LÍVIA VALÉRIA PELLEGRINI FERREIRA CORPOS EM TRAVESSIA: ensaio de uma clínica dos fluxos ASSIS 2016 LÍVIA VALÉRIA PELLEGRINI FERREIRA CORPOS EM TRAVESSIA: ensaio de uma clínica dos fluxos Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestra em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientadora: Elizabeth M. A. Lima ASSIS 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp F383c Ferreira, Lívia V. Pellegrini Corpos em travessia: ensaio de uma clínica dos fluxos / Lívia V. Pellegrini Ferreira.- Assis, 2016. 109 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientadora: Drª Elizabeth M. A. Lima 1. Arte-clínica. 2. Corporeidade. 3. Oficinas terapêuticas. 4. Saúde mental - Aspectos sociais. 5. Teatro I. Título. CDD 616.8917 para Luna para mãe Rosita e pai João para meu avô Victório e minha avó Maria (in memoriam) AGRADECIMENTOS Toda a minha gratidão à vida e as forças misteriosas de sua dança contínua! a todas as pessoas que embarcaram comigo nesta travessia... aos primeiros mestres: minha mãe e meu pai, que cada um a seu modo, esteve presente apoiando minhas buscas não tão convencionais. Agradeço pelo tanto que tenho aprendido com o “nosso” envelhecer. à todas as mulheres de todos os tempos e aos meus ancestrais. aos rios: Capivari, Piracicaba, Paranapanema, Tietê, São Francisco e Negro; rios que, em diferentes tempos de minha vida, me abarcaram quando me banhei, atravessei, batizei ou estive à beira de suas correntezas. à Luna, que me proporcionou a possibilidade de ser mãe e poder tocar o corpo do tempo a cada nova experiência. Agradeço pela autenticidade com que ela lida com os “nossos” processos... como aprendo com essa menina. à mais su-ave orientadora - Beth Lima - ouvinte atenta, leitora perspicaz, foi tornando-se interlocutora fundamental neste processo... sua presença fez toda a diferença! ao grupo de pesquisa formado pelxs orientandxs e orientadores, os professores: Beth Lima e Silvio Yasui e xs1 alunxs: Paula Aversa, Juliana Aleixo, Juliana Araújo, Tanya, Clayton, Gilson, Julia Moreno, Monique Manfrê, Rafael Rodrigues, Guliherme Providelo... espaço de amizade e trocas precioso, virtual e ao vivo, afirmando nossos passos e ousadias. 1 A grafia x, xs marca uma mudança linguística na estrutura das palavras. Tem o objetivo de dar neutralidade de gênero ao texto, em oposição ao binarismo homem/mulher; dando visibilidade assim a outras expressões e modos de existência. Contempla a todxs, corpos em devires em meio à experiência de atravessar, escrever, ler. a todxs xs alunxs da pós-graduação, mestrandxs e doutorandxs da turma de 2013, principalmente axs lindxs Rogério Melo, Bárbara Brunini, Ana Elídia, Thiago Riviti, Daniele Milioli e Igor Mello. aos professores Wiliam Peres e Flávia Liberman que compõe a banca mais charmosa e híbrida da pós, pela força que me deram ao afirmar meu trajeto nesta escrita que foi emergindo no meio da travessia... bom demais remar junto com vocês! Ao Fernando Zanetti pela amizade, pelo incentivo desde o projeto de pesquisa e por ser pai de Luna. À Márcia Sel, terapeuta bioenergética e doula, que ao acompanhar meus processos, possibilitou impulsos importantes para seguir com mais corpo os cursos da vida... a toda equipe do Caps Raio de Sol, de Cândido Mota, usuárixs, estagiárias e aprimorandxs: Adeline, Victor, Cristiano, Eliane, Silvana, Cilene, Carlito, Márcia, Miriam, Fabiana, Natália, Cinthia, Flávia, Thais, Cleonice, Luís, Joel, Sonia (in memoriam), Sandra, Eva, Genaura, Claudenice, Luciano e tantxs outrxs... pelas incríveis vivências daqueles anos. Minha saudade... aos integrantes dos grupos de teatro Feijoada Onírica e Teatro Fonte: Meire, Wender, Ric, Manu, Nei Nascimento, Cida, André, Néia, Taciana, Fábio Nieto, João, Sandro de Cássio, Gustavo (Formiga), Sanabria, Letícia, Fabiana, Elka, Daiane, Durval... pulsando a força e a magia da juventude, em belas composições. Alegria em experimentar tudo aquilo com vocês! a Ricardo Bagge pela várias parcerias no conduzir das oficinas de teatro, em anos de trocas intensas em pesquisas cênicas, em aprendizado afetivo- artístico. às amigas e parceiras de trabalho na clínica Espaço - Psicologia em Movimento: Ana Lúcia, Manoela, Paula, Bárbara, Fernanda, Denise... pelo encontro que entre sonhos e implementações nos tornaram outras... à Lúcia Bertão, parceira de várias sessões psicodramáticas e que me convidou para participar do Programa Amigo do Idoso em Piracicaba, cidade que tem me abarcado. à Magali, amiga e poeta de Assis, pela presença que se fazia em encontros ao acaso pelas ruas da cidade e me lançavam para uni-versos onde todo delírio era bem vindo, no ritmo despretensioso dxs gatxs. às amigas-irmãs: Ana Cláudia e Caroline – presenças constantes, em sintonia pensamento-coração. a Leandro Mendes pela presença musical e toques filosóficos certeiros que chegavam por meio de livros, prosas e críticas: canoas para navegar... axs novxs amigxs: Geralda, Carmem e André Blanco, Manuel Rodrigues, Mohini Taila, Ananda Joy e Satya Devi pela presença que apresenta outros modos de vida e força para viver mais... gratidão! ao CNPQ pelo apoio financeiro no primeiro ano da pesquisa. Notava que no seu coração a voz tornava a falar. Despertada do sono, dizia-lhe: “Ama as águas! Não te afastes delas! Aprende o que te ensinam!” Ah, sim! Ele queria aprender delas, queria escutar sua mensagem. Quem entendesse a água e seus arcanos – assim lhe parecia – compreenderia muitas outras coisas ainda, muitos mistérios, todos os mistérios. (Hermann Hesse em Sidarta) Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão. Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. (Clarice Lispector em Paixão segundo G.H.) O risco – estou arriscando descobrir terra nova. (Clarice Lispector em Água Viva) Quem ama faz do mundo seu corpo. (Lao-Tsé em Tao Te Ching) FERREIRA, L. V. P. CORPOS EM TRAVESSIA – ensaio de uma clínica dos fluxos. 109 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2016. Resumo Esta pesquisa-ensaio narra uma trajetória singular de uma pesquisadora em processos de experimentação artística e terapêutica em oficinas de teatro com grupos em algumas instituições. A clínica que foi se tecendo recebeu o nome de clínica dos fluxos, pois traça um plano de composição para a experimentação do(s) corpo(s), dando passagem a afetos, por meio dos encontros e desencontros, possibilitando a produção de acontecimentos. Estivemos em meio aos fluxos das mais diversas linhas e, para com elas (nos) compormos, lançamos mão da invenção de modos de atravessar e de instrumentos: ferramentas, com o intuito de aumentar a nossa potência de sentir, pensar, agir. A experiência é contada por meio de narrativas ou composições acessadas via memória da aprendiz-cartógrafa; de diagramas-cartográficos ou croquis de atravessar; e de uma escrita que foi se produzindo também como clínica para a travessia da aprendiz-cartógrafa que vai devindo outrxs. A cartografia foi o procedimento escolhido para atravessar esses fluxos e acompanhar as linhas que foram sendo tecidas ao longo da pesquisa numa escrita que entra em devires tanto quanto a autora. Palavras-chave: Arte-clínica. Corporeidade. Oficinas terapêuticas. Teatro FERREIRA, L. V. P. CROSSING IN BODIES – essay of clinic of flows. 109 f. Dissertacion (Master's degree in Psychology). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2016. ABSTRACT This essay narrates a peculiar trajectory of a researcher in artistic and therapeutic experimentation processes in theater workshops with groups in some institutions. The practice received the name of clinic of flows because it traces a composition plan for the experimentation(s) of the body(ies), giving way to emotions, through agreements and disagreements, enabling the production of events.We have been in the midst of flows from various lines and, to compose (ourselves) with it, we used the invention of ways to cross and instruments: tools, in order to increase our capacity to feel, think, act. The experience is told through narratives or compositions accessed via the cartographer-apprentice‟s memory; cartographic-diagrams or crossing sketches; and the writing that produced itself as practice for the cartographerapprentice‟s crossing that makes others become. Cartography was the procedure chosen to cross these flows and follow the lines that were being woven throughout the research in such a writing that, as well as the author, goes into becomings. Keywords: Clinic-art. Corporeality. Therapeutic workshops. Theater SUMÁRIO Abertura...............................................................................................................12 Introdução............................................................................................................13 Canção-Tema.......................................................................................................15 1. Memórias e afetos: olho d’água e correntezas...........................................16 2. Cartografar a travessia ou como atravessar o rio da experiência............20 o tempo...........................................................................................................23 o acontecimento............................................................................................26 o devir.............................................................................................................27 diagramas cartográficos ou croquis de atravessar...................................29 3. Embarcações: meios de se lançar à travessia ou à experimentação de uma clínica.....................................................................................................31 o corpo é o meio de se lançar......................................................................32 a clínica dos fluxos.......................................................................................37 Grupo – modo de embarcar junto......................................................40 o teatro............................................................................................................43 a voz é corpo........................................................................................46 devir criança.........................................................................................48 a escrita...........................................................................................................49 4. Composições e narrativas.............................................................................53 Composição I..................................................................................................54 1. Teatro Fonte..............................................................................................54 2. Oficina corpo que vê................................................................................63 Composição II.................................................................................................69 1. corpo-percussão.........................................................................................69 2. O haloperidol nosso de cada dia...............................................................74 Aquecer .......................................................................................................76 Mulher... ser de fluxos................................................................................79 Gaia ou até quando existirão olhos d’água?........................................82 Devir-feiticeira ou mulher nagual.........................................................84 3. A noiva, o rei e a caboclada toda.............................................................86 Alegria! experimentando a liberdade .....................................................87 Composição III..............................................................................................91 1. Instante eternizado: a fotografia e a imagem viva...............................92 2. A contação de histórias...........................................................................95 5. Considerações antes de (des)embarcar.......................................................99 Referências bibliográficas..........................................................................102 12 ABERTURA Ao entrar nesse rio – o plano da clínica dos fluxos – não temos de antemão um manual de navegação para realizar a travessia. Experimentamos ao atravessar. Adentramos lugares conhecidos, desconhecidos e mistérios. Estamos à mercê do tempo e expostos às forças da natureza. Imersos nestas águas compomos com os fluxos e com outros corpos, produzindo acontecimentos. O plano de experimentação vai sendo traçado ao ser experimentado. Nosso corpo vai tornando-se outras coisas à medida que os (des)encontros geram efeitos e outros afetos. Em travessia, a cartografia vai traçando linhas na memória-corpo por meio dos afetos que vão emergindo dos encontros. Ao afetarem e serem afetados os corpos se abrem, se fecham, se mesclam, se corroem, se alegram, se aborrecem... paralisam, pausam e/ou se movimentam... resistem e/ou se multiplicam. Estamos em meio aos fluxos das mais diversas linhas e, para com estas (nos) compormos, lançamos mão da invenção de modos de atravessar e de recursos: instrumentos, ferramentas, que aumentem a nossa potência de sentir, pensar, agir. E um lema emerge dos subterrâneos, um sopro de mãe d’água: por uma fuga que forje! Fluindo na experiência do tempo, forjamos espaços para que os corpos possam ser experimentados em estados extensivos e intensivos, tramando possibilidades para que os processos de vida aconteçam. Poder encontrar o que de nós converge e diverge, podendo estar acompanhadx. Os encontros só podem acontecer em relações, que nos compõem, que nos decompõem. Arranjar jeitos, dando as mãos, abrir os corpos, dar passagem aos afetos que pedem passagem, que querem passar e passam. Ao diferenciar-se algo se produz. Afetos, que fazem marcas de eternidades neste corpo precário e sujeito a todo tipo de força, os quais, portanto, como o rio, não param de passar. Contemplamos em nós mesmxs este estado n(ovo) e prenhe da travessia vital. O sopro está lançado ao vento... 13 INTRODUÇÃO .atravessar. Estar entre. A cena, a vida. Parto e fico. Sons e movimentos. Sensações. Corpo. Pensar. Escrever. Presente e memória. O que há de vir? Voo. Afetos e expressividade. E pouso. Achar jeitos. O chão, o ar, as coisas daqui e de lá, e entre nós: as pulsações. Margens. A travessia. Encontrar, fugir. Corpo que anda, que dói, que canta, que sangra, que sonha, que vibra, que sofre, que inflama, que grita, que nada, que defeca, que dança, que empedra, que emana, que sacode, que esconde, que silencia, que uiva, que geme, que para, que corre, que esquece, que dorme, que cai, que goza, que salta, que morre, que deságua, que chega. Estados. Uma clínica se delineia. Entre o corpo, a voz, a escrita. Compor... passagem. O gesto... Tornar visível... gestar... uma poética dos afetos. * O início, a nascente.... Memórias e afetos: olho d’água e correntezas, o ponto de partida para o modo de existir e se fazer existir da aprendiz-cartógrafa. As memórias latejam pulsando o coração e nos lançando ao mundo. A trama diária nos afeta e ao sermos afetados o movimento do desejo dispara o corpo para produzir, para compor, para buscas práticas e outras intensivas. Em Cartografar a travessia ou como atravessar o rio da experiência é apresentado o procedimento escolhido para atravessar essas águas: a cartografia. Este modo de pesquisar dá visibilidade ao caráter inventivo de que é feito o campo da ciência, no qual estamos inseridos, que em constante processo de transformação vai criando novos problemas e exigindo práticas originais que possam responder a esses problemas. Desta forma a cartografia desencadeia um processo de desterritorialização 2 neste campo, engendrando novo modo de produzir o 2 Território, conceito forjado por Deleuze e Guattari em Mil Platôs (vols. 1-5), o qual se refere a uma construção espacial subjetiva, tecida por linhas duras, flexíveis e de fuga, permitindo a territorialização e a desterritorialização, isto é, a montagem e a desmontagem de modos de ser dos sujeitos envolvidos neste processo. (MAIRESSE, 2004) 14 conhecimento, o qual envolve a criação, a arte, a implicação do autor, artista, pesquisador, cartógrafo (MAIRESSE, 2003; BARROS; KASTRUP, 2010). A experiência é contada por meio de narrativas ou composições acessadas via memória da aprendiz-cartógrafa; de diagramas-cartográficos ou croquis de atravessar; e de uma escrita que foi se produzindo também como clínica para a travessia da aprendiz-cartógrafa que vai devindo outrxs. No território da pesquisa, os conceitos de plano de imanência, tempo, acontecimento e devir coexistem e se entrelaçam sustentando a experiência. Conceitos que serão abordados adiante mais extensivamente e que se entrelaçam com as experiências de atravessar. Em Embarcações: meios de se lançar à travessia ou à experimentação de uma clínica vai sendo contado qual clínica se produz nas composições. Uma clínica híbrida (teatro e escrita), traçando o plano para a experimentação dos corpos. A busca dos intercessores segue o projeto de Deleuze de constituição de uma Filosofia da diferença, quando chama as instâncias do pensamento para dialogar – arte, ciência e filosofia. Em Composições e narrativas estão narradas quatro composições, acontecimentos, seguidos de explanações sobre temas relevantes que emergiram durante a própria experiência e, que emergiram no ato de escrever ao recordar o instante vivido. Forjadas em tempo-espaços diferentes as composições formam o acervo do inventário afetivo da aprendiz-cartógrafa enquanto oficineira/preparadora de atrizes e atores e psicóloga. Em relação à escrita, ao longo do processo de feitura desta dissertação ela foi diferindo dela mesma e a autora também. O processo do fazer da clínica se avizinha do processo de fazer da pesquisa. “A escrita é inseparável do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir-animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir-imperceptível” (DELEUZE, 2011, p.11). E por fim, em Considerações antes de (des)embarcar, a aprendiz-cartógrafa partilha pontos desta trajetória-experiência da pesquisa e inquietações que não cessarão simplesmente por escrevê-las e partilhá-las com você. A possibilidade de ampliar repertórios afetivos e a experiência de instantes de liberdade aqui-agora podem produzir estados de devir e a inscrição de novas memórias nestes corpos- 15 pensamentos. Da nascente à foz, as correntezas de águas trilham caminhos perceptíveis e imperceptíveis. Embarcamos... * Canção-Tema CAIS3 Para quem quer se soltar invento o cais Invento mais que a solidão me dá Invento lua nova a clarear Invento o amor e sei a dor de me lançar Eu queria ser feliz Invento o mar Invento em mim o sonhador Para quem quer me seguir eu quero mais Tenho o caminho do que sempre quis E um saveiro pronto pra partir Invento o cais E sei a vez de me lançar 3 Canção que compõe o álbum Clube da Esquina, o primeiro, do coletivo de músicos brasileiros conhecidos como Clube da Esquina, liderado pelos cantores e compositores Milton Nascimento e Lô Borges, a quem o álbum foi creditado. 16 1. Memórias e afetos – olho d’água e correntezas A ciência da abeia, da aranha e a minha muita gente desconhece muita gente desconhece, olará, viu? (João do Vale e Luís Vieira) As primeiras participações em grupo de teatro aconteceram dos meus 9 aos 11 anos na pequena cidade de Capivari-S.P., também conhecida como Terra dos Poetas e a qual adotei como minha terra natal, por neste quintal viver a infância. Aliás, de verdade, o meu primeiro encontro, com esse universo, de que tenho lembrança, foi em um Carnaval no início dos anos 80, quando eu ainda era bebê de colo. O bloco de rua tradicional da pequena cidade havia dado a largada às noites de folia daquele ano. E no colo de minha mãe sofri um colapso: eis que surgiu em minha frente um palhaço. Imediatamente, uma crise de choro compulsiva retirou meus pais dali e acabou com o Carnaval, para eles, pelo menos naquela noite. A mim, aquela imagem assombrou-me durante anos. Hoje compreendo que, talvez, tenha experimentado a intempestiva sensação do trágico. Esta sensação pôde se transmutar quando comecei a participar das aulas de teatro, quando então, me rendi à poesia e aos delírios “dos clowns de Shakespeare‟ (BANDEIRA, 1986). Durante o ensino médio não frequentei aulas de teatro, mas nadei nas águas do rock n´roll encontrando o sabor da amizade e das leituras incríveis de Hermann Hesse, Clarice Lispector, Aldous Huxley. Após alguns anos, na faculdade de Psicologia da Unesp - Assis voltei a participar dos movimentos de teatro no grupo Feijoada Onírica – composto por estudantes. Nesta época produzimos algumas montagens voltadas para o público universitário e para a comunidade. E assim, minha formação em Psicologia foi se tecendo com as experiências artísticas, de modo concomitante e híbrido. A vida de convivência com pessoas, também do mesmo grupo de teatro, tornava nossa república um espaço de trocas estéticas incrível: livros que passavam de mão em mão, filmes, cds. Amigxs poetas, músicos, cantoras, atrizes e atores, escritorxs. Vivíamos assim preparando saraus, cafés da tarde, almoços, permeados de poesia. Todo encontro era um acontecimento. 17 Depois de terminar a graduação em Psicologia, em 2002, iniciei o trabalho na FAC – Fundação Assisense de Cultura4 - como instrutora de teatro. Juntamente com outro instrutor desenvolvíamos oficinas de expressão corporal para iniciantes (adolescentes e adultos), além de montagens e direção de cenas. Nossa formação em artes cênicas (tanto a minha quanto a dele) aconteceu por meio de experiências em grupos de teatro amador e universitário seguindo em uma pesquisa autodidata e frequentando oficinas e workshops de outros grupos. Deste modo, o trabalho com oficinas de teatro se aliava com o trabalho em clínica. Nesta época, quando engravidei de minha primeira filha, comecei os atendimentos em clínica particular e, na sequência, a especialização em Psicodrama. Em 2008, comecei a trabalhar no CAPS (SUS) – Centro de Atenção Psicossocial - na cidade de Cândido Mota-S.P. e, assim, deixei de trabalhar na FAC. Minha inserção no CAPS “José Meireles” se fez como trabalhadora de saúde mental. Como uma das psicólogas da equipe transdisciplinar, desempenhava as ações cotidianas de acolhimento, atendimentos individuais e grupais, visitas e coordenação de oficinas terapêuticas, como funções do profissional “psi‟ definidas na Portaria/GM nº 336. Nos encontros cotidianos comecei a ouvir um chamado... Em ambiência, havia o pedido dos usuários para “mexer com o corpo‟; a equipe, em reunião técnica, também sinalizava esta “necessidade‟, pois os usuários “estavam muito parados”. Neste movimento, o chamado se aliou ao meu desejo, deste modo pude propor oficialmente uma oficina com práticas corporais aos usuários e usuárias do SUS. Com uma preocupação técnica a priori: como possibilitar este espaço, priorizando a experimentação artística e não somente a terapêutica? Quando conto que o chamado se aliou ao meu desejo trago o momento em que algo que era da ordem do virtual se tornou real. A vontade de iniciar uma oficina de teatro no CAPS, já estava em mim, desde que fui chamada para compor a equipe. Então, diante do pedido mesmo que tímido, e das outras tarefas institucionais, não hesitei em fazer a proposta. 4 A Fundação funciona como a Secretaria Municipal de Cultura de Assis- S.P. e reúne cursos de artes (dança, circo, pintura, música e teatro) que são oferecidos à comunidade local. 18 Só podemos desejar em um conjunto, como diz Deleuze em seu Abecedário, construindo um agenciamento. Coletivo. E como encontramos em Rolnik (2011, p.31) cartógrafa: “O desejo – processo de produção de universos psicossociais; o próprio movimento de produção desses universos”, portanto o que move os planos na invenção de mundos. Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estrangeiro, como o estranho: todo um programa que parecerá bem distante das urgências do momento! E, no entanto, é exatamente na articulação: da subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época. (GUATTARI, 1991, p.55) A experiência com os idosos iniciou-se na Unesp - Assis, em 2003, por meio das atividades da UNATI – Universidade aberta à 3ª idade, onde acontecia a oficina de teatro semanalmente. Mais adiante, em 2014, em Piracicaba-S.P., participei por 3 meses de um programa chamado Amigo do Idoso 5 , compondo com outros oficineiros a grade de atividades semanais oferecidas aos frequentadores do Centro- Dia6. No encontro com essas pessoas mais experientes, o que me move (e assim foi desde criança) é uma curiosidade pelas histórias de suas vidas, porém, mais que isso, seria a forma como cada senhor(a) conta as histórias de seu repertório vivido. A singularidade de cada modo, o estilo, o ritmo, a qualidade da voz e do gesto esboçado entre um respiro e a próxima palavra a dizer. As memórias vivas naquele corpo que quase se esquece de que o tempo não pára e não dá trégua, envelhece e nesse processo de perdas sem volta há algo, um viço que se ganha a cada minuto a mais desta vida que vai se finalizando. Uma presença consistente em meio à transitoriedade imanente da vida. Como uma pedra antiga esculpida pelos quatro ventos, marcada com maior ou menor intensidade pelos acontecimentos que modularam este corpo-de-hoje. E o aroma, que só os velhos têm, um cheiro de pele, 5 Programa desenvolvido pela Secretaria do Desenvolvimento Social, que envolve ações intersecretariais voltadas à proteção, educação, saúde e participação da população idosa do Estado. 6 Espaço de acolhimento de idosos semidependentes, com idade igual ou superior a 60 anos. A prioridade do atendimento é para aqueles cujas famílias não têm condições de dar atenção e cuidado durante o dia, pois precisam trabalhar/ estudar.Para mais informações acesse: www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br/portal.php/programas_spamigodoidoso 19 o aroma do tempo passando, enrugando a superfície e irrigando o coração em teimosa e misteriosa pulsação. Mas aquela preocupação técnica ainda me acompanhava, porém algo havia se transformado – uma abertura no peito: “Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende. Ou prendo-me a ela? Também é assim: não estou toda solta por estar em união com tudo. Aliás, uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se tudo” (LISPECTOR, 1998, p.33). Desde a experiência anterior no CAPS, portanto já nem se fazia como preocupação, porém, talvez, como uma atenção distraída. Percebi que o artístico e o terapêutico - arte e clínica, lá, fizeram as pazes e por afinidade se enlaçaram afetivamente de modo indissociável, nas práticas, daquele momento em diante. É isso agenciar: estar no meio, sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior. Estar no meio: “O essencial é tornar-se perfeitamente inútil, se absorver na corrente comum, tornarse novamente peixe e não bancar os monstros; o único proveito, dizia cá comigo, que posso tirar do ato de escrever, é o de ver desaparecer com isso as vidraças que me separam do mundo7”. (DELEUZE & PARNET, 1998, p.66) 7 Miller, H. Sexus. Buchet-Chastel, p.29. 20 2. Cartografar a travessia ou como atravessar o rio da experiência Este é o corpo marcado pelas rufadas do tempo Este é o corpo do corpo, que se abre (in)visível (Lívia Pellegrini) A cartografia como possibilidade metodológica amplia o plano da inventividade no terreno das pesquisas acadêmicas, científicas. Abarca modos de pesquisar como o acompanhamento de processos, o que acontece nesta pesquisa, cuja prática é de uma clínica transdisciplinar: a clínica e a arte, a clínica e a política, a clínica e a filosofia. É com alegria que posso soltar um braço ao vento, como aprendiz-cartógrafa e escrever como foi essa aventura de experimentar e a aventura de escrever. Registrar a experiência só está sendo possível porque fui afetada e pude afetar nos contextos que habitei por meio das relações que se efetuaram. Partindo de registros dos encontros - em diário de campo, escritos das atrizes e atores, fotos e vídeos -, e das marcas que pulsam na memória da aprendiz-cartógrafa, foi possível cartografar experiências de oficinas de teatro, delineando o processo composto em convívio grupal, em um tempo-espaço de experimentações do corpo e de produções coletivas e de si. Cartografar é, aqui, afirmar a característica experimental da pesquisa e da clínica que foram se configurando ao longo da travessia. O modo de fazer a pesquisa se avizinha do modo de fazer a clínica dos fluxos. Arte- cartografia Deleuze (2011) refere-se aos trajetos inseparáveis dos devires como uma arte- cartografia. A concepção cartográfica, não interpreta, traça mapas que se superpõem de maneira que cada um encontra no próximo um remanejamento. O que acontece são deslocamentos impulsionados pelos afetos. 21 “O próprio da libido é impregnar a história e a geografia, organizar formações de mundos e constelações de universos, derivar continentes, povoá-los com raças, tribos e nações” (DELEUZE, 2011, p. 84). O plano da clínica é o dos fluxos... é o rio que não pára de passar...como o tempo. Lugares de passagem, afetos que pedem passagem, encontro de corpos. E o fluxo de águas-correnteza em movimento continuum. Embarcar na experiência faz marcas em nossos corpos, corpos em travessia. “O trabalho do cartógrafo é assim um trabalho de produção permanente de si, na experimentação de um corpo que, continuamente, se configura nos encontros com outros corpos” (LIBERMAN; LIMA, 2014, p.190). E neste processo de produção vai se tecendo uma memória das marcas. O plano da memória é fonte primeira de pesquisa e ponto de partida para a escrita das narrativas, que contam processos: individuais, grupais e o da própria aprendiz- cartógrafa em hibridação. Toda experiência cartográfica acompanha processos, mais do que representa estados de coisas; intervém na realidade, mais do que a interpreta; monta dispositivos, mais do que atribui a eles qualquer natureza; dissolve o ponto de vista dos observadores mais do que centraliza o conhecimento em uma perspectiva identitária e pessoal. O método da cartografia implica também a aposta ético-política em um modo de dizer que expresse processos de mudança de si e do mundo. (PASSOS & BARROS, 2010, p.169-170) As marcas que se fazem em nossos corpos, produzidas nas experiências, nos encontros, nos desencontros, nos forçam a pensar e, assim, somos convocados a criar um outro corpo para que essa diferença possa existir. Uma luta é travada para que as forças a que somos submetidos não obstruam essa passagem para o conhecimento acontecer, produzir-se e tomar formas que antes da experiência não existiam. Segundo Passos e Alvarez (2010) a pesquisa cartográfica ao se instalar pressupõe a habitação de um território, o que provoca ao próprio cartógrafo adentrar um processo de aprendizagem, de compor uma relação ativa com a experiência que vai ganhando consistência com o tempo e o propósito de cultivar algo. Esta ação pressupõe implicação de saber “com” os acontecimentos deste território, de se agenciar com eles, borrando-se, acompanhando seus ritmos. 22 A pesquisa se vale destes procedimentos para dar visibilidade e trazer à cena atual àquilo que nos encontros de trabalhos com grupos em práticas corporais e de cuidado de si emergiu ao caminhar, rir, respirar, escorrer, dançar, latir, saltar, cantar, alongar, silenciar, florescer, partir, ficar, gritar... corpos afetando e sendo afetados, acessando sensibilidades, gerando marcas, gestando, produzindo n(ovo)s corpos. Micropolítica híbrida A clínica foi borrando com o teatro, o teatro com a clínica e a arte-cartografia se fazendo como processo clínico para a aprendiz-cartógrafa. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram- se obsoletos. (ROLNIK, 2011, p.23) Neste movimento, o ato de escrever, dando língua aos afetos que pediam passagem, aumentou a potência de agir da aprendiz-cartógrafa. Foi possibilitando que outra linguagem emergisse. Defino, então, o presente texto como ensaio – e para ser mais leal ao processo estilístico – ensaio poético. A escrita mescla-se, oscila, entre os estilos. Parece estar entre a escrita científica e a literária. “Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas” (DELEUZE, 2011, p.12). O modo de fazer desta pesquisa é composto pelas narrativas, pela exploração dos conceitos de tempo, acontecimento e devir e por diagramas cartográficos que buscam apresentar graficamente para x leitorx os movimentos de atravessar. Exponho o diagrama geral num primeiro momento e a cada composição ou narrativa o(a) leitor(a) tem acesso ao diagrama singular – traços do processo de atravessar da aprendiz-cartógrafa. “... tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo...” (LISPECTOR, 1990, p.16) 23 o tempo duração sobre nós: o firmamento afirma calado o destino, sua roupagem: o tempo – crivo do ininterrupto passagem (Lívia Pellegrini) Ao cartografarmos uma experiência nos desdobramos em muitos; nos desdobramos em todos - corporais e incorporais - para produzir os agenciamentos que se interconectam - participes da ação em um lugar, em um tempo - num plano de consistência partilhado. Um lugar, um tempo, algo que acontece. Neste território os conceitos de plano de imanência, tempo, acontecimento e devir coexistem e se entrelaçam sustentando a experiência. Ao criar-se um espaço/tempo (a clínica) aberto aos encontros e à experimentação dos corpos apostamos que acompanhar processos pode aumentar a potência de agir, expandindo o repertório de afetos em imanência mútua. Cronos e Aion Para o rio, não é o ponto de chegada que lhe impõe o percurso; e seu propósito, se assim podemos dizer, é fluir. (Carmem Junqueira) Marcar o tempo no relógio... hora de começar, hora de terminar ... uma hora e meia, duas horas de oficina, às vezes, três – a passagem do tempo como território e ao mesmo tempo abertura à desterritorialização. Às vezes, o mergulho intensivo se estendia por mais tempo que o previsto o que era motivo para a noite chegar ou a fome bater, ou o pessoal lembrar que era hora de fechar o CAPS, ou que alguém tinha compromisso, e puxa, tava atrasado! O mergulho no agora do tempo. 24 Meu tema é o instante? Meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com a vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim. (LISPECTOR, 1998, p.14) Tempo que dura, que leva, que perdura, o tempo que não pára de passar, tempo que conjuga o verbos nascer e crescer e morrer e. A passagem das horas do que acontece tem uma ordem que não é só cronológica... sim, esbarra na contagem circular dos números do relógio, mas as horas também passam, no extravasamento dos ponteiros, como no derretimento surrealista do tempo em Dalí 8. Podemos, então, afirmar a existência de um outro tempo na experiência do acontecimento? O tempo de Cronos é um tempo infinito porque o ciclo sempre retorna, porém é também limitado porque o que retorna é sempre o mesmo ciclo. Ao assegurar essa precisão o mundo torna-se palpável...o tempo de amar e de fecundar, o tempo de plantar, o tempo dos nascimentos, o tempo das mortes, o tempo das enchentes, e o terrível ciclo dos ventos...Mas a grande ameaça a Cronos vem de fora de suas muralhas...com o ciclo dos ventos se aproxima Aion, tribo nômade do deserto...as muralhas são derrubadas, a cidade é devastada...Seu tempo é o instante. Uma vida vivida intensamente, desafiando a todo momento a linha da morte...O tempo se acelera galopante, foge de todos os eixos. Torna-se pura descontinuidade...vida vivida na sua máxima potência...já não mais capturável pelas forças de Cronos...(DINIS, 2001, p.78-81) Com Deleuze vemos que o tempo, enquanto Cronos, sofre uma ruptura e é cortado em dois e forçado a recomeçar, “o acontecimento dando-se num estranho local de um ainda-aqui-e-já-passado, ainda-por-vir-e-já-presente” (ZOURABICHVILI, 2004, p.19). Na temporalidade de Aion, o “entre-tempo”, Cronos parou de reinar. Este tempo do acontecimento engendra uma mudança na ordem do sentido, na cronologia, uma diferença no estado das coisas; produz afetos que em fluxo afetam a subjetividade inscrevendo uma diferença em quem(s) está(o) vivendo a experiência. Sim... um encontro com o fora que nos força a pensar.... Aion opera Cronos com um futuro e um passado que dividem a cada instante o presente. O instante de Aion, “como o presente vasto e profundo de Cronos: é o 8 Referência ao quadro - A persistência da memória (1931) de Salvador Dalí 25 presente sem espessura, o presente do ator, do dançarino, ou do mímico...” (DELEUZE, 2011, p.173) O instante it de Clarice Lispector, o instante em que os pés do Seo Chico tornam-se percussão9, o butô de Min Tanaka em La Borde10, a dissipação das imagens do Teatro-Fonte11 enquanto se é público e ao mesmo tempo paisagem... a vertigem de atravessar o desconhecido do corpo sem saber qual língua se fala lá, lançar-se e encontrar um pedaço de terra ali, mesmo que deserta: a respiração, a pulsação do seu corpo e/ou do outro, uma palavra que eu possa escrever e nomeie o aqui-agora, que está de passagem. “Estou neste instante num vazio branco esperando o próximo instante. Contar o tempo é apenas hipótese de trabalho. Mas o que existe é perecível e isto obriga a contar o tempo imutável e permanente. Nunca começou e nunca vai acabar. Nunca.” (LISPECTOR, 1998, p.52) Habitantes de Cronos, na rotina cotidiana, ao narrarmos/lermos um acontecimento, podemos ser lançados (corpo/pensamento), inadvertidamente, a uma nostálgica sensação: Aion, este nômade que ao se desgarrar do bando, por um instante, encontra-se conosco e nos leva com ele. Instante em que somos carregados por ondas de um não-dito, inaudito, daquilo que sendo sensação é sem palavras, sem imagens. “... sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara” (GALEANO, 2008, p.270)... o instante: fugaz e eterno. experiências de eternidade ao mesmo tempo que sou mortal experimento que sou eterno (Deleuze) A cena de Cacilda! Um flash se faz e desfaz na memória um tanto longínqua. A visão lá do alto do longo corredor do Teatro Oficina... com a atriz Bete Coelho 9Referência à Composição II, abordada mais adiante em Composições e narrativas cuja história aconteceu na oficina de teatro do CAPS. 10 Min Tanaka fez uma apresentação em La Borde, clínica na França. A apresentação foi gravada em vídeo disponível na web. Indicação do vídeo nas Referências – Vídeos. 11 Referência à Composição I, abordada mais adiante em Composições e narrativas cuja história faz parte das experimentações do grupo com teatro de rua. 26 vestida de Cacilda menina – fantasiada de uma negra borboleta – dançando de um ponto a outro, o bater de asas desajeitado - e sobre a cena projetava-se em largo escrito: É T E R N I D A D E. O tempo que durou a cena, talvez uns 10 minutos... “aos sacerdotes de Cronos cabe o registro da passagem desses tempos” (DINIS, 2001, p.77). E esta duração que persiste na memória afetiva? Sensação que quando acessada provoca um num-sei-quê – uma divisa entre o atual e o virtual – abre uma fresta – e emerge uma força-feiticeira do tempo que relança o presente ao passado e de volta para o futuro... As partes intensivas são partes da potência de deus-natureza; as partes extensivas também são expressões dessa mesma potência, mas tem sempre um tempo e um lugar, são provisórias. As partes intensivas diferem e coexistem com as partes extensivas. Experimentar que sou eterno(a) é experimentar esta diferença e coexistência. Pois “quando as partes extensivas me são arrancadas = morte, isso não concerne à parte intensiva que sou desde toda a eternidade” (DELEUZE, 1981, p.12). Nesta experiência intensiva, além de afetar e ser afetado o corpo estabelece relações de movimento e repouso, expressando graus de potência que constituem sua essência singular. As relações expressam nossa essência. Intuímos essa essência nos encontros. “E há uma bem-aventurança física que nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, em fonte direta a dádiva de repente indubitável de existir milagrosamente e materialmente” (LISPECTOR, 1998, p.87). o acontecimento Força, isto é, invenção. Desejo de vida. Vitalismo em núpcias com os devires (Daniel Lins) O acontecimento está no infinitivo: agenciar. Como o corpo intensivo tece-se na experimentação, ele se faz como plano de imanência para os agenciamentos do 27 desejo, então aí se forja o acontecimento. Os agenciamentos produzem o acontecimento. É uma multiplicidade que comporta muitos termos heterogêneos, e que estabelece ligações, relações entre eles, através das épocas, dos sexos, dos reinos – naturezas diferentes. Por isso a única unidade do agenciamento é de co-funcionamento: é uma simbiose, uma “simpatia‟. O que é importante não são nunca as filiações, mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento. As bruxas bem o sabem. (DELEUZE/PARNET, 1998, p.83) Em meio aos fluxos de forças, do tempo, das sensações algo se produz, criando um relevo, algo novo, marcando um crivo no tempo, nos corpos, na memória destes corpos. Acontece um corte em meio aos fluxos, o instante “imanente como o Aion, ou ser em devir, não apenas histórico ou cronológico; antes aquele que apreende o indeterminado, os jogos do acaso; um ser pois não identitário” (LINS, 2012, p.32). Em Composições e narrativas x leitorx acompanhará nas narrativas instantes em que, em ação de atravessar, algo acontece nos corpos, nos encontros ou desencontros dos corpos. Algo é produzido, e por alguns instantes somos lançados a um plano afetivo de intensidades cujas sensações não podem ser nomeadas, pois elas nos ultrapassam. O que acontece? O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Quando digo “águas abundantes” estou falando da força de corpo nas águas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio (LISPECTOR, 1998, p.34). o devir Devindo outra coisa... todo devir forma um “bloco”, em outras palavras, o encontro ou a relação de dois termos heterogêneos que se “desterritorializam” mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação, identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir assombra ou se envolve na nossa e a “faz fugir” (ZOURABICHVILI, 2004, p.48) 28 Experimentar fluxos moleculares e... Fazer a travessia e... Lançar-se à experimentação não é garantia de devir(es). Em Deleuze & Parnet (1998, p.10) encontramos que “os devires são o mais imperceptível, são atos que só podem estar contidos em uma vida e expressos em um estilo”. Pode-se embarcar/desembarcar em meio aos fluxos e não habitar o território desconhecido, não experimentar o contágio nem o tempo outro – Aion. Nem o devir? Deleuze e Guattari investem o termo “devir”, de uso corrente na tradição filosófica, de um novo sentido. Devir continua a exprimir a fluência do real. Mas os autores falam em múltiplos devires (devir- mulher, devir-criança, vários devires-animais e, no limite, devir- imperceptível), que se referem a processos desejantes, ou seja, os devires são acontecimentos dos agenciamentos desejantes. As conexões operadas pelo desejo visam captar forças, adquirir potências. (...) um devir-criança, por exemplo, não implica um rejuvenescimento atual daquele que devém, mas a aquisição de afectos e modos de pensar próprios da criança. Assim, devir acaba por exprimir também a ontologização do desejo, já que é o tornar-se generalizado ocorrendo sobre o plano de consistência, independentemente de qualquer voluntarismo. (SILVA, 2013, p.135) Ser atravessadx pelas linhas do fluxo, correnteza de força (re)ativas, lança os corpos à aberturas sem nome, produz n(ovo)s corpos. Desterro. Onda de devir. Xuááááá... A intensidade abre portais à... eternidade. Afogar-se? Pode-se até tomar um caldo, daí (em tempos singulares) emerge-se do susto, lembrando-se do frio na barriga e sedento de mais. Mais embriaguez? Para Deleuze & Parnet (1998, p.39-40) “devir é tornar-se cada vez mais sóbrio, cada vez mais simples, tornar-se cada vez mais deserto, e assim mais povoado”. Veja a grama: “ela transborda de tanto ser sóbria. Ela brota entre: é o próprio caminho”. Como veremos no próximo item – diagramas cartográficos – quando os devires atravessam os corpos pode acontecer uma desterritorialização momentânea ou que perdura por mais tempo, produzindo outra coisa em linhas de fuga permeadas por um novo estilo: corpos achando espaços aos outros que estão sendo gerados, neste mesmo corpo que vai devindo outros. 29 diagramas cartográficos ou croquis de atravessar: traços do acompanhamento dos processos Acolher a vida como processo de produção não é pensar a vida. É silenciar a mente, quedar-se, desinvestir o ego e embarcar na fluição do real, para aquém da significação. (Laymert Garcia dos Santos) Os diagramas cartográficos ou croquis de atravessar são traços, desenhos, uma representação gráfica de movimentos (e repousos) no processo de experimentar os corpos na produção de si e na produção coletiva nas oficinas. A tarefa da aprendiz-cartógrafa é acompanhar processos grupais dos quais também foi participante Esses processos e movimentos podem tornar-se imagens, linhas extensivas, mas podem também nem chegar a tornarem-se visíveis. As linhas dos desenhos expressam um amálgama entre corpo-organismo (extensivo) e corpo sem Órgãos (intensivo). Como fluxos de um plano, o corpo-organismo e o CsO – molar e molecular – co-existem em um mesmo corpo e se interpenetram nos processos de experimentação, relatados neste ensaio. Deleuze incumbe à arte a tarefa de dar corpo acesso à vida inorgânica. O CsO é pura amnésia, uma experiência imediata sem conceito e sem forma. O CsO é o corpo quando perde toda a organização, no qual os órgãos são esvaziados de suas funções, e o fluxo de vida não orgânico passa como uma onda que atravessa todo o corpo. Uma definição intensiva do corpo, uma imagem de corpo anterior à subjetividade, à concepção modal do indivíduo, primazia do corpo como força, vitalidade sobre as funcionalidades dos órgãos agenciados como máquina. Primazia da força sobre a forma. (LINS, 2012, p.36) No exercício desta clínica não valorizamos mais um estado ou outro; relacionamo-nos com corpos-pensamentos em diferentes estados. Assim, entendemos que há uma transitoriedade, processos acontecendo, devires. Os modos de atravessar sustentam a experimentação dos corpos, convidando-os às aberturas e ao cais: movimentos, re-pousos, acelerações, pausas... atravessando. 30 Não há objetivos a serem alcançados. Há uma pesquisa pessoal e grupal daquilo que pode o corpo ou os corpos. De quais afetos é capaz naquela experiência. Quiçá algo de singular emirja, pois “...agora, trata-se de saber se relações (e quais?) podem se compor diretamente para formar uma nova relação mais ‘extensa’, ou se poderes podem se compor diretamente para constituir um poder, uma potência mais ‘intensa’”(DELEUZE, 2002, p.131). Assim, os movimentos de ir e vir, seguir e voltar ou recuar dos corpos presentificam a co-existência dos estados de territorialização e desterritorialização, afirmando a potência da matéria e do ser e, ao mesmo tempo, sustentando com prudência o lançar-se à experimentação. Ao forjar esses croquis, o exercício é o de tracejar linhas, pontos, sinais para dar contorno e visibilidade àquilo que, no aqui-agora da experimentação nas oficinas, em meio ao acontecimento Aion, imersxs no plano das sensações, escapa às formas representacionais, identificáveis, palpáveis. “Que haja apenas fluxos, que ora secam, ora congelam ou transbordam, ora se conjugam ou se afastam. (...) Sobre as linhas de fuga, só pode haver uma coisa, a experimentação-vida” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.60-61). 31 3. Embarcações: meios de se lançar à travessia ou à experimentação de uma clínica Oco de pau que diz: Eu sou madeira, beira Boa, dá vau, triztriz Risca certeira Meio a meio o rio ri... (Milton Nascimento e Caetano Veloso)12 As embarcações-corpos se fizeram como meios para podermos atravessar fluxos diversos forjando composições. Nesta travessia os conceitos se agenciam, apontam instabilidades, quedas, saltos, crises, fugas e também contágios; o que para a perspectiva transdisciplinar é o que pode fazer dos campos, planos13 de criação. Percebemos em nossa experiência que os meios de se lançar à travessia – a clínica, o teatro, a escrita - sustentaram a passagem pelas paisagens, experimentando uma relação de intercessão entre eles. Para Deleuze (2007, p.156), como veremos adiante nas narrativas, “a filosofia, a arte e a ciência entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca, mas a cada vez por razões intrínsecas”, são como espécies de linhas melódicas estrangeiras que interferem entre si incessantemente. E continua: A criação são intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas e até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. (DELEUZE, 1992, p.156) Ferramentas para compor como modos de experimentar os corpos, em intensidades que variam do estado organismo ao estado intensivo. A correnteza, as 12 Trecho da canção “A terceira margem do rio” baseada em conto homônimo de João Guimarães Rosa. 13 Refere-se ao plano de imanência, que se faz como o horizonte dos conceitos, a fluidez para que o visível aconteça. A filosofia cuida da criação de conceitos e da instauração do plano. O traçado do plano não opera com conceitos, mas recorre a meios poucos racionais como “meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguês ou do excesso. Corremos em direção ao horizonte, sobre o plano de imanência; retornamos dele com os olhos vermelhos, mesmo se são os olhos do espírito” (DELEUZE/GUATTARI, 1992, p.58). 32 águas, as possibilidades de experimentar. O encontro dos corpos, em meio aos fluxos do plano, geram efeitos. “Afetos só ganham espessura de real quando se efetuam.” (ROLNIK, 2011, p.31) O corpo é o meio de se lançar14 Onde quer - vibração – tudo o que importa (Milton Nascimento) Movimentos e repousos: Atravessar o rio – estar em meio aos fluxos Movimento de embarcar... lançar-se à experimentação... ao atravessar se é atravessado... velocidades, re-pousos... o plano é das sensações... Avistar um pedaço de terra – inventar o cais A travessia do corpo é o próprio atravessar... sentir o gosto do desconhecido... desterritorialização... prudência... (re)territorialização... reinvenção da vida Os corpos estão em travessia. Os estados destes corpos estão em mutação, pois está acontecendo uma experimentação: deixar um território conhecido para embarcar juntxs em uma travessia afetiva. De que corpos estamos falando? Primeiramente, não há uma ideia de interioridade psicológica separada de exterioridade corpórea. Pensamento e corpo como um fio contínuo que enlaça e desenlaça, amarra e desamarra, relaxa e tensiona, dobra e desdobra, enreda e 14 Os movimentos das experimentações podem ser acompanhados pelos diagramas cartográficos ou croquis de atravessar no capítulo anterior. 33 desenreda, embarca e desembarca, enche e esvazia. Corpo que pensa, pensamento que corpa. Para dialogar com a experiência de clínica e arte vivida nos encontros grupais, que aqui serão narrados nas composições, tomo emprestado conceitos da filosofia. As concepções de corpo escolhidas para traçar as linhas dos processos de produção de si e dos corpos, que aconteceram nas experiências vem de Deleuze e Guattari, Espinosa e Castañeda. De que afetos você é capaz? A própria experiência e as narrativas delineiam uma clínica que propõe abrir espaço para o mergulho no fluxo dos afetos nascidos dos encontros, afetos como efeitos desses encontros, produzindo novas interações dos corpos, consigo mesmo e com outros. “... não se trata de modo algum de privilegiar o corpo sobre o espírito: trata-se sim, de adquirir um conhecimento das potências do corpo para descobrir paralelamente as potências do espírito que escapam à consciência” (DELEUZE, 2002, p.77). Vamos abordar o corpo de dois modos diferentes, modos que coexistem: o corpo organismo, extensivo e o corpo intensivo, também chamado de corpo sem órgãos (CsO). Trabalha-se aqui com a ideia de paralelismo entre corpo e alma proposta por Espinosa: “o que é ação na alma é necessariamente ação no corpo” (ibidem, p.24). Espinosa apresenta o corpo como aquele que revela uma prática: A física espinosista é uma investigação empírica para tentar determinar as leis de interação dos corpos: o encontro dos corpos, sua composição e decomposição, sua compatibilidade (ou componibilidade) e seus conflitos. Um corpo não é uma unidade fixa com uma estrutura interna estável ou estática. Ao contrário, um corpo é uma relação dinâmica cuja estrutura interna e cujos limites externos estão sujeitos a mudanças. Aquilo que conhecemos como um corpo é simplesmente uma relação temporariamente estável. (HARDT, 1996, p.147) 34 Para o filósofo, um corpo pode ser qualquer coisa, um animal, um som, uma ideia, um corpus linguístico, uma coletividade. Como vemos em Deleuze (2002), o corpo não é definido por formas ou funções, ele é da ordem da geografia, cartograficamente definido por longitude e latitude. Corpo como longitude: conjunto de relações de velocidade e lentidão, movimento e repouso das partículas que o compõe. Latitude: o conjunto dos afetos que atravessam o corpo, o poder de ser afetado, a força de existir. O conjunto das longitudes e latitudes constitui o plano de imanência, a Natureza sempre em variação... o plano não pára de ser composto, recomposto, replanejado pelos indivíduos e coletividades. Os corpos são inseparáveis de suas relações com o mundo. Em nosso cotidiano, somos seres em extensão e intensividade, somos atravessados por toda sorte de linhas e preenchidos em grande parte por afecções passivas, as da ordem das paixões. Em Diálogos, Deleuze (p.74) afirma: “Os corpos não se definem por seu gênero ou sua espécie, por seus órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos afetos dos quais são capazes tanto na paixão quanto na ação”. quando Espinosa diz: o surpreendente é o corpo...ainda não sabemos o que pode um corpo... ele não quer fazer do corpo um modelo, e da alma, uma simples dependência do corpo. Sua empreitada é mais sutil. Ele quer abater a pseudo-superioridade da alma sobre o corpo. Há a alma e o corpo, e ambos exprimem uma única e mesma coisa: um atributo do corpo é também um expresso da alma (por exemplo, a velocidade). Do mesmo modo que você não sabe o que pode um corpo... há na alma muitas coisas que vão além de sua consciência... Experimente, mas é preciso muita prudência para experimentar... Não é fácil ser um homem/mulher livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem o máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência.” (DELEUZE, p.74-5, 1998 – grifo nosso) Castañeda, ao se referir ao organismo, os órgãos do sentido e à consciência fala em – tonal; e à força intensiva experimentada em outros planos de sensações chama - nagual: 35 ...o tonal é apenas uma ilha. Porque também o nagual é tudo. E é o mesmo todo, mas em condições tais que o corpo sem órgãos substitui o organismo, a experimentação substitui toda a interpretação da qual ela não tem mais necessidade. Os fluxos de intensidades, seus fluidos, suas fibras, seus contínuos e suas conjunções de afectos, o vento, uma segmentação fina, as micro-percepções substituíram o mundo do sujeito. Os devires, devires- animal, devires- moleculares, substituem a história individual ou geral. De fato, o tonal não é tão disparatado quanto parece: ele compreende o conjunto dos estratos, e tudo o que pode ser relacionado com os estratos, a organização do organismo, as interpretações e as explicações do significável, os movimentos de subjetivação. O nagual, ao contrário, desfaz os estratos. Não é mais um organismo que funciona, mas um CsO que se constrói. Não são mais atos a serem explicados, sonhos ou fantasmas a serem interpretados, recordações de infância a serem lembradas, palavras para significar, mas cores e sons, devires e intensidades... (DELEUZE/GUATTARI, p.25, 1996). Nas Composições e narrativas x leitorx poderá acompanhar nos processos de travessia dos participantes das oficinas e na escrita da aprendiz-cartógrafa o corpo funcionando em tonal (organismo, história individual) e em nagual (intensivo), quando os devires entram em ação. O corpo sem órgãos, parido por Artaud, e que em Deleuze e Guattari torna-se intercessor clínico é, segundo Orlandi (2004, p.79) “o intensivo que vibra nas imantações passageiras de umas linhas pelas outras por ocasião de encontros; passageiras imantações, repito, mas o suficiente para que se possa determinar qual é a singularidade do CsO que está me pegando aqui e agora.” Percebe-se que não se trata de um corpo físico. O CsO se aproxima mais, no sentido espacial, do inconsciente. Porém, em oposição à psicanálise de Freud, Deleuze e Guattari não consideram o inconsciente como uma instância da mente ou uma entidade preexistente. Para eles “não é simplesmente uma força escura constantemente ameaçando sabotar e trair a performance de nosso ego ou nós mesmos; é ao contrário, uma capacidade ou habilidade da mente cujos limites são constantemente testados sem nunca serem alcançados” (BUCHANAN, 2014, p.67). O CsO acontece como um efeito do desejo, é produzido por máquinas desejantes, experimentações que engendram agenciamentos, planos de produção. Deste modo para lançar-se a uma experimentação há que haver prudência nas práticas de imantação e magnetização de linhas de fuga... isto é, cuidar dos encontros. 36 Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.” (DELEUZE/GUATTARI, p.24, 1996) O organismo-tonal dá suporte para a viagem intensiva, podendo em meio às intensidades aumentar a potência de agir e perceber o instante da prudência – o respiro, a pausa, o contorno, o cais – para continuar experimentando. Ao passar por uma experimentação dos fluxos o que pode acontecer no encontro dos corpos? Rolnik (2011) em sua Cartografia Sentimental narra os movimentos do desejo que são acionados nos encontros. Os corpos ao se encontrarem afetam e são afetados, se atraem ou se repelem e desses movimentos efeitos são gerados, intensidades, afetos misturados. O corpo vibrátil, imperceptível, é ativado. O corpo organismo alcança um outro estado de atenção. E assim nesta composição, neste encontro um plano de consistência é traçado, delineando um território. Essas sensações marcam o corpo, forjando uma memória afetiva, tecendo uma cartografia. * corpo-rio instância de fluxos. de afetos. experiências a correr na corrente correnteza. devir. vindo. a nascer, passar, mudar a paisagem, se mudar e morrer. corpo-rio morre? torna-se. outrxs. mistura-se. encontra afluentes, evapora, sobe e desce. é capturado em poças, entre pedras, absorvido pela terra, pelas plantas. enlama-se. dá de beber a outros corpos por: sede, precisão de lavar ou afogamento. é represado, canalizado, sofre ações de substâncias químicas, é envenenado. em ato de escorrer quando nas planícies desliza, quando entrega-se às quedas, dá à luz cachoeiras, quando dá banho nos curumins e faz casa aos seres de ri(s)o. aldeia-se. nas cidades chega pelas torneiras, quando abertas jorra água. a outra, uma que já não é rio. t r a n s c o r r ê n c i a. rio, riacho, córrego, ribeirão. água que corre multiplica o tempo. meandros, em imperceptível alvoroço. corpos-águas. recorrem e fluem. às margens. o que escapa revolve a terra e/ou sobrevoa-nos. emerge nas fissuras dos olhos da menina. * 37 A clínica dos fluxos Fazer passar os afetos: é isso que parece gerar brilho. (Suely Rolnik) A trama prática e conceitual aponta para a palavra Clínica. Concepções vindas de duas vertentes permitem pensar a Clínica dos fluxos, como explica Paulon (2004): Kline significa cama e origina Klinicos, aquele que guarda a cama, evidenciando a marcante herança médica que influencia a concepção desta prática até hoje; e outra vertente que provém de Klinos e Klinamen, significando inclinação e desvio, vem ampliar a concepção de Clínica incluindo a potência de intercessão. Esta clínica (klinamen) se concebe como transdisciplinar, como um plano aberto à potência de se criar e recriar a cada instante. Quando o processo acontece em um plano, a noção de campo se desmonta, rompendo-se com as dicotomias sujeito-objeto, indivíduo-sociedade, natureza-cultura, porque o que vem primeiro é a relação. Passos & Benevides (2000) propõem pensar uma clínica transdisciplinar, subvertendo a unidade das disciplinas e especialismos neste campo. A clínica transdisciplinar, aberta à passagem dos fluxos desejantes, e a clínica que se pauta na lógica especialista se confrontam ao entrarem em ação. Compor ou decompor as relações? Costa et al (2004, p.300) aponta que é importante “marcarmos dois tempos para a existência da clínica: o de uma temporalidade da coexistência, que preconiza a potencialização de fluxos; e aquele de uma temporalidade linear, que data do início das práticas clínicas, marcadas pelo modelo de ciência cartesiana.” Em nossa experiência uma clínica dos fluxos foi se esboçando em linhas artísticas, terapêuticas e filosóficas, permitindo a existência de espaços vazios onde se podia experimentar um não-saber, que parecia emergir nas dúvidas, inquietações, angústias e alegrias em estar-se híbrido intuitivamente. Uma micropolítica foi se esboçando e querendo ficar. Bem como na própria experiência, o corpo da clínica foi se abrindo aos devires e a partir dos encontros forjando-se como meio de ser e dar passagem aos fluxos no aqui-agora, me lançando à experimentação e ao acompanhamento dos encontros e dos processos inventivos e de produção dos corpos. 38 Assim, o dispositivo da oficina veio garantir um território para esta experimentação híbrida acontecer, ampliando o conceito de clínica para sua dimensão estética e a possibilidade do encontro (Lima, 2004; Rolnik, 2013). “Com a arte aprendemos que as formas constituídas são sempre provisórias e finitas, datadas e inscritas no tempo e a todo momento novas formas podem ser criadas” (LIMA, 2004, p.78) Se o processo de criação deixou de fluir é preciso compor um plano que acolha o estranho/ o grito/ o bicho liberando represas, com sustentações também provisórias, para que a potência de vida possa passar. As oficinas como dispositivos, podem traçar esse plano, que possibilita que a interface - arte e clínica - aconteça com propostas terapêuticas e extra-terapêuticas de diferentes formatos e composições. Quase sempre amparado pela crítica à psiquiatria tradicional e, portanto, respaldado pelas concepções da reforma psiquiátrica, o universo das oficinas não se define por um modelo homogêneo de intervenção e tampouco pela existência de um único regime de produção. Ao contrário, é composto de naturezas diversas, numa multiplicidade de formas, processos e linguagens. (GALLETTI in LIMA, 2004, p.61) Este novo paradigma estético aciona uma implicação ética e política simultânea, a qual Guattari (1992, p. 137) afirma como crucial: “ou se objetiva, se reifica, se ‘cientificiza’ a subjetividade15 ou, ao contrário, tenta-se apreendê-la em sua dimensão de criatividade processual.” A dimensão experimental da vida aparece explicitamente na arte e se aproxima de uma clínica pensada como produtora de desvios, que busca tratar dos impedimentos psíquicos para que seja mobilizado o estado de arte na subjetividade. Os acontecimentos do macrocosmo são assimilados aos do microcosmo, dos quais, por outro lado, eles têm que dar conta. Assim sendo, o espaço e o tempo nunca são receptáculos neutros: eles devem ser efetuados, engendrados por produções de subjetividade que envolvem cantos, danças, narrativas acerca dos ancestrais e dos deuses... Não existe aqui trabalho algum que incida sobre as formas materiais que não presentifique entidades imateriais. Inversamente, 15 Ainda seguindo o pensamento de Guattari: a subjetividade enquanto produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais. 39 toda e qualquer pulsão dirigida a um infinito desterritorializado é acompanhada por um movimento de recuo em torno de limites territorializados, correlativo a um gozo da passagem ao para-si coletivo e a seus mistérios iniciáticos. (GUATTARI, 1992, p.132) A clínica que vai se tecendo, em nosso trajeto, e que está voltada para a experimentação do corpo pede também um exercício de prudência... uma terapêutica do encontro, dos afetos - de inspiração espinosiana, e também moreniana16, que vai dando suporte, contornos e aberturas, ao vai e vem deste corpo ao lançar-se à travessia. E ao longo deste processo clínico ressoam perguntas que acompanham e retornam sempre: Como construir um plano de consistência no qual possamos afirmar a singularidade, sem cair nos individualismos e nas exaltações do eu tão frequentes no contemporâneo? Como afirmar a vida mesmo nos espaços e nas situações as mais precárias, criando um mínimo de terra para habitar e, ao mesmo tempo, as linhas por onde fugir? (LIMA, 2009, p.196) O acompanhamento desses processos de produção de si e produção coletiva estão pautados numa ética que considera a diferença qualitativa dos modos de existência, e dos corpos, que se diferenciam entre si pelo que podem. Assim, “a ética está em selecionar aquilo a que convém abrir meu corpo a partir de um critério bem preciso: a composição possível entre a intensidade para a qual meu corpo se abre e o plano de consistência que é possível criar” (LIBERMAN e LIMA, p.189, 2014). A aprendiz-cartógrafa, em travessia, abre-se, abrindo também o corpo da clínica, para que se possa sustentar e compor com outras aberturas nos fios que o próprio grupo, tensionando e relaxando, tece no processo de experimentação. Eis aí um modo de acompanhar travessias. Embarcamos: uma espécie de canoa da Medusa, há bombas que caem em volta da canoa, a canoa deriva rumo a rios tórridos, o Orenoco, o Amazonas; pessoas remam juntas, pessoas que não se supõe obrigadas a se amarem, que se agridem, que se devoram. Remar juntos é compartilhar algo, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de qualquer instituição. (SANTOS, 1989, p.61) 16 Abordado no próximo item Modo de embarcar junto – o grupo. 40 Grupo - modo de embarcar junto LABORATÓRIO Des-armamos o fato para –pacientemente – re- generarmos a estrutura ser nascido do que apenas acontece. Re-fazemos a vida. (Orides Fontela) Nas oficinas de teatro a interação entre os participantes é alimento para a experimentação dos corpos, para atravessar fluxos. Assim o grupo torna-se um dispositivo (por seu caráter ativo) de possibilitar encontros. Bons ou maus, uma experiência acontece - não saio do mesmo jeito que entrei. Ao embarcar juntxs iniciamos o movimento de nos distanciarmos do território conhecido. Em meus trajetos, na psicologia e no teatro, os procedimentos com os grupos foram tecidos com influências diversas a partir das experiências em clínica, das oficinas e pesquisas artísticas. A teoria e a práxis psicodramática contribuíram com uma concepção de grupo e de encontro, possibilitando estratégias de intervenção no traçar desta clínica, por isso, exponho a seguir um pouco desta perspectiva: Para Moreno, o grupo é um microcosmo que representa (ou reflete) o macrocosmo da sociedade, pois o entrelaçamento dos conteúdos co- inconscientes produz uma interferência e um aprendizado mútuo entre ambas as instâncias. As forças de atração e repulsão compelem as pessoas a se juntar ou se afastar, mediante múltiplos e complexos critérios sociométricos (escolhas entre os indivíduos para a realização de uma tarefa ou de pertencimento a grupos e subgrupos). Há vários critérios sociométricos socioculturais, como: vizinhança, amizade, categorias profissionais, ideologias, valores. Os grupos impõem identidade aos papéis dos indivíduos, produzindo pautas de condutas denominadas por Moreno de conservas culturais. No entanto, os indivíduos, por meio da liberação da espontaneidade-criatividade, conseguem fluir na existência, num constante processo de vir-a-ser. (NERY, 2010, p.22-3) E essa liberação da espontaneidade só pode acontecer no encontro. 41 O conceito de encontro, aqui, se revela como uma mútua disponibilidade de duas pessoas capazes de se colocarem uma no lugar da outra, e quiçá algo que seja mais intenso, como aparece neste trecho da poesia Divisa de Moreno (2006): * Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face. E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus; E arrancarei meus olhos Para colocá-los no lugar dos teus; Então ver-te-ei com os teus olhos E tu ver-me-ás com os meus. * O encontro moreniano é como o bom encontro espinosano, aumenta a potência de agir ou a força de existir porque há produção de alegria. Nesta perspectiva, a pessoa passando por experiências no grupo tem a possibilidade de ser mais espontânea - algo é liberado no encontro - libertando o ser criador(a) de determinados papéis que o estão entristecendo, adoecendo, diminuindo suas capacidades inventivas. Nesta perspectiva, a energia psíquica não é somente uma fonte individual, mas está relacionada com o grupo e o cosmos, alimentada pela espontaneidade/criatividade. Somos todos co-atores/atrizes. Não há audiência no psicodrama. Todas as pessoas presentes, aqui-agora, fazem parte da cena. Aqui, a criatividade é indissociável da espontaneidade. Vemos em Gonçalves et al (1988) que na Revolução Criadora, proposta por Moreno, ser espontâneo(a) é possível ao romper-se com os padrões de comportamento aprendidos ao longo da vida na participação deste sistema social, afirmando sua própria natureza, recuperando a liberdade por meio do criar: a partir de algo estabelecido produzir algo novo. No encontro dos corpos algo se produzirá... ...movimentos, repousos, sons, gestos, olhares, contatos físicos, trombadas, esquivas, aproximações, distanciamentos, isolamentos, encantamentos, 42 lembranças, esquecimentos, pausas, acelerações, sopros, canções, choques, silêncios, fugas, sonhos, vazios, palavras, recusas, desejos... uma outra terceira margem do rio17 Quando dizemos - o grupo - parece que estamos nos remetendo a uma instância abstrata, uma unidade separada de nós, um todo composto por indivíduos. Esta lógica de unidade não convém com a nossa prática, já que nossa clínica se estende no plano dos fluxos, da multiplicidade de modos de existir e do acompanhamento de processos singulares. Barros (2015, p.101-2), baseando-se em Foucault e Deleuze, apresenta os grupos como dispositivos, isto é “máquinas que fazem ver e falar”. Máquinas que tramam processualidades compostas e atravessadas por linhas que seguem múltiplas direções. A experiência grupal, nesta perspectiva, pode provocar outros ou novos agenciamentos. No plano das afecções movimentam, tensionam, deslocam as conexões que se juntam, mas nem por isso formam um todo. Conexões entre pessoas e modos de existências diferentes. Estar em grupo, estar acompanhadx de outras pessoas, estar em meio a estas conexões lança os corpos a modos de experimentar os encontros, lança os corpos à correntezas desconhecidas. Estar em meio a planos molares e moleculares, em constante embate de forças. O outro em minha frente, o outro em mim... numa “composição de linhas que desenham movimentos imprevisíveis possibilitando a captação do mundo das margens, de perturbação, que arrasta o pensamento do atual ao impensado” (ibidem, p.104). Multiplicidade! O difícil é fazer com que todos os elementos de um conjunto não homogêneo conspirem, fazê-los funcionar juntos. As estruturas estão 17Referência ao conto de João Guimarães Rosa (1996) – A terceira margem do rio - cujo enredo traça a estória contada pelo narrador, este que viu o pai ir para o meio do rio em sua canoa e lá permanecer, sozinho, por longos anos, exposto a toda ordem das coisas, enquanto à família seguia o curso da vida. O filho sempre o chamando sem resposta. O tempo, o rio passando e aquele silêncio. Até a velhice do narrador, o pai não retornou à casa, nem à margem, permanecendo “nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.” Uma outra terceira margem pois é tramada na prática dos encontros. 43 ligadas a condições de homogeneidade, mas não os agenciamentos. O agenciamento é co-funcionamento, é a “simpatia”, a simbiose. Acreditem em minha simpatia. A simpatia não é um sentimento vago de estima ou de participação espiritual, ao contrário, é o esforço ou a penetração dos corpos, ódio ou amor, pois também o ódio é uma mistura, ele é um corpo, ele só é bom quando se mistura com o que odeia. A simpatia são corpos que se amam ou se odeiam, e a cada vez populações em jogo, nesses corpos ou sobre esses corpos. (DELEUZE, PARNET, 1998, p.65-6) Para que o grupo funcione como trama coletiva há de se tornar um constante gerador de processos de desindividualização. Sem negar a molaridade dos modos de funcionamento, convidar as identidades a mergulhos nas forças moleculares, abrir canais, estar no meio, pôr-se em contato com as diferenças, compor com elas, e no plano dos fluxos... sempre o chamamento: remar juntxs. O plano da clínica dos fluxos é o plano de composição, “aqui o plano só retém movimentos e repousos, cargas dinâmicas e afetivas: o plano será percebido como aquilo que ele nos faz perceber, passo a passo. Não vivemos, não pensamos, não escrevemos da mesma maneira num e noutro plano” (DELEUZE, 2002, p.133). O teatro tudo o que há no amor, no crime, na guerra ou na loucura nos deve ser devolvido pelo teatro, se ele pretende reencontrar sua necessidade. (Artaud) O teatro no Ocidente nasce de uma celebração coletiva. Nasce em uma época e em uma geografia com características próprias. Nasce na Grécia, mas especificamente numa praça de mercado de Atenas no século VI a.C., quando acontecia um ditirambo, a celebração a Dioniso, o deus da alegria e da embriaguez. Momento em que pela primeira vez um grego em meio à multidão ousou construir uma personagem e vestido de túnica e máscara bradou: “Eu sou Dioniso!”18. Desta comunhão da condição humana mortal com a natureza divina, o teatro ritualístico foi passando por transformações, digamos que usando mais manejos técnicos e menos vinho. Um longo processo, e não nos deteremos aqui, fez com 18 Do livro Teatro Vivo (xerox) 44 que o teatro no mundo ocidental moderno virasse um lugar para representações. O teatro torna-se, assim, “o lugar de onde se vê”, onde se definem palco, plateia, atores, espectadores etc. As experiências que aqui serão narradas foram criadas em composição com uma geração de teatrólogxs que buscavam uma mudança de paradigma nas artes cênicas. Uma das características mais marcantes é a dissolução palco-platéia e a experimentação de outros modos de pesquisar/sentir o corpo e suas possibilidades cênicas. Na década de 60 emerge Jerzy Grotowski, diretor do teatro-laboratório de Wroclaw, sob forte influência de Artaud, forjou o Teatro Pobre, sustentado na relação ator-espectador, dispensando o texto, a arquitetura, a construção de personagens convencionais. Grotowski dá ênfase à criação coletiva, à pesquisa pessoal e grupal dos atores, ao ator criador, o “ator-santo”. Nosso método não é dedutivo, não se baseia em uma coleção de habilidades. Tudo está concentrado no amadurecimento do ator/atriz, que é expresso por uma tensão levada ao extremo, por um completo despojamento, pelo desnudamento do que há de mais íntimo – tudo isto sem o menor traço de egoísmo ou de auto-satisfação. O ator/atriz faz um total doação de si mesmo. Esta é uma técnica de “transe” e de integração de todos os poderes corporais e psíquicos do ator/atriz, os quais emergem do mais íntimo do ser e de seu instinto, explodindo numa espécie de “transiluminação”. Não educamos um ator/ uma atriz, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este processo psíquico. (...) Impulso e ação são concomitantes... (GROTOWSKI, 1992, p.29 – grifo nosso) Esta prática, intensamente influenciada pelo pensamento de Artaud, inspirou todo o andamento do processo de pesquisa do Teatro-Fonte19. Artaud contribui com seu pensamento ao trabalho de entrega afetiva de atores e atrizes20 , além de orientações para a pesquisa do corpo e montagem cênica. “No teatro, doravante poesia e ciência devem identificar-se. Toda emoção 19 Esta experiência será relatada mais adiante em Composições e Narrativas. 45 tem bases orgânicas. É cultivando sua emoção em seu corpo que o ator recarrega sua densidade voltaica... conhecer as localizações do corpo é, portanto, refazer a cadeia mágica” (ARTAUD, 1999, p.173). Uno (2012) relembra uma frase inesquecível de Artaud – “dilatar o corpo de minha noite inteira” – quando ele afirma o corpo como uma dupla realidade: sujeito e objeto, exterior infinito e interior como abismo sem fundo. O autor destaca Artaud, ao lado de Jean Genet, Pasolini, Hijikata e Espinosa, como partidários da vida singular do corpo. Dilatar, dar abertura ao corpo... uma defesa da vida contra os poderes e instituições da morte. “Se nós refletirmos um pouco sobre todas as rotinas e os dispositivos que objetificam e coisificam a realidade vivida pelo corpo, veremos que é um guerra insana, singular... Há redes múltiplas de diversas forças que penetram em toda parte a vida do corpo” (UNO, 2012, p,66). Artaud (1999) empreendeu o “Teatro da crueldade” lançando o teatro ao plano da magia. Salientou que o teatro é o único meio para alcançarmos diretamente o organismo, atingindo, como a medicina chinesa, os pontos a serem tocados e que regem as suas funções mais sutis. Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda a sensação verdadeira. Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele os considere de fato como sonhos e não como um decalque da realidade; sob condição de que eles lhe permitam liberar a liberdade mágica do sonho, que ele só pode reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela crueldade. Daí o apelo à crueldade e ao terror, mas num plano vasto, e cuja amplidão sonda nossa vitalidade integral, nos coloca diante de todas as nossas possibilidades (ARTAUD, 1999, p.97). 20 Para acompanhar um processo de criação baseado nas ‘lições cênicas’ artaudianas, assistir aos extras e ao filme brasileiro Lavoura Arcaica (2001). Roteiro baseado em romance homônimo de Raduan Nassar; dirigido por Luís Fernando de Carvalho. 46 Em carta a um amigo, Artaud revela que, do ponto de vista do espírito, a crueldade tem o significado de rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. E que ela (a crueldade) sempre viveu em seu pensamento. Com o pensamento entranhado no corpo, Artaud vivia esses estados intensivos produzindo poeticamente no teatro, no cinema e na escrita. Então, pego pela articulação do biopoder: internado, tratado, controlado com as tecnologias da época; Artaud tenta inventar um outro corpo: o corpo sem órgãos. Nesse ponto - o corpo sem órgãos - é que Artaud torna-se intercessor na filosofia de Deleuze/Guattari. “O corpo sem órgãos quer dizer o corpo estendido ilimitadamente, flutuante, em variação contínua sem forma fixa que é vivida como tempo, mais do que espaço... um corpo pouco visível mas extremamente presente e sensível”21 (UNO, 2012, p.67). Buscávamos este “corpo” em nossas experimentações com xs alunxs na praça do Teatro-Fonte. Coisa que em alguns instantes, raros, emergia em acontecimento partilhado ou sozinho. A ativação de um estado de presença, intensiva, cuja permanência em cena era nosso desafio. Para tanto nos muníamos das técnicas, dos exercícios (e o sucesso não está garantido por isso), para esta ação tão cara aos atores e atrizes: estar presente com as forças do instante e doar- se ao público. “ESPETÁCULO: Há uma ideia do espetáculo integral que devemos fazer renascer. O problema é fazer o espaço falar, alimentá-lo e mobiliá-lo; como minas introduzidas numa muralha de rochas planas que de repente fizessem nascer gêiseres e ramos de flores.” (Artaud, 1999, p.113) A voz é corpo Solto a voz nas estradas Já não quero parar... (Milton Nascimento) 21 Ver a performance-butô de Tanaka Min na La Borde: https://www.youtube.com/watch?v=VgErye7jXbI https://www.youtube.com/watch?v=VgErye7jXbI 47 Abordaremos com Grotowski (1992) a experimentação do corpo e da voz, do movimento e do som, de como pudemos pesquisar na experiência do Teatro-Fonte, na oficina Corpo que Vê e levar às outras oficinas e grupos estes recursos potentes para as travessias. A voz é o instrumento musical de nosso corpo. E como extensão, como som, toca outros corpos que são tocados e vibram. Som é vibração. Voz: corpo que vibra. Em nossas pesquisas cênicas praticávamos o movimento corporal e vocal juntos, para diminuir cada vez mais o intervalo de tempo entre impulso e ação. Soltar a voz e deixar o movimento seguí-la ou movimentar-se e deixar a voz seguir o movimento. Corpo todo pensando em movimento. Corpo todo como produtor e como caixa de ressonância. O ator/atriz deve ser capaz de decifrar todos os problemas do seu corpo que lhe sejam acessíveis. Deve saber como dirigir o ar e as partes do corpo onde o som deve ser criado e ampliado, como numa espécie de amplificador. O ator/atriz comum conhece apenas a cabeça como amplificador; isto é, usa a cabeça como caixa de ressonância para amplificar a voz, para tornar seus sons mais nobres, mais agradáveis à plateia. Pode até, de tempos em tempos, usar o corpo como amplificador. Mas o ator/atriz que pesquisa, intimamente, as possibilidades do seu próprio organismo, descobre que o numero de amplificadores é praticamente ilimitado. (GROTOWSKI, 1992, p.30-1 – grifo nosso) Na pesquisa do corpo-voz-pensamento a participação da respiração é fundamental. A voz está intimamente ligada à respiração, aos movimentos produzidos pela entrada e saída do ar e pelos efeitos dos afetos sentidos. “Não há dúvida de que a cada sentimento, a cada movimento do espírito, a cada alteração da afetividade humana corresponde uma respiração própria” (ARTAUD, 1999, p.152). Além da respiração abdominal existem várias outras, outras tantas quantas são as ações físicas executadas no treino do ator/atriz. Para Grotowski (1992, p.31), “o corpo deve ser liberado de toda resistência”, no sentido de desobstruir qualquer barreira que interfira em sua entrega. Inclusive, no “Treinamento do Ator‟, ele toma emprestado, do Hatha Yoga e da medicina chinesa, algumas técnicas para a conscientização do processo respiratório. Por 48 meio dos exercícios diários tenta-se controlar o funcionamento dos órgãos da respiração e ampliar o poder de emissão do som da voz. O autor afirma: “O ator/atriz que deseja evitar a estagnação deve, periodicamente, começar tudo de novo, aprendendo a respirar, a pronunciar e a usar suas caixas de ressonância. Deve redescobrir sua voz” (Ibidem, p.144). Devir-criança O mundo é mágico, mas somente as crianças, os velhos, os bêbados e os loucos tem a sensibilidade de percebê-lo. (Guimarães Rosa) A brincadeira e o jogo são os modos de experimentar os corpos no teatro, e fazem parte da pesquisa pessoal e grupal. As rodas, os cantos, o corre-corre, as trombadas, os choros, o esconde-esconde, os contatos corporais, os arrepios, os circuitos, arrastar-se, rolar no chão, e rir são estratégias para o ator, atriz, que brincando possam habitar com inteireza o presente e cartografar o que encontram por onde passam. Os jogos nos exercitam a buscar uma presença presente e brincante. Os atores e as atrizes são pessoas que se abrem a esse devir, porque este é o modo de aumentar sua potência inventiva, sua espontaneidade, sua alegria e assim disponibilizar-se ao encontro com o público. “Uma lista de afectos ou constelação, um mapa intensivo, é um devir: (...) A imagem não é só trajeto, mas devir. (...) É o devir que faz, do mínimo trajeto ou mesmo de uma imobilidade no mesmo lugar, uma viagem; e é o trajeto que faz do imaginário um devir” (DELEUZE, 2011, p.87-8). Nos jogos e brincadeiras dos ensaios os atores são como crianças.Há uma poética em cada acontecimento vivido pela criança. Mundos afetivos são criados a cada descoberta, impacto, surpresa ou susto. Para Bachelard (1988, p.95), “na nossa infância, o devaneio nos dava a liberdade. (...) Apreender essa liberdade quando ela intervém num devaneio de criança só é um paradoxo quando nos esquecemos de que ainda pensamos na liberdade tal como a sonhávamos quando éramos crianças”. 49 Sim, inventar, imaginar, fabular dá uma sensação de liberdade! De que o mundo é vasto e ninguém pode nos segurar... E as crianças sempre estão fazendo arte, inventando trajetos, tramando ocupações em bando ou sozinhas. É! O teatro quer na presença do ator/atriz, por meio de seu corpo, dizer o que dizem as crianças... “Trajetos e devires, a arte os torna presentes uns nos outros; ela torna sensível sua presença mútua e se define assim, invocando Dioniso como o deus dos lugares de passagem e das coisas do esquecimento” (DELEUZE, 2011, p.90). Ao seguir na leitura das narrativas vamos percebendo como a arte vai se contagiando pela clínica e vice-versa. À medida que o contágio atravessava meu corpo, as práticas também iam sendo contagiadas. Na memória do meu corpo de cartógrafa latejam as marcas deste processo: imersões, submersões, versões, inversões e subversões. Marcas híbridas, transdisciplinares neste corpo- pensamento em mutação. Um processo que não se acaba. A Escrita Escrever não tem outra função: ser um fluxo que se conjuga com outros fluxos – todos os devires minoritários do mundo. (DELEUZE & PARNET) A escrita como extensão do corpo. Escrita é corpo. Um modo de dar forma às forças dos fluxos. Um modo de atravessar. Um modo de cuidar de si, de acompanhar processos, de tecer corpos. O gênero escolhido para relatar as experiências desta pesquisa foi a narrativa, o modo de escrita dxs cartógrafxs. Para Passos e Barros (2010) é com narrativas que lidamos em pesquisas no campo da clínica. Ao narrarmos o que acontece nas relações de si com o mundo tomamos uma posição política, a qual os autores chamam de política da narratividade. Definir esta forma de expressão para relatarmos o conhecimento de nós mesmos e das relações experimentadas nos encontros, inclui a dimensão 50 subjetiva, afirmando um procedimento em sintonia com o modo de pesquisar da cartografia. A narrativa é inerente ao homem/mulher e se faz presente onde quer que ele(a) tenha se colocado. Em qualquer tempo, em qualquer espaço nos quais o homem/mulher se faça presente, ele terá a incontornável necessidade de narrar os acontecimentos de seus passados e mesmo feitos presentificados, ainda que eles sejam pequenos e insignificantes à primeira vista. Em verdade, a narrativa tem início com a própria história da humanidade. (SANTOS, 2007, p.159 – grifo nosso) A aprendiz-cartógrafa, como abordado no item 2 deste ensaio, escreve partindo das marcas que ficaram registradas no corpo-memória – blocos de sensação que estão presentes - uma espécie de inventário afetivo dos movimentos que emergiram na relação com as pessoas dos grupos, que pude acompanhar nos processos. Em Composições e narrativas x leitorx poderá acessar os relatos. Escrever memórias é estar entre lembranças e esquecimentos e neste intermezzo – uma abertura de frestas – ativar estados de vertigem e ficcionar: ...voltar ao ponto em que pensou achar-se, voltar ao que pensou perdido – eles se misturam e não existe imagem real. Saberás da verdade jamais, jamais e esta é sua condenação. Jaz maldita a combinação destas letras que dão nome à morte. Ela esmaga qualquer laço, sucumbe em campo estreito e seco – o exílio das identidades. Parafraseando a morbidez humana, forjo esferas quase visíveis e entrego-me ao sinistro. Onde você estará? E balanço em redes sobre rios inesgotáveis a procura dos olhos d’água. Trajetória de quem está indo... derramando terra pisada, sonhando a nova morada.22 Ao longo do processo de feitura desta dissertação a escrita foi diferindo dela mesma. Adentrando águas de um passado, imersa no presente, traçando futuros. No rio da linguagem o devir-escritora atravessou a aprendiz cartógrafa... “Escrever é traçar linhas de fuga, que não são imaginárias, que se é forçado a seguir, porque a escritura nos engaja nelas, na realidade nos embarca nela. 22 Pellegrini, L., 2002. 51 Escrever é tornar-se, mas não é de modo algum tornar-se escritor. É tornar-se outra coisa” (DELEUZE & PARNET, 1998, p.56). Ao desterritorializar-se, traçar um plano: inventar um cais. Se o corpo- pensamento é força – fluxo de forças – a escrita torna-se embarcação para fazer a travessia. no meio23 entre o passado e o futuro o devaneio: recordar para não esquecer entre a inspiração e o sopro a suspensão: contemplar o vir-a-ser entre o sonho e a vigília a fresta: tornei-me máquina de escrever entre a memória e a presença a travessia: espreitar e desaprender * Em processo de ir hibridizando nas práticas, a aprendiz-cartográfa percebe que seu corpo não é seu, mas ao conjugar-se com outros, seu corpo é o mundo inteiro. Tanto quanto o estilo de sua escrita, o qual vai tomando outros tons e por instantes, a cartógrafa também torna-se poeta. Porque “... a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu...” (DELEUZE, 2011 ,p.13). E mais: “não há literatura sem fabulação” (ibidem, p.14), sem criação imaginativa. Escrever, como modo de subverter a linguagem, torna-se ato no embate com barragens sem saídas. Faz verter novos fluxos possível de navegar. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o (a) escritor(a) tenha forçosamente uma saúde de ferro (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas ele(a) goza de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido 23 Poesia forjada por mim em meio ao cartografar desta pesquisa. 52 coisas demasiadamente grandes para ele(a), fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o(a) esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. (...) Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo(a) homem/mulher e no(a) homem/mulher, pelos organismos e gêneros e no interior deles? (DELEUZE, 2011, p.14 – grifo nosso) O procedimento formal da escrita entra em devir, tumultuando o paradigma de pesquisa científica e abrindo o corpo deste mesmo paradigma para a experimentação da aprendiz-cartógrafa. Acontece uma experimentação da linguagem, começa a nascer um empreendimento poético. Numa passagem luminosa Braidotti (2000) diz que atualmente uma luta importante das feministas femininas, ao afirmar uma potência de contágio, é ter o direito de elaborar suas próprias formas de discurso; ao reinventar formas tradicionais cuja linguagem não abarca os movimentos de existências nômades. O reconhecimento destas produções como científicas estende esta afirmação, ampliando o exercício da diferença, inclusive em instâncias instituídas e tão formatadas. “O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se um