Sheila do Nascimento Garcia REVISTA CARETA: UM ESTUDO SOBRE HUMOR VISUAL NO ESTADO NOVO (1937 – 1945) FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS – UNESP/ASSIS 2005 ii Sheila do Nascimento Garcia REVISTA CARETA: UM ESTUDO SOBRE HUMOR VISUAL NO ESTADO NOVO (1937 – 1945) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Assis, para a obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História e sociedade. Linha de Pesquisa: Identidades culturais, etnicidades, migrações. Orientadora: Drª Tania Regina de Luca Assis – 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G216r Garcia, Sheila do Nascimento Revista Careta : um estudo sobre humor visual no Estado Novo ( 1937 – 1945 ) / Sheila do Nascimento Garcia. Assis, 2005. 239 f. : il. Orientador : Tania Regina de Luca. Dissertação ( Mestrado ) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2005. Bibliografia : 228 a 239 f. 1. Humor visual – Estado Novo . 2. Revista Careta. 3. Imprensa. 4. Caráter pedagógico - Humor . 5. Charge – Caricatura política. I. Luca, Tania Regina de. II. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. III. Título. CDU 741.5:32(091) iii Sheila do Nascimento Garcia REVISTA CARETA: UM ESTUDO SOBRE HUMOR VISUAL NO ESTADO NOVO (1937-1945) DATA DA APROVAÇÃO: 25/08/2005 BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Presidente: Drª Tania Regina de Luca – UNESP/Assis _______________________________________________________ Profª Drª Zélia Lopes da Silva – UNESP/ Assis _______________________________________________________ Profª Drª Maria Helena Capelato – USP/SP iv DADOS CURRICULARES SHEILA DO NASCIMENTO GARCIA DATA DE NASCIMENTO: 11/09/1979 FILIAÇÃO: Manoel Reis Garcia Maristela do Nascimento Garcia 1998-2001 Curso de Graduação em História Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis 2000-2002: Estagiária do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa – CEDAP 2003-2005 Curso de Mestrado em História Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis v Aos meus pais Manoel e Maristela, com amor e gratidão. vi AGRADECIMENTOS A leitura de dedicatórias e agradecimentos contidos nas dissertações e teses sempre me despertou um questionamento: como mencionar devidamente, em escassas linhas, tantas pessoas e instituições que fizeram parte da trajetória do trabalho? Desprovida de respostas, mas não de reconhecimento devido, elenco meus principais agradecimentos: A Deus, por permitir que mais essa etapa de minha vida fosse cumprida. Aos meus familiares, pelo carinho e, sobretudo, pela compreensão nas horas difíceis. Em especial meus pais, Manoel e Maristela, por todo o sacrifício empenhado para a formação, em nível superior, do primeiro membro da família; aos meus irmãos, Priscila e Diego, pelo incentivo e pela torcida constante; aos meus avós Manoel, Alcida e Judith que, mesmo sem a compreensão desta empreitada, acompanharam com afeição seu percurso, oferecendo-me, entre uma leitura e outra, um saboroso cafezinho acompanhado de boas conversas. À Tania Regina de Luca, pela orientação precisa e, não raro, instigante, a ponto de um só questionamento seu causar-me algumas noites de insônia, certamente frutíferas. Meus sinceros agradecimentos pela dedicação, paciência e, sobretudo, por acreditar neste trabalho desde sua concepção inicial. A ela dedico os méritos que este possa ter. À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – e ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – pelos recursos financeiros fornecidos para o desenvolvimento da pesquisa. Aos membros da Banca de Qualificação - Profª. Drª. Zélia Lopes da Silva e Profº. Carlos Alberto Sampaio Barbosa – pelos apontamentos e sugestões que enriqueceram o texto. Além dessas, o percurso pelas instituições em busca de “pistas” sobre a Careta proporcionou-me o encontro com outras pessoas dedicadas e sempre dispostas a auxiliarem no trabalho de pesquisa. Por isso, agradeço aos funcionários do setor de Obras Raras da vii Biblioteca Mário de Andrade e do Arquivo do Estado, em São Paulo, bem como aos da Biblioteca Nacional e do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Em especial a Johenir, do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, pela acolhida carioca. Aos funcionários do CEDAP – Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa – por todo o apoio recebido. Agradeço a Izabel, Maria e toda a equipe de estagiários, por tornarem a pesquisa nos microfilmes momentos menos áridos. Um agradecimento especial à Marlene que, com seu sorriso franco e sua presteza, acompanhou meu processo de “transição” de estagiária para pesquisadora. Aos amigos que, desde a graduação, compartilharam de minhas expectativas, dúvidas e projetos, sempre dispostos ao diálogo: Ana Paula, Franciele, Celso, Camila, Karina, Priscila, Rodolfo, Klayton, Hivana. E tantos outros que, mesmo não sendo mencionados, estão presentes em cada página – deste trabalho e da minha vida. E, finalmente, ao Márcio, pelo amor e companheirismo ímpares. viii O Humor é uma forma criativa de analisar criticamente, descobrir e revelar o homem e a vida. É uma forma de “desmontar”, através da imaginação, um falso equilíbrio anteriormente criado (...) o Humor é um caminho! Ziraldo ix SUMÁRIO Resumo xi Abstract xii Introdução 13 Capítulo I. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 29 1.1. Caricaturistas e demais colaboradores: Careta como espaço de sociabilidade intelectual 45 1.2. O humor é um caminho: Humor visual como estratégia crítica 69 1.3 Fazendo Careta(s): o contra discurso do humor 75 Capítulo II. Retratos do Estado Novo: construindo leituras pela lente do humor 82 2.1. Construção da imagem getuliana 82 2.2. Careta e a censura institucionalizada: enfrentando o DIP 119 2.3. Noticiando a Segunda Guerra: deboche ao “inimigo externo” visando o “inimigo interno” 143 Capítulo III. O cotidiano como mote para a crítica ao Estado Novo 167 3.1. Silêncio imposto e o protesto velado 173 3.2. Os problemas cotidianos no trânsito carioca e a questão da crise nos transportes 181 3.3. Carestia de alimentos 191 x Considerações Finais 206 Apêndice A – Gráficos (1937-1945) 211 Apêndice B – Relação de imagens utilizadas 221 Apêndice C – Lista de Tabelas 226 Arquivos Pesquisados 227 Referências Bibliográficas 228 xi RESUMO Durante o período correspondente ao Estado Novo (1937 a 1945) uma série de aparatos institucionais de controle e repressão – já esboçados desde o início da década de trinta – foram aperfeiçoados, sendo a imprensa um dos principais alvos do novo regime. Ao reconhecer o caráter pedagógico das imagens de humor, bem como suas potencialidades para veiculação de posicionamentos críticos, o discurso oficial chegou a decretar a “morte” da caricatura política no período, sob a justificativa de identificação plena entre as propostas estatais e os anseios da população. Em meio ao cerco estabelecido à produção humorística brasileira, a revista carioca Careta representou a sobrevivência da verve crítica na imprensa, pois retratava diversas cenas da vida política e social por meio de boa dose de irreverência e criatividade. Discutir as estratégias adotadas pelo semanário para burlar as proibições impostas, assim como compreender quais leituras sobre o período foram engendradas pelas charges – rastreando as principais temáticas abordadas e sua respectiva forma de representação na revista – são as principais questões abordadas na presente dissertação. Palavras-chave: Estado Novo, imprensa, revista, humor visual, charge. xii ABSTRACT During the Estado Novo period (1937 to 1945) an institutional apparatuses of control and repression - already sketched since the beginning of the decade of 1930- was improved, and the press remained as one of the main targets of the new political system. Recognizing the pedagogical character of the humor images, as well as their potentialities for dissemination of critical positions, the official speech came to decree the "death" of the political caricature, based on the justification of complete identification between the state proposals and the longings of the population. Amid the established surrounding to the Brazilian humorous production, the magazine Careta, from Rio de Janeiro, represented the survival of the criticism in the press, portraying several scenes of the political and social life through a considerable dose of irreverence and creativity. To discuss the strategies adopted by the weekly publication to outwit the imposed prohibitions, as well as to understand which readings on the period were originated by the political cartoons - tracking the main approached themes and their respective layout in the magazine - are the main subjects tackled in these dissertation. keywords: Estado Novo, press, magazine, visual humor, political cartoon. Introdução 13 Introdução O presente trabalho tem como principal objetivo a realização de uma leitura crítica e sistematizada das charges e caricaturas veiculadas pela revista carioca de variedades Careta, durante o Estado Novo (1937-1945), a fim de compreender o papel desempenhado pelo humor visual na construção de uma determinada interpretação da política e da sociedade do período. Devido ao contexto de intensa censura institucionalizada pelo governo de Getúlio Vargas, intentou-se verificar como as imagens de humor foram articuladas pela revista e como se organizaram as relações existentes entre seu projeto editorial, ancorado na sátira crítica, e os aparatos político-ideológicos do citado regime. Tal problemática de pesquisa surgiu durante o curso de graduação, após a realização de estudos sobre a imprensa brasileira. Ao adentrar esse universo, notamos constantes referências à revista Careta, sobretudo em relação a seu conteúdo visual – as charges. Entretanto, o vasto material localizado restringia-se a compêndios temáticos produzidos por especialistas da área1 bem como a utilização das imagens de humor geralmente como recurso ilustrativo ou complementação para temáticas variadas desenvolvidas pela produção historiográfica.2 1 As publicações do caricaturista Cássio Loredano sobre a trajetória do também chargista J. Carlos, fornecem importantes informações sobre a revista Careta. Pode-se citar LOREDANO, C. (Org.). Lábaro estrelado. Nação e pátria em J. Carlos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000. ____. (Org.). J. Carlos contra a Guerra. As grandes tragédias do século XX na visão de um caricaturista brasileiro. Texto de Arthur Dapieve. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000. ____. O bonde e a linha. Um perfil de J. Carlos. São Paulo: Editora Capivara, 2002. Pode-se ainda mencionar a publicação organizada por Renato Lemos, na qual são utilizadas diversas charges publicadas por Careta: LEMOS, R. (Org.). Uma História do Brasil através da caricatura (1840- 2001). Rio de Janeiro: Bom Texto Editora/Editora Letras e Expressões, 2001. Outras referências são mencionadas ao longo do texto. 2 CARNEIRO, M. L. T. O anti-semitismo na Era Vargas (1930-1945). Fantasmas de uma geração. São Paulo: Brasiliense, 1988. A autora destina um tópico específico sobre a representação do judeu nas caricaturas, utilizando como fonte a revista Careta, entre as décadas de 1930 e 1940. Além disso, foi possível coletar alguns dados em obras sobre a imprensa em geral, como BAHIA, J. Jornal, História e Técnica. História da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990 e SODRÉ, N. W. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1977. Introdução 14 Apesar da ausência de estudos específicos sobre a fonte, observou-se sua longa e ininterrupta trajetória3, comprovada pelos mais de cinqüenta anos de veiculação de Careta no Rio de Janeiro e em outros estados, bem como a permanência de sua proposta de cunho crítico e irônico, mesmo sob a ação da censura estadonovista. A constatação gerou uma série de questionamentos sobre os mecanismos de atuação da revista, as estratégias criativas utilizadas para burlar o controle oficial e as leituras sobre o período que foram engendradas pelas charges – principal marca da publicação. O recorte temporal da pesquisa, de 1937 a 1945, período correspondente ao Estado Novo, ocorreu devido ao reconhecimento da importância da dimensão ideológica de seu projeto político, no qual observa-se, por um lado, a tentativa de construção de uma “imagem oficial” do regime4 e, por outro, a criação de aparatos com o intuito de impedir a profusão de mensagens contrárias ou pejorativas à ordem estabelecida.5 Embora conscientes da existência da citada estrutura, ao menos em sua forma embrionária, desde o início do governo varguista, no alvorecer da década de 1930, foi com a instauração do Estado Novo que tais projetos foram mais bem delimitados.6 A partir de 1937, a nova concepção de “cultura política” pressupunha as atividades culturais como o cerne da nacionalidade, o que legitimava as iniciativas estatais de promovê-las e, ao mesmo tempo, justificava a importância atribuída aos instrumentos de ação educativa, como o rádio, o 3 Careta circulou durante cinqüenta e três anos, totalizando 2.732 números. Sua última publicação data de 05 de novembro de 1960. 4 VELOSO, M. P. Cultura e poder político: uma configuração do campo intelectual. In: OLIVEIRA, L. L. et al. Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p.71. 5 LENHARO, A. A sacralização da política. Campinas: Papirus/Unicamp, 1986, p.54. No novo projeto político, caberia ao Estado reformular e regenerar o país em crise, assumindo o papel de condutor do desenvolvimento interno e da constituição de uma nação brasileira moderna que, a partir de então, pressupunha-se isenta de seu passado pejorativo, caracterizado pelos males coloniais e pela subordinação política e econômica. 6 Conforme Elizabeth Cancelli (...) Não existe nenhum corte temporal em 1937, com a decretação do Estado Novo ou coisa que o valha. Existe, isto sim, um desenrolar histórico matizado por um determinado projeto político. CANCELLI, E. O mundo da violência. A polícia da Era Vargas. Brasília: Ed. UnB, 1993, p.05. Tal concepção também é defendida pelos autores COSTELLA, A. F. O controle da informação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1970 e GARCIA, N. J. Estado Novo: Ideologia e propaganda política. A legitimação do Estado autoritário perante as classes subalternas. São Paulo: Edições Loyola, 1982. Introdução 15 cinema e os esportes, ou seja, veículos que pudessem garantir a comunicação direta entre governo e sociedade e, em última instância, permitir ao Estado o exercício de sua função educadora da Nação.7 Outros aspectos são dignos de menção, justificando a escolha temporal adotada no presente trabalho. Data deste período, em concomitância com a tentativa de criação e legitimação da imagem do regime instaurado8, a difusão de um julgamento pejorativo sobre o passado, que o novo governo visava “salvar”. Para tanto, a propaganda estadonovista procurou nivelar diferenças, mascarando-as sob um discurso de patriotismo e unidade nacional, estratégia que esteve presente no próprio léxico utilizado nas mensagens veiculadas ao público, nas quais termos como operário, industrial, patrão, empregado (potencialmente conflitantes) foram substituídos pela expressão “trabalhador” que, ideologicamente, dissolvia as diferenças sociais, igualando-os entre si e, sobretudo, na figura de Vargas, anunciado como “o maior trabalhador.”9 A própria denominação “Estado Novo” ou “novo regime”, freqüentemente utilizada para designar o período, correspondia a tentativa governamental de legitimar-se por meio de uma divisão simbólica. Além da criação de um discurso próprio, investimentos em novas técnicas – sobretudo nos recursos visuais – foram realizados, a fim de reforçar a popularidade de Getúlio 7 OLIVEIRA, L.L. Vargas, os intelectuais e as raízes da nova ordem. In: D’ARAÚJO, M. C. (Org.) As instituições brasileiras da Era Vargas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/FGV, 1999, p.95. 8 CAPELATO, M. H. Propaganda política e controle dos meios de comunicação. In: PANDOLFI, D. (Org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p.173. Capelato adverte que, embora o Estado Novo não possa ser definido como fenômeno fascista, é preciso considerar sua “inspiração” nas experiências alemã e italiana na formulação de sua propaganda política. Suas características particulares – como o uso de mensagens indiretas, veladas e de forte apelo emocional, além do recurso de uma linguagem simplificada e, sobretudo, imagética, acessível às grandes massas incultas – foram elementos recorrentes na estruturação de seu projeto político-ideológico. Contudo, vale lembrar que, embora houvesse semelhanças em relação aos objetivos visados por estes regimes – conquistar apoio e arregimentar as massas, garantindo controle e legitimação do poder – a organização e planejamento dos órgãos encarregados de produzir a imagem do regime varguista ganhou contornos próprios, uma vez observadas as especificidades do cenário brasileiro. 9 GARCIA, N. J. op. cit., p.80. Introdução 16 Vargas como líder político.10 Unidos, verbo e imagem formavam os principais componentes do discurso ideológico, reiterado diversas vezes entre 1937 e 1945. Seu caráter essencialmente paradoxal – a idéia de “unidade ou interesse nacional” em torno da figura do indivíduo – dissolvia-se no seio da própria doutrina, com base na noção de identificação plena entre o líder político e a Nação. Nas entrelinhas das mensagens, objetivava-se representar a imagem de Vargas como o símbolo máximo da coletividade.11 No processo de montagem do sistema propagandístico, sofisticadas técnicas de comunicação foram utilizadas com objetivo político, por meio das quais seus ideólogos procuraram canalizar a participação social de modo a impedir a expressão de conflitos ou manifestações autônomas com sentido de oposição. Ou seja, procurava-se negar o princípio da pluralidade da vida social sob a justificativa de construção de uma sociedade una e harmônica. Técnicas de linguagens, slogans, palavras-chave, frases de efeito e repetições de forte apelo emocional visavam reforçar o aspecto carismático do governo e, em especial, de Getúlio Vargas. Para tanto, os meios de comunicação, a produção cultural e o sistema educacional funcionavam como canais transmissores do projeto político-ideológico cuja incumbência, além da legitimação, era a de impedir qualquer idéia contrária ao novo governo.12 O fortalecimento e a consolidação do poder do Estado ocorreram, sobretudo, com a criação de aparatos institucionalizados de coerção. Por reconhecer o alcance dos meios de 10 O álbum fotográfico Obra Getuliana, iniciativa do então ministro Gustavo Capanema, consistiu em uma iniciativa nessa direção: embora não tivesse sido publicado, a coletânea de imagens revelava claramente a intenção de seus propugnadores – construir e legitimar uma imagem do governo na qual a política se fundisse com a imagem pessoal de Vargas. A esse respeito, ver LACERDA, A. L. Fotografia e propaganda política: Capanema e o projeto editorial Obra Getuliana. In: GOMES, A. C. (Org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p.103-139. 11 SOLA, L. O golpe de 37 e o Estado Novo. In: MOTA, C. G. (Org.). Brasil em Perspectiva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p.256-282. 12 CAPELATO, M. H. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo. São Paulo: Papirus, 1998. Introdução 17 comunicação de massa, como o rádio, imprensa e cinema, o poder público investiu no aperfeiçoamento dos órgãos de controle e repressão instituídos ao longo da década de 30, garantindo a ampliação da capacidade de intervenção estatal nesses âmbitos. O principal desses órgãos, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em vinte e sete de dezembro de 1939, considerado a peça fundamental de todo o sistema censor governamental, era resultado do aprimoramento de experiências anteriormente ocorridas: desde a atuação do Departamento Oficial de Propaganda (D.O.P.), criado em dois de julho de 1931, sendo substituído pelo Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), atuante em todo período da Constituinte de 1934 e reformulado em 1938 sob a sigla DNP – Departamento Nacional de Propaganda; nome mantido até dezembro de 1939.13 Estruturado em várias divisões – Divulgação, Radiofusão, Cinema e Teatro, Turismo, Imprensa e Serviços Auxiliares – o DIP tinha como função elucidar a opinião pública sobre as diretrizes doutrinárias do regime, atuando em defesa da cultura, da unidade espiritual e da civilização brasileira, como afirma Maria Helena Capelato.14 Sua estrutura de organização incluía uma rede de ramificações pelos Estados brasileiros, nos quais os DEIPs – Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda – exerciam a censura local e a edição de publicações oficiais. Seu principal diretor foi Lourival Fontes, cuja gestão abrangeu o período de 1939 a 1943. Vinculado diretamente à Presidência da República, o DIP produzia e divulgava o discurso destinado a construir uma certa imagem do regime, das instituições e de Getúlio Vargas, o chefe de governo, identificando-os com o país e com o povo. Nesse sentido foram produzidos livros, revistas, folhetos, cartazes, programas de rádio, além de rádionovelas, 13 COSTELLA, A F. op. cit., p.112. Também SOUZA, J. I. M. S. A ação e o imaginário de uma ditadura: controle, coerção e propaganda política nos meios de comunicação durante o Estado Novo. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação)- Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 1990, p. 103. 14 CAPELATO, M.H. Propaganda política e controle dos meios de comunicação. In: PANDOLFI, D. op. cit., p.172. Introdução 18 fotografias, cinejornais e documentários. Na composição dos discursos, frases como “a generosa e humanitária política social do presidente Getúlio Vargas ou “a popularidade do presidente Vargas”, reforçavam a figura do líder que agia em nome da Nação, do “bem- comum”. Ao falar em nome do todo, procurava-se eliminar a possibilidade de ruptura, de contradição.15 Tal ação centralizadora também foi observada em alguns rituais de especial caráter simbólico, como a queima, em praça pública, das bandeiras estaduais - ato público realizado na praia do Russel, no Rio de Janeiro, logo após o golpe, em 1937. Fruto do decreto de três de dezembro de 1937, medida de rápido efeito político que determinava a dissolução dos partidos, bem como seus símbolos, gestos, vestimentas, ou outros elementos identificadores, a cerimônia de incineração visava celebrar simbolicamente a extinção de todo e qualquer vestígio que representasse as diferenças regionais, exaltando assim o nacionalismo.16 Outro episódio significativo dessa tentativa oficial de “eliminação” de forças contrárias foi a incineração de milhares de obras literárias consideradas “subversivas” pelo governo varguista, sob a acusação de propagandearem doutrinas comunistas e outras idéias “nocivas”. Em Livros proibidos, idéias malditas17 Maria Luiza Tucci Carneiro debruçou-se sobre a atuação do “cerco oficial” a tais obras, procedimento que atingiu limites extremos, como, por exemplo, a apreensão do livro Tarzan, pela simples ocorrência da expressão “camarada”, no texto. Conforme a autora, o vocábulo rapidamente foi identificado pelos censores como oriundo do léxico comunista. 15 VELLOSO, M. P. Cultura e poder político: uma configuração do campo intelectual. In: LIPPI, L. et al. Estado Novo: Ideologia e Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p.72. 16 SKIDMORE, T. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janeiro: Saga, 1969, p.59. 17 CARNEIRO, M. L. Livros proibidos. Idéias malditas. O DEOPS e as minorias silenciadas. São Paulo: Ateliê Ediorial/Fapesp, 2002, p.30. Outros livros apreendidos foram Capitães de Areia, de Jorge Amado, e Luar, de Luiz Martins. Introdução 19 Por outro lado, a criação da Comissão Nacional do Livro Didático, em 1938, estendeu a veiculação da doutrina ao sistema educacional, estabelecendo proibições a materiais didático-pedagógicos que pudessem “atentar” contra a ordem estabelecida: Na construção de uma moral nacional associada a uma memória histórica, eram negados, enfaticamente, o regionalismo, o ateísmo, os conflitos sociais e raciais. Tornava-se proibidos também qualquer noção de pessimismo nos livros: Vargas havia inaugurado um novo tempo, de prosperidade e felicidade.18 Ainda sobre a ações cerceadoras estadonovistas no âmbito cultural, merece atenção o artigo produzido pelo chefe de polícia Fillinto Miller, intitulado O perigo da infiltração vermelha nas obras educacionais da infância, publicado em dezembro de 1937. Em tom de alerta, o texto classificava de “armas brancas”, certos livros didáticos, considerados verdadeiros elementos de desagregação nacional.19 Almeida comenta que a censura e o receio do perigo comunista eram tão exacerbados que se chegou a proibir alguns textos de literatura infantil, sob a justificativa de serem “perigosos à ordem”. Assim como o sistema educacional, a imprensa consistiu em um dos alvos da propaganda estadonovista, tendo sido atingida pelo controle do DIP, por ser considerada meio fundamental para a divulgação da propaganda política. A Constituição brasileira de 1937 dedicou-lhe legislação especial, impondo rígida censura e investindo-a de caráter público. O 18 CAPELATO, M. H. Multidões em Cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo. São Paulo: Papirus, 1998, p.65. A respeito do controle crescente exercido pelo DIP às publicações destinadas ao público infantil, vale ainda mencionar as restrições que passaram a ser impostas, no período, aos personagens das histórias em quadrinhos nacionais. A justificativa oficial para o cerceamento consistia na idéia de que o conteúdo veiculado pelos gibis era potencialmente deformador da personalidade infantil, sendo conferido status de questão policial ao assunto. No artigo História em quadrinhos, Gilberto Freyre comentou a respeito do potencial persuasivo existente na citada produção: Os homens de bom-senso e alguma imaginação principiam a ver na história em quadrinhos uma arma moderna – moderna, mas nada secreta: ao contrário – que tanto pode ser posta ao serviço de Deus quanto do Diabo (...) O que é preciso é que não se deixe só ao serviço do vício, da canalhice, do comercialismo o que pode ser posto também ao serviço da virtude, da boa educação do menino e do adolescente (...). Cf. FREYRE, G. Histórias em Quadrinhos. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, p.10, 24. jun.1950. 19 ALMEIDA, M.G.A. Estado Novo: Projeto Político Pedagógico e a Construção do Saber. Revista Brasileira de História. São Paulo: v.18, nº 36, p.64, 1998. Introdução 20 artigo 222 expressa singularmente o cerceamento imposto à liberdade de imprensa, admitindo a censura a todos os veículos de comunicação: Com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou representação.20 As empresas jornalísticas, bem como as atividades profissionais, só podiam se estabelecer caso obtivessem registro no Departamento. As matérias passaram a ser controladas, cerca de 60% do conteúdo dos jornais e revistas da época eram fornecidas pela Agência Nacional. A partir de 1940, 420 jornais e 346 revistas não conseguiram registro, sendo interditadas ou fechadas pelo governo.21 Nesse ambiente de intenso controle dos meios de comunicação, muitos veículos com posicionamento político divergente foram silenciados. Capelato citou o caso do jornal O Estado de S. Paulo que, em março de 1940, teve sua redação invadida por policiais, sob a falsa alegação de armazenamento clandestino de armas na empresa. Os proprietários Júlio de Mesquita Filho e Paulo Duarte foram exilados e o jornal expropriado, convertido em órgão oficioso até 1945.22 Conforme Antonio Costella, com o DIP a liberdade de imprensa viria a conhecer dias negros e tormentosos. Pelo Decreto 1.949, de 30 de dezembro de 1939, os poderes do ignominioso órgão passaram a ser de vida e morte sobre a imprensa.23 O autor afirma que a supressão de publicações “contrárias ao regime” foi acompanhada de outras ações incisivas sobre a imprensa, como a inserção obrigatória de matérias promocionais laudatórias da figura 20 Trecho da Constituição de 1937, extraído de CAPELATO, M.H. Os Arautos do Liberalismo. Imprensa Paulista (1920-1945). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1989, p.33. 21 BAHIA, J. op. cit., p.302. 22 CAPELATO, M.H. op. cit., p.33. Informação também encontrada em GARCIA, N. J. op. cit., p.118 e JORGE, F. Cale a boca jornalista. O ódio e a fúria dos mandões contra a imprensa brasileira. São Paulo: Vozes, 1989, p.87. 23 COSTELLA, A. F. op. cit., p.112. Introdução 21 de Vargas em todos os periódicos,24 bem como a prática de contribuições financeiras mensais oferecidas pelo governo aos veículos de maior influência e tiragem. Soma-se a isso a distribuição de Boletins de Informações, subsídios ao papel e materiais gráficos e a presença física do censor em algumas redações.25 Cabia também ao DIP estipular proibições aos assuntos publicados pelos jornais e revistas, na tentativa de vetar temáticas que pudessem sugerir crítica, descontentamento ou oposição ao regime. Entre estas estavam as que mencionassem problemas econômicos do país – como a crise no setor de transportes, no abastecimento interno, a carestia de gêneros alimentícios e a conseqüente alta nos preços das mercadorias – bem como toda ordem de sortilégios ou mazelas cotidianas – catástrofes naturais, acidentes, desavenças ou conflitos sociais, políticos e corrupção, dentre outros. David Nasser cita algumas dessas sanções: 1943 (...) Pede-se não sejam publicadas fotografias impressionantes, macabras, do desastre de Inhaúma (...) Não deve ser divulgada, sem a apreciação prévia do DIP, nenhuma matéria, artigos, tópicos, comentários ou notícias, que se refiram ao abastecimento, preço do leite (...) não podem ter divulgação nenhuma matéria, comentários, artigos, etc., sobre instruções referentes a programas de rádio, sem apreciação prévia do DIP (...) De acordo com as recomendações em vigor, não devem ser feitos ataques a governos de nações amigas (...) Fica proibida a divulgação de qualquer matéria referente a aumento de vencimentos de juízes. 1944 O Departamento de Imprensa e Propaganda veta: (...) nenhum ato oficial do governo deve ser antecipado, seja ele qual for (...) sobre o petróleo, querosene e outros combustíveis, nada, a não ser de ordem do DIP, ou mediante consulta. 1945 (...) Não pode ser transcrita a reportagem publicada na A Notícia de ontem, referente a lucros fabulosos (...) Não pode ter curso nenhuma matéria a respeito de manifestos, memoriais etc., de caráter coletivo, notadamente aqueles que são enviados ao presidente Getúlio Vargas.26 As citadas determinações impostas aos veículos de comunicação possuíam caráter 24 Segundo o autor, tais medidas amparavam-se no Decreto 1.949, em seu artigo segundo, no qual estipulava-se a obrigatoriedade de veiculação de matérias cujo conteúdo contribuísse para a obra de esclarecimento da opinião popular em torno dos planos de reconstrução material e reerguimento nacional. COSTELLA, A. F. op. cit., p.114. 25 FARO, J.S. A comunicação populista no Brasil: o DIP e a SECOM. In: MELO, J. M. (Org.). Populismo e Comunicação. São Paulo: Cortez, 1981, p. 90. 26 NASSER, D. A revolução dos covardes. Apud BAHIA, J. op. cit., p.305-308. Introdução 22 modelador, evidenciando a existência e a atuação dos mecanismos de legitimação político- ideológica estadonovista, na tentativa de construção de sua imagem. Tal pressuposto norteou uma ação cerceadora específica à produção humorística brasileira, sobretudo a construída a partir da linguagem visual – manifestada nas charges e caricaturas. Reconhecendo o caráter pedagógico dessas imagens, bem como suas potencialidades para veicularem posicionamentos críticos, o DIP publicou, no Anuário da Imprensa Brasileira, algumas considerações sobre o humor visual: De todas as artes é a caricatura a que melhor reflete o seu tempo (...) Arma de combate e meio de reconstrução, ela tanto serve para destruir como para reformar (...) Mas, exercendo uma função social e vivendo paralelamente à evolução política, com o atual regime ela teve, logicamente, de perder o seu caráter libelário. A sua função de crítica cumpriu com brilho, enquanto necessário; mostrou-se à altura de sua função, vigilante e ativa. Mas, cessando a necessidade de vigilância atenta ao que se desenrolava no palco politiqueiro, pela perfeita entrosagem da vida nacional de hoje, a Caricatura, como órgão de crítica e polêmica, tornou-se obsoleta (...) mas a caricatura não morreu. O Estado Novo, pela sua identificação como os ideais brasileiros, fez com que ela enveredasse por outros caminhos (...) a caricatura política deixa de existir para ceder lugar à caricatura de costumes.27 No discurso oficial, a principal justificativa criada para a diminuição ou o desaparecimento do gênero político nas caricaturas da época foi a alegação do estado de identificação plena entre o regime político e os ideais nacionais: ou seja, diante da declamada situação de harmonia, a função última do humor – denunciar, criticar – perderia sua eficácia e, em última instância, “deixaria de existir”. Contudo, nas entrelinhas do discurso, a censura estabelecida a determinadas temáticas e personagens, como o Zé Povo – conhecida representação das mazelas sociais – indicava a preocupação velada de impedir a mobilização de posicionamentos contrários que, nos desenhos de humor, encontravam seu principal meio 27 SCARBI, O. Introdução à História da caricatura brasileira. Anuário da Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa e Propaganda, p. 77, 1942. Grifos meus. Introdução 23 condutor.28 Apesar da ação dos órgãos reguladores, um dos principais sustentáculos do regime, cabe lembrar que o projeto de dominação política e de hegemonia cultural não ocorreu linearmente, mas encontrou em seu percurso vozes discordantes que, semeadas por meio de boa dose de irreverência e inventividade, conseguiram romper os cerceamentos impostos e possibilitar novas formas de leitura sobre o período. O humor visual propugnado pela revista Careta é representativo dessa tendência, pois, em contrapartida à imposição de certas temáticas consideradas “proibidas”, diversas capas foram compostas por charges que, ora ridicularizando as vicissitudes cotidianas, ora debochando de questões políticas, incitavam os leitores ao questionamento sobre sua realidade.29 O caráter combativo do semanário, tão defendido desde sua criação, sobreviveu à institucionalização da censura, retratando por meio da sátira crítica, vários momentos da história contemporânea brasileira.30 Em Na rolança do tempo, Mário Lago narrou suas impressões, enquanto artista, sobre os ditames culturais impostos pelo projeto político-ideológico varguista. Suas memórias constituem um singular testemunho sobre o universo conflitante – oriundo das relações entre a ação do Estado e as práticas de determinados grupos artísticos – no que se refere à existência de uma dinâmica criativa, na qual se articulam aquiescência e coerção: 28 CAPELATO, M. H. op. cit, p.20. Ao realizar um estudo sobre os jornais de São Paulo, a autora destacou o humor visual como um dos principais dispositivos utilizados pela imprensa para veicular posicionamentos políticos. Entre os periódicos que analisou, citou a Folha da Noite, cujo boneco-símbolo era o Juca Pato, caricatura assinada por Belmonte: vestido de terno e gravata, o calvo personagem aparecia perplexo diante das injustiças sociais e mordaz com os governantes. Cheio de sonhos, frustrações e falando a linguagem do povo, Juca Pato, versão urbana do Jeca Tatu, expressava a intenção dos representantes do jornal de atingir setores específicos da sociedade, além de evidenciar seu posicionamento crítico diante de questões políticas. 29 Ver análises estatísticas, sobre as principais temáticas abordadas pela revista entre os anos de 1937 e 1945, apresentadas no Apêndice A. 30 BASTIDE, R. Arte e sociedade. Tradução Gilda de Mello e Souza. São Paulo: Cia Editora Nacional/EDUSP, 1971, p.144. O autor enfatiza o caráter contestador presente em determinadas produções artísticas, citando o exemplo de Gregório de Mattos, que fez de sua poesia uma sátira ao regime colonial. Introdução 24 Havia interesse em criar uma imagem popularesca do ditador do Estado Novo e, nessa condição, os autores podiam coloca-lo em cena quantas vezes quisessem. Mas nada de referência às torturas e mortes tão de rotina na Polícia Especial. Nada de assanhamentos para denunciarem a Lei de Segurança Nacional ou mesmo de leve, falarem de vida cara e fome. Aí era inevitável “os senhores aqui foram longe demais”, dos zelosos funcionários da censura.31 Por meio de suas lembranças, o leitor é convidado a refletir sobre os complexos mecanismos de permissão versus controle, latentes nas construções satíricas visuais, em todo período investigado; visto que, por um lado, houve a tolerância estratégica dos censores com determinadas sátiras teatrais sobre a personalidade de Vargas ou sobre seu governo, uma vez que muitas destas eram reapropriadas e exploradas na legitimação da imagem do regime e do presidente; por outro, a atuação sistematizada da censura visava conter interpretações consideradas “nocivas” à suposta ordem instaurada. Diante dessa “via de mão dupla” – entre o forte controle e a censura institucionalizados pelo governo e a sobrevivência/resistência de determinados órgãos da imprensa com visível posicionamento crítico – a caricatura humorística transformou-se em um meio de expressão irrecusável para a imprensa da época.32 Por seu alto poder de comunicabilidade, permitia visualizar e tornar públicas questões concernentes às instâncias da vida pública e privada, promovendo o desmascaramento da política, entendida como teatro, 31 LAGO, M. Na rolança do tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p.188-189. Mário Lago nasceu em novembro de 1911, no Rio de Janeiro. Formou-se em Direito, mas só exerceu a advocacia por seis meses. Depois disso, atuou como compositor, letrista, ator, poeta e radialista. Envolveu-se também com o teatro de revista, escrevendo, compondo e atuando. Sua estréia como letrista de música popular foi com “Menina, eu sei de uma coisa”, parceria com Custódio Mesquita, gravada em 1935 por Mário Reis. Nos anos 40, suas parcerias com Ataulfo Alves o levaram ao auge do sucesso como compositor. Autor de mais de duzentas canções, entre suas músicas mais conhecidas estão “Ai que Saudade da Amélia” e “Atire a Primeira Pedra”. Desde 1966, trabalhava na TV Globo, onde fez diversas novelas televisivas como “Casarão” e “Pecado Capital”, entre outras. Também atuou em peças de teatro e filmes, como “Terra em Transe”", de Glauber Rocha. Autor dos livros “Na Rolança do Tempo” (1976), “Bagaço de Beira-Estrada” (1977) e “Meia Porção de Sarapatel” (1986). Militante do antigo Partido Comunista Brasileiro, Lago era reconhecido como intelectual politizado, sofrendo perseguições políticas e prisões – ao todo seis – durante o Estado Novo e o regime de ditadura militar, em 1964. Faleceu em maio de 2002, no Rio de Janeiro. Cf. VELLOSO, M.P. Mário Lago: boemia e política. Rio de Janeiro: FGV, 1998. Também disponível em: . Acesso em: jan. 2005. 32 VELLOSO, M.P. Imaginário humorístico e modernidade carioca. São Paulo: Tese (Doutorado em História)- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1995. Introdução 25 encenação. Além disso, a linguagem visual do humor passou a funcionar como recurso estratégico para desautorizar o poder constituído, por meio da sátira e da crítica.33 É justamente a compreensão desse humor crítico, mordaz e contestador, manifesto na revista Careta, que esse trabalho tem o intuito de valorizar, por entender que tal material consiste num cenário privilegiado para percepção dos embates, lutas e resistências de jornalistas e artistas (órgãos da imprensa) frente ao sopro controlador dos órgãos de censura do Estado Novo (ou a visão oficial harmoniosa que se queria transmitir). Desvendar a complexidade e a riqueza documental inerente a esses desenhos de humor exigiu um intenso trabalho de caracterização do periódico, para, posteriormente, se adotar como procedimento a leitura temática das charges, cujos assuntos e respectivos elementos gráficos foram tabulados ano a ano, visando rastrear as principais questões abordadas sobre o período estadonovista e sua respectiva forma de representação pela produção humorística de Careta. Com este levantamento, que abrangeu quatrocentos e sessenta e seis números publicados entre janeiro de 1937 e dezembro de 1945, detectou-se algumas “pistas” sobre seu posicionamento contrário e/ou crítico em relação ao governo varguista, sobretudo por seu caráter antidemocrático. Durante a sistematização das charges publicadas nas capas e no interior da revista, outra possibilidade de investigação surgida foi a leitura do conteúdo veiculado nos editoriais e o questionamento sobre a existência ou a ausência de sua relação com a produção humorística visual. Com o avanço da pesquisa, a primeira hipótese foi confirmada, sendo possível observar uma clara sintonia entre o discurso dos editoriais – espaço de expressão da filosofia 33 SOUZA, L.C.P. Charge política: entre o poder e a fenda. Dissertação (Mestrado em Jornalismo)-Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 1986. A autora realiza um estudo sobre as charges veiculadas pela Folha de S.Paulo durante as campanhas presidenciais de 1982, destinando especial atenção às estruturas sígnicas formadoras da imagem, como linhas traços, contrastes, movimento e ritmo como importantes elementos da linguagem. E também: ROMUALDO, E.C. Intertextualidade e polifonia na charge jornalística. Um estudo sobre a Folha de S.Paulo. Dissertação (Mestrado em Letras)- Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 1996. Introdução 26 da revista – e as problemáticas abordadas pelos chargistas: reciprocidade cujo resultado consistiu no caráter singularmente satírico e oposicionista de Careta. Ao adentrar o contexto de produção dessas imagens e sua inserção no mundo social, a fonte não foi utilizada para abonar ou provar teorias pré-estabelecidas, mas para ser investigada como um registro de historicidade a ser desconstruído, por meio da concepção das imagens de humor como múltiplas possibilidades de leitura. Daí a opção por não utilizar imagens isoladas. Cabe lembrar que este trabalho não intentou buscar um autêntico ou “verdadeiro” significado para as imagens de humor, mas, atuando em sentido contrário, enfatizou a inutilidade de tal abordagem, julgando ser mais relevante aquilatar tais charges em relação às inúmeras possibilidades de interpretação que elas podem engendrar. O caráter polissêmico dessas imagens consiste na sua principal riqueza como fonte documental, uma vez observada sua dinâmica e constante transformação: as charges fomentam novas percepções do mundo a partir do aspecto cômico, sarcástico; e o chargista explora tais potenciais, fazendo associações que geram sentidos para o público leitor.34 Sob a orientação das sugestões metodológicas de Ana Luíza Martins,35 tentou-se superar os riscos de uma leitura amena e ligeira da revista, que acabaria encerrando nosso trabalho no mero encanto do folhear de suas páginas. Desta forma, ao adentrar o universo visual dos desenhos de humor, a premissa desse estudo foi conferir-lhes a historicidade devida, procurando problematizar sua estrutura de organização e a construção de seu discurso – escolhas gráficas para representar os diferentes indivíduos e assuntos. 34 Peter Burke salienta a ineficácia de análises que tentam decodificar imagens por meio de certos tratados de receitas, uma vez que tais métodos geralmente concebem o material visual como um quebra-cabeça com soluções simples e definitivas. Segundo o autor, o pressuposto para a investigação dos registros iconográficos consiste na compreensão de seu aspecto ambíguo e polissêmico. BURKE, P. Testemunha ocular: História e imagem. Tradução Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru/SP: EDUSC, 2004, p.234. 35 MARTINS, A. L. Da fantasia à História. Folheando páginas revisteiras. História. São Paulo, v. 22, n.1, p. 59- 79, 2003. Introdução 27 Este trabalho apresenta a tentativa de sistematização de tais informações. Para isso, o primeiro capítulo pretende abordar o surgimento da revista Careta em 1908 – fruto do desenvolvimento da imprensa no início do século XX – mapeando sua trajetória até o período correspondente ao Estado Novo, no que se refere à composição gráfica, seções existentes, o espaço destinado ao humor visual e principais colaboradores (escritores e chargistas) atuantes. Um sobrevôo sobre a história da caricatura e suas relações com a imprensa brasileira também foi ensaiado, a fim de compreender a concepção de humor utilizada nas imagens. A recuperação das teias constitutivas da revista permitiu a visualização sobre suas propostas e posicionamentos defendidos, ou seja, a crítica (ora explícita, ora subentendida) ao governo estadonovista alicerçada em fatores como: a intencionalidade do padrão gráfico e da diagramação; a adoção do humor visual como estratégia persuasiva e contestadora e, finalmente, a reapropriação satírica dos discursos oficiais como forma de ridicularizar a ordem estabelecida. O segundo capítulo discute sobre essas características, aquilatadas por meio da leitura temática dos desenhos de humor. Nesta, o critério de seleção utilizado referiu-se aos assuntos mais abordados pelas capas e editoriais:36 a construção da imagem de Getúlio Vargas e do governo estadonovista; os embates estabelecidos entre a produção humorística da revista e a censura institucionalizada; além do retrato jocoso sobre a Segunda Guerra Mundial, como uma estratégia crítica frente à política nacional. O cotidiano da população carioca, em suas diversas nuances, também foi utilizado pelos chargistas de Careta na criação de um singular retrato sobre o período. Temas como a escassez de combustíveis ou de gêneros alimentícios, entre outros, foram concebidos, pela revista, como espaços simbólicos de contestação ao regime estadonovista. O terceiro capítulo versa sobre tais questões. 36 Apêndice A: Gráficos 1937-1945. Introdução 28 O presente texto apresenta cento e doze imagens,37 somadas àquelas que foram apenas mencionadas verbalmente. Grande parte foi fotografada diretamente dos originais, cuja guarda pertence à Biblioteca Municipal Mário de Andrade, em São Paulo. No entanto, algumas charges, seções e editoriais só puderam ser localizados em microfilmes e, devido ao processo de digitalização, tiveram sua definição visual comprometida. A fim de sanar tais dificuldades, optamos por transcrever o conteúdo de todas as legendas, bem como determinados textos, considerados relevantes. Durante toda pesquisa, esforços para retirar a revista e suas charges da mera condição de elemento ilustrativo foram empenhados, inserindo-as, para tanto, no universo reflexivo, desconstruindo-as em sua historicidade, lançando luz sobre suas tramas, seus recortes e intencionalidades. Mais que simplesmente divulgar conteúdos, as charges foram concebidas como mensagens que comunicam formas de expressão e de pensamento e engendram variadas leituras sobre sua realidade. Sendo assim, quais seriam as “leituras” fomentadas pelos desenhos de humor de Careta em relação ao regime estadonovista? Esta e outras questões serão discutidas ao longo do texto. 37 Apêndice B: Relação de imagens utilizadas. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 29 I. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo No fim do século XIX e início do XX, a imprensa periódica brasileira passou por significativas transformações decorrentes da intensa modernização do setor, como o surgimento de novos maquinários gráficos e a introdução de novas técnicas de produção, bem como pelo cenário urbano em formação nas grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, fruto do crescimento demográfico, do desenvolvimento das atividades econômicas e da intensa diversidade social. Esse processo de expansão direcionou uma série de adaptações empresariais, o que, no caso da imprensa, implicou no desaparecimento progressivo das pequenas iniciativas e promoveu a transição do jornalismo artesanal para o empresarial. As transformações sofridas pela recém-criada imprensa-empresa podem ser observadas, de um lado, pelo fechamento de inúmeros pasquins, folhas e jornais de circulação efêmera, os quais decretavam falência por não se adaptarem às exigências do novo ritmo de produção e, por outro, pela intensificação do volume de novos jornais e revistas em São Paulo e no Rio de Janeiro, considerado o maior mercado jornalístico do país, no período de 1800 a 1908.1 Uma característica relevante dessas novas publicações referiu-se à sua apresentação gráfica. Consideradas importantes meios de expressão cultural, revistas como A Vida Moderna, Fon-Fon, Eu Sei Tudo e A Cigarra, entre outras, apostaram em novas formas de comunicação social para atrair o público leitor e, transpondo os limites academicistas comuns às revistas culturais da época, ofereciam notícias, reportagens, humor e a publicidade, elementos que, aliados a uma linguagem ágil e acessível, garantiram o sucesso das vendas.2 A revista carioca Careta, um dos frutos dessa experiência, teve seu primeiro número lançado em 1 BAHIA, J. op. cit., p.121. 2 LIMA, Y.S. A ilustração na produção literária. São Paulo, década de 20. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros – USP, 1985, p.14. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 30 seis de junho de 1908 e apresentava, na capa, a caricatura do então presidente da república, Afonso Pena, assinada pelo caricaturista J. Carlos. O periódico foi um empreendimento do jornalista e empresário Jorge Schmidt, depois de experiências anteriores com outras revistas, como Kosmos e Fon-Fon. A primeira se tornou um investimento dispendioso para Schmidt e, após quatro anos e meio de existência, deixou de circular em 1909, não só por isso, mas também e principalmente pela inconstância de seus colaboradores na entrega das matérias, como afirmou em entrevista a filha do proprietário, D. Maria Schmidt Carneiro.3 Segundo Antonio Dimas, diante do fracasso de um projeto de alto nível, Jorge Schmidt opta por uma publicação mais simples e, por isso mesmo, mais popular: a CARETA, revista que haveria de lhe trazer fartos lucros e pouca dor de cabeça empresarial.4 Lançada em formato original 18,5 x 26,7cm, Careta era publicada semanalmente, circulando aos sábados. Apresentada toda em papel couché até o ano de 19165 e, posteriormente, com suporte misto em papel jornal, dispunha os assuntos em colunas alternadas com numerosas imagens, com duas ou mais cores. 3 Entrevista com D. Maria Schmidt Carneiro, citada em DIMAS, A. Tempos eufóricos. Análise de Kosmos 1904- 1909. Tese (Doutorado em Letras)- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1975, p.147. De propriedade de Jorge Schmidt, Kosmos foi lançada em 1904, sendo distribuída por todo país. Possuía tamanho grande (31cmx 25cm) e produzida em papel couché, com diversas ilustrações, diagramação sofisticada e o estilo Art Nouveau – atrativos direcionados a elite carioca da época. Elegendo Kosmos como objeto de pesquisa, Dimas relacionou o plano jornalístico da revista ao esforço brasileiro de europeizar-se, de promover uma imagem favorável e vendável do país. O autor concluiu que a citada revista construiu-se como ato de afirmação do remodelamento urbano, posteriormente convertido em órgão de sustentação e de apoio do governo, veiculando em suas páginas imagens que interessavam diretamente ao poder público. 4 Vale lembrar que, além de Kosmos, Jorge Schmidt lançou, em 1905, a revista Fon-Fon, contando com a colaboração artística dos caricaturistas Kalixto, Raul e J. Carlos (a partir de 1907). Contudo, Herman Lima afirma que foi Careta seu empreendimento mais ousado, por consistir em uma nova publicação de moldes revolucionários, no campo da sátira política e social, pelo humorismo e irreverência das suas crônicas e sueltos, como pela finura do comentário ilustrado dos fatos da semana. Cf. LIMA, H. J. Carlos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde. Serviço de Documentação. Coleção Artistas Brasileiros, 1950, p.18. 5 Em conseqüência da 1ª Guerra Mundial, o artigo tornou-se raro, levando os proprietários a se justificarem perante os leitores: Careta, aceitando, forçada pelas circunstâncias, um tipo corrente, modifica hoje o formato original e próprio adaptado e mantido desde sua fundação. As terríveis necessidades impostas pela guerra obrigam os fabricantes à produção uniforme (...) Careta, ano X, nº 472, 07/07/1917, p.05. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 31 Uma de suas principais atrações eram os desenhos de humor veiculados na capa e no seu interior – em média oito charges – padrão mantido ao longo de sua existência, bem como o número aproximado de quarenta páginas. Por pertencer ao mesmo proprietário da editora Kosmos, Jorge Schmidt, o endereço da redação e das oficinas era o mesmo: inicialmente Rua da Assembléia e, posteriormente, Rua Frei Caneca. Conforme sinaliza Cássio Loredano, Careta surgiu como veículo destinado a realizar concorrência direta com a revista ilustrada O Malho, de circulação nacional. Seu título irreverente e provocador – aspectos observados em toda sua composição editorial – consistia num eco do semanário Argentino Caras y Caretas, a qual foi fundada por Eustaquio Pellicer e circulou entre 1898 e 1941, definindo-se como semanário festivo, literário, artístico e de atualidade (...) combinando humor, a crítica e a seriedade intelectual.6 Na eleição do humor como principal elemento do seu projeto editorial, Careta defendia a proposta de ser uma revista irreverente e singularmente crítica em relação à política e à sociedade carioca de seu tempo. Seu editorial de abertura, intitulado Ahi vae a nossa Careta, explicita tais intenções: Aí vai a nossa Careta. Lançando à publicidade esse semanário, é preciso confessar, e contritamente o fazemos, que a Careta é feita para o público, o grande e respeitável público, com P maiúsculo! Se tomamos esta liberdade foi porque sabíamos perfeitamente que ele não morre de caretas. Longe vai o tempo em que isso acontecia. Todavia, nossa esperança é justamente que o público morra pela Careta, a fim de que ela viva. E, feita cinicamente essa confissão egoísta (...) Digamos logo que o nosso programa cifra-se unicamente em fazer caretas (...) As nossas caretas são sérias como as sessões do Instituto Histórico e a sua perfeição e semelhança garantidas. Se ao ver a Careta, gentil senhorita, apreciadora entusiasta das seções galantes do jornalismo smart, franzir graciosamente as graciosas sobrancelhas, na boquita rubra estalando um desprezado muxoxo, nós já temos meia vingança: o muxoxo é meia careta, pelo menos.7 6 LOREDANO, C. O bonde e a linha. Um perfil de J. Carlos. São Paulo: Editora Capivara, 2002, p.41. O primeiro número de Caras y Caretas data de 08/10/1898, sendo Manuel Mayol um de seus principais caricaturistas. A esse respeito, ver MENDELEVICH, P. Las revistas argentinas. Contratiempo. El pensamento en la Argentina. Buenos Aires, Año II, nº5, Invierno-Primavera 2002. Disponível em: . Acesso em: out. 2003. 7 Careta Ano I, nº 01, 06/06/1908, p.03. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 32 Os nomes designados para apresentar jornais e revistas, segundo Roland Barthes, influem diretamente na compreensão das imagens neles veiculadas, uma vez que constituem um saber próprio em que se congregam as características e intenções de seus idealizadores.8 Ao elegerem o substantivo Careta como nome de seu periódico, Jorge e Roberto Schmidt visavam reiterar o perfil editorial da revista, fazendo uso de toda carga semântica contida na expressão definida como “visagem, momice, trejeito do rosto, caraça.”9 Tal concepção estende-se às imagens de humor nela veiculadas, assumindo, assim, uma postura de contestação e crítica perante os assuntos retratados. Ao discorrer sobre a função exercida pelos nomes atribuídos aos jornais, Maurice Mouillaud ressaltou: O nome-de-jornal não é mais objeto da leitura, torna-se seu envelope. Ele se retira acima de todos os enunciados. A partir desta posição destacada, assegura a coerência e a continuidade dos enunciados à maneira de uma pressuposição. Constitui o princípio de uma espera, por parte do leitor, de certos enunciados. Firma um pacto com o leitor (...)10 Ao notar a relevância do título no processo comunicativo entre imprensa e leitores, Inês da Conceição dos Anjos Louro realizou um estudo comparativo entre diversos títulos de revistas, intentando compreender as diversas estratégias utilizadas na concepção dos mesmos, bem como sua relação com as notícias às quais estavam vinculados. Embora discorra sobre a função e o papel exercido pelos títulos nos diversos textos jornalísticos, o referido trabalho oferece condições para a reflexão acerca do nome da revista em questão e o seu propósito de atrair, provocar o leitor.11 8 BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, Coleção Signos nº42, 1984, p.13. 9 Novo Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. São Paulo: Nova Fronteira, 1998. 10 MOUILLAUD, M.; PORTO, S.D. O jornal. Da forma ao sentido. Tradução Sérgio Grossi Porto. 2ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. 11 LOURO, I C A. Títulos de revista: algumas estratégias de construção. Um estudo contrastivo de revistas brasileiras e americanas. Dissertação (Mestrado em Letras)- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1994. Louro utilizou como fonte de pesquisa publicações de diferentes idiomas, relacionando-as por sua semelhança na definição do público-alvo. Foram consideradas noticiosas TIME International, Newsweek The International Newsmagazine, Veja e Isto É Senhor; Cosmopolitan e Cláudia foram escolhidas por serem dirigidas ao público feminino e, sobre as adolescentes, Seventeen e Capricho. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 33 Figura 01: Caras y Caretas, Argentina, 13/08/1913. Figura 02: Revista Careta, Brasil, 06/06/1908. O aspecto peculiar que diferiu a revista dos demais projetos de Schmidt consistiu na configuração de seu quadro de colaboradores, composto por literatos, artistas plásticos e desenhistas. Sob a influência do convívio íntimo entre imprensa e literatura, Careta contou com a colaboração de Olavo Bilac, que nela publicou sonetos de A Tarde; além de Martins Fontes, Olegário Mariano, Aníbal Teófilo, Alberto de Oliveira, Goulart de Andrade, Emílio de Menezes, Bastos Tigre e Luís Edmundo. A atuação desse grupo de intelectuais, de singular comportamento boêmio, e os padrões de produção pouco convencionais para a cultura letrada do período, conferiram um aspecto irreverente e provocador à publicação, que elegeu o humor como principal veículo para retratar as transformações urbanísticas e sociais ocorridas no início do século XX.12 Segundo Nelson Werneck Sodré, em História da imprensa no Brasil, a revista foi uma das mais importantes de sua época, contando, desde o início, com a colaboração de profissionais de renome, como o caricaturista J. Carlos, cuja produção artística, reconhecida 12 VELLOSO, M. P. Modernismo no Rio de Janeiro. Turunas e Quixotes. Rio de Janeiro: FGV, 1996. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 34 mundialmente, foi presença constante nos mais de cinqüenta anos de veiculação do semanário. Suas charges, divulgadas na capa e no interior da revista, traziam a crítica política e de costumes e realizavam uma valiosa análise da sociedade carioca do período.13 No ano de seu lançamento, a publicação recebeu o Grande Prêmio da Exposição Nacional, conquistando grande prestígio de público – formado tanto pela elite intelectual do país como pelos fregueses dos salões de engraxate, barbeiros e consultórios em geral.14 O sucesso da revista pode ser constatado pelo surgimento do hábito de colecioná-la, no Brasil e até mesmo no exterior, como afirma Gastão Penalva, pseudônimo do crítico de arte Sebastião de Souza: Conheci em Lisboa uma distinta senhora que colecionava as adoráveis capas de Careta num vistoso álbum, e não havia pessoa que a visitasse a quem o deixasse de mostrar, com palavras de elogio e entusiasmo (...).15 Herman Lima cita o caso de um outro colecionador estrangeiro, o industrial americano e descendente de portugueses, Edson Magalhães, que era leitor assíduo de publicações humorísticas como o Punch, de Londres, e o Le Rire, francês, e, ao receber alguns exemplares de Careta encantou-se. Lima transcreveu suas entusiasmadas impressões, proferidas em 1940: E uma coisa eu lhe digo: nos Estados Unidos, Careta tiraria um milhão de exemplares. É um magazine levado dos diabos! Muito melhor que o Punch!16 Semelhante admiração pode ser constatada na carta escrita por Carlos Drummond de Andrade, em resposta ao desenho original de J. Carlos recebido como presente pelo seu 13 SODRÉ, N. W. op. cit., p.150. No livro Aos trancos e barrancos, Darci Ribeiro caracterizou 1908 como O ano da Careta, dado o alcance obtido pela revista. Cf. RIBEIRO, D. Aos trancos e barrancos. Como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1985, s/p. 14 LIMA, H. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 150. A Exposição Nacional ocorreu entre os dias 28 de janeiro e 15 de novembro de 1908, na cidade do Rio de Janeiro. Com o pretexto de comemorar o centenário da Abertura dos Portos (1808), seu principal objetivo consistia em propagandear as reformas urbanas e sanitárias realizadas pelo Prefeito Pereira Passos e por Oswaldo Cruz a diversas autoridades nacionais e estrangeiras que a visitaram. 15 COTRIM, A. J. Carlos. Época, vida, obra. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985, p.47. 16 LIMA, H. J. Carlos. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação. Ministério da Educação e Saúde. Coleção Artistas Brasileiros, 1950, p.19. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 35 aniversário de oitenta anos: Possuo uma coleção da Careta, do primeiro número até 1915, e é nela que costumo mostrar os anos de ouro da caricatura brasileira, através das charges de J. Carlos. Quanta gente fica admirada e espantada de ver essa multidão de caricaturas inconfundíveis.17 A linguagem provocativa e irônica, por vezes sarcástica, aliada ao forte apelo visual das charges resultou no grande sucesso de público, bem como no longo período de existência, de 1908 a 1960.18 A repercussão política das imagens foi intensa, chegando inclusive a gerar conflitos com o governo. Um exemplo disto foi a prisão de Jorge Schmidt, em 1914, quando o Marechal Hermes decretou estado de sítio no país, invadindo e destruindo órgãos da imprensa de oposição.19 Com um conteúdo diversificado e fiel à proposta de ser crítica e irreverente – predicados compatíveis com seu título – Careta era repleta de contos satíricos, pequenas anedotas, charadas curtas e piadas; além de poesias nacionais ou traduzidas e de novelas em forma de conto, divulgadas por capítulos a cada edição. O teor humorístico era reforçado pelas charges, que ocupavam posição de destaque entre as matérias. As inúmeras seções que compunham a revista privilegiavam o humor político e de costumes, fosse em uma rápida anedota sobre a moda carioca ou em um artigo pretensamente formal sobre política, mas carregado de ironia. Assim, a primeira década do século XX foi retratada pelas seções Careta Parlamentar (com notícias e piadas sobre políticos); 17 ANDRADE, C. D. Carta enviada a família Brito e Cunha. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1982, citada em COTRIM, A. op. cit., p.95. 18 Careta circulou durante cinqüenta e três anos, totalizando 2.732 números. Sua última publicação data de 05 de novembro de 1960. 19 Embora não forneça dados precisos a respeito do episódio citado, Álvaro Cotrim afirma que as medidas governamentais resultaram – além da prisão de Afonso Schmidt (diretor da Careta) – na suspensão da revista, bem como na viagem forçada de J. Carlos a São Paulo, em vista dos rumores de prisão. O período de suspensão não foi mencionado pelo autor, mas, baseado nas datas apresentadas – J. Carlos teria escrito para o Rio de Janeiro em março de 1914 e, em novembro do mesmo ano, Careta já circulava normalmente – conclui- se que fora de curta duração. Conforme descrito por COTRIM, A. op. cit., p.45. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 36 Exemplo de seções de Careta: Um sorriso para todas, assinada por Peregrino, pseudônimo de Alceu Penna. 10/06/1944, p. 19 (Fig. 03 acima). E Amendoim Torradinho, de J. Carlos, 17/04/1937, p.26 e 27 (Fig.04 abaixo). Instantâneos (galeria de fotos dos eventos sociais); Conselhos Domésticos (“dicas bem-humoradas” para donas-de-casa), entre outras.20 Ao lado destas, charadas, contos, piadas, além das propagandas, ilustradas com desenhos e farto texto. Na década de 1920, o volume de fotos aumentou, a fotonovela ganhou destaque, assim como as charges de J. Carlos, Nássara, Storne, Théo e Belmonte. Muitas seções foram mantidas, outras criadas, como Um sorriso para todas (coluna feminina); Azas (comentário 20 Herman Lima destaca que, nesta primeira fase da revista, especialmente por volta de 1912 e 1918, os principais temas das charges eram os salões elegantes, as casas de chá e o footing. LIMA, H. op. cit., p.1090. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 37 ilustrado sobre cinema); além de pequenos quadros como Conceitos e Preconceitos (trocadilhos rápidos sobre comportamento). Embora não realizasse um jornalismo propriamente informativo, Careta procurava manter vínculos com sua atualidade, dialogando com as novas tendências da imprensa brasileira. Durante o trabalho com a fonte, foram encontradas novas informações sobre sua composição e estrutura, como a adequação aos novos recursos gráficos e estéticos do mercado editorial. A “explosão” do recurso fotográfico, um exemplo disto, era utilizado ora para divulgar os principais eventos e solenidades políticas e sociais, de cunho oficial, ora para difundir novas formas de comportamento e sociabilidade por meio das imagens sobre o cinema norte-americano e suas estrelas, bem como os elegantes bailes dos clubes cariocas. O papel da imagem fotográfica veiculada pela imprensa ilustrada foi discutido por Ana Maria Mauad, que utilizou Careta como uma de suas fontes de pesquisa. O trabalho da autora permitiu o avanço na caracterização da revista, uma vez que ofereceu novas informações sobre seus procedimentos editoriais. Careta, além de possuir um tom crítico e cômico frente a seu tempo, teria sofrido, ao longo de sua existência, uma significativa reordenação de seu padrão visual para garantir sua permanência no mercado, sobretudo após as experiências estéticas propugnadas pela revista O Cruzeiro.21 Desta forma, além de possuir o citado tom de pilhéria, o semanário, em suas páginas, também difundia imagens por meio das quais pode-se visualizar a elaboração de diversos códigos de representação social, norteadores das formas de ser e de agir da sociedade carioca contemporânea. Entretanto, Mauad afirma que a revista Careta manteve-se fiel à postura crítica, elegendo o Rio de Janeiro como sua principal representação: “Rio = Mundo”22 21 MAUAD, A M. Janelas que se abrem para o mundo: fotografia de imprensa e distinção social no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe. Vol.10, n.2, julio/diciembre, 1999. Disponível em: . Acesso em: 07 ago. 2003. 22 Idem, p.14. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 38 Embora se autoproclamasse uma revista “popular”, Careta atendia a uma tendência geral das revistas de sua época: o retrato das novas opções estéticas, das formas de consumo, dos espaços da cidade a serem freqüentados – signos de distinção e pertencimento social, bem como de uma imagem da cidade que se intentava construir. O cinema foi um desses principais motes, adentrando o cotidiano social e impondo novas formas de comportamento. É válido ainda mencionar os freqüentes anúncios indicando aos leitores “Como vestir e viver...” (editorial do dia 10/02/1940, p.40). Careta, 17/04/1937, p.32 (Fig.05); p. 36 (Fig.06) e 25/03/1939, p.26 (Figura 07). Figura 07 Figura 05 Figura 06 Em seguida, selecionamos algumas destas imagens: No que concerne a divulgação destes novos hábitos e padrões de comportamento, a imprensa, de uma forma geral, e as revistas, em particular, foram seus principais veículos difusores. J. Carlos retrata o assunto por meio da imagem de um cardume de peixes que se apressa para obter milhares de revistas saídas do casco de um transatlântico submerso. A curiosidade era informar-se sobre os últimos figurinos divulgados nas revistas.23 Contudo, o tom irreverente e crítico sobre a realidade permeia todo seu retrato dos costumes cariocas: 23 Careta, 24/02/1940. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 39 Não é uma mulher, é uma cópia (...) tão servilmente subordinada aos modelos cinematográficos de Hollywood que não consegue ter vestidos, nem gestos, nem idéias. Tudo ela toma emprestado a Los Angeles (...) e como o cinema não exporta idéias, ela não as usa, o que é uma vantagem.24 Durante todo o período analisado, inclusive durante o Estado Novo, tal estrutura editorial permaneceu a mesma, mesclando seções de humor, textual ou visual, com conteúdos característicos das revistas ilustradas e de variedades da época: reportagens sobre cidades brasileiras, curiosidades e costumes a respeito de países estrangeiros e povos antigos, artigos sobre a saúde feminina, notícias dos eventos sociais e esportivos da cidade do Rio de Janeiro e novidades do cinema internacional. Em meio à multiplicidade de assuntos, algumas seções ocupavam lugar de destaque, sendo publicadas, geralmente, nas mesmas páginas em cada edição: Ecos Sociais, Galeria dos artistas da tela e Novidades de Hollywood, Um sorriso para todas e Amendoim Torradinho25 foram algumas delas. A partir de vinte e três de março de 1940, a página trinta passou a veicular, no canto superior direito, um pequeno quadro com a programação da Hora do Brasil – obedecendo à lei de obrigatoriedade sobre a divulgação de notícias produzidas pela agência estatal. Em relação à estrutura gráfica, à disposição interna dos assuntos e ao caráter das seções existentes durante os anos de 1937 a 1945, pode-se mencionar que o formato original, 18,5 x 26,7 cm, foi mantido; bem como o número de páginas, cerca de quarenta. O número de charges publicadas também continuou sendo de seis a oito imagens por edição, além das capas, constituídas por charges em todo período de existência da revista. Além disso, cerca de 24 Careta, 08/02/1941, p.27. Seção Um sorriso para todas. 25 Ecos Sociais foi o novo título atribuído, no início dos anos vinte, à seção Instantâneos (matérias sobre eventos promovidos pela sociedade carioca). Galeria dos artistas da tela e Novidades de Hollywood consistiam em seções publicadas, geralmente, em páginas duplas, com várias fotos, veiculadas desde final dos anos vinte. Um sorriso para todas, seção assinada por Peregrino (Alceu Pena), surgiu na mesma data, em 1928, sendo composta por comentários diversos sobre a cidade do Rio de Janeiro e seus habitantes (moda, eventos, críticas aos problemas urbanos). Inicialmente pensada como uma coluna feminina, mas que, com o passar dos anos, tornou-se importante espaço de discussões sobre o cotidiano carioca. Já Amendoim Torradinho, assinada por J. Carlos, foi criada no início dos anos trinta, contendo várias charges, piadas e trocadilhos humorísticos de cunho político e de costumes. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 40 trinta por cento do periódico era composto por propagandas comerciais diversas, alocadas geralmente na capa (parte interna) e na contra-capa (parte externa e interna, geralmente em cores); e em meio às matérias, dispostas de forma variável entre os assuntos de cada edição. 26 Tal freqüência nos padrões de apresentação da revista também foi observada nas capas: o título Careta vinha sempre centralizado na parte superior, seguido da charge do dia e sua respectiva legenda, no canto superior esquerdo era apresentada a data de publicação e no superior direito o número e ano correspondentes. A constatação da assiduidade e permanência de alguns temas e, principalmente, da estrutura de apresentação e composição da revista revelam os possíveis eixos de entendimento do mundo oferecido por esses veículos de comunicação, bem como a existência de um padrão gráfico consolidado, que se desejava manter.27 Concomitantemente a essa sustentação dos assuntos, novas seções foram sendo incorporadas, como a Gaveta de Cartas, surgida no início de 1940 e assinada com o pseudônimo Escalpelo, que trazia comentários críticos e debochados sobre escritos poéticos enviados por supostos leitores à revista; outra coluna do período foi Dize-me quando nasceste, espaço destinado à publicação de horóscopos, simpatias e outras curiosidades do universo esotérico; no ano de 1944, surge Estante de Livros, assinada por Roberto Seidi, com comentários sobre as recentes publicações que chegavam no mercado. 26 Foram citadas algumas das propagandas comerciais freqüentemente anunciadas pela revista: Tônico cerebral Neurobiol; Cafiaspirina; Sabonete Eucalol e Gessy; Leite de Colônia; Cigarros Continental; Antiácido Eno; Creme dental Kolynos; Lâminas de barbear Gillete; Amido de Milho Maisena; Inseticidas Flitt; Alimentos enlatados Peixe; Eletrodomésticos Continental; Loção pós-barba Royal; Tônico Bayer; Emulsão Scott; Colírio Lavolho e Meias Lupo, entre outros. O primeiro anúncio de um veículo automotor a ocupar uma página inteira foi o da fábrica Chevrolett, em 19/04/1941, p.11. Segundo Heloísa de Faria Cruz, os anúncios passam a constituir parte característica e importante de um periódico de sucesso. CRUZ, H. F. Na cidade, sobre a cidade: cultura letrada, periodismo e vida urbana. São Paulo 1890-1915. Tese (Doutorado em História)- Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, 1994. 27 SILVA, A. C. T. O Tempo e as imagens de mídia: capas de revistas como signos de um olhar contemporâneo. Tese (Doutorado em História)-Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2003, p.116. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 41 Em uma pequena nota, publicada em meados de 1940, a direção da revista confirma a primazia de sua padronização durante mais de duas décadas, o que estava sendo ameaçado com o início da Segunda Guerra Mundial: Apesar do grande encarecimento do papel, em virtude da guerra, manteremos o quanto for possível o preço atual desta revista que, há mais de vinte anos não sofre alteração. Certamente não podemos mais imprimi-la em papel couché, a que o leitor já se havia habituado, mas o será no melhor que for possível. Se a propaganda não declinar e o papel não subir mais ainda, “Careta” não sofrerá modificações nem no número de página, nem na impressão, nem no preço. Estamos empregando o máximo de esforço possível (...)28 A escassez de papel começou a ocorrer com maior intensidade a partir de 1941 e, sob a justificativa do aumento vertiginoso nos preços dos materiais de impressão, o padrão da revista foi alterado: o couché foi substituído pelo papel jornal, opção mais acessível no período. A partir de 1942, as edições passam a ser produzidas somente em papel jornal, sendo o couché limitado à capa e à contra-capa: condição mantida até o início do ano de 1945. A despeito dos conteúdos divulgados pela revista durante o Estado Novo, vale mencionar ainda a existência de determinadas matérias nas quais foi possível detectar o entrelaçamento entre a propaganda comercial e a veiculação do discurso de legitimação do regime. Ladeada por duas grandes fotos, a matéria produzida pela agência Standard, veiculada em 1941, versava sobre a visita de Getúlio Vargas à Feira Nacional de Indústrias de São Paulo e, em particular, ao stand da fábrica de produtos Peixe (Fig. 08). No referido texto, a estrutura de apresentação das idéias, que estabelece ligações diretas entre a figura de Vargas e o desenvolvimento da indústria nacional, bem como o emprego de determinados termos valorativos e exaltadores tornam explícito o caráter de matéria oficial: Magnificamente impressionado com o que vira no ‘stand’ Peixe, o Dr. Getúlio Vargas deu por finda a visita à Feira Nacional de Indústrias – prova robusta do grande surto 28 Careta, 12/10/1940, p.04. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 42 industrial da terra bandeirante. Figura 08: Careta, 13/12/1941, p.23. (Fragmento) Figura 09: Exemplo de material propagandístico oficial do governo estadonovista enviado pelo DIP e publicado por Careta. Na legenda, a descrição do evento: Manifestação dos escoteiros ao Chefe do Governo no parque do Palácio do Catete. O Dr. Getúlio Vargas assistindo à manifestação, passando ao mesmo tempo em revista aos escoteiros. A fim de facilitar a visualização do símbolo do Departamento que acompanha as imagens, utilizamos uma seta indicadora vermelha. Careta, 25/01/1941, p.23. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 43 Ainda em relação à publicação de noticiais de natureza oficial, os aniversários do presidente também foram largamente noticiados pela revista, em matérias de página dupla, fartamente ilustradas. Enviadas pelo DIP, portanto de publicação obrigatória, as mensagens possuíam forte apelo emocional e as idéias de unidade nacional e harmonia entre as diferentes classes sociais eram exploradas: Comemora-se, em toda nação, no dia 19 de abril, o aniversário do Chefe do Governo. Realiza-se neste dia, em todos os estados da União, festas, às quais se associam todas as classes sociais.29 Sobre o material propagandístico veiculado na revista, observou-se também a apropriação do léxico empregado nas campanhas governamentais na constituição de diversos anúncios.30 29 Careta, 18/04/1942, p.20 e 21. Nas duas páginas, localizamos a menção “Fotos da Agência Nacional”. Em 17/04/1943, p.19, novamente a cobertura é realizada. Segundo Ângela de Castro Gomes, as celebrações oficiais – como o aniversário do presidente e as comemorações do “dia do trabalho” – foram formas estratégicas de aproximação entre o poder público e o povo, enfatizando a imagem carismática de Vargas. GOMES, A. C. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Relumé/Dumará, 1994, p.200-210. Além disso, observamos fotos diversas sobre visitas de Vargas a outros estados (24/08/1940, p.21) e sua posse como membro da Academia Brasileira de Letras, noticiada em 15/01/1944, p.19. 30 Podemos visualizar também matérias que aparentemente foram “compradas” pelo anunciante, como o caso do tratamento do fígado realizado pelo Dr. Hector Sarofidi, anunciado pela revista com tom de utilidade pública. Aqui, a proposta da revista (promover o humor crítico, ser irreverente) é associada à importância do tratamento: Pugnar pelo bom humor é o tema permanente de Careta, que não pode por isso deixar de fornecer aos seus leitores tudo que lhes possa proporcionar o bom funcionamento dos órgãos que influem na alegria de viver. O fígado está neste caso (...) Careta, 12/06/1937, p.12 e 40. Em tais matérias, observa-se o processo de criação de novas necessidades e hábitos. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 44 A divulgação de tais conteúdos – fossem os de caráter oficial ou um reforço de seu ideário “diluído” pela publicidade – não implicou, necessariamente, na descaracterização do perfil da revista. Embora tenha manifestado-se singularmente crítico ao quadro político da época – articulando as imagens de humor com inventividade e, muitas vezes, ousadia – o semanário, como meio de comunicação de grande alcance de público,31 também sofria os ditames políticos e financeiros impostos pela censura institucionalizada do DIP e pelas 31 Não existem informações precisas em relação às redes ou malhas de distribuição da revista. Contudo, Herman Lima afirma que a publicação era encontrada de norte a sul do país, possuindo um prestígio paradoxal, disputada tanto pelos fregueses de engraxates e barbeiros como pela elite intelectual do Brasil, facilmente encontrada em comércios e livrarias, sendo também distribuída pelo serviço dos correios. Além disso, outro fator deve ser considerado: o número de tiragem não corresponde diretamente à circulação desta, uma vez que o mesmo exemplar poderia ser lido por várias pessoas, e não somente por aquela que o adquiriu. LIMA, H. op. cit., p.152. O anúncio de sabonete (28/01/1939, p.43, figura 10) valeu-se do clima de exaltação nacionalista promovido pelo Estado Novo para estimular o consumo do produto. Por sua vez, o anunciante do tônico cerebral (06/05/1939, p.17, figura 11) explorou as novas concepções de mundo moderno, tempo ágil e trabalho. Sobre este último, vale destacar o artigo produzido por Verena Alberti, no qual a autora analisa diversos anúncios publicitários como importantes veículos de difusão dos novos hábitos de consumo e comportamentos, sobretudo no que se refere às idéias de “modernidade”. Cf. ALBERTI, V. O século do moderno: modos de vida e consumo na República. In: GOMES, A.C.; PANDOLFI, D.C.; ALBERTI, V. (Org.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, CPDOC, 2002, p.260-338. Figura 10 Figura 11 Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 45 campanhas publicitárias, uma de suas fontes de sobrevivência como empreendimento comercial. Sendo assim, as explicações sobre seu longo período de existência e, especialmente, sobre a sobrevivência ininterrupta durante todo o Estado Novo, residem no desvendamento de seus mecanismos específicos de atuação, ou seja, na compreensão sobre como seus propugnadores criaram uma forma de jornalismo próprio que, em meio à censura e à veiculação das matérias enviadas pelas agências do governo, fomentava a contestação nas imagens de humor. Cabe ressaltar que esse duplo movimento na construção do discurso crítico da revista – ênfase versus dispersão; humor cáustico (direto) versus trocadilho jocoso (subentendido) – consistia na principal marca editorial de Careta. Tal característica revela, antes de tudo, a pluralidade e a dinâmica das relações entre os órgãos de imprensa e o poder coercitivo instaurado durante o Estado Novo; entre as vozes de resistência, que, às vezes cediam, e um controle que não se fazia de modo absoluto. Jogo tenso, cujos desdobramentos permitem aquilatar a contribuição do jornalismo sustentado por Careta para a configuração do campo cultural brasileiro. 1.1. Caricaturistas e demais colaboradores: Careta como espaço de sociabilidade intelectual Para Jean-François Sirinelli, o meio intelectual reunido em torno de uma editora ou da redação de uma revista consiste em um universo definido pelos laços ou redes Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 46 estabelecidas entre esses indivíduos.32 No caso da presente pesquisa, percebeu-se que a revista Careta foi fruto da reunião de um pequeno grupo de intelectuais que, ao elegerem o humor e a sátira como principais instrumentos veiculadores de suas propostas, fomentavam alternativas de leitura sobre a política, a cultura e a sociedade do período. Sendo Careta um centro aglutinador de posturas políticas e culturais, pode-se, portanto, concebê-la enquanto espaço de sociabilidade: As revistas conferem uma estrutura ao campo intelectual, por meio de forças antagônicas de adesão – pelas amizades que a subentendem, as fidelidades que arrebanharam e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas (...) Em suma, uma revista é, antes de tudo, um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva, ao mesmo tempo viveiro e espaço de sociabilidade (...)33 A esse respeito, vale mencionar que grande parte dos artigos veiculados ou não era assinada pelos autores ou era finalizada somente com iniciais ou pseudônimos, o que dificultou sobremaneira a identificação dos grupos intelectuais reunidos em torno da publicação no período estudado.34 O quadro a seguir reúne os principais pseudônimos encontrados, em diversas seções, durante a pesquisa: 32 SIRINELLI, J. Os intelectuais. In: RÉMOND, R. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,1996, p.248. 33 Idem, p.237. Ao completar sessenta e dois anos de lançamento, em seis de junho de 1982, Careta foi relançada pela Editora Três, do Rio de Janeiro, sob a direção de Tarso de Castro, Fortuna, Martha Alencar e Luís Carlos Maciel. Dedicado à memória de Samuel Wainer, o evento contou com a participação de Chico Caruso, Luís Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro e Daniel Filho, entre outros. Ao todo, foram produzidas dezenove edições, ilustradas pelos caricaturistas Caruso, Angeli, Fortuna, Cláudio Paiva e Luscar. 34 O próprio J. Carlos assumiu alguns pseudônimos: na revista Filhote da Careta, lançada por Schmidt por um curto espaço de tempo, assinava como Hirondelle. Em O Malho, eventualmente era Leo. Nicolao e Jackie Coogan, por sua vez, foram pseudônimos adotados nas ilustrações ou histórias em quadrinhos do Tico Tico. Cf. LOREDANO, C. O bonde e a linha. Um perfil de J. Carlos. São Paulo: Editora Capivara, 2002, p.45-46. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 47 REVISTA CARETA: RELAÇÃO DE PSEUDÔNIMOS LOCALIZADOS – (1937-1945) 1937 Nemo, O.S., Sapo, Penteado Médice, R S, Micromegas, Herodo, Plácido Sinistro, Juca Pirama, Desca, Orvacio Santamarina, Turgot, José Tardo. 1938 Juca Pirama, JJ Pereira, Diógenes, R S, Nemo, OS, Penteado Médice, Turgot, Sapo, Herodo, Micromegas, BG, João Rialto, Plutarco, Glotofilo, NR. 1939 Plínio Tabatinga, Turgot, Micromegas, João Rialto, Herodo, Nélio Rodrigues, Juca Pirama, JJ Pereira, Pasexito Lima, I Grego, C. Ribeiro, Diógenes, João Nacional, Desca, Glotofilo, Dr. Sabichão. 1940 EBB, OSO, LM, ON, DPF, ISM, FS, Herodo, João Rialto, R.S., L. S., M. P., Glotofilo, E., LSM, A, Diógenes. 1941 Glotofilo, B., E., O., Desca, P.F, S., O N., J S., D P F, Micromegas, S. M, B V, R S, Juca Pirama, Escalpelo. 1942 Eximim, Opfalas, Paxesifo Lima, J S, JJ Pereira, DPF, EBB, Sapo, OS, Orvacio Santamarina, Mago, B, JM, PV, Glotofilo, DPF, Desca, Mago, I Grego. 1943 João Rialto, O, R, Diógenes, D P F, JOB, ON, EP, FM, PF, Glotofilo, Casti, B, PP, OS, Escalpelo. 1944 Escalpelo, Mago, D.P.F., Confúcio, Roberto Seidi, Conselheiro Acácio, Lescarol, Honugo, Glotofilo, ABC, SD, SM, Desca, João Rialto, Escalpelo. 1945 RS, OSO, JOB, Conselheiro Acácio, Peter Pan, Orvacio Santamarina, Januário Teles, Micromegas, E, JM, Mago, Escalpelo, João Rialto, JJ Pereira, Peter Pan, Herodo. Ao debruçar-se sobre a ocorrência de pseudônimos na produção jornalística pernambucana, o autor Luiz do Nascimento salientou a variedade e a função exercida pelos mesmos: Tabela 01: Revista Careta: relação dos pseudônimos localizados (1937-1945) Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 48 O pseudônimo comum era passageiro, durava o período de uma colaboração em jornal ou revista, às vezes transferindo-se para outras publicações. Parava. Vinha um segundo. Ocorria mais um terceiro, chegando os escritores e jornalistas a adotarem mais de uma dezena; pseudônimos que nem sempre escondiam o nome, porque certas vezes eram as iniciais ou anagramas fáceis de reconhecimento entre contemporâneos perspicazes.35 Em outros casos, a prática de utilizar pseudônimos na composição de jornais e revistas era um recurso criativo adotado em publicações concebidas individualmente ou por um pequeno grupo, a fim de criar, imaginariamente, uma “equipe” de articulistas. Tal procedimento jornalístico foi mencionado por Monteiro Lobato, em A barca de Gleyre: Eu me divertia fazendo de longe o Minarete quase inteiro. Quantos números totalmente escritos por mim – o soneto, os contos, o ‘humorismo’, as ‘variedades’, o rodapé, o artigo de fundo! Isso me forçava a um grande sortimento de pseudônimos para dar ao público a impressão de que o jornal dispunha de um exército de colaboradores.36 Devido à escassez ou mesmo à inexistência de informações dessa natureza sobre a revista, não foi possível a identificação dos reais nomes ocultos pelos pseudônimos. Soma-se a isso a dificuldade de localizar dados específicos sobre os empreendimentos de Jorge e Roberto Schmidt, fundadores da Careta. O autor Antonio Dimas, em sua análise sobre a revista Kosmos, já havia discorrido sobre a questão que persiste até os dias atuais:37 Tentei mesmo uma entrevista com a filha de Jorge Schmidt, que me recebeu com muita gentileza e generosidade, mas que nada pode me revelar quanto a documentos que esclarecessem as origens da empresa editora de seu pai.38 35 NASCIMENTO, L. Pseudônimos de jornalistas pernambucanos. Recife: Universidade Federal de Pernambuco/Editora Universitária, 1983. 36 LOBATO, J. B. M. A barca de Gleyre. Quarenta anos de correspondência entre Lobato e Godofredo Rangel. São Paulo: Brasiliense, 1972, p. 28-29. 37 Vale destacar o visível paradoxo entre a grande quantidade de publicações sobre a revista Careta ou suas charges e a falta de informações sobre seus propugnadores, Jorge e Roberto Schmidt. Neste trabalho, foram mencionados todos os dados obtidos sobre eles. 38 DIMAS, A. op. cit., p.146. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 49 Tais entraves e lacunas de informação foram discutidos por Lúcio Flávio Regueira, em estudo posterior, no qual discorre sobre as várias fases da revista Careta, na sua carreira de difundir e fazer imprensa satírica. Segundo o autor, a primeira delas abarcaria o período de seu surgimento, em 1908 até 1921, momento em que J. Carlos deixa a redação para assumir o cargo de diretor artístico das publicações de O Malho. Em 1935, dois acontecimentos marcaram a trajetória do semanário: a morte de seu fundador, Jorge Schmidt e a volta de J. Carlos como principal chargista. Neste mesmo ano, o filho de Jorge, Roberto Schmidt, assumiu o comando da publicação, ofício que exerceu até sua morte, em 1960. Sem apoio financeiro, a revista publicou seu último número meses depois, em seis de novembro. Regueira observou: (...) sua linha foi sistematicamente de oposição, sempre com entusiasmo desinteressado, pois nunca aos seus cofres chegou qualquer subvenção oficial. Sua base de existência foi o favor público, que propiciava, em decorrência, a sua independência. O sustentáculo econômico de Careta era a sua vendagem e o financiamento dos seus próprios donos: Jorge e Roberto Schmidt. Com a morte de Roberto Schmidt, Careta tentou reafirmar seus propósitos de continuar na linha em que sempre se pautou, mas por falta de direção, não subsistiu.39 Embora tenha ponderado a respeito do principal alicerce na constituição da revista, ou seja, a atuação dos Schmidt, o autor não aprofundou questões como a participação de outros colaboradores, sugerindo apenas que o pseudônimo “BOB” designava Jorge, o filho do proprietário.40 Em meio a escassas informações, Cássio Loredano forneceu algumas “pistas” sobre a dinâmica de produção da Careta: 39 REGUEIRA, L.F. Quem tinha medo da Careta? Comunicação, Rio de Janeiro, n.15, p.23,1976. 40 Idem, p.22. Durante todo o período investigado – 1937 a 1945 – o citado pseudônimo não foi localizado. Encontramos dez editoriais assinados por “JOB”, entre 1944 e 1945. Revista Careta: do surgimento à atuação durante o Estado Novo 50 Havia ainda os que eram só jornalistas: repórteres, copidesques e revisores de provas, redatores, editorialistas, críticos e analistas políticos. Na parte de texto. A seção de arte convivia com essa gente no cadinho em que se produzia a revista (...)41 Com o objetivo de superar obstáculos como a falta de informações, uma das estratégias adotadas para se compreender a participação de seus diferentes articulistas consistiu num olhar atento à seção editorial, no que concerne à sua forma de apresentação gráfica, bem como a presença ou ausência de nomes e pseudônimos. Conforme José Marques de Melo, o editorial constitui um espaço da opinião institucional, podendo, muitas vezes, prescindir de autoria.42 Neste caso, os posicionamentos defendidos espelham a filosofia da publicação como um todo. A escolha das informações a serem divulgadas e a decisão de publicar determinados assuntos em detrimento de outros, elegendo-se o que deve ser lembrado, enfatizado ou omitido, correspondem ao principal instrumento de que dispõe os veículos de comunicação para expressar suas opiniões. Por meio do desvendamento desse processo de escolhas, torna-se possível visualizar, com maior clareza, a “personalidade política” destes.43 O espaço reservado à página editorial recebeu diferentes nomes ao longo da existência de Careta, o primeiro deles foi Artigo de Fundo, o qual demonstrou, já no primeiro número, a concepção de jornalismo irreverente e provocativo praticado pela revista: 41 LOREDANO, C. op. cit., p.43. Grifo meu. 42 MELO, J. M. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994, p.65. 43 Citamos anteriormente o episódio da prisão de Jorge Schmidt por ordem do Marechal Hermes, em 1914. Nesta ocasião, o fundador da revista utilizou a página editorial para manifestar-se criticamente ao governo. Segundo Herman Lima, J. Schmidt frisava bem esse ponto, ao assinalar que, durante todo o estado de sítio, o Presidente da República mandava encarcerar o diretor, o secretário e um redator da Careta, cuja publicação mandara suspender, por um ato ilegal e violento. Lima transcreve o trecho do editorial