo, das suas paixões, das suas tendências, dos seus preconceitos. Como é possível estudar a produção e não considerar o maior produtor, o homem? A natureza (matérias-primas) e os instrumentos técnicos só têm valor econômico se os considerarmos em relação ao homem, que está no centro da economia, de onde tudo parte e para onde tudo volta. (GRAMSCI, 1920. Tradução própria). Por último, a compreensão da íntima relação de dependência entre os pressupostos econômicos e a condição de vida da classe trabalhadora era um importante ponto para a emancipação econômica, política e social do trabalhador. Consideramos que a economia “pura”11 é uma utopia [...], um instrumento conveniente para certos economistas burgueses que, sob o critério da “objetividade”, gostariam de reduzir a economia a um monopólio dos competentes mandatários da classe a que pertencem e a que servem fielmente. [...] A economia não é, portanto, a ciência da realidade econômica tal como ela é, mas como as pessoas a querem construir. [...] Assim, a economia não é uma ciência, senão na medida em que é uma prática, uma vontade, uma força que se realiza. (GRAMSCI, 1920. Tradução própria). 11 A economia pura era um campo teórico da economia que se apresentava como uma ciência neutra e apolítica, separada das questões sociais, políticas e morais. 29 É nesse contexto que surge a austeridade como um contra-ataque às aspirações de uma nova ordem do capital. Através dos “especialistas em finanças e economia”, a tríade da austeridade entra em ação: medidas austeras em suas formas fiscais, monetárias e industriais, operando de forma combinada para restabelecer a divisão do econômico e do político, a fim de naturalizar as relações assalariadas e destruir maiores possibilidade de ação das camadas populares. 3.2 A Tríade Austera As políticas econômicas restritivas são interpretadas no credo econômico liberal como uma forma de “economia saudável”, na qual as contas públicas se “equilibram” em torno de uma certa racionalidade. Nesse contexto, a austeridade é interpretada como uma ferramenta econômica voltada para o equilíbrio fiscal de um país. Entretanto, essa interpretação é propositalmente simplista e ignora os verdadeiros propósitos da austeridade: a disciplina da classe trabalhadora e a manutenção da ordem política, econômica e social do capitalismo. Dessa forma, a austeridade é um sustentáculo político do capitalismo utilizado para reprimir demandas populares por distribuição de riquezas e com o intuito de manter a hierarquia de classes dentro do sistema que, através da tríade austera, revela o seu método pragmático. A austeridade, portanto, não é uma simples ferramenta econômica de equilíbrio baseada na tecnicidade dos “especialistas” econômicos, mas uma escolha política desses “especialistas” para favorecer o capital em detrimento do trabalho (Mattei, 2023). A austeridade fiscal é a forma mais popular da tríade austera, as vezes sendo, devido a um proposital esvaziamento feito pelo discurso econômico dominante sobre o debate austero, mal interpretada como representando a totalidade por trás da austeridade. Em linhas gerais, a austeridade fiscal refere-se a cortes nos investimentos públicos e tributação regressiva12, o que, ao causar uma redução na demanda agregada – pela redução da renda na mão do 12 Tributação regressiva é aquela em que a carga tributária é proporcionalmente maior para pessoas ou grupos de renda mais baixa, em comparação com aqueles de renda mais alta. Geralmente, esses impostos incidem sobre bens e serviços (impostos indiretos) e não levam em conta a renda ou capacidade de pagamento dos indivíduos. Por outro lado, uma tributação progressiva ocorre quando a carga tributária é maior, em termos percentuais, para as faixas de maior renda. 30 trabalhador devido a tributação e pelo menor nível de investimentos devido aos cortes – serviriam também para diminuir a pressão inflacionária, além da “dívida pública”. A austeridade monetária, através do aumento da taxa de juros, reforça os objetivos da austeridade fiscal, ao reduzir a quantidade de crédito e de liquidez na economia. Ambas políticas retiram poder de investimento dos governos – seja a austeridade fiscal, pelos cortes orçamentários, ou a austeridade monetária pelo aumento dos juros – e aumentam o poder econômico dos “poupadores” (os detentores de riqueza e liquidez). É dessa forma que austeridade fiscal e monetária se reforçam simultaneamente. A austeridade monetária também está intimamente relacionada com a austeridade industrial, que é a menos debatida das três, mas em conjunto com as duas outras formas de austeridade, elimina por completo qualquer forma de reação popular à tríade. A austeridade industrial é um mecanismo de disciplina econômica e social imposto pelo capitalismo financeiro para fortalecer o poder das elites industriais e financeiras. Dessa forma, as medidas austeras no âmbito industrial são as que reforçam a desindustrialização do país, como, por exemplo, o fechamento ou privatização de industrias estatais (muitas vezes justificadas como “ineficientes”), a precarização das condições e trabalho, como a redução de salários, aumento das jornadas de trabalho, cortes em direitos trabalhistas e o enfraquecimento de sindicatos. Taxas de juros elevadas como consequência de políticas monetárias austeras reduzem a quantidade de investimentos na economia. Como são os investimentos que determinam o nível de emprego, o nível de emprego que determina os salários, e os salários que determinam o consumo, a relação entre a austeridade monetária e industrial, a qual se destaca pela disciplina das fábricas e custos de produção mais baixos, é notória. Em poucas palavras, a definição dos gastos e das taxas de juros serve como base para determinar salários e desemprego A diminuição salarial, primeiramente, reduz os custos de produção. Com relação a taxas de câmbio, custos de produção mais baixos reduzem os preços das commodities, o que resulta em um aumento das exportações e, de modo complementar, salários mais baixos também reduzem a importação, acarretando um duplo efeito positivo na taxa de câmbio real. 31 Entretanto, o aumento do nível de desemprego como consequência de políticas fiscais e monetárias restritivas não se reduz somente ao salário agregado - e, consequentemente, à demanda agregada de uma nação - e aos preços das commodities, mas também se refere à garantia da “paz industrial”. Para Kalecki (1943, p.326), a “‘disciplinas nas fábricas’ e ‘estabilidade política’ são mais apreciadas pelos líderes empresariais do que o lucro. Seu instinto de classes lhes diz que o emprego pleno e duradouro é doentio [...] e que o desemprego é uma parte integrante do sistema capitalista ‘normal’”. Desse modo, a austeridade industrial é mais uma forma na qual a classe trabalhadora é enfraquecida politicamente. A disciplina dos trabalhadores é garantida pelo aumento do desemprego e pela forma como as relações de produção capitalistas retomam a sua incontestabilidade. Em poucas palavras: “trabalhar mais, consumir menos”. Uma classe trabalhadora enfraquecida é aquela cuja pressão por políticas redistributivas estão subordinadas às austeras prioridades de deslocamento de recursos de muitos para poucos e impostas de cima para baixo. Na medida em que os recursos disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência se tornam mais escassos, mais suscetível o trabalhador se encontra e, dessa forma, mais sujeito às relações de trabalho opressivas ele está. Somado a isso, o aumento do desemprego eleva o tamanho do que Marx (1867/2013) denominou “exército industrial de reserva”13, o que, por si só, já reduz o poder de negociação dos sindicatos, diminuindo os salários agregados e induzindo a um aumento da competição interna entre os trabalhadores, deslocando a culpa da falta de empregos dos empregadores para os empregados. Cria-se sistematicamente um exército industrial de reserva sempre disponível, dizimado durante parte do ano pelo mais desumano trabalho forçado e, durante a outra parte, degradado pela falta de trabalho. (MARX, 1867/2013, p. 672). Em uma economia aos moldes do livre mercado, o desemprego não é apenas uma consequência ou um fato econômico, mas uma necessidade. A ordem do capital exige que um número crescente de desempregados exista para, assim, a competição entre eles se tornar algo 13 O exército industrial de reserva refere-se a uma parcela da população que, ao estar subempregada ou desempregada, torna-se disponível para ser contratada para qualquer emprego. Esse conceito é fundamental para compreender como desemprego e subempregos são elementos estruturais e necessários para a manutenção do sistema capitalista como usualmente ele funciona, garantindo tanto a submissão da classe trabalhadora. 32 estrutural, pois a própria existência desses indivíduos nessas condições garante ao mercado menores custos trabalhistas. Dessa forma, independente do grau de exploração que o emprego privado tenha, existirão trabalhadores dispostos a enfrentar essa competição imposta pelo livre mercado, o que naturalmente disciplina os trabalhadores. A tríade austera, portanto, funciona da seguinte maneira: Austeridade Fiscal → Austeridade Monetária: Através de cortes orçamentários e do aumento da regressividade da tributação, há a transferência de recursos da maioria dos cidadãos (trabalhadores) para uma minoria (poupadores-investidores). Austeridade Monetária → Austeridade Fiscal: Através do aumento da taxa de juros, há a redução de créditos na economia, o que, aprofunda a diminuição de investimento e consumo causada pelos maiores cortes orçamentários causados pela maior austeridade fiscal necessária. Austeridade Monetária → Austeridade Industrial: Juros elevados desincentivam o consumo e os investimentos privados, reduzindo o mercado interno para os produtos industriais. A expectativa de menos consumo impacta negativamente no investimento (que já está impactado pelos juros mais altos), acarretando em maior desemprego. Austeridade Industrial → Austeridade Monetária: A austeridade industrial garante, através da redução do custo de produção, salários mais baixos. A redução de custos, por um lado, diminui o preço das commodities, aumenta o nível de exportações e garante competitividade internacional e causam um efeito positivo em relação aos preços relativos à moeda. Por outro lado, salários baixos diminuem o grau de importação e, novamente, melhoram o preço relativo. Austeridade Industrial → Austeridade Fiscal: Maior desemprego garante uma classe trabalhadora com menos poder político para reivindicar melhorias, pois há uma ampliação da quantidade de desempregados no exército de reserva de mão de obra e, desse modo, menos pressão contrária a novas medidas fiscais austeras. Austeridade Fiscal → Austeridade Industrial: Medidas fiscais austeras significam mais cortes orçamentários, desempregos, maior exército de reserva e menos poder político para a classe trabalhadora. 33 Elaboração Própria Dessa forma, conclui-se que os discursos austeros - classificados como apolíticos, neutros (pela ótica de classes) e frutos da “racionalidade econômica” - são, na verdade, profundamente políticos, classistas e, dentro da narrativa liberal, “morais”. A economia da austeridade, com as suas recomendações de cortes orçamentários (principalmente no que tange a gastos com direitos fundamentais, como previdência social, saúde, moradia, educação e pleno acesso a empregos de qualidade), de tributação regressiva, de deflação, de privatizações e de desregulamentações trabalhistas, tornou-se, atualmente, quase que um sinônimo de um programa econômico em si. A natureza retroalimentadora da tríade austera garante que sua aplicação se torne, ao ser imposta, compulsória. “Nenhuma arma física poderia ter sido tão poderosa quanto esse quadro teórico para remover a capacidade de ação dos trabalhadores e justificar o lucro” (MATTEI, 2023, p. 408). O pensamento dos “especialistas econômicos” de que o foco da austeridade é a recuperação de indicadores econômicos (como equilíbrio orçamentário e controle do nível de preços) é falso. Mesmo que a austeridade não alcance os objetivos econômicos pelos quais ela foi imposta, ela não falha em seu objetivo central: a despolitização do processo econômico através do fortalecimento das forças do mercado como impessoais, ou seja, transcendendo relações de classe. Assim, do mesmo modo que a austeridade enquanto ideia obteve seu principal alicerce na “tecnicidade” liberal, a austeridade como prática obteve seu apoio na tecnocracia: a crença, para além da separação do político do econômico, da separação da ciência econômica das outras ciências humanas. Tal qual as ciências exatas - na qual não há interpretações de, por exemplo, se a matemática, física ou química são “de esquerda” ou “de direita”, “expansiva” ou “restritiva” – a economia se transformaria em uma ciência de caráter lógico indiscutível. A interação entre políticas monetárias, fiscais e industriais de austeridade cria um ciclo de retroalimentação que enfraquece toda a produção de um país, retraindo possíveis crescimentos e deixando o ambiente econômico ainda mais estagnado. Menor crescimento gera menor arrecadação, que pode gerar a necessidade de taxas de juros cada vez maiores e, com isso, mais restrições ao crescimento, retirando das mãos do Estado e/ou da população qualquer mecanismo de reação. 34 Se, em um primeiro momento, a austeridade tem como função salvaguardar as relações produtivas capitalistas em detrimento da própria economia, em um segundo momento o objetivo é outro: tornar a crise econômica em uma economia da crise. Políticas e práticas econômicas, como a tríade austera, operam e se perpetuam a partir da própria lógica da crise. Assim, a normalização da crise se torna uma ferramenta de controle político e reestruturação econômica. Qualquer problema de natureza econômica, portanto, não seria um problema sistêmico, pois não há alternativas ao sistema. Os sintomas da crise do capital – como as greves e a queda na taxa de lucro dos capitalistas –, da crise econômica – como a inflação e os déficits orçamentários – e da economia da crise – como o desemprego estrutural permanente a miséria e a falta de oportunidades – seriam reflexos da falta do comportamento virtuoso dos indivíduos e/ou do Estado. Não haveria espaço, assim, para se pensar na necessidade social coletiva quando, primeiro, a liberdade econômica do indivíduo está ameaçada. Ao colocar os trabalhadores em competição uns contra os outros e, com isso, fragmentar a classe trabalhadora, a austeridade reproduz o que Marx denominou de alienação. Para Marx (1844/2015), a alienação ocorre quando o trabalhador é separado dos frutos do seu trabalho, do processo de produção, de si mesmo e/ou dos outros trabalhadores. O trabalho, como debatido, é um valor de civilização, na qual o ser humano consegue se realizar como um ser humano pleno. Porém, a economia de mercado, ao reduzir o trabalho à sobrevivência, retira do trabalhador os frutos de seu trabalho, tornando-os externos ao próprio trabalhador e, dessa forma, transformam o trabalho em uma fonte de esvaziamento da identidade do trabalhador. Quando o trabalhador é separado do produto do seu trabalho, ele, simultaneamente, é afastado de si mesmo e dos outros trabalhadores. A desumanização do trabalho passa pelo fato de que ele, ao deixar de ter sua humanidade valorizada, deixa de se sentir membro de uma coletividade. Isso reforça a ideia de que os problemas sociais (e, portanto, as soluções dos problemas sociais) são individuais quando, na verdade, são coletivas. A austeridade, nesse sentido, não é apenas um método de despolitização do econômico, mas também de despolitização dos desejos humanos, os quais passam a ser necessidades imediatas e individuais, como um salário melhor ou emprego estável, porém sem questionar o sistema econômico que se estrutura em cima dessa despolitização. 35 A austeridade, portanto, não mantém seu poder apenas pela força de sua tríade em não ser contestada, mas também pelo controle das ideias e dos valores sociais que são causados através da naturalização da exploração e da desigualdade oriunda da própria tríade. Dessa forma, para recuperar a ordem do capital no conflituoso Pós I Guerra Mundial, diversas economias europeias utilizaram-se da austeridade como seu sustentáculo. Os governos europeus e seus bancos centrais impunham o comportamento “adequado” (isto é, apropriado em termos de classe) aos trabalhadores, a fim de resgatar a acumulação de capital pelos ricos. As três formas de políticas de austeridade - fiscal, monetária e industrial - trabalharam em uníssono para exercer uma pressão de redução sobre os salários entre o restante da sociedade. O objetivo era transferir a riqueza e os recursos nacionais para as classes altas, que, insistiam os especialistas econômicos, eram as únicas capazes de poupar e investir. (MATTEI, 2023, p. 26). Como anteriormente mencionado, a austeridade funciona como um contra-ataque dos capitalistas que, para preservar o capital, transformam uma crise sociopolítica em uma crise econômica e, no longo prazo, por retirar alternativas à crise econômica, fazem dela uma economia da crise. Entretanto, quando a crise econômica e social se torna perene, ela produz um efeito colateral na sociedade: um aumento, também constante, da violência. Quando as pessoas de classes socioeconômicas mais baixas são forçadas a pagar por problemas criados pela elite, ao mesmo tempo em que essas pessoas da elite se eximem de qualquer responsabilidade, a tensão social se acentua. Crises econômicas têm a tendência de se tornarem crises políticas. Ademais, a perenidade da crise resulta na descrença quanto às formas democráticas de lidar com problemas sociais e econômicos enfrentados - como desemprego, desigualdade, baixo crescimento econômico, etc. Enquanto o Estado atuar em decisões políticas sob o véu da razão “técnica” do “apolítico” e do “economicamente necessário” - o que garantiria às decisões caráter “incontestável” -, não será através das vias delimitadas por esse mesmo Estado que as soluções advirão. Há, em uma sociedade desigual e austera – na qual a discrepância entre os do topo e os da base, a falta de possibilidade de emancipação e a exploração aumentam – o simultâneo aumento da violência e/ou o desejo de políticas não democráticas e violentas, racistas, etc. como solução. Não há solução democrática dentro da austeridade quando, primeiro, “não há alternativa” à austeridade e, segundo, a própria base social e política da austeridade é antidemocrática em sua origem. “Se necessário, a democracia teria que se curvar na busca da solidez econômica, e esse processo seria imposto. Pantaleoni [...] observou que 36 ‘onde o socialismo é forte, onde a democracia é forte, as finanças públicas seguirão o caminho errado’” (MATTEI, 2023, p. 206). Para Belluzzo e Galípolo (2017, p. 140) “debater a política fiscal é discutir os horizontes da democracia”. Entretanto, seguindo um caminho diametralmente oposto ao imaginado por eles, a austeridade mais isola a política econômica da interferência da maioria da população. O objetivo primordial dos especialistas da austeridade era proteger as medidas econômicas das influências da política e da intervenção do Estado; ao fazer isso, os economistas isentavam as políticas econômicas de um processo de decisão democrático ao mesmo tempo que apresentaram a teoria econômica como apolítica. Obviamente, conceber a teoria econômica como apolítica exigia um mercado irrestrito que fosse influenciado apenas pelas leis teóricas objetivas – feito que, em um momento de efervescência pública, só poderia ser alcançado blindando as decisões econômicas contra o público em geral. De fato, a natureza de despolitização e a estreita interdependência de suas três características principais (ou seja, a retirada do Estado das relações econômicas; a remoção das políticas econômicas do processo democrático de tomada de decisões; e a compreensão da teoria econômica como apolítica) ressaltam como a austeridade [...] era antidemocrática em essência e por natureza. Se combinarmos essa característica da austeridade com sua principal prescrição – sujeitar as classes trabalhadoras a produzir mais e consumir menos –, podemos, com facilidade, dizer que a austeridade foi (e ainda é) um projeto totalmente repressivo. (MATTEI, 2023, p. 230). Em concomitância ao pensamento da Mattei, Blyth argumenta que, em países com política austera: A democracia [...] não é um fim em si mesmo, uma vez que é pouco mais do que uma patologia causadora de inflação de que só regras e ponderação podem nos salvar. [...] A questão da legitimidade dessas políticas ou de como a presumida preferência por uma inflação baixa sobre todos os outros objetivos se torna a preferência de toda a sociedade, especialmente quando os que impõem essa preferência como política não querem consultar os eleitores, continua a ser conspícua pela sua ausência. (BLYTH, 217, p. 197). É justo afirmar, então, como vimos, que a política real se torna, em tal horizonte, menos democrática, causando desconfiança sobre si e sobre as políticas econômicas escolhidas e, assim, abrindo espaço para rupturas democráticas. 37 4. AUSTERIDADE NA PRÁTICA: O PERÍODO ENTREGUERRAS. A partir de agora, o foco será a análise da austeridade no solo europeu em três países no período entreguerras, analisando as semelhanças e as diferenças nas aplicações da austeridade em cada um deles: Grã-Bretanha, Itália e Alemanha. Revisitar os caminhos que levaram esses três países a adotarem a austeridade, e as consequências políticas dessa ação, é fundamental para se compreender os efeitos da austeridade nos dias atuais. 4.1 O Caso Britânico Durante a I Guerra Mundial, o governo britânico utilizou-se de uma economia expansiva e de bem-estar social para atingir a coesão política necessária em tempos de guerra, afinal, questões como equilíbrio orçamentário, distribuição de renda e inflação de preços e serviços se tornam irrelevantes quando há a possibilidade de se perder uma guerra. Entretanto, conquistada a vitória na I Guerra Mundial, o Estado expansionista e de bem-estar social, caso continuado, se tornaria um problema para as elites. O prêmio da reconstrução do pós-guerra já não era mais o controle democrático da indústria nem “uma casa adequada para os heróis”; era a “dura verdade” de “trabalho e sofrimento”. Essas ideias ressoaram entre seus colegas especialistas nas conferências. Lorde Robert Chalmers, ex-secretário permanente do Tesouro britânico, observou que, para recuperar o “equilíbrio”, a “dolorosa” solução era “trabalhar duramente. viver duramente, economizar duramente” (MATTEI, 2023, p. 196). A emancipação social na Europa conquistada pela classe trabalhadora era uma realidade. O direito a voto, nos três países analisados, foi plenamente adquirido somente após a I Guerra Mundial. Na Grã-Bretanha, o direito a voto para todos os seres humanos com mais de 21 anos (ou 19 anos, se tivessem servido na guerra) só foi adquirido, através de uma onda de protestos populares pressionando as elites por emancipação política, em 1918. Assim, a austeridade, em sua trindade, foi fundamental para refrear essas reivindicações e, como demonstrado, separar o campo político do econômico. Hawtrey - economista britânico e formulador do projeto austero da década de 1920 – concebia a economia como um sistema de créditos, o que limitava muito sua compreensão da realidade. Para ele, crises econômicas não seriam causadas por “mau gerenciamento” do 38 crédito pelos bancos e que, desse modo, poderiam ser ajustadas pela tecnicidade do agente econômico; elas são fruto de contradições estruturais do capitalismo de livre mercado, como a contradição entre capital e trabalho e entre acumulação privada e bem-estar social. A teoria “centrada no crédito” dos fundadores da austeridade, portanto, relegava as condições sociais e políticas em detrimento dos interesses econômicos da elite. A teoria “apolítica” desses economistas estava centrada em uma figura caricatural da teoria econômica: o poupador racional. Hawtrey (1950), por exemplo, acreditava haver dois tipos de consumidores: o parcimonioso (o qual, quando houvesse um aumento de renda, pouparia esse aumento) e o não parcimonioso (o qual, também havendo o mesmo aumento de renda, gastaria esse aumento). Em sua teoria, Hawtrey acreditava no pressuposto ortodoxo de que a poupança era o único modo de haver capital e, dessa forma, a única maneira de evitar uma espiral inflacionária. A decisão de poupar, portanto, vinha antes da de investir. Essa teoria, por um lado, retira poder econômico da classe trabalhadora e, por outro lado, dá muito poder para a classe capitalista – pois ela é a única que possui condições para poupar ou investir e, assim, nessa teoria, contribuir para o acúmulo de capital. Os capitais são aumentados pela parcimônia e diminuídos pelo esbanjamento e pela má administração. Tudo aquilo que uma pessoa economiza de sua renda, ela o acrescenta a seu capital: quer empregando-o ela mesma para manter um contingente adicional de mão-de- obra produtiva, quer dando possibilidade a outra pessoa de fazê-lo, emprestando-lhe o capital com juros, vale dizer, em troca de uma participação nos lucros. Assim como o capital de um indivíduo só pode ser aumentado por aquilo que poupa de sua renda anual ou de seus ganhos anuais, da mesma forma o capital de uma sociedade, que é equivalente à soma dos capitais de todos os indivíduos que a compõem, só pode ser aumentado dessa maneira. A parcimônia, e não o trabalho, é a causa imediata do aumento de capital. (SMITH, 1776/1996, p. 339). Para além disso, a lógica contrária também se faz válida: o consumo (que é a única atitude econômica disponível para o trabalhador) causaria o empobrecimento do país: Se a prodigalidade de alguns não for compensada pela frugalidade de outros, a conduta de todo perdulário, por alimentar os ociosos com o pão pertencente aos trabalhadores produtivos, tende não só a reduzi-lo à miséria, como a empobrecer o país. (SMITH, 1776/1996, p. 340). Entretanto, esse pensamento – de que o consumo é a única atitude econômica – é fruto de uma falácia de composição, ao assumir que o que é verdadeiro em nível individual (orçamento doméstico) também seria verdadeiro em nível agregado (orçamento 39 governamental), pois “assim como uma família não pode gastar mais do que ganha, o governo também não o deveria fazer”. Essa analogia, por ignorar as diferenças fundamentais entre os agentes tomadas individualmente e no agregado, é falha. No nível micro, a poupança (no sentido de abster-se de consumir) é vista como uma decisão individual de adiar o consumo presente para consumir no futuro. Nesse caso, a lógica é simples: se uma família gasta menos do que ganha, ela poupa. Dessa forma, a racionalidade microeconômica sugere que poupar é virtuoso, pois garante segurança financeira no futuro. No entanto, essa lógica não se aplica diretamente ao nível macroeconômico. No nível macro, a poupança não é apenas a soma das poupanças individuais, mas um conceito agregado que envolve a interação entre diferentes setores da economia, como famílias, empresas, governo e setor externo. A dinâmica da poupança macroeconômica é, assim, mais complexa, pois a poupança de um setor da sociedade é o déficit (“despoupança”) do outro setor e, portanto, se todos os indivíduos pouparem (o que é um dos pilares teóricos da austeridade), todos faliriam, na medida em que a economia se contrairia por redução de demanda14. A logica da poupança individual como virtude e o consumo individual como um vicio é, quando transposta do nível microeconômico para o macroeconômico, um erro teórico de grande parte a ciência e do liberalismo econômicos. Assim, investimentos governamentais, mesmo no contexto político da I Guerra Mundial, os quais eram essenciais para a garantia de recursos para a população e para a guerra, foram considerados por Hawtrey como sinônimo de imprudência e, dessa forma, poderiam, através de inflação, acabar com todo o sistema econômico do país. Uma vez que a inflação tenha começado, o déficit a ser coberto por meios inflacionários tende a se tornar rapidamente maior. E a deterioração logo será assustadoramente acelerada pela perda de confiança na moeda. [...] A inflação é uma praga mortal; uma vez que ela tenha ganhado uma base, irá envenenar todo o sistema econômico, e só pode ser eliminada, se é que pode, ao custo de esforços exaustivos. (HAWTREY, 1950, p 189). 14 Para Keynes, “a demanda agregada só pode ser derivada do consumo presente ou das reservas para o consumo futuro” (Keynes, 1936/1996, p. 124). 40 Além disso, para além dos investimentos governamentais durante a I Guerra Mundial, o impacto do aumento da qualidade de vida da classe operária no pós IGM seria o principal contribuidor para a inflação, pois (p. 191, tradução própria) “o nível salarial é o fator mais fundamental na inflação” e (p. 196, tradução própria) “a inflação é essencialmente a inflação do gasto dos consumidores, e, em tempos de guerra, as pessoas podem, como vimos, de várias maneiras, ser limitadas e restringidas em seus gastos”. Portanto, a única solução, para Hawtrey, era a de restringir a liberdade econômica da classe consumidora, através de uma política de dinheiro caro (austeridade monetária), de corte de gastos e de alta tributação regressiva (austeridade fiscal) e de redução do nível de empregos e dos salários agregados (austeridade industrial). Se a inflação realmente se apoderou, uma cura é quase impossível até que o orçamento nacional tenha sido equilibrado. Deve ser equilibrado a partir da receita, porque empréstimos não podem ser levantados; alta tributação e economia em gastos são os únicos meios de segurança. (HAWTREY, 1950, p. 197). Restringir a liberdade econômica, por natureza, é restringir a liberdade política. A austeridade, mesmo em países democráticos – como na Grã-Bretanha – é um caminho antidemocrático em sua essência. Dessa forma, meios de limitar a interferência política da população nas tomadas de decisões foram adotados. Como já mencionado, a tecnocracia exerceu o seu papel ao tornar a teoria econômica como algo apolítico. Assim, para além de, primeiramente, os desejos populares serem retirados das decisões políticas, também se fazia necessário que a possibilidade de qualquer interferência democrática futura posse eliminada15. É nesse contexto que a idealização do Banco Central como uma figura independente – ou seja, independentemente de instruções do governo, do parlamento ou de qualquer outra instituição – tornou-se o principal norte da “tecnicidade” econômica, pois, ao estarem “livres” de qualquer pressão política da população, suas decisões não poderiam mais ser questionadas. As resoluções da Conferência de Gênova 16 saíram da pena de Hawtrey, e vale a pena relembrá-las: “O retorno a uma moeda sólida será atendido se for depositada confiança na cooperação internacional dos bancos emissores, não na ação direta do governo”. Como “corporações privadas”, os bancos centrais devem ser “livres de 15 “Como salienta Polanyi, ao contrário do que propunha a retórica do laissez-faire, a sociedade integrada pelos mercados foi possível graças à intervenção do Estado. Essa intervenção não se daria apenas no momento da implantação do mercado auto-regulável, mas se daria perpetuamente”. (LUZ, COMPAGNOLI e FERNANDEZ. 2024, p. 88). 16 A Conferência de Gênova, de 1922, teve como objetivo discutir as questões econômicas e financeiras no contexto do pós I Guerra Mundial, com enfoque em como realizar a reconstrução econômica da Europa. 41 pressão política e ser conduzidos exclusivamente nas linhas da prudência financeira” Essas resoluções revelam a fé inabalável em um projeto tecnocrático, projeto que coloca o centro das decisões econômicas nas mãos de um órgão que não tem absolutamente nenhum compromisso democrático. Nesse sentido, e como Hawtrey explicitou: “O governo deve responder às críticas, pois sua estabilidade depende do apoio popular”. O Banco Central, em contrapartida, “é livre para seguir o preceito: Nunca explique; nunca se arrependa; nunca se desculpe”. (MATTEI, 2023, p. 277). Isto posto, o Banco Central independente se mostrava o mecanismo perfeito para usurpar a democracia da esfera econômica e, desse modo, manter a inflação controlada, sem precisar se explicar publicamente. Tal qual na origem do capitalismo de mercado, o desemprego, no contexto do capitalismo do entreguerras, voltaria a ser apenas uma moeda de troca dentro do sistema econômico necessário para a manutenção de um bem maior: a “estabilidade econômica”. Além disso, novamente, as mazelas sociais causadas pelo desemprego eram, portanto, “justas”, pois, como as decisões do Banco Central eram decisões “técnicas” e “não viesadas”, não havia espaço democrático para questionamentos populares e nem necessidade de explicações morais pelas atitudes. Além disso, Hawtrey destaca que se houver a “confiança na cooperação internacional dos bancos emissores”, o “retorno a uma moeda sólida será atendido”. Dessa forma, os bancos se tornaram livres para impor a austeridade, independentemente de se isso for contra ou a favor à vontade da população. Não havia nada mais político do que a despolitização dos bancos centrais. Esse foi o pilar britânico para a austeridade o qual, como será demonstrado nos casos italiano e alemão, foi exportado para o resto da Europa. Ao estabelecer a taxa de juros elevada, de acordo com os princípios da política do dinheiro caro, os bancos centrais poderiam desencorajar empréstimos e, consequentemente, reduzir a quantidade de crédito e de liquidez monetária na economia. A política do dinheiro caro impunha a austeridade ao capital produtivo e ao trabalhador ao reduzir investimento, renda, consumo e, como já explicado pela causalidade de investimentos e nível de emprego, emprego. Além disso, uma política econômica com foco no nível de preços - em detrimento ao desemprego - afeta as classes sociais de maneira diferente. Se, por um lado, o trabalhador tem que sacrificar parte de seu consumo, os poupadores obtinham maior rendimento em seus capitais. Um memorando de 1920 do Banco da Inglaterra dizia: “O processo de deflação de preços que se espera que siga no controle da expansão do crédito deve ser 42 necessariamente doloroso para algumas classes da comunidade, mas isso é inevitável”. Essas linhas revelam como a austeridade procedeu para normalizar a repressão de classe por meio do conceito de verdades econômicas “inevitáveis” e “naturais” que só especialistas poderiam oferecer. (MATTEI, 2023, p. 281). Outro ponto de destaque do caso britânico de austeridade fiscal, para além da deflação, é como os tecnocratas utilizaram-se da tributação como forma de impor aos trabalhadores os sacrifícios e a parcimônia. Ao tributar o consumo, mais dinheiro é proporcionalmente retirado de quem tem menos, acarretando na transferência de renda de muitos consumidores para poucos investidores-poupadores. Qualquer outra forma de tributação que não recaísse majoritariamente sobre a classe trabalhadora era vista com maus olhos pelos tecnocratas britânicos: Um imposto sobre capital poderia levantar uma quantia na grande escala necessária. Mas a avaliação de um imposto sobre capital é um processo muito longo, e o pagamento, para se adequar aos numerosos casos de pessoas com recursos líquidos insuficientes, deve ser facilitado e prolongado. Um imposto sobre capital é, portanto, inútil como um expediente de emergência, e tem a desvantagem adicional de que pode assustar o capital. (HAWTREY, 1950, p. 198). A austeridade, quando vista pela ótica da luta de classes, revela o seu método em defesa da ordem do capital. Como anteriormente mencionado, não se pode cair no erro de pensar a austeridade como algo falho que nunca cumpre seus objetivos econômicos. O caso britânico é um ótimo exemplo de que o foco da austeridade não é meramente ou sobretudo econômico, mas político, e que sua eficácia não se dá por equilíbrios orçamentários, mas pela sua capacidade de impor e reforçar a estrutura de classes em uma sociedade. O Banco Central inglês, mesmo após a redução da inflação, prolongou suas estratégias monetárias de elevadas taxas de juros. Além disso, algo equivalente pode ser observado pela ação do fisco, que continuou impondo sacrifícios mesmo após alcançado o superávit. O Estado britânico não afrouxou o cinturão fiscal mesmo após alcançar o superávit orçamentário em 1920. A recessão induzida pela austeridade e o consequente desemprego não foram um erro econômico, mas um meio poderoso de esfriar a temperatura coletiva de uma classe trabalhadora aguerrida e abrir o caminho para desmantelar planos reconstrucionistas e transferir recursos às classes credoras da sociedade. (MATTEI, 2023, p. 281). Compreender a austeridade como uma ferramenta classista imposta de cima para baixo é fundamental, então, para desmentir a argumentação de que ela é politicamente neutra, como 43 se ela atingisse a todos de forma equânime. Política e economia andam juntas e, como será visto no caso italiano, sempre em grande sintonia. 4.2 O Caso Italiano A austeridade italiana, tal qual todas as formas e exemplos de austeridade econômica ao longo da história do capitalismo, serviu para conter avanços sociais, econômicos e políticos das classes populares. Assim como na Grã-Bretanha, o sufrágio universal masculino italiano foi conquistado apenas em 1918, acompanhado de direitos trabalhistas e aumentos nos níveis salariais. Entretanto, diferentemente da Grã-Bretanha, que, através da tecnocracia, conseguiu impor a austeridade de uma maneira indireta, a Itália necessitou de uma figura política central para exercer de forma direta a mesma coerção que o Banco Central inglês impôs aos trabalhadores britânicos de forma indireta. Essa figura foi Mussolini. A relação entre fascismo e austeridade era uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que a austeridade necessitava de um governo violento e antidemocrático para ser imposta diretamente, o fascismo precisava do apoio internacional para se estabelecer. Como descreve Mattei, “foi o apelo da austeridade que levou os establishments liberais internacionais e domésticos a apoiar o governo de Mussolini mesmo depois das ‘leis extremamente fascistas’17 de 1925-1926, que instalaram Mussolini como ditador oficial da nação18” (2023, p. 284). A austeridade, portanto, era o elo que uniria os economistas fascistas e os liberais e que garantiria a base ao governo de Mussolini. “Em seu primeiro discurso [...] como primeiro-ministro [...], Mussolini usou a linguagem da austeridade: “‘economia, trabalho, disciplina’, disse, prometendo despolitizar a economia do país colocando um ponto-final em todas as ‘interferências estatais’” (MATTEI, 2023, p. 283). 17 Em italiano, Leggi Fascisti