Franca 2020 UNIVERSIDADE ESTATUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MONIQUE CERRI O MOS MAIORUM NA OBRA HISTÓRIAS DE POLÍBIO: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE UM GENERAL ROMANO (SÉCULO II a.C.) Franca 2020 MONIQUE CERRI O MOS MAIORUM NA OBRA HISTÓRIAS DE POLÍBIO: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE UM GENERAL ROMANO (SÉCULO II a.C.) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Histórias Área de concentração: História política Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. C417" CERRI, MONIQUE O "MOS MAIORUM" NA OBRA "HISTÓRIAS" DE POLÍBIO: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE UM GENERAL ROMANO (SÉCULO II a.C.) / MONIQUE CERRI. -- Franca, 2020 130 p. : il., tabs., mapas Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Margarida Maria de Carvalho 1. República Romana. 2. Políbio. 3. Histórias. 4. Mos Maiorum. 5. Guerras Púnicas. I. Título. MONIQUE CERRI O MOS MAIORUM NA OBRA HISTÓRIAS DE POLÍBIO: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE UM GENERAL ROMANO (SÉCULO II a.C.) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura Política Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho BANCA EXAMINADORA PRESIDENTE: Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho 1º EXAMINADOR: Profa. Dra. Natália Frazão José 2º EXAMINADOR: Prof. Dr. Belchior Monteiro Lima Neto Franca, de de 2020 AGRADECIMENTOS Inicio meus agradecimentos tendo em mente que, sem o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), essa pesquisa não teria êxito. Meu muito obrigada a essa agência de fomento por financiar este trabalho e possibilitar que ele acontecesse mesmo durante a pandemia de Covid-19, com a prorrogação em caráter excepcional. Agradeço igualmente à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” por ser minha segunda casa durante os anos de graduação e mestrado. Sempre será minha Hogwarts! Um imenso obrigada à minha orientadora Profª. Drª. Margarida Maria de Carvalho, por me acompanhar desde a graduação no sonho de realizar o mestrado, por tê-lo feito possível e pelas inúmeras oportunidades de aprendizado que me deu. Agradeço do fundo do meu coração pelo prazer de conhecer o Mundo Antigo sob sua orientação. Muitíssimo obrigada pelo carinho e pela paciência com que trata a todos. Agradeço às minhas companheiras de orientação, do GLEIR (Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano), da UNESP/Franca, pela sororidade presente em nossa relação como mulheres pesquisadoras. Foi ótimo participar dos eventos acadêmicos ao lado de vocês, assim como viajar e organizar coffee breaks. Um obrigada especial para a Bárbara A. Aniceto, pela didática nas aulas de Grego Antigo e assistência com a dissertação. Gostaria de ressaltar o papel dos meus professores da pós-graduação na UNESP- Franca no aprimoramento da dissertação e na motivação do meu trabalho como pesquisadora. Agradeço principalmente à Profª. Drª. Natália Frazão José e, novamente, à Profª. Drª Margarida Maria por compartilharem a sala de aula comigo, durante meu estágio no Programa de Aperfeiçoamento e Apoio à Docência no Ensino Superior. Obrigada pelas aulas enriquecedoras, pelo carinho de sempre e pelo auxílio na dissertação. Agradeço, ainda, à Profª Natália por ter aceitado tão gentilmente participar da minha banca de qualificação do Mestrado ao lado da Profª. Drª Janira F. Pohlmann. As leituras cuidadosas feitas por ambas contribuíram muito para a estruturação desta dissertação. Igualmente, deixo um muito obrigada ao revisor do meu trabalho, o Cristian Imbruniz, cujo trabalho é essencial e imprescindível. À minha professora de espanhol, Elaine Delmonde por me ensinar mais do que somente o idioma. E a todos e todas que com o seu trabalho contribuíram direta e indiretamente com esta dissertação. Agradeço eternamente ao meu amor, Carlos H. N. Santos, por acompanhar em cada passo da elaboração deste trabalho, por me ajudar a fazê-la do começo ao fim, principalmente por me motivar a seguir em frente. Muitíssimo obrigada por compartilhar comigo esse sonho e por fazer parte dele. Temos em comum o amor pela História, a vida e agora, o título de mestre! Muitíssimo obrigada aos meus pais. Minha mãe, Darci, por me ensinar a ler e compartilhar o seu amor pelos livros comigo e com minha irmã, por incentivar meus estudos e por me apoiar na jornada acadêmica, mesmo que longe de suas asas. Ao meu pai, Daniel, por ser o maior historiador formado pelo Discovey Channel e History Channel, por possibilitar que eu estudasse fora e por sempre nos lembrar o que a faculdade não ensina. Agradeço à minha irmã gêmea Mariane por estar comigo na vida inteira e por assim termos continuado na graduação e no mestrado. Dividimos o útero, a História, a orientadora e alçamos juntas ao título de mestre. Agradeço por ser minha companheira de vida e por ter escolhido o Paulinho para ser meu cunhado. Ele é muito gente boa. Agradeço a meus amados primos, por serem seres iluminados. Em especial, às três Marias do meu céu e ao meu primo Benedito pelas aventuras desde nossa infância e as conversas antropológicas na praia. Do mesmo modo, sou grata a toda minha família de Araras, Caraguá, Guarulhos, Tiradentes e Vinhedo, que torceram por mim. A meus tios e tias, que rezaram e acenderam velas para que eu passasse no vestibular e na prova do mestrado. Obrigada aos amigos que fiz durante essa trajetória, especialmente aos amigos do Clã, que me ajudaram nos estudos para passar na prova do mestrado e a enfrentar as dificuldades pelo caminho. Agradeço imensamente à Natasha, minha companheira de casa, de estudos na biblioteca, de alegrias e tristezas. Obrigada pelos anos loucos e maravilhosos que compartilhamos. Meus últimos agradecimentos vão aos meus avós, tanto paternos quanto maternos, em especial, para minha vó Josefa, por ser o meu maior exemplo de força, coragem e superação. Iniciei os caminhos do mestrado enquanto ela vencia um câncer e terminei as últimas páginas deste trabalho com ela vencendo a Covid-19, mesmo com seu histórico de asma e bronquite. Ela, que já havia superado a seca do nordeste e a falta de estudos, segue sendo o meu maior exemplo. Seguiremos vencendo os desafios, vó, rumo ao doutorado. RESUMO CERRI, M. O Mos Maiorum na obra Histórias de Políbio: a construção da imagem de um general romano (século II a.C.). 2020. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2019. O presente trabalho tem como intuito observar a construção do conceito de Mos Maiorum, um conjunto de virtudes pertencentes à moral ancestral romana que deveria ser seguido por aqueles que quisessem ser virtuosos, obter glória e ser dignos de permanecer na memória coletiva romana. Trabalharemos com a hipótese de que tal conceito foi aprimorado na obra Histórias, do autor grego Políbio de Megalópolis (200 a.C.-118 a.C.) para a descrição da imagem do general romano Cipião Emiliano (185 a.C.-129 a.C.), a fim de que este servisse como modelo de líder para o exército romano e para as futuras gerações, em detrimento de Aníbal Barca, general cartaginês que, apesar de ser exímio estrategista, não deveria ser utilizado como exemplo por não se adequar ao Mos Maiorum. A obra Histórias de Políbio também se faz fundamental para compreender as Guerras Púnicas (264 a.C.-146 a.C.), inseridas no contexto da República Romana (509 a.C.-31 a.C.), pois sua escrita foi realizada durante o conflito e tinha como um dos seus objetivos registrá-lo. Coadunamos à nossa hipótese também a ideia de que, ao redigir sua obra, Políbio buscava sua afirmação dentro da sociedade romana, já que estava na condição de prisioneiro de guerra (167 a.C.-150 a.C.), ainda que sob a proteção da família Emílio-Cipião. Palavras-chave: Guerras púnicas. Histórias. Mos Maiorum. Políbio. República romana. ABSTRACT CERRI, M. The Mos Maiorum in the book The Histories by Polybius: the construction of the image of a roman general (2nd century BC). 2020. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquisa Filho”, Franca, 2019. The present work aims to observe the construction of the concept of Mos Maiorum, a set of virtues that belonged to ancestral Roman morals and should be followed by those who wished to be virtuous, obtain glory and be worthy of belonging to Roman collective memory. We shall work with the hypothesis that such concept was improved in the book The Histories, by Greek author Polybius of Megalopolis (200 BC - 118 BC) for the description of Roman general Scipio Aemilianus' image, in order to serve as a role model for the Roman army and the future generations, as opposed to Hannibal Barca, Carthaginian general who, in spite of being an excellent strategist, should not be used as an example for not being in accordance to the Mos Maiorum. The work The Histories by Polybius is also fundamental to comprehend the Punic Wars (264 BC - 146 BC), inserted in the context of the Roman Republican period (509 BC - 31 BC), as well as the quest for self-affirmation by the author, because its writing was fulfilled during his captivity in Rome (167 BC - 150 BC) and had as one of its goals to register the conflict. We also agree with the hypothesis that, in writing his work, Polybius sought his affirmation within Roman society, since he was a prisoner of war (167 BC - 150 BC), although under the protection of the Emilio- Scipio. Keywords: Punic War. Histories. Mos Maiorum. Polybius. Republic Rome. Sumário Introdução ............................................................................................................................... 11 1 Políbio e suas histórias: dados biográficos e detalhamento da obra ............................. 18 1.1 Um legado longínquo .................................................................................................................. 18 1.2 Um grego entre os romanos: a vida de Políbio ........................................................................... 20 1.3 A tradição manuscrita das Histórias ........................................................................................... 30 1.4 Estrutura e conteúdo dos livros das Histórias ............................................................................ 32 1.5 Notáveis Histórias e a retórica de Políbio .................................................................................. 38 1.6 Políbio como mestre das virtudes ................................................................................................ 43 2 As Guerras Púnicas e sua contextualização ..................................................................... 53 2.1 O Mos maiorum na República Romana ...................................................................................... 53 2.2 As Guerras Púnicas em três atos ................................................................................................ 59 2.3 A primeira Guerra Púnica: o “Mare nostrum” (264 a.C-241 a.C.) ........................................... 67 2.4 A segunda Guerra Púnica: a marcha de Aníbal (219 a.C.-202 a.C.) ......................................... 73 2.5 A terceira Guerra Púnica: Delenda est Carthago (149-146 a.C.) .............................................. 86 3 Os generais de Políbio e o Mos maiorum: Aníbal e Cipião Emiliano ........................... 90 3.1 Os romanos e cartagineses: os senhores do mundo .................................................................... 90 3.2 Aníbal Barca e suas representações ................................................................................................ 94 3.3 Cipião Emiliano e a imagem do general virtuoso ..................................................................... 104 Considerações finais ............................................................................................................. 122 Análise da catalogação ......................................................................................................... 127 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 129 11 Introdução Esta dissertação tem por intuito demonstrar como uma moral pode interferir nos resultados de guerras, na organização de uma sociedade, na memória e na identidade dos grupos pertencentes a um povo. Para isso, observamos a sociedade romana em um período de constantes guerras, no qual encontramos um rico exemplo da moral guiando e agindo sobre virtuosos guerreiros e também sobre seus cidadãos. Tal proposta se faz presente ao nos deparamos em nossas análises com um mundo onde os ensinamentos comuns, de acertos e equívocos, eram passados, em sua maioria, de uma geração para a outra pela oralmente. Esse aprendizado, obtido através da assimilação, acabava por estimular uma tradição de preceitos intrínsecos à sociedade romana por meio de memórias partilhadas entre os indivíduos do grupo. Desse modo, com o auxílio da tradição e da moral que agia sobre ela, lendas e mitos de seus heróis eram fortalecidas, assim como de seus generais valorosos e personagens de comportamentos tido como exemplares. Faz-se necessário ter em mente que estamos diante de um povo envolvido em constantes guerras e moldado para tal fim desde suas instituições governamentais até sua organização social, especialmente no período abarcado pelos nossos estudos, a República Romana (509 a.C. - 31 a.C.)1. É nessa fase da história de Roma, no período republicano, que assistimos à expansão vigorosa de seu território atrelada a grandes guerras que são fundamentais para compreendermos o crescimento dessa sociedade, até se tornar um império. As Guerras Púnicas (264 a 146 a.C.), que selaram o destino de Cartago, as guerras contra a Macedônia, a anexação dos territórios da Grécia e a absorção da cultura helenística são alguns fatores responsáveis por reconfigurar todo o sistema político do Mediterrâneo e por consolidar o poderio romano frente às demais forças da região. Dessa forma, ao observarmos os generais romanos e sua participação nessas guerras, sobretudo nas guerras contra Cartago, sua maior inimiga, podemos perceber a busca da autoprovação e da aprovação por seus pares. Havia, nos comandantes dos conflitos entre romanos e cartagineses, uma avidez pela vitória, o desejo de conquistar a glória e de ser lembrado pela posteridade. Além disso, era dada grande importância à disciplina do corpo e da mente, à conquista da honra, da coragem e ao apreço pela lealdade. Essas características 1 Mendes (1988, p.26) adota a datação de 31 a.C. para o evento da Batalha do Áccio. Utilizamos a datação desse momento para demarcar o fim da República Romana, pois compreendemos que, após a Batalha do Áccio, na qual Otaviano derrotou Marco Antônio, ocorreu uma transição das formas governo de República para o Principado. 12 presentes nos generais romanos figuravam dentro de uma conduta moral ancestral, estabelecida pelos primeiros moradores de Roma e conceituada com o Mos Maiorum. Essa conduta, que permeava o imaginário romano desde seus primórdios, seguiu se desenvolvendo na época republicana. Desse modo, buscamos expressar como a moral ancestral do Mos Maiorum, existente nos generais que conduziam o povo romano em suas grandes guerras, era essencial para alcançar a êxito no campo de batalha e na sociedade. Tal moral, tão basilar e, ao mesmo tempo, crucial ao poderio romano, foi captada e imortalizada nas Histórias de Políbio de Megalópolis (200-118 a.C.), um grego que se tornou um registrador do momento em que Roma surge como uma força implacável do mediterrâneo. Políbio viu de perto como a lealdade à moral do Mos Maiorum podia alterar a postura e o destino dos generais envolvidos nas guerras, trazendo uma excelência guerreira e ocasionando assim o sucesso desses combatentes. A condição que levou Políbio a viver em Roma por dezesseis anos foi a de ter se tornado um prisioneiro de guerra após a derrota dos gregos para os romanos, na batalha de Pidna (168 a.C.). Apesar das circunstâncias que o levaram a Roma não terem sido tão amistosas, Políbio soube usar de suas vivências e conhecimentos no campo de batalha para decifrar essa sociedade, com a qual passou a conviver. Durante sua estada, teve a chance de explorar a organização social romana e de entender a complexidade de seu funcionamento econômico e político, já que, em uma sociedade fundada no sistema social aristocrático, voltada para a conquista de território, absorver a cultura dos povos subjugados era um modo de aproximar-se dos vencidos, mas também de aprender com eles. Assim, destacando-se pelo conhecimento prévio que tinha, cativou, em meio às elites romanas, o sustentáculo de uma das famílias mais tradicionais de Roma, a gens dos Emílio-Cipiões. Por essa razão, Políbio foi escolhido como tutor de Quinto Fábio Máximo Emiliano e de seu irmão mais novo, Públio Cornélio Cipião Emiliano (185 a.C. - 129 a.C.), conhecido também como Cipião Emiliano. Ali, no seio de uma família aristocrática senatorial, Políbio começou a registrar as interações romanas com os outros povos do mundo antigo, o que resultou em sua obra Histórias. Devido ao cargo que ocupava e a sua interação com o seu pupilo, Cipião Emiliano, conviveu com personalidades importantes da época, desfrutou de lugares e obteve cargos nunca imaginados até por quem era considerado cidadão entre os romanos do período. Políbio pôde, portanto, compreender e observar as estruturas da cidade de Roma, política e moralmente, 13 sendo esta última, a moral, apontada pelo autor como a motivadora de uma República vitoriosa. Podemos observar que, para Políbio, seu pupilo Cipião Emiliano era o maior receptáculo do modelo de virtudes romanas que o autor tanto admirava e desejava perpetuar. Desse modo, o autor construiu a imagem do bom general, encarnado por Cipião Emiliano, e do general não virtuoso, o cartaginês Aníbal (247-183 a. C.). Este último foi tido como o principal inimigo dos romanos na guerra que envolveu esses dois povos, as chamadas Guerras Púnicas. Assim, levantamos como hipótese que, em sua narrativa Histórias, Políbio não deixa de admirar as ações de Aníbal, porém preferiu o romano Cipião Emiliano em detrimento do cartaginês, pois Aníbal não se encaixaria nas características do Mos Maiorum. Para compreender esse pensamento do autor grego, faremos uma comparação entre as condutas e ações de guerras dos generais, a fim de identificar os meios empregados por Políbio para construir as bases do Mos Maiorum, personificadas na figura do general ideal, general esse que deveria possuir as características que julgava fundamentais para a ascensão da República de Roma. Coadunamos à nossa hipótese também a ideia de que, ao escrever sua obra, Políbio buscava se afirmar na sociedade romana, já que era um prisioneiro de guerra, ainda que estivesse sob a proteção da família Emílio-Cipião. Com o propósito de investigar a elaboração do Mos Maiorum nas Histórias, montaremos um catálogo de passagens em que Políbio faz referência a Cipião Emiliano e a Aníbal Barca. O catálogo servirá como base para realizarmos uma análise temática qualitativa sobre as virtudes e as insuficiências dos dois generais: o romano Cipião Emiliano e o cartaginês Aníbal. Para a elaboração desse instrumento de análise, acreditamos ser necessária uma metodologia que abarque as características linguísticas presentes no discurso de Políbio. Pensando nisso, recorremos às análises presentes no livro Análise de conteúdo, de Laurence Bardin (2009). A obra de Bardin pode ser considerada como um manual metodológico de investigação, classificação e condensação de informações retiradas da documentação. Por meio da técnica de análise de conteúdo, poderemos fazer consultas e armazenar os dados contidos na documentação por meio da manipulação das mensagens das Histórias, com intuito de demonstrar os indicadores que permitem inferirem o seu teor (BARDIN, 2009, p. 45 - 46). Utilizando esse método, será possível conhecer o que estava por trás das intenções das 14 palavras utilizadas por Políbio. Com esse intuito, empregaremos a investigação de análise temática qualitativa, na qual se executará um levantamento sobre os atributos que são aconselhados ou desaconselhados por Políbio nas Histórias. Assim, conseguiremos evidenciar os conceitos-base presentes no Mos Maiorum, que estão presentes nos excertos sobre Cipião Emiliano e Aníbal Barca. A partir da leitura da obra de Políbio e da historiografia atual sobre a República Romana, também buscaremos, o contexto das Guerras Púnicas, a partir as quais Políbio erigiu a memória de um general romano que deveria ser perpetuada nas próximas gerações. Dessa forma, será possível explicar os motivos da procura do autor por reconhecimento nesse contexto. Isto posto, passamos a apresentar o tema de nossa pesquisa, elucidando nossos objetivos e hipótese de trabalho. Ao esclarecer o tema, faremos uma revisão historiográfica tomando por base os autores que trataram a obra de Políbio e a questão do Mos Maiorum. Em nosso primeiro capítulo, dissertaremos sobre o autor Políbio, sobre sua vida, seu legado, suas obras, a que público ele se dirigiu, quando redigiu as Histórias, o contexto em que a obra estava inserida, sua repercussão, as traduções disponíveis e, também, onde se encontram os manuscritos existentes. Apresentaremos, ainda, nesse capítulo a tradição escrita dessa obra. No capítulo dois, contextualizaremos as Guerras Púnicas, no período da República Romana, e o conceito do Mos Maiorum. Nele, a partir do contraste com o modo como a historiografia atual apresenta as questões e as características fundamentais expostas por Políbio em suas Histórias, discutiremos as questões pertinentes à moral ancestral romana. Procuraremos destacar, também, se tais características definidas pelo autor aprimoram o Mos Maiorum em específico, não sendo apenas um conjunto de virtudes sem propósito. No terceiro capítulo, faremos uma comparação dos perfis dos generais Cipião Emiliano e Aníbal Barca, além de analisar a correspondência de Cipião Emiliano à moral romana ancestral conforme aprimorada por Políbio. Pretendemos, ainda, esclarecer a hipótese da autoafirmação de Políbio dentro da sociedade romana ao escrever as Histórias. Para finalizar, a dissertação faremos com nossas considerações finais sobre os estudos realizados. Diversos pesquisadores se debruçaram sobre a obra de Políbio com o objetivo de desvendá-la. A seguir, serão apresentados autores de grande relevância – e obrigatórios – sobre o tema, por oferecerem leituras que contam com consideráveis volumes de informações a respeito de Políbio e as Histórias e que, portanto, permitem compreender melhor a escrita e o 15 contexto em que autor e obra inseridos. Isto posto, dentre esses historiadores, temos Frank William Walbank, autor que dedicou sua trajetória acadêmica tanto à compreensão das questões políticas quanto ao entendimento dos diferentes sistemas e costumes sociais suscitados pelas Histórias, produzindo três volumes sobre Políbio intitulados: A historical commentary on Polybius, entre os anos de 1956 e 1978. Nesses volumes, Walbank elucida questões históricas fundamentais na obra de Políbio, como, por exemplo, o funcionamento do sistema helenístico e o que ocasionou sua extinção; a origem e o desenrolar das Guerras Púnicas e o ponto de vista desse autor sobre as instituições romanas e sua constituição, agregando em seu relato mapas e estratégias de guerra detalhadas. O historiador Arthur M. Eckstein, com a obra Moral Vision in the Histories of Polybius, publicada em 1995, nos apresenta uma perspectiva de análise sobre a visão moral presente nos escritos de Políbio, que se difere e contrasta com a interpretação moral detectada por Walbank (1990) e Paul Pédech (1964), tida como um manual. Com o objetivo de contrapor-se a essa interpretação, Eckstein nos apresenta Políbio como mestre de lições virtuosas ao tratar de questões como o suicídio heroico, a guerra justa por motivos honrosos, as atitudes heroicas perante a derrota no campo de batalha e os sentimentos humanos, como o otimismo e o pessimismo. Nesse sentido, acreditamos que nosso trabalho pode contribuir para o debate ao defender a elaboração do Mos Maiorum como uma moral ancestral percebida e inclusa na obra por Políbio ao narrar esses eventos e personificada em alguns generais. Dentre outras possibilidades, pretendemos verificar essa hipótese por meio da análise da comparação entre as descrições do romano Cipião Emiliano e a de seu inimigo cartaginês, Aníbal Barca. Destacaremos as atitudes de Aníbal que foram condenadas pelo autor que buscou construir sua imagem de antagonista dos romanos. Dessa maneira, nossa pesquisa aprofundará e conceituará a moral presente nas Histórias, além de desvendar as questões acerca da construção e desenvolvimento da obra pelo historiador3 grego radicado em Roma. Walbank (2002) produziu uma compilação de dezenove artigos de sua autoria, 2 Quando nos referimos ao ofício de historiador em Políbio, temos em mente que os historiadores da Antiguidade não possuíam o rigor científico-metodológico dos historiadores atuais. Em suma, os historiadores do passado produziam seus textos observando apenas as regras previstas para o tipo de discurso escolhido (MENDES, 1988, p. 07). Como referido por Bloch (2001, p. 82-87), em sua obra Apologia da História ou o ofício de historiador, as análises críticas realizadas na documentação histórica tiveram seu início no século XVII, com os trabalhos de Spinoza e com a obra Discurso do método, de Descartes. Políbio, por sua vez, tentou construir um próprio método de análise histórica para compor seu livro. Falaremos sobre seu método nos próximos tópicos. A título de organização, para designar o trabalho de Políbio, escolhemos utilizar a palavra: historiador. 16 considerados por ele os de maior relevância, e publicou sob o título de Polybius, Rome and the Hellenistic World: Essays and Reflections, volume no qual faz uma revisão dos assuntos tratados ao longo de sua carreira. Suas obras são de grande relevância para nossos estudos por tratarem do olhar de Políbio sobre os acontecimentos históricos suscitados em sua escrita. Outro estudo de grande valor para nossa pesquisa e que corrobora as ideias postuladas por Walbank (2002), são as obras de Pédech, autor de dois livros significativos sobre o estudo e a tradução de Políbio, intitulados: Polybe. Livre XII. Texte établi, traduit et commenté, de 1961, e Méthode historique de Polybe, publicado em 1964, no qual se encontra um estudo detalhado sobre a forma utilizada pelo historiador grego para redigir sua obra, que tinha como propósito ser uma história universal. Desse modo, em seus livros, Pédech (1961 e 1964) faz uma análise estrutural das Histórias enquanto mostra historiadores, filósofos e geógrafos que foram introduzidos na narrativa e os eventos em que estão inseridos. Com o intuito de compreender o contexto histórico de Políbio, faz-se necessária a leitura do livro Lo storico, il grammatico, il bandito. Momenti della resistenza Greca all'Imperium Romanum, de John Thornton (2001), que apresenta uma reflexão sobre as tensões sociais do mundo grego entre os séculos III a.C. e I a.C., em meio à expansão romana. Seu objetivo é mostrar as motivações políticas e ideais que inspiraram fases da resistência da cultura helenística em Roma. Pela ótica polibiana, o autor também investiga as relações de poder e interesses intrínsecos no contexto da expansão. Em 2013, tivemos a obra Polybius and his world: Essays in memory of F. W. Walbank, organizada por Bruce Gibson e Thomas Harrison (2013) a partir das discussões sobre a produção acadêmica de Walbank, ocorridas em Liverpool, durante um congresso internacional em 2007. O objetivo dos autores foi retomar as questões que haviam sido trabalhadas por esse tão memorável pesquisador de Políbio, então falecido há um ano. Para tal fim, os temas trabalhados foram, com especial destaque, a abordagem de Políbio sobre ligação entre as sociedades romana e grega e o seu ponto de vista sobre a constituição de Roma. Foi pontuado também o modo como Políbio entendia o seu papel de registrar o que estava a sua volta e qual era sua interação com outros autores da época, tais como Xenofonte (430 a.C.–355 a.C.), Filmarco, Arato de Sicião (271 a.C.–213 a.C.), Tito Lívio (59 a.C.–17 d.C.) e Josefo (38 d.C.– 100 d.C.). O livro produzido por Gibson e Harrison (2013) é significativo ao trazer novas análises do texto de Políbio quanto às perspectivas narrativas, quanto à disposição do tempo e do espaço e quanto a outras questões de grande relevância aos historiadores da 17 contemporaneidade. A obra também homenageia os aspectos da vida e da carreira de Walbank, bem como suas inúmeras contribuições nas pesquisas sobre Políbio. Levaremos igualmente em consideração a vasta produção acadêmica de Breno B. Sebastiani, autor brasileiro de importância sobre o tema e tradutor dos cinco primeiros volumes das Histórias de Políbio do grego para o português, da qual faremos uso em nossa pesquisa. Sebastiani (2013) destaca a visão polibiana empregada nas Histórias sobre outros historiadores antigos, tais como Timeu de Tauromênio (356 a.C.–260 a.C.), Tucídides (460 a.C.–400 a.C.), Filarco (III a.C.) e Homero (928 a.C.–898 a.C.), entre os quais faz comparações, mostrando divergências e semelhanças. Em 2017, Sebastiani publicou sua tese de livre-docência: Fracasso e verdade na percepção de Políbio e Tucídides, na qual discute pelos vieses narrativo, historiográfico, literário e cultural o que Políbio e Tucídides consideram verdade ou fracasso político. Nesse mesmo ano, foi publicada a obra Entre Roma y el Mundo Griego: Memória, autorrepresentacíon y didáctica del poder en las Historias de Polibio, de autoria do argentino Álvaro M. Moreno Leoni (2017). O objetivo desse historiador foi revisitar a expansão romana sob uma nova perspectiva, saindo da interpretação que, segundo ele, a tradição historiográfica contemporânea, romaniza Políbio. Com o intuito de quebrar com esse padrão, o autor apresenta elementos da memória, da identidade e da didática do poder, dentre outros elementos culturais e políticos que estão presentes em Políbio e que são oriundas de líderes gregos, como Aratos, Filopemén e seu pai, Licortas. Em vista disso, o autor defende uma postura político-cultural helenística em Políbio, ao apresentar o fenômeno das resistências autonomistas gregas frente à dominação romana. Na análise de Moreno Leoni (2017), Políbio se utilizou de sua narrativa como um instrumento didático para transmitir suas ideias a respeito de como os gregos deveriam portar- se frente aos romanos e de como os romanos poderiam ser moderados. Desse modo, Políbio seria uma espécie de mediador entre os dois povos. Nosso trabalho, por outro lado, pretende focar no entendimento romano de memória e identidades, uma vez que esses conceitos são peças-chave para a elaboração e para a consolidação de uma moral ancestral romana. Não negaremos, porém, as influências gregas que Políbio recebeu em sua formação, assim como as influências a que estava exposto, tendo morado e convivido com os romanos durante quase duas décadas. 18 1 Políbio e suas histórias: dados biográficos e detalhamento da obra 1.1 Um legado longínquo Eleito pela historiografia contemporânea como um dos grandes historiadores gregos, ao lado de Heródoto (485 a.C.–425 a.C.) e Tucídides (460 a.C.–400 a.C.), Políbio de Megalópolis (200–118 a.C.) e seu contexto histórico vivem em constante revisitação. Suas funções de historiador, geógrafo, diplomata e comandante geral da cavalaria fizeram de Políbio peça fundamental para a compreensão da Antiguidade Clássica, dos séculos III ao I a.C., especialmente do universo grego e romano, no âmbito político, militar, moral e geográfico (WALBANK, 1990, p. 2-6; GRIMAL, 1970, p. 11). Ele próprio considerava ter nascido em um momento chave de sua época, na ascensão do grande império que Roma se tornaria ao subjugar exércitos poderosos, de tal forma que achou necessário registrá-lo e imortalizá-lo. Para tanto, compôs várias obras, mas apenas as Histórias chegaram até nós. Seus feitos, reflexões políticas e filosóficas ecoaram por toda a História, sendo utilizados como referência e fonte de inspiração para Cícero (106–43 a.C.), Estrabão ( 64-63 a.C.–24 d.C.) , Tito Lívio (59 a.C–17 d.C), dentre outros historiadores notáveis para o estudo da Antiguidade (SEBASTIANI, 2016, p. 30-35; MARQUES, 2007, p. 45). A influência de Políbio não se restringiu apenas aos autores antigos, mas sobreviveu ao tempo. Ainda que pouco citado entre os autores do Ocidente latino, o autor volta a permear as reflexões no período bizantino, incorporado nos Excertos Constantinianos, do Imperador Constantino VII Porfirogênio, no século X, e, assim, reaparece frequentemente. Políbio avançou nos séculos e esteve presente na Florença do século XV por meio do humanista Leonardo Bruni (1370–1444), dessa vez, traduzido do grego – a língua em que Políbio havia escrito sua obra – para o latim. Bruni fez uma monografia (1422) sobre a Primeira Guerra Púnica, conflito tratado nas Histórias (PÉDECH, 2003, p. 56-57). Além desses autores, Políbio aparece entre os pensadores políticos, como Maquiavel (1469–1527), tendo sido usado como inspiração na escrita de sua principal obra, O príncipe (1532). Ainda foi lembrado pelo jurista francês Bodin (1530–1596), autor dos volumes Les six livres de la republique (1576). O também francês e ilustre pensador Montesquieu fez uso do Livro VI para escrever sobre a importância da música e do Livro XI das Histórias para escrever De l’Espirit des lois (1748). Até os federalistas da nação norte-americana, John Adams (1767–1848), Alexander Hamilton (1755–1804), James Madison (1751–1836) e John 19 Jay (1745–1829) se valeram das ideias do autor grego para elaborarem a Constituição norte- americana (1788) (SEBASTIANI, 2016, p. 42-43). Adentrando o século XIX, Políbio e sua concepção de como pensar a escrita da História foram citados por Johann Gustav Droysen (1808–1884), um dos mais importantes historiadores alemães de sua época. Em sua obra Historik, traduzida para o português sob o título de Manual de teoria da história, o autor analisa a teoria e a metodologia da ciência histórica. Droysen (2009) volta ao início da história da historiografia para apresentar as primeiras formas que levaram o ser humano a pensar historicamente e, nesse movimento, apresenta a reflexão que Políbio fez sobre o método historiográfico (DROYSEN, 2009, p.17). Em nossos dias, Políbio nos mostra a maestria e a vivacidade das Histórias ao motivar tanto ponderações inéditas em diversos campos de estudos quanto reinterpretações sob novos olhares. A título de exemplo, no campo político, os autores de Empire, Antonio Negri e Michael Hard (2000, p. 314-315), resgataram os componentes políticos do Livro VI das Histórias para explicar as funções econômicas da contemporaneidade que denominaram como a pirâmide da constituição mista (SEBASTIANI, 2016, p. 42). Corroborando a ideia de perspicácia das Histórias, temos uma nova discussão sobre a compreensão da obra como um produto político-cultural do contato entre o mundo helenístico e a expansão imperialista da República romana entre os séculos III e II a.C. Essa interpretação foi trazida à tona pelo argentino Leoni (2017), em Entre Roma y el Mundo Griego: memoria, autorrepresentación y didáctica del poder em las Historias de Polibio , e não deixa de entrar na questão sobre a quem pertencia a lealdade de Políbio, se era aos romanos ou aos gregos. Em 2016, o brasileiro Sebastiani nos presenteou com uma nova tradução das Histórias, na qual temos a possibilidade de conhecer a obra em uma versão revisada em língua portuguesa. Portanto, Políbio não deixou de ser lido, relido, interpretado e reinterpretado. Essa constatação põe à luz as múltiplas faces desse personagem histórico tão admirado e versátil nos campos do conhecimento, que atravessou séculos e eras, permeando o pensamento e as ações de variados indivíduos. Indivíduos esses que foram fundamentais na construção do contexto histórico em que viviam e que, portanto, com suas contribuições, alteraram a História como um todo. Desse modo, acreditamos que Políbio se imortalizou ao longo dos milênios por meio de sua obra Histórias, seu maior legado e a obra mais completa sobre o mundo antigo. 20 1.2 Um grego entre os romanos: a vida de Políbio O que fez Políbio se tornar digno de figurar entre épocas e no imaginário de homens tão diversos? E por que esse autor grego é a chave para entendermos uma moral ancestral romana? Para responder a essas questões, é necessário compreender as origens desse ilustre historiador. Políbio nasceu por volta de 200 a.C.4, em Megalópolis, cidade grega situada junto a quarenta povoados menores, integrados à região da Aqueia, no centro da Península do Peloponeso. O contexto político dos territórios vizinhos à Grécia na época de seu nascimento era composto pela dinastia Antigônia na Macedônia, na Síria, havia os Selêucidas, no Egito, a descendência de Ptolomeu subia ao poder, sucedendo os faraós (MARQUES, 2007, p.46). Políbio pertencia a uma família aristocrática, era filho de Licortas, um exímio estratego5 do exército grego. Condizente com a notável posição social de sua família, Políbio havia recebido uma educação primorosa para atuação política e militar. Era versado em retórica, oratória, latim e, provavelmente, foi discípulo do grande filósofo grego Filopêmen (253 a.C. – 184 a.C.)6, amigo pessoal de sua família. Conhecia obras de historiadores gregos anteriores, como Heródoto (485 a.C.-425 a.C.) e Tucídides (460 a.C.-400 a.C.) (McGING, 2010, p. 54). Todos esses atributos fizeram com que, ainda jovem, Políbio participasse de missões diplomáticas na Confederação Aqueia, da qual sua cidade fazia parte, e se tornasse hiparca federal7. Essa era a segunda magistratura em grau de importância dentro do exército grego, no período de 170/169 a.C. (MORENO LEONI, 2017, p. 18). Políbio possuía um futuro político promissor como um dos homens mais poderosos da Grécia. Contudo, viveu em um mundo conturbado, em meio à ascensão voraz romana, estando presente no momento em que a história da Grécia e do Império Romano se uniram e transformaram todo o sistema político vigente. Mediante esse encontro conflituoso, viu-se conduzir, junto de mais mil jovens gregos, à Roma, como prisioneiro de guerra. A fim de entendermos melhor a forma com que o destino de Políbio mudou, faz-se 4 Não há consenso entre os historiadores sobre a data exata de nascimento de Políbio. Para Walbank (1990, p. 6- 7) e Sant’anna (2010, p. 138), o historiador grego teria nascido por volta de 200 a.C. ou dois anos antes. Para Pédech (2003, p. 9), Políbio nasceu em 208 a.C. Ainda, segundo Eckstein (1995, p.4), Sebastiani (2016, p.14) e Moreno Leoni (2017, p.18), Políbio teria nascido em algum dia de 200 a.C. 5 Estratego ou Strategoi (στρατηγοί) é a palavra de origem grega utilizada para designar o comandante geral do exército grego (OXFORD, 2007, p. 210). 6 Filopêmen está presente nas Vidas Paralelas (volume IV), de Plutarco, e nas Histórias (volumes X – XXXIII), de Políbio, como um importante stratego da Liga grega da Acaia e, também, um prestigiado filósofo e político do período. 7 Hípparkhos (Ίππαρχος), em grego clássico, era a palavra utilizada para nomear o general da cavalaria grega (OXFORD, 2007, p. 106). 21 necessário remontar ao contexto em que esse historiador viveu. A Liga Aqueia, da qual Políbio era partícipe, foi fundada no século V a.C., composta inicialmente por doze cidades- estados autônomas, confederadas do Peloponeso, com a finalidade de preservar a liberdade dos gregos ante as ameaças externas, tais como a expansão macedônica, liderada por Alexandre Magno (323-301 a.C.), também conhecido como Alexandre, o Grande. Entretanto, a Liga não conseguiu vencer as investidas macedônicas e acabou por ser derrotada no século IV a.C. Sobre o momento de criação das ligas, Políbio descreve: Essa questão, porém, experimentou tal e tamanho progresso e consumação em nossa época que não só surgiu entre eles uma comunidade de interesses como que entre aliados e amigos, mas a ponto de servirem-se das mesmas leis, pesos, medidas e moedas, além dos mesmos magistrados, representantes e juízes. De um modo geral, por uma única razão quase todo o Peloponeso não era uma cidade de uma única muralha (POLÍBIO, II. 37. 10–11). Após a morte de Alexandre, o Grande, o então rei macedônico, inicia-se uma disputa interna pela sucessão, uma vez que não havia, ao menos claramente, indicação de Alexandre para um sucessor ao trono. Mediante esse conflito e outras questões com a Macedônia, a Liga Aqueia ressurge em meados de 280 a.C., fortalecida pela adesão de novas cidades-estados, entre elas, Sicião, Corinto, Argos e a Megalópolis. Essas cidades forneceram importantes estrategos. Além de Licortas, pai de Políbio, havia também Filopêmen, seu possível tutor, Arato de Sicião e Diófanes. A paz, porém, não perdurou e a Liga se viu novamente em guerra, dessa vez, com o rei espartano, Cleómenes III (254 a.C.-219 a.C.), que buscava submeter- a Liga do Peloponeso a Esparta. Cleómenes III havia sido recentemente elevado à condição de rei e via, na guerra contra a Liga Aqueia, a chance para se autoafirmar como um exímio guerreiro e, assim, legitimar-se. Tendo isso em mente, o rei espartano tomou medidas estratégicas que garantiram sua vitória em duas batalhas consecutivas. Em busca de se defender, a solução para a Liga foi recorrer à Macedônia, sua antiga inimiga, que agora vivia sob a dinastia Antigônia. Com a ajuda da Macedônia, na batalha de Selásia, o rei espartano, Cleómenes, em 223 a.C., foi derrotado, porém, a Liga estava novamente sob o julgo macedônico (MARQUES, 2007, p.46). Era comum dentro das três maiores confederações gregas, de Aqueia, Etólia e Beócia, a inclinação política ora para a Macedônia, ora para Roma, até mesmo porque ambas forças militares faziam frente uma à outra. Quase constantemente, essa predileção oscilante dentro 22 da Liga Aqueia e das demais ligas gerava pretexto para conflitos entre elas e entre suas próprias facções internas. Esse foi um ponto-chave para o desmantelamento das Ligas na Terceira Guerra Macedônica (171 a.C.), na qual romanos e macedônicos batalharam entre si (SEBASTIANI, 2016, p. 20). O último episódio desse conflito foi a Batalha de Pidna, palco fundamental para as mudanças no enredo da vida de Políbio e, por extensão, poderíamos dizer, para nossa pesquisa. Mais adiante falaremos sobre o que foi a Terceira Guerra Macedônica. Para elucidar os desentendimentos entre as ligas gregas em relação à Macedônia, Políbio descreveu nas Histórias como a busca por satisfazer os interesses individuais de cada liga já havia retardado a união de toda a região e que esse fato, mais tarde, acabou por culminar no fim das Ligas. Sobre a comunidade aqueia e sobre a casa real da macedônia, é cabível recuar um pouco no tempo, uma vez que a esta sobreveio a extinção absoluta, e aos aqueus, conforme mencionei anteriormente, havia um crescimento e união surpreendentes em nossa época. No passado, muitos desejaram reunir os peloponésios em uma mesma comunidade, mas ninguém conseguiu fazê-lo, porque cada um ansiava pelo próprio poderio, não pela liberdade comum (POLÍBIO, II. 37. 7-9). A seguir, mostramos um mapa do mundo à época de Políbio, com o propósito de facilitar a compreensão de como estava configurado o território grego em meio aos conflitos que ocorriam. Na imagem, é possível observar as cidades gregas mencionadas e como estavam interligadas. Além disso, o mapa nos ajuda a entender quais as principais regiões que propiciavam conflitos entre as forças do período devido a sua localização. O mapa (MAPA 1) foi elaborado por Breno Battistin Sebastiani e está presente em seu livro: História Pragmática (2016, p.478). 23 MAPA 1- A Grécia à época de Políbio. Fonte: SEBASTIANI, História Pragmática, 2016, p.478. A Terceira Guerra Macedônica é muito importante para nossos estudos, pois o fim desse embate entre o Império Romano e Macedônia se deu com a vitória do então cônsul romano Lúcio Emílio Paulo (229 a.C.-160 a.C.), sob as falanges do rei Perseu (212-165 a.C.), em Pidna. Consequentemente, as Ligas gregas de Aqueia, Etólia e Beócia, que estavam lutando ao lado da Macedônia, foram desmanteladas e o território macedônico foi divido em quatro províncias romanas. Por mais que a facção de Políbio se mantivesse neutra durante o conflito, viu seus principais membros serem acusados de prestar auxílio ao rei macedônico. Desse modo, foram entregues aos romanos como prisioneiros e foram levados a Roma, dentre eles, Políbio (SEBASTIANI, 2012, p. 51). A princípio, os jovens detidos pelo exército romano passariam por um julgamento para 24 provar sua inocência, mas tal julgamento nunca ocorreu. Devido à alta patente no exército grego, a sua vasta experiência militar e às missões diplomáticas de que havia participado no passado, Políbio conseguiu permanecer na urb de Roma, enquanto os demais companheiros foram conduzidos para pequenas cidades da Península Itálica. Na urb, durante o regime da República Romana (509 a.C.-31 a.C.), Políbio permaneceu dezessete anos (167–150 a.C.) sob a proteção e estada da família dos Emílio-Cipiões, uma das gens8 mais antigas e afamadas entre as lideranças políticas de Roma. A célebre família fazia parte de uma elite aristocrática helenizada, que se propagava por Roma devido à ocupação de território greco-macedônico, e era apreciadora da cultura grega. Em razão disso, a família ocupou Políbio na função de praeceptor9 de Quinto Fábio Máximo Emiliano e de seu irmão mais novo, Públio Cornélio Cipião Emiliano, o Africano Menor (185 a.C.-129 a.C.), conhecido também como Cipião Emiliano. Cipião Emiliano era filho biológico do general Lúcio Emílio Paulo – o vencedor de Perseu na batalha de Pidna, que comentamos anteriormente. Pela linha de adoção, Cipião Emiliano era neto adotivo de Cipião, o Africano (236-183 a.C.) – o general que encerrou a Segunda Guerra Púnica, ao vencer o memorável cartaginês, Aníbal, na Batalha de Zama. Conjuntamente, esses dois conflitos, a Batalha de Pidna e a Segunda Guerra Púnica, unidos à derrocada do rei selêucida Antíoco III (241 a.C.–187 a.C.) e Ptolomeu IV Filopator (244 a.C. – 205 a.C.), já havia movimentado bastante o sistema político e econômico da região. Além disso, o colapso provocado pelos romanos nas Ligas gregas de Etólia e Aqueia, foram responsáveis por reconfigurar o Mediterrâneo. Assim, detido em Roma, Políbio estava no centro do Império Romano em formação e dentro de uma das famílias senatoriais mais ricas do século II a.C., agente das mudanças que o transformaram de partícipe a espectador de seu mundo, acompanhando Cipião Emiliano em suas expedições. Desse modo, tratava-se de uma mesma família comandando as guerras do período, sendo esse grupo o responsável por conquistar os territórios da Península Itálica, Península Ibérica e de pôr sob a jurisdição de Roma as áreas correspondentes ao reino da Macedônia. Na época de Políbio, a principal atividade de um escravo de guerra era trabalhar na extração de minérios que, mais tarde, seriam utilizados na confecção de equipamentos para o exército. Em seu relato, Políbio (34, 9-8) descreve que, só na extração de prata das minas de 8 Gens, palavra de origem grega que significa família/clã. 9 Praeceptor, em latim, era a denominação do indivíduo designado para acompanhar e orientar a educação de uma criança ou adolescente (ENCYCLOPEDIC, 2008, p. 641). 25 Cartago Nova, trabalhavam cerca de quatro mil homens. Contudo, a massa de escravos de guerra não era em nada homogênea. Nas cidades, também havia esse tipo de escravo, porém, seu trabalho era voltado para mão de obra especializada em atividades artesanais como, por exemplo, o ofício em cerâmica e, muitas vezes, realizada em conjunto com homens livres e libertos. Dentro desse grupo, existiam os escravos tidos como especialistas, dentre os quais o próprio Políbio se encaixava. Esses escravos se dedicavam às profissões intelectuais, tais como as de pedagogo e bibliotecário, e desfrutavam de uma posição social mais favorável (ALFÖDY, 1989, p. 72-73). No entanto, fosse nas minas, nas plantações, em trabalhos rudimentares, ou nas cidades, em trabalhos intelectuais, o escravo não possuía quaisquer direitos como cidadãos. Eles estavam sujeitos à exploração, a serem tratados de forma desumana e eram considerados como meras propriedades. Os escravos, de modo algum, encontravam-se inseridos nas famílias que lhes possuíam e, como não havia esse vínculo, a relação era apenas de proprietário e propriedade. Devido a tais condições, esses homens que antes eram livres em seu território, muitas vezes, se opunham aos seus senhores, gerando revoltas. Porém, os conflitos eram facilmente reprimidos em função da dificuldade de se organizarem, uma vez que os escravos eram um grupo de etnias, culturas e línguas diferentes. Apesar disso, como tutor de Cipião Emiliano, Políbio pôde estar em lugares e ter acesso a documentos inacessíveis a um escravo de guerra comum, mesmo aqueles que continuaram na urb. Desse modo, pôde frequentar a biblioteca que havia pertencido ao Rei Perseu10 – Políbio em sua obra, afirma que a biblioteca do Perseu não era tão rica quanto as bibliotecas de Alexandria ou de Pérgamo, onde encontrou documentos e descrições importantes não só da parte vencedora. A partir daí, pôde conhecer melhor a constituição romana e o funcionamento de suas instituições, bem como as táticas, condutas e o poder político por trás das guerras. Políbio Teve acesso a relevantes políticos do período, como Catão, o Velho (234 a.C.- 149 a.C.) e Caio Lélio11 (235 a.C.), o que lhe possibilitou um olhar mais amplo da política e do entendimento do que era ser um romano. Além de políticos, pôde tratar com os outros tutores de Cipião Emiliano, tais como o comediógrafo Terêncio (185-159 a.C.), o filósofo 10 Políbio teria doado à biblioteca do Rei Perseu obras de Aristóteles, Xonefonte e de muitos outros autores estoicos. Obras essas cobiçadas por Lúcio Paulo Emiliano (SEBASTIANI, 2012, p. 52). 11 A data de sua morte não foi registrada em Políbio nem em Tito Lívio. 26 Panécio (185 a.C.-110 a.C.), os autores da Antiguidade, Caio Fânio12 (cônsul em 122 a.C.) e Quinto Élio Tuberão, genro de Lúcio Emílio Paulo, o áugere Q. Cévola (cônsul em 117 a.C.) e outros intelectuais que faziam parte do “Círculo dos Cipiões”, retratados na obra De Republica (51 a.C., X – XII), de Cícero (106-43 a.C.). Também podia contar com o pupilo, Cipião Emiliano, para se informar sobre os assuntos da Península Itálica e questões a respeito dos cartagineses, inclusive chegando a fazer viagens pelos territórios conquistados, em expedições militares ao seu lado, o que lhe possibilitou um grande conhecimento geográfico da área. Ainda esteve no sul da Itália, por onde passou Aníbal em sua travessia com os elefantes para acatar Roma na Segunda Guerra Púnica, bem como viajou pelo sul da Gália e partes da Península Ibérica (McGING, 2010, p. 52-66). Foi em meio a esse contexto de guerras e contemplação de Roma que Políbio deu início aos primeiros volumes de sua obra de maior expressão, as Histórias13. Com base em tudo o que havia absorvido daquela sociedade, sentiu-se no dever de documentar o avanço do mundo romano sobre os demais mundos, como atesta em seu primeiro livro: “Quem é tão simplório ou leviano que não desejaria conhecer como, e devido a que gênero de Estado, quase todo o mundo habitado foi submetido, em menos de 53 anos, por um único poderio, o dos romanos, algo nunca dantes ocorrido?” (POLÍBIO, I. 1-5). Ao lançar-se à tarefa de registar o seu tempo, seu desejo era relatar da Segunda Guerra Púnica (220 a.C.) à Guerra da Macedônia (168 a.C.), ou seja, as guerras que haviam debilitado as forças mediterrâneas mutuamente, acarretando a derrota dos gregos para romanos, assim como descrever a constituição político-militar dos vencedores e as guerras e intenções das quais Roma saiu vitoriosa. Porém, seus planos mudam devido às ações romanas e após vivenciar a derrocada de Cartago (146 a.C.), na Terceira Guerra Púnica (149-146 a.C.). Em consequência do convívio com Cipião Emiliano, Políbio pôde ser testemunha ocular e talvez agente da Terceira Guerra Púnica, na destruição final de Cartago, por meio de um cerco. Como ex-hiparca e estudante de táticas bélicas, Políbio possuía conhecimento das táticas de poliorcética, ou seja, de executar cercos militares, assim, possivelmente, sua presença ao lado de Cipião Emiliano em Cartago não foi meramente decorativa. O autor poderia, portanto, ter auxiliado militarmente os romanos no esfacelamento da cidade púnica. No mesmo ano, 146 a.C., voltando à Grécia, também presenciou a extinção da cidade grega 12 Em nossas pesquisas, não encontramos as datas de nascimento e morte de Caio Fânio e Quinto Élio Tuberão. 13 A obra Histórias era ao todo composta por 40 volumes (WALBANK, 1990, p.16; PÉDECH, 2003, p.15; SEBASTIANI, 2017, p.19). Falaremos sobre sua estrutura e conteúdo no próximo tópico. 27 de Corinto, que foi saqueada e arrasada após o fim da Guerra da Acaia (149-146 a.C.) e da Liga Aqueia. Ainda veria a derrocada do território da Numância (133 a.C.), na Hispânia. Nesse contexto, Políbio foi incumbido de pôr em prática o novo estatuto designado à região do Peloponeso pelos romanos. Depois da missão, seu retorno a Roma se dá em 145 ou 144 a.C., onde foi homenageado pelos romanos com estátuas, retratos e baixos-relevos, dos quais temos dois exemplares que resistiram ao tempo e se encontram um no Museu da Civilização Romana, na cidade de Roma, e outro do lado de fora do Parlamento austríaco, em Viena (SILVA, 2010, p. 22). FIGURA 1 - Políbio de Megalópolis em baixo relevo. Museu da Civilização Romana. Fonte: MA’S, J. Statues and Cities: Honorific Portraits and Civic Identity in the Hellenistic World, 2013, p. 281 28 FIGURA 2 – Políbio de Megalópolis esculpido em mármore. Frente do Parlamento austríaco em Viena. Fonte: MA’S, J. Statues and Cities: Honorific Portraits and Civic Identity in the Hellenistic World, 2013, p. 282 Sabe-se que, após esse período, Políbio retornou à Grécia já liberto e atuou como mediador político junto aos romanos. Pédech (2003, p. 04) sugere que ele tenha trabalhado para o proeminente Tibério Semprônio Graco, que havia sido cônsul em 177 a.C. e 163 a.C.. A partir desse momento, dedicou-se a terminar os dez últimos volumes das Histórias, deixando, possivelmente, póstumos um sumário e uma introdução. Depois disso, pouco chegou até nós de sua vida. Sabemos apenas que sua morte se deu em decorrência de uma queda de cavalo, em 120 a.C., dado esse que nos foi transmitido por meio de Pseudo-Luciano, um autor pouco confiável, conforme afirma Frank Walbank (1990, p. 13, nota 63). Em suas palavras, o autor grego descreve suas experiências: Tem sido a dimensão das obras que com tal motivo tiveram lugar, a singularidade de seus episódios e, acima de tudo, a circunstância de ter assistido à maioria dos acontecimentos não apenas como testemunha presencial, senão como um colaborador em algumas ocasiões e participante outras, o que me induziu a escrever sobre essa matéria procedendo, por assim dizer, para um novo começo (POLÍBIO, III. 4). Concluímos que havia chegado a Roma um Políbio jovem, forjado para a sociedade 29 ligada às guerras expansionistas, com experiência em diversos assuntos bélicos, com habilidades em retórica, filosofia, diplomacia e tantos outros atributos de um homem de seu tempo e ascendência. Ele era receptáculo da cultura helenística, mas não cego ao mundo que o cercava e, por isso, sabia das fragilidades desse sistema. Nesses dezessete anos que esteve no convívio romano, soube observar a nova sociedade na qual foi inserido e dela extrair o que considerava a resposta para um povo virtuoso e vitorioso. A partir do que conhecia no universo grego como um conjunto de normas e condutas que formavam o caráter e as identidades desse povo, encontrou nos romanos algo semelhante e identificou uma moral ancestral romana, o Mos Maiorum14. Seria essa moral a responsável pelo esplendor romano. Muito foi questionado sobre a posição de Políbio em relação aos romanos. Alguns autores como Moreno Leoni (2017), Walbank (1990) e Momigliano (1991), em suas obras, apontam que ele nunca havia se conformado com a sua condição de prisioneiro, já que sua posição social tinha sido reduzida drasticamente. Embora tivesse tirado uma sorte maior do que aqueles prisioneiros de guerra que eram destinados a trabalhar em posições penosas, como nas minas ou na agricultura, Políbio de modo algum teria sido submisso à nova sociedade em que habitava. Roma nunca foi sua casa. Contudo, outros autores nos falam de um Políbio mais romanizado, quase um romano de fato. De acordo com Sebastiani (2016, p.24-25), saber exatamente qual era o papel do autor nesse xadrez diplomático e geopolítico se torna uma tarefa complexa em meio à conjuntura que se apresentava e, associado a isso, não há informações suficientes para supor mais do que um vínculo entre Políbio e a aristocracia senatorial romana, devido a tudo o que lhe foi atribuído no período das conquistas. No entanto, nem por isso ele deixou de ser grego. Fica claro que Políbio tinha muito a perder caso entrasse em conflito com seus senhores, por isso, descartamos a imagem de um Políbio revolucionário ou rebelde, porém, ele estava longe do colaboracionismo tácito e passivo, principalmente quando observamos suas ações diante de questões que envolviam a Grécia. A título de exemplo, temos o episódio de quando interpelou os decênviros15 sobre a permanência das estátuas gregas que seriam levadas à Península Itálica. Usando de uma negociação habilidosa, obteve sucesso diante da comissão ao ter seu pedido acolhido, mas nem sempre podemos antever um posicionamento definido no autor, principalmente nos casos que abrem margem para interpretações contrastantes. 14 No capítulo seguinte, trataremos sobre o Mos Maiorum e sua inserção na História de Políbio. 15 Decênviros era o nome dado aos dez membros que compunham uma comissão romana para a tomada de decisões mais urgentes imediatamente ao final de uma guerra (SEBASTIANI, 2016, p. 23). 30 1.3 A tradição manuscrita das Histórias Para nossa análise, utilizaremos como documento os manuscritos das Histórias traduzidos por W. R. Paton, da Universidade de Chicago, revisados por F. Walbank, no ano de 2012, e publicados na coleção The Loeb Classical Library. Nessa edição, a narrativa de Políbio redigida em grego — caso da maioria dos textos escritos pelos autores antigos que chegaram até nós – foi traduzida para o inglês. Assim, apresenta seu texto na língua moderna inglesa ao lado do original em grego, sendo então, um volume bilíngue16. Também utilizaremos a tradução do grego para o português dos cinco primeiros volumes da obra de Políbio, realizada por Sebastiani e publicada em 2016, pela editora Perspectiva. A tradução brasileira da obra de Políbio se encontra disponível sob o título de Histórias. Ambas as edições foram lidas por completo nos dois idiomas que optamos, português e inglês, e checamos os termos em grego em busca de uma interpretação mais ampla do significado do original e do contexto apresentado. Desse modo, transliterações do alfabeto grego para o latino foram inseridas nesta dissertação e estão presentes em itálico, sempre visando a não tradução de conceitos gregos, para que se possa preservar a semântica das palavras. Segundo a historiadora Cláudia Beltrão da Rosa (2007), a aristocracia conhecia e fez uso da língua e da cultura gregas durante toda história de Roma: “o bilinguismo da elite romana é uma característica cultural importante do Mediterrâneo Clássico” (BELTRÃO, 2007, p. 2). Grego e latim se entrelaçavam nos círculos de poder, onde a primeira era a língua da cultura e a segunda, da política e administração. Em vista disso, ao observar o tipo de grego utilizado por Políbio em sua obra, o koiné (ἡ κοινὴ διάλεκτος)17, passamos a ter um conhecimento maior sobre qual era seu o estilo de escrita e a intenção por trás do vocabulário que empregava. Contudo, a autora nos alerta que a língua grega não dispunha de um vocabulário específico, com equivalência imediata no latim. Por essa razão, adaptações e aproximações eram inevitáveis. Nós nos ativemos à compreensão de Políbio era um estrangeiro falando de 16 Também temos a tradução bilíngue para o francês realiazda por Paul Pédech a partir da coleção de manuscritos e fragmentos da Université de France-Paris, publicada pela Les Belles Lettres, com uma nova edição em 2003. 17 koiné (ἡ κοινὴ διάλεκτος – o dialeto comum) foi uma forma da língua grega de grande alcance no período de 300 a.C. a 330 a.C. O koiné possuía características do dialeto ático da região de Atenas e elementos do dialeto jônico, por isso, é chamado pelos pesquisadores da língua grega de “koiné helenístico”. 31 Roma, e não propriamente de um romano. Concordamos com a autora que acredita que a percepção de um estrangeiro pode enriquecer a coleta de detalhes que passariam despercebidos àqueles tão habituados aos seus e inseridos cotidianamente no contexto local (BELTRÃO, 2015, p. 10). Antes de seu translado para Roma, Políbio teria escrito uma biografia encomiástica de Filopêmen, composta de três volumes (X, 21,8), e um tratado sobre tática militar, em que apontava os conhecimentos matemáticos e estratégicos fundamentais para um exímio comandante (IX, 20, 4). Contudo, ambos os textos se perderam no tempo. Depois da escrita das Histórias, ele teria produzido uma obra intitulada Sobre a habitabilidade da região equatorial, que, se realmente existiu, não se sabe se foi elaborada na velhice ou na juventude e, caso tenha sido composta ao fim de sua vida, não seria possível afirmar se tinha alguma ligação com as Histórias, do ponto de vista geográfico. A mesma dúvida paira sobre uma possível monografia sobre a Guerra romana contra a Numância. Sobre ela, apenas Cícero fez menção. Somente as Histórias chegaram até nós, mas até mesmo ela sofreu a ação dos séculos. Dos quarenta volumes pertencentes à obra, apenas os cinco primeiros estão praticamente completos, contendo somente pequenas lacunas. Os remanescentes se encontram fragmentados ou completamente desaparecidos, como é o caso dos livros XVII, XIX, XXXVII e XL (McGING, 2010, p. 210). O que sabemos desses textos veio até nós por meio de citações de autores como de Cornélio Nepos (um autor que escreveu uma breve biografia sobre Amílcar Barca e seu filho, Aníbal, nos anos finais do século I a.C.), Diodoro Sículo (90- 93 a.C.), Tito Lívio (59 a. C-17 d.C.), Estrabão (64-63 a.C.-24 d.C.), Plutarco (. 46-120 d.C.), Apiano (950165 d.C.), Díon Cássio (163-235 d.C.) e Ateneu (II-III d.C.), que usufruíram das Histórias como documento. É através desses autores que compreendemos um pouco mais do conteúdo perdido da obra, preenchendo, dessa forma, alguma das lacunas que temos na história, ainda que não se tenha acesso ao texto integral e que não se possa analisar de modo mais consistente e preciso. As centenas de manuscritos de datação mais antiga e preservados estavam na biblioteca do palácio imperial, em Constantinopla. Sua recompilação e reagrupamento só se deu no século X, por iniciativa do Imperador bizantino Constantino VII Porfirogênito (905 d.C.). Esse processo deu origem a três famílias manuscritos: I. A primeira família conta com os cinco primeiros livros das Histórias conservados, 32 apresentando apenas alguns espaços por conta da ação do tempo. Foram unidos sob o título de Codex Vaticanus gr. 124 e deram origem a mais duas tradições de manuscritos, uma do XIV, com erros e omissões na recopilação, e outra, um século mais tarde, no XV, melhor revisada. II. A segunda linhagem de manuscritos é intitula Excerpta antiqua e é, na verdade, um conjunto de fragmentos dos livros VI ao XVIII, exceto o livro XVII, que foi perdido. III. A última linhagem contém compilações de uma coleção de fragmentos de todos os volumes das Histórias (com exceção dos volumes desaparecidos) e outras cinquenta e três edições de diversos historiadores gregos, formando uma chrestomátheia18, unidas sob o nome de Excertos de Constantino (PÉDECH, 2003, p. 51-58). Cada autor possui prefácio e as passagens de Políbio estão ordenadas por temas, contendo tópicos. Essas diversas coleções deram origem à obra de Políbio a que temos acesso hoje, sobretudo, o conjunto de manuscritos pertencente à primeira família, no qual está maior parte remanescente da obra. 1.4 Estrutura e conteúdo dos livros das Histórias O objetivo de Políbio era narrar os 53 anos que Roma levou para conquistar o Mediterrâneo e se tornar uma grande força (da Segunda Guerra Púnica [220 a.C.] à guerra da Macedônia em 168 a.C.). O autor declara que esse foi um momento único, no qual uma série eventos convergiram para o mesmo destino, a submissão perante o poderio romano. Antes, os acontecimentos do mundo tinham sido, por assim dizer, dispersos, pois não eram interligados por nenhuma unidade de iniciativa, de resultados ou de localização. Desde essa época19, porém, a História passou a ser um corpo único: os assuntos da Itália e da Líbia interligaram-se com os da Grécia e da Ásia, todos convergindo para um único fim. E essa é a razão para eu começar a sua história sistemática20 a partir dessa data (POLÍBIO, I. 3.3 – 5). Para tanto, o autor grego retrocedeu seu relato a uma época anterior à Primeira Guerra Púnica (264 a.C. - 241 a.C.), seguindo com sua narração até 146 a.C., ano da destruição de Cartago, a fim de que seu leitor compreendesse as consequências das guerras (POLÍBIO, I. 1; WALBANK, 1990, p. 3-4). Considerada modelo de escrita pragmática pelo autor, a obra foi 18 Chrestomátheia quer dizer, na tradução literal “aprendizado de coisas úteis” ou “estudo de coisas úteis”. 19 Nessa citação, a época referida pelo autor é a da 140ª Olimpíada. 20 A palavra que Políbio usa esse trecho é πραγμάτων (pragmatéias), declinada no genitivo singular. Nessa passagem, Paton (indique o ano e a página da tradução) traduz o termo por “história sistemática” e Sebastiani (indique o ano e a página da tradução) por “obra”. Utilizamos a tradução que Paton dá ao termo, por interpretarmos que essa é a mais próxima do sentido original. 33 organizada por temas, com finalidade didática. Desse modo, os dois livros iniciais foram feitos por Políbio com o intuito de informar os motivos que o levaram a redigir a obra Histórias. Ali, encontra-se o início da Primeira Guerra Púnica na 129ª Olimpíada21. Baseado em sua vivência, o autor descreve a política de cada sociedade poderosa da época, incluindo a Grécia Antiga e o Egito. Relata, também, a Primeira Guerra Púnica com suas causas e consequências, que culminariam em um embate seguinte. O relato da Segunda Guerra Púnica, também chamada por Políbio de Guerra Anibálica, é encontrado no Livro III, que julgamos de grande importância para nossa pesquisa, no qual se encontra a história de Aníbal Barca, com detalhes de sua origem, personalidade e sagacidade no campo de batalha, assim como estratégias e planejamentos meticulosos do comandante cartaginês ante as adversidades encontradas. O livro também descreve a memorável travessia de Aníbal nos Alpes, além de suas vitórias sobre os romanos durante os três primeiros anos de conflito. A narração se encerra com a batalha de Canas (216 a.C.), a maior derrota sofrida pelos romanos em seu território. Uma vez que, tendo relatado as ações na Sicília, na África, e as subsequentes, dando continuidade à introdução, chegamos ao início da guerra dos aliados e da segunda entre romanos e cartagineses, por muitos chamada de Anibálica, e que, conforme o projeto original, afirmamos que nessa época colocaríamos o início de nossa obra (POLÍBIO, II. 37. 2-3). Nos livros IV e V, Políbio esboça comentários sobre o que ocorria simultaneamente na Grécia, no caso, a Terceira Guerra Macedônica, em 167 a.C., e revê seus planos de finalizar a obra, estendendo-a até 146 a.C., por conta da destruição de Corinto e Cartago, ocorrida durante a produção dessa parte em específico. É no livro VI que Políbio descreve a forma de governo romana, comparando a constituição mista de Roma com a de outras cidades-estados, dentre elas, Cartago (POLÍBIO, VI. 43.1-56.15). Após verificar as semelhanças e diferenças, a balança pendeu para a constituição mista romana, que estava no auge de sua maturação. É sobre esse volume que muitos autores, de diferentes arcos cronológicos, se debruçaram e produziram, em seus universos, várias interpretações sobre o modelo de governo vigente de sua época, em busca de desvendá-lo. Dentre eles, está Maquiavel, que buscou interpretar o ciclo das constituições ou anaciclose, – no qual monarquia e tirania; aristocracia e oligarquia; 21 Políbio utilizava o sistema cronológico adotado por Timeu de Tauromênio (XII, 11.1). Essa contagem do tempo era feita de 4 em 4 anos, conforme a ocorrência das Olimpíadas. Esse tipo de cronologia era um meio unificado em toda comunidade helênica e, também, na sociedade romana. A 129ª Olimpíada correspondia aos anos de 264 a 260 a.C. 34 democracia e oclocracia; se revezam entre modelos de governos que se superavam – a fim de criar sua teoria sobre as formas constitucionais. Para Políbio, essas seis formas de governar um povo se iniciavam com boas intenções, porém, com o tempo, seus governantes acabavam por se corromper e os sistemas de governo se degeneravam. Nessa crença do autor, podemos observar a percepção de Políbio sobre essa temática, sendo pensada ciclicamente, de maneira que um fato sempre voltava a acontecer. A história era, portanto, um eterno retorno do mesmo, como era próprio aos autores de sua época (MOMIGLIANO, 1993, p. 166). Em busca de elucidar a questão, o autor escreveu que a monarquia seria uma boa constituição de governo, mas, como “ferrugem no ferro e carunchos na madeira”, a tendência era que o rei se esquecesse de zelar pelo povo devido ao estilo de vida dos monarcas e passasse a pensar demais em si mesmo (POLÍBIO, VI. 50.1 – 6). Desse modo, o rei se tornava um tirano, instaurando, assim, um novo modelo de governo, a tirania, dessa vez, ruim. Os romanos possuíam grande receio em relação à monarquia, pois, em seu passado, já haviam experimentado essa constituição de governo e vivenciado como a degradação dela podia lhes acarretar problemas. Tal acontecimento se deu com Tarquínio, o soberbo — soberbo, aliás, é um termo latino que, em grego, corresponderia a tirano –, que foi deposto pelos patrícios em 509 a.C., devido ao seu desrespeito à função que exercia e a suas atitudes imorais (SANT’ANNA, 2015, p. 23). Em seguida, na narrativa de Políbio e, portanto, também como ocorreu em Roma, narra-se a instauração da aristocracia. Essa forma de se governar era muito defendida pelo autor, pois ele pertencia à aristocracia grega e era nesse sistema em que vivia. Entretanto, a aristocracia também tinha suas fragilidades e podia culminar em uma oligarquia, na qual só algumas famílias desfrutariam dos benefícios da comunidade. Para que isso não ocorresse, era necessário passar para organização em que a participação de todos os considerados cidadãos fosse garantida, por meio de um órgão como o senado, que deveria ouvir a todos nas assembleias e nos plebiscitos. Essa era a democracia. Contudo, a democracia também possuía seu revés, a chamada “oclocracia”, do grego χλοκρατία. A palavra é constituída de ὄχλος, que significa “multidão, massa”, e κρατία, que significa governo. Na visão de Políbio, essa seria uma versão patológica da democracia. Essa forma de governo se concretizaria quando a população se deixasse levar pela retórica de líderes demagogos e passasse a agir de forma irracional, sendo nociva a ela mesma, como uma multidão que perde o senso crítico. Trata-se da manipulação das massas em benefício de si próprio (POLÍBIO, VI. 4. 8-57; BOBBIO, 35 2001, p. 65-76). Isto posto, podemos compreender o motivo de Políbio preferir a constituição mista de Roma, pois, para ele, os cônsules, em número de dois, se autorregulavam. Além disso, a presença do senado assegurava um equilíbrio. Desse modo, segundo Políbio, o poderio de Roma era devido à centralização das decisões tomadas pelo senado, que caminhava de mãos dadas com o consenso comum entre os romanos, por conta das assembleias e plebiscitos, que contavam com a participação popular censitária. Essas decisões estariam relacionadas à vitória nas guerras travadas, à obtenção de territórios e à obtenção de riquezas. A forma de governo mista não era garantia de que todas as vulnerabilidades seriam sanadas, mas ela se autorregulava e, por isso, se manteria estável por mais tempo. O filósofo e historiador Noberto Bobbio escreveu em sua obra A teoria das formas de governo que: Parece não haver dúvida de que desde o princípio Políbio tem perfeita consciência de que até mesmo o Estado romano, não obstante sua excelência, está sujeito à "lei natural" do nascimento, crescimento e morte; que, portanto, o que constitui o título de mérito do governo misto é sua maior estabilidade – não sua perenidade (BOOBIO, 2001, p. 72). A baixo, foi inserido um trecho em que temos as palavras de Políbio, que mostram qual era sua intenção ao colocar a temática das constituições em sua obra. No fragmento, é possível analisar os julgamentos morais do autor que se fazem presentes ao dissertar sobre os modelos de governo. Ele compara o caráter, as escolhas e as atitudes quando se tem adversidades ou sucessos de homens com as formas de constituição. Desse modo, as constituições são personificadas por Políbio, e são comparadas entre si com base em virtudes e defeitos humanos. Não encontrei ocasião mais apropriada que a presente para direcionar minha atenção para a constituição e testar a veracidade do que estou prestes a afirmar sobre esse assunto. Pois, assim como aqueles que se pronunciam em privado sobre o caráter de homens bons ou maus, quando se dispõem realmente a testar sua opinião não escolhem para sua investigação os períodos de tranquilidade e indolência da vida daqueles homens, mas as épocas em que foram afligidos pela adversidade ou agraciados com o sucesso, estimando que o único teste de um homem perfeito é o poder de suportar com espírito altivo e bravura os reversos mais completos da fortuna, da mesma forma deveriam ser os nossos julgamentos dos Estados. Portanto, como não pude visualizar nenhuma mudança maior ou mais violenta nas fortunas dos romanos do que esta que aconteceu em nosso tempo, reservei meu comentário da constituição para esse momento. [...]. Ora, a causa principal do sucesso ou do reverso em todos os assuntos é a forma da constituição. Ela é como uma fonte de onde não apenas se originam todas as ideias e as iniciativas dos atos, mas de onde provém, igualmente, sua realização (POLÍBIO, VI, 2.1 – 10). Não foi só a constituição mista romana que Políbio elogiou, mas também ressaltou as 36 qualidades e virtudes dos governantes romanos, de ímpeto e rigidez, associados à perspicácia e à moderação. Características essas presentes não só em seus governantes, mas também no exército de legiões, cuja disciplina e bravura foram observadas durante a análise de Políbio por toda a história da República Romana. O Livro VI também descreve leis, funerais e ritos religiosos (POLÍBIO, VI, 11.1-11; WALBANK, 1990, p. 57-130). No sétimo livro de suas Histórias, Políbio define aquilo que entendia ser trabalho do historiador de sua época. Ele faz uma revisão das informações geográficas relevantes, fala sobre experiências políticas e sobre a importância do papel dos autores encarregados de escrever a história daquele período. No Livro I, Políbio já havia dissertado sobre a necessidade de que houvesse imparcialidade quando fosse necessário descrever ou narrar um fato em que houvesse a presença de um amigo ou inimigo. A respeito disso, uma vez mais, no Livro VII, Políbio ressalta a importância da imparcialidade: Quando, porém, alguém assume a profissão de história, é preciso esquecer tudo isso, muitas vezes aprovando e adornando com os maiores elogios os inimigos, quando seus atos o demandarem, e outras tantas reprovando e censurando acintosamente os seus, quando os erros em seus empreendimentos demandarem. Assim como um vivente que privado da vista, é completamente inútil, também a história privada da verdade é narrativa completamente imprestável. Por isso não se deve hesitar em acusar os amigos ou em elogiar os inimigos, nem é preciso precaver-se contra censurar e elogiar os inimigos, pois não é possível que os agentes sejam sempre bem-sucedidos, nem plausível que errem continuamente. Nos relatos históricos, as declarações e opiniões cabíveis devem ser adequadas aos atos, a despeito dos agentes (POLÍBIO, I. 14. 5-8). Ele voltou a descrever as Guerras Púnicas no trigésimo primeiro livro, que recebe uma atenção especial em nossos estudos, pois são, justamente, os manuscritos que contêm as reflexões do autor acerca da formação de conduta de guerra e pessoal dos generais envolvidos nas guerras, principalmente sobre Cipião Emiliano. Do mesmo modo, o autor também descreveu táticas, estratégias, feitos importantes e considerações do que ele próprio vivenciou. É nesse volume em que analisamos com maior atenção os escritos de Políbio e dele retiramos os fragmentos que utilizamos para exemplificar a narrativa do autor sobre o general romano. Os comentários e descrições sobre o cartaginês Aníbal se encontram espalhados pela obra nos diversos livros, mas são encontrados em abundância nos Livros III, IX e XV. Isso se deve ao fato de que são esses volumes que trazem a maioria dos relatos sobre a Segunda Guerra Púnica, conflito no qual o general cartaginês atuou. Os demais livros, do VIII a XXXIV, são, igualmente, de grande valia para a pesquisa, pois se dedicam à conquista do Mediterrâneo pelo exército romano, e a sua leitura serve para captar os elementos que formam 37 o Mos Maiorum, uma moral ancestral intrínseca aos romanos e que foi captada por Políbio e que será explanada por nós no próximo capítulo. Vale destacar que os livros XII, XVI e XXXIV são digressões que abarcam temas pincelados em todos os demais. As digressões, como foram chamadas pelo autor, são epifanias, momentos de reflexões e comentários do que esse pensava sobre determinados assuntos. Apesar das digressões não serem tão recorrentes em sua narrativa – pois Políbio (VI, 1.1-5.3) prezava pela objetividade em sua escrita –, elas eram necessárias, na opinião do autor, para garantir uma maior interação entre a obra e o leitor. Sabe-se que na historiografia antiga, principalmente com os escritores helenísticos, esse recurso foi muito utilizado para dar momentos de leveza aos textos e momentos de distrações durante as leituras (MARQUES, 2007, p. 49; WALBANK, 1990, p. 45-55). Para esta dissertação, as digressões são um ponto importante da obra a ser analisado, já que são nessas ocasiões que conseguimos captar com maior facilidade juízos de valor e as intenções do autor. Nas digressões pertencentes ao Livro XII, encontramos um importante conteúdo metodológico sobre a história feita pelos escritores helenísticos anteriores a ele e os pré- requisitos que julgava necessários a um historiador de sua época: experiência político-militar, observação de cenários de acontecimentos e leituras diversas. Nesse livro, críticas são direcionadas a Timeu e a Calístenes, e são encontradas informações sobre a África, a Sardenha, a Sicília e a Córsega. Ele talvez fosse uma introdução à campanha de Cipião, o Africano, em 204-202 a.C. No livro XXXIV, Políbio retorna ao recurso da digressão e descreve a geografia dos lugares por onde passou em suas viagens com Cipião Emiliano. Pelos seus relatos, é possível saber que o autor grego viajou pela costa norte da África, em uma pequena frota de embarcações de porte reduzido, patrocinada por Cipião Emiliano. Nos pequenos navios, eles atravessaram o local que denominamos hoje de Estreito de Gibraltar e chegaram até o atual Marrocos, (WALBANK, 1990, p. 11). Temos a narração da Terceira Guerra Púnica e suas consequências nos Livros do número XXXV ao XXXIX, nos quais Políbio se faz presente como personagem da obra, e não apenas como narrador observador, como na primeira parte (McGING, 2010, p.162). Finalmente, o livro XL, considerado póstumo, corresponde a uma espécie de sumário dos volumes feitos pelo autor. Com o intuito de melhor sistematizar a estrutura das Histórias para visualização, apresentamos um quadro (Quadro 1) feita por Walbank e revisada por José Guilherme Rodrigues da Silva, que contém os livros seguidos da datação em Olimpíada e em anos, possíveis de ser aferidos segundo as indicações deixadas por Políbio. Em seu quadro, 38 Walbank coloca em destaque os livros que Políbio trata das Guerras Púnicas, que se encontram enumerados conforme a ordem dos conflitos. TABELA 1: Estrutura dos Livros das Histórias. (1) Primeira Guerra Púnica; (2) Segunda Guerra Púnica; (3) Terceira Guerra Púnica. Modificado de Walbank (1990, p.129) por Silva (2010, p.34). 1.5 Notáveis Histórias e a retórica de Políbio O discurso é intrínseco à longa história do povo grego. A arte do bem falar adentrou os tempos de Homero, com a eloquência dos épicos e chegou até os dias atuais. Gradualmente, a tradição oral foi tomando forma escrita e, assim, temos a ciência retórica se formando e se 39 fortalecendo (FONSECA, 1990, p. 67). Políbio, como o grego que era, pôde aprender a arte da retórica, da qual se valia muito bem. Nesse tópico, analisaremos como a retórica foi utilizada pelo autor em suas Histórias, além disso, apresentaremos a relevância que sua obra teve e ainda têm nos dias atuais. A importância de Histórias se deve ao fato de seu autor ter buscado fazer uma história universal, ou seja, documentar a história de Roma e seus arredores, nesse contexto da República Romana. Porém, é necessário ter em mente qual era a perspectiva de mundo de Políbio. Walbank (1990, p.68-69) atenta para o fato de que Políbio, sendo natural da Acaia, posicionou sua narrativa a partir da dimensão geográfica do Peloponeso. Devemos considerar ainda que, para Políbio, as cidades da Península Ibérica e do sul da Gália, bem como, as cidades de Gades (atual Cades), Nova Cartago (hoje, Cartagena), Ampúrias (Empúries) e Massília (Marselha) não foram consideradas como parte do mundo habitado (SILVA, 2010, p .49). Para resumi-la aqui, a obra apresenta a história política greco-romana, narra as Guerras Púnicas, desde seu início ate a destruição de Cartago, descreve o cerco a Corinto e a derrota de Perseu, marcando o fim do Império Macedônico. Nela, executa-se também um mapeamento geográfico da região, conforme as viagens feitas ao lado de Cipião Emiliano, nas quais Políbio presenciou os eventos citados. Políbio foi um dos primeiros historiadores a apresentar a história como uma sequência de causas e efeitos, com base em uma análise cuidadosa e crítica da tradição (ERRINGTON, 1967, p. 99). Ele era herdeiro de um legado da escrita da história no qual passado e presente eram indissociáveis. Nessa perspectiva, somente com o entendimento do passado era possível compreender o presente, pois eram nas raízes do tempo que se guardavam as ações políticas e lições morais em voga no cotidiano (MOMIGLIANO, 1991, p. 71-72). De acordo com o autor, “nenhum outro corretivo de conduta é mais eficaz para os homens que o conhecimento do passado” e, continua, “a educação e o exercício mais sadios para uma vida política ativa estão no estudo da História” (POLÍBIO, I,1.1-2). A crença de Políbio era em um método da escrita da história estruturado também em lições políticas e morais, de modo que tivesse utilização na vida prática. Para Walbank (1990, p. 33), o autor, assim como os escritores romanos da nobilitas, Fábio Pictor e Catão, tinham o fazer histórico como um complemento ao cursus honorum, à carreira política. Seria essa uma maneira de deixar o conhecimento adquirido com anos de experiência, tanto na guerra como na vida política, para que outros pudessem fazer uso, como um legado para o aprendizado das 40 futuras gerações. Desse modo, como o Políbio definiu em IX, 1, 4, o seu modelo de escrita, designado por ele como pragmático, tinha por intuito o estudo do passado para o fim prático de demonstrar as ações do povo, das cidades e de seus governantes, como deixa claro nessa passagem da obra: Resolvi escrever um História do gênero pragmático, primeiro porque há sempre uma novidade digna de tratamento novo – não seria possível aos antigos narrar eventos para posteriores à sua própria época – e, em segundo lugar por ser considerável a utilidade prática de tal gênero de História, tanto no passado quanto, e principalmente, no presente, em uma época em que pessoas desejosas de aprender são capazes, digamos assim, de submeter a uma análise metódica quaisquer eventualidades passíveis de exame. Sendo então o meu objetivo não tanto entreter os leitores quanto beneficiar os espíritos afeitos à reflexão [...], que me dediquei a escrever este gênero de Histórias (POLÍBIO, I. 9. 2). A palavra pragmática veio da ciência retórica e fazia oposição às narrativas históricas tidas como genealogias fabulosas (PÉDECH, 1964, 32). Políbio criticava historiadores anteriores a ele ou contemporâneos a sua vivência que, em suas obras, se valiam de fábulas, milagres aparições divinas, quando iam descrever uma batalha ou qualquer outro assunto. Para ele, recorrer a tais artifícios demostrava incompetência para descrever conflitos e desconhecimento das questões militares, de tal modo que evitava o uso de elementos sobrenaturais para justificar o fracasso ou a vitória de seus personagens. Desse modo, Éforo, Calistenes, Timeu e Filarco, autores dos séculos IV e III a.C., são acusados por Políbio de negligenciar os discursos feitos e as causas dos acontecimentos, substituindo-os por falsos argumentos e uma falsa retórica, claramente inventados (PEDÉCH, 2003, p. 19-22; WALBANK, 1990, p. 43-45). Para isso, estratégias da retórica (Τέχνη ῥητορική) foram empregadas pelo autor. Thornton (2013, p. 21-42), distingue três tipos de discursos (λόγος) presentes nas Histórias, pertencentes ao manual de retórica a Alexandre, utilizado no mundo grego desde Aristóteles: I O primeiro deles é o discurso deliberativo, que trazia técnicas de oratória e persuasão do leitor, para fazê-lo crer no seu ponto de vista. Para isso, recorre-se ao elogio da ação do personagem presente. Esse modelo de discurso possuía estreita relação com o futuro, com o que estava por vir a partir do que era observado no presente. Era usado por Políbio ao tratar de resoluções de problemas, tal como podemos 41 analisar na citação a seguir. Nessa passagem, observamos a perspicácia do general cartaginês, Amílcar, ao ponderar sobre o revés que havia levado na Primeira Guerra Púnica. O general, após ponderar sobre o presente e entender que o futuro do conflito não lhe traria benefícios e que colocaria em risco os que estavam sob sua guarda, encarregou-se de enviar embaixadores aos romanos para por fim a situação. Mas quando a situação se inverteu e nada de razoável restava para salvar os comandados, ele cedeu de maneira muito inteligente e pragmática, e despachou embaixadores para negociar trégua e armistício. Deve-se como próprio de um mesmo comandante a capacidade de reconhecer quando venceu e, de modo semelhante, quando fracassou (POLÍBIO, I. 62. 5-6). II Há, conjuntamente na obra, a presença da técnica de Paraklesis (αράκλησις) quando são feitas exortações sobre as batalhas, atos dos generais e soldados. Esse tipo de discurso tinha por finalidade registrar o que havia se sucedido nos conflitos associado a opinião do autor durante a narração do evento. Um exemplo de Paraklesis pode ser observado no seguinte excerto: “Se pouco antes os cartagineses haviam fracassado no mar, agora também fracassaram em terra, devido não à covardia dos soldados, mas à irresolução dos comandantes (POLÍBIO, I. 31-1). III E, finalmente, é possível identificar o discurso epidíctico, vinculado ao presente, mas atento ao passado e o futuro, que tinha como propósito o elogio ou a advertência à virtudes ou vícios, o que revela um gênero educativo, no qual há intenção de persuadir o leitor a ter uma opinião semelhante à do autor sobre o que está sendo colocado. Como exemplo desse tipo de discurso, temos essa passagem de Políbio, do primeiro volume das Histórias: Quem quer que preste a devida atenção a essa situação encontra muitas contribuições para o aprimoramento da vida humana. A mais manifesta evidenciou- se então a todos por meio dos fracassos de Marco, ou seja, a desconsideração do acaso, sobretudo na bonança. Aquele que pouco antes não tinha piedade nem desculpava os que caíam a seus pés, foi levado a suplicar-lhes pela própria salvação. 42 Aquilo que parece muito bem dito por Eurípides outrora, que "uma unica decisão sábia vence muitos braços", foi então confirmado pelos próprios fatos (POLÍBIO, 35. 1-5). Nesse fragmento do texto, Políbio registra o fracasso de Marco pela plasticidade que abateu sobre si após seu sucesso como general. Ao se sentir tranquilo pela prosperidade do momento presente, foi impiedoso com os inimigos e se esqueceu de que podia sofrer infortúnios e uma reviravolta no futuro. Com esse exemplo, o autor deixa um ensinamento em forma de advertência a partir da vida de um general romano. Os três gêneros presentes na retórica de Políbio se fundiam o tempo todo e buscavam convencer por meio de um vocabulário que levasse ao leitor a se aproximar e se identificar com o que era lido. Dar lições por meio dos erros alheios foi uma das intenções do autor, que declarava que a diferença entre tolos e sábios era que os tolos eram educados por seus próprios infortúnios e os sábios aprendiam com as falhas dos outros. Como Soares (2011 p. 16-17) observou, a importância dos discursos na historiografia é amplamente reconhecida, sendo que os manuais de retórica têm início nos tempos épicos e perduraram ao longo dos séculos. Eles seriam “um precioso instrumento de representação do passado” (SOARES, 2011, p. 16-17). Assim, em Políbio, os discursos destacados refletem o período em que as Histórias foram escritas. Em sua redação, é possível observar a tradição da educação retórica destinada aos descendentes de grupos gregos abastados. O autor era um deles e foi ensinado a mediar e corrigir conflitos políticos por meio do poder da fala. No mundo antigo, sobretudo na era helenística, a atividade política era inconcebível sem a disciplina da retórica. (THORNTON, 2001, p. 30; PÉDECH, 1964, p. 216-228). Deve-se ressaltar ainda que o escritor se preocupou em estabelecer uma metodologia para escrever os acontecimentos históricos presentes em sua obra, dos quais não havia sido testemunha ou que eram anteriores à sua própria vivência. De tal modo, buscou unir historiografia e oratória nas Histórias e atribuía maior valor aos relatos diretos, presenciais e visuais das documentações do que a qualquer outra espécie de relato. Outro método utilizado era o de comparar os documentos de modo que sua análise chegasse o mais próximo do que julgava ser a “verdade” possível. Segundo Sebastiani (2012), essa busca perpétua pela verdade histórica, pelo conhecimento enciclopédico e sua confiança na racionalidade humana são características que o tornam “o mais expressivo historiador magister vitae22 da Antiguidade” 22 A expressão magister vitae foi empregada por Sebastiani para caracterizar Políbio como pertencente ao método de escrita histórica conceituado como historia magistral vitae. O historiador alemão Reinhart Koselleck 43 (SEBASTIANI, 2012, p. 63). 1.6 Políbio como mestre das virtudes Como um historiador de seu tempo, Políbio faz parte do grupo de escritores gregos que buscavam em sua escrita deixar exemplos a serem adotados ou ações que deviam ser evitadas. Esse método da narrativa histórica feito com esse propósito foi designado por Cícero como historia magistra vitae. Ao observar os modelos helenísticos de cunhagem histórica, Cícero relata que a história guardava a memória dos erros e acertos do passado, por isso, a conceituou como testemunha dos tempos e mestra da vida, já que ela nos ensina por meio dos seus exemplos (KOSELLECK, 1979, p.43-44). Para Joly (2007, p. 08), essa forma de uso da história esteve presente nos escritos dos autores da Antiguidade e perdurou até o século XVIII, quando foi inaugurado na Europa um novo método de análise histórica, a crítica documental. Nas Histórias, fica claro desde suas primeiras linhas a intenção de Políbio quanto à utilização da obra para aprender lições do passado que deveriam ser usufruídas no futuro. Para isso, esse autor magistra vitae faz uso do discurso epidíctico, como mencionamos no tópico sobre os tipos de discursos presentes na obra de Políbio. Desse modo, quando escreveu “penso que sua história não só merece ser conhecida e recordada, como também é absolutamente necessária, pois com ela se aprende” (POLÍBIO, I. 14.2)., o autor já demonstrava fazer parte dessa tradição historiográfica, na qual o passado é quem ensina por meio de representações e personificações que devem ser seguidas para se ter um destino afortunado. Ao compreendermos a disposição de Políbio em deixar exemplos de ações vitoriosas e infortúnios em meio a sua narração dos eventos do Mediterrâneo, podemos analisar o que o autor julgava que devia ser conservado no presente para ser usado como referências no futuro e o que pressupõe serem comportamentos errôneos. Por essa característica, Pédech (2003, p. 216-228) e Walbank (2002, p. 178) o denominaram um historiador moral-didático, já que os exemplos presentes na obra estão envoltos de ações moralizantes com o intuito de trazer maior identificação por quem a lesse, em uma perspectiva psicológica. Desse modo, para Walbank, Políbio via a história como um modo de aprender lições, mas, dedicou um capítulo de seu livro “Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos” para analisar essa conceituação histórica. Segundo Joly (2007, p. 08) e Bloch (2001, p. 85-87), essa forma de uso da história esteve presente nos escritos dos historiadores da Antiguidade e perdurou até o século XVIII, quando foi inaugurado na Europa um novo método de análise histórica, a crítica documental. 44 para esse autor, esse não era o principal intuito de Políbio ao escrever sua obra. A moral estaria ali para fins práticos de gerar empatia nos eleitores. Na mesma linha segue Pédech que, apesar de falar sobre didatismo moral de Políbio quando descreve o método retórico utilizado nas Histórias, não se aprofundou na questão. A obra de McGing (2010) sobre as Histórias de Políbio trabalhou a fundo a guerra entre cartagineses e romanos, porém não se ateve ao prisma moralizante da obra. No ano de 2013, Thornton, em “Oratory in Polybius’ Histories”, escreve sobre a intenção de Políbio querer deixar um legado de lições, mas, diferentemente de Walbank e Pédech, para esse autor, os ensinamentos eram políticos, como em um manual para um estadista. Thornton (2013) não menciona a presença de uma moral nessas lições. Discordamos dessa interpretação de Thornton, pois acreditamos que não se pode separar o entendimento político do entendimento moral em uma sociedade antiga, pois esses dois elementos se fundiam. A moral estava presente na elaboração de leis, na escolha dos novos cônsules, nos generais das legiões, no cursus honorum — do qual falaremos no próximo tópico – e em diversas ordens sociais. Dessa maneira, o político e a moral estariam atrelados na sociedade romana e devem ser analisados conjuntamente. Na mesma perspectiva de trabalho de Thornton, temos Moreno Leoni (2017), que embora tenha apresentado uma didática do poder nos escritos de Políbio, admite que a dimensão de política se sobrepõe à moral na narração desse autor. Eckstein (1995), por sua vez, é um dos poucos historiadores que se contrapõem a ideia da moral para fins práticos e que a