UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências – Campus de Bauru Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência Thiago Pereira dos Santos CONCEPÇÕES DE CIÊNCIA NAS OBRAS DE MONTEIRO LOBATO: MAPEAMENTO E ANÁLISE DE TERMOS CIENTÍFICOS NO LIVRO SERÕES DE DONA BENTA Bauru 2011 Thiago Pereira dos Santos CONCEPÇÕES DE CIÊNCIA NAS OBRAS DE MONTEIRO LOBATO: MAPEAMENTO E ANÁLISE DE TERMOS CIENTÍFICOS NO LIVRO SERÕES DE DONA BENTA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, da Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Bauru, como um dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação para a Ciência. Orientador: Prof. Dr. Aguinaldo Robinson de Souza Bauru 2011 Pereira dos Santos, Thiago. Concepções de ciência nas obras de Monteiro Lobato: mapeamento e análise de termos científicos no livro Serões de Dona Benta / Thiago Pereira dos Santos, 2011 126 f. Orientador: Aguinaldo Robinson de Souza Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências, Bauru, 2011 1. Ciência e literatura. 2. Física e literatura. 3. Monteiro Lobato. 4. Ensino de ciências. 5. Termos científicos. 6. Concepções de ciência. 7. Serões de Dona Benta. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências. II. Título. BANCA EXAMINADORA Agradeço a todos que contribuíram direita ou indiretamente para que a realização desse trabalho se concretizasse. Aos meus pais Elsio (in memorian) e Celsina que nunca mediram esforços para que eu seguisse estudando, sempre apoiando, acreditando e incentivando minha caminhada, e a minha mãe que mesmo sozinha, nunca hesitou. Também agradeço todos da minha família que se importaram e sempre me incentivaram. À minha querida esposa Daniele que sempre me esperou e sempre me apoiou nos estudos, se importando comigo e me dando seu carinho e amor. Em especial, gostaria de agradecer ao meu camarada e amigo João Ricardo, com quem muito troquei ideias e informações, e que não mediu esforços para me ajudar na finalização desse trabalho. Também agradeço ao meu primo e irmão Filipe com quem em muitas horas conversei sobre os rumos do trabalho. À universidade e ao programa de pós-graduação, na pessoa do meu orientador, professor Aguinaldo, pela paciência e confiança em meu trabalho, pelo incentivo e presteza sempre que necessário. Agradeço as considerações feitas pelos professores João Ceccantini, Marcelo Carbone Carneiro e Paulo Raboni, durante o processo de qualificação e defesa, todas foram de extrema importância para o crescimento dessa dissertação. Também agradeço a Denise, seção de pós-graduação do programa, pela sempre prontidão no atendimento e presteza. E agradeço, enfim, a Quem nos dá toda sabedoria para que possamos fazer o melhor que esta em nossas mãos. É Nele em quem eu deposito toda minha confiança e esperança. “A educação, no sentido em que a entendo, pode ser definida como a formação, por meio da instrução, de certos hábitos mentais e de certa perspectiva em relação à vida e ao mundo. Resta indagar de nós mesmos, que hábitos mentais e que gênero de perspectiva pode-se esperar como resultado da instrução? Uma vez respondida essa questão, podemos tentar decidir com o que a ciência pode contribuir para a formação dos hábitos e da perspectiva que desejamos.” Bertrand Russell Este trabalho apresenta uma análise das potencialidades da obra Serões de Dona Benta, de Monteiro Lobato, para o Ensino de Ciências. A partir do mapeamento, identificação e análise dos conceitos científicos e da concepção de ciência presente no texto desse livro, explanou-se sobre o uso da literatura de Lobato como material para o Ensino de Ciências. Com o apoio das orientações metodológicas da Análise Textual Discursiva, a obra foi categorizada em temas que se referem a conceitos científicos e a concepções de ciências do autor. Foi possível identificar uma série de situações vividas pelos personagens da história que relatam temas científicos, uma série de conceitos de Física, Química, Biologia, Filosofia das Ciências e a grande maioria com potencial para o Ensino de Ciências. Apresenta-se também uma revisão sobre as principais concepções de ciências na literatura para que se relacione com as encontradas no livro e observa-se que há uma idéia bastante forte de ciência como observação e constatação dos fenômenos da natureza, que se relaciona com uma visão empirista de ciências. Palavras-chave: Ciência e Literatura; Física e Literatura; Monteiro Lobato; Ensino de Ciências; Termos Científicos; Concepções de Ciência; Serões de Dona Benta. This paper presents an analysis of the potential of the book Serões de Dona Benta of Monteiro Lobato, for Teaching Science. From the mapping, identification and analysis of scientific concepts and the development of science in the text of this book, explained to the literature on the use of Lobato as material for Science Education. With the support of methodological guidelines Discourse Textual Analysis of the work was divided into topics that relate to scientific concepts and conceptions of sciences of the author. It was possible to identify a range of situations experienced by the characters in the story who report scientific issues, a number of concepts in Physics, Chemistry, Biology, Philosophy of Science and the most potential for Teaching Science. We also present a review of the main concepts in the literature to science that relates to those found in the book and notes that there is a very strong idea of science with observation and observation of the phenomena of nature, which relates to a vision empirical science. Key-words: Science and Literature; Physics and Literature; Monteiro Lobato; Teaching Science; Scientific Terms; Conceptions of Science; Serões de Dona Benta. 2 3 No final do primeiro ano, no curso de mestrado em Educação para a Ciência, houve alguns percalços quanto ao trabalho e ideias originais, levando a uma virada de cento e oitenta graus com relação ao tema do trabalho de pesquisa que culminou nessa dissertação. A proposta de trabalho com o tema Ciência em obras de Monteiro Lobato foi, em primeiro lugar, rejeitada por mim. Porém, estudando com profundidade o quanto Monteiro Lobato foi importante ao implementar vários temas científicos em suas obras, o quanto ele esteve sempre em posição de vanguarda em sua época com relação à ciência, jornalismo e literatura, fui realmente atraído ao tema discorrido nesse trabalho. A literatura de Lobato, sempre procurou colocar os temas desenvolvidos com um nível elevado de escrita, cultura e imaginação, tornando suas obras dinâmicas, instigantes e altamente inteligentes. Nesse sentido, um marco na maturidade do autor no campo da literatura infantil foi o livro As reinações de Narizinho (1931), absolutamente bem-sucedido. Saindo mais uma vez na frente, sua obra foi publicada pela Companhia Editora Nacional como o primeiro volume da coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira, série I de literatura infantil (BERTOLUCCI, 2008). Essa proposta visa resgatar a literatura de Monteiro Lobato que sempre valorizou a inteligência das crianças, sua curiosidade e acabou fazendo uma literatura que levou a questionamentos e críticas. Monteiro Lobato conseguiu o que poucos conseguiram na área da literatura infantil, ele não impôs a realidade às crianças, mas conseguiu fazer um intercâmbio entre o real e o mágico (MATOS; GARCIA SOUTO, 2000). Arnaldo Niskier (2000), ao se referir a Monteiro Lobato em seu artigo Reinações de Monteiro Lobato publicado no jornal a Folha de São Paulo, fala sobre o sabor da raiz, o estimular da imaginação, a excitação da descoberta. Pedro Bandeira (2011), em entrevista/depoimento falado à Revista Nova Escola defende veementemente a utilização da literatura de Monteiro Lobato nas escolas, pontuando sobre o quanto é importante para o desenvolvimento da criança e do adolescente o envolvimento com leituras agradáveis e instigantes, histórias que buscam imprimir nas crianças e adolescentes o gosto pela descoberta, e mesmo provocar a reflexão quanto a temas cotidianos como desigualdades sociais, escravidão, preconceitos. Pedro Bandeira coloca 4 Monteiro Lobato como o maior inovador da literatura brasileira do século XX, com ideias sobre política, empreendedorismo, e entre outras (informação verbal).1 Vindo ao encontro com a posição de Pedro Bandeira sobre o despertamento provocado pelo ambiente de leitura provocado pelos livros e pelo hábito da leitura, tem-se o discurso de Debus (2001) em que relata os tipos de leitura do próprio Monteiro Lobato em épocas de adolescência, gêneros de aventura em sua maior parte. Julio Verne e Robinson Crusoé estão entre os preferidos; para Lobato, livros imaginativos têm o poder de despertar no leitor a curiosidade, o instinto a pesquisa, desejo de apossar-se do desconhecido, fomento a criatividade e imaginação. Em suas palavras, Lobato relata: “A Júlio Verne todo um mundo de coisas eu devo! E a Robinson? Falaram-me à imaginação, despertaram-me a curiosidade – e o resto se fez por si” (LOBATO apud DEBUS, 2001). Três estudiosos brasileiros (João Carlos Marinho, Márcia Kupstas e Zinda Maria Carvalho de Vasconcellos) e uma norte-americana (Rose Lee Hayden), realizaram pesquisas em vastos conteúdos de livros, coleções e adaptações de Lobato e convergiram suas ideias numa classificação balizada pelos conteúdos das obras: ficção, como intenção de divertimento; didáticos ou paradidáticos, com caráter de instrução e ensinamento; e em última instância as adaptações ou obras fora do sítio realizadas pelo autor (DEBUS, 2001). Marisa Lajolo2, coloca em destaque: [...] que a obra infantil de Lobato apresenta e representa traços eivados de modernidade: a fusão do Brasil arcaico com o Brasil moderno; a linguagem coloquial que rompe com a voz de um narrador modelar; a oralidade, o despojamento sintático e a criação vocabular; a constituição do livro em série, que repete o mesmo espaço e personagens e o ritmo de produção moderna marcado pela regularidade dos lançamentos (LAJOLO, 1985 apud DEBUS, 2001). Para Otávio Frias Filho, existem vários fundamentos que, a seu ver, possibilitaram a acomodação pedagógica na literatura infantil de Lobato “sob embalagem tão distraidamente ficcional” (DEBUS, 2001). 1 Entrevista ao site da Revista Nova escola, PEDRO BANDEIRA defende a leitura de Monteiro Lobato na escola, São Paulo, 2011. Disponível em: . Acesso em: 2 abr. 2011. 2 Marisa Lajolo é professora aposentada pela UNICAMP, possui graduação, mestrado e doutorado em letras pela USP, coordenou o projeto temático “Monteiro Lobato (1882-1948) outros modernismos brasileiros”, reconhecido como um grande esforço intelectual acerca do tema, atualmente se encontra no corpo docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É considerada uma das maiores pesquisadoras relacionada a Monteiro Lobato no Brasil atualmente. 5 Como a pesquisadora norte-americana em obras de Lobato, Rose Lee Hayden, faz questão de salientar com todo enfoque possível que: [...] a produção literária desse escritor é radicalmente diferente da pedagogia tradicional, discordando da representação do núcleo familiar, a religião e a escola. A experiência intelectual e de aprendizagem se dá com liberdade. A autora defende que Lobato instaura através de sua literatura infantil “uma pedagogia para o progresso” (HAYDEN, 1974 apud DEBUS, 2001). Os estudiosos na obra lobateana admitem que todos os livros de Lobato possuem cargas de intencionalidade, revelando vínculos inseparáveis com a escola e o ambiente escolar. Alguns trabalhos revelam que a recepção à obra de Lobato se dá em múltiplas facetas e previsões apontam para a continuidade da leitura das obras do escritor. Para contribuir com uma justificativa atual sobre a leitura de Lobato na escola, temos alguns projetos que exemplificam o que discorremos no parágrafo anterior: Projeto Monteiro Lobato (BALDISSERA, 2009), realizado no ano de 2009 pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Dezenove de Abril, em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Esse projeto teve, em linhas gerais, como objetivo principal oportunizar o contato dos estudantes com as obras do autor, incentivando assim a leitura de diferentes obras ampliando os conhecimentos a respeito do autor.3 Outro exemplo foi de leitura e vivência das obras de Lobato por uma escola particular de Campinas; alunos de séries iniciais do ensino fundamental procederam com a leitura de vários temas, tais como, O Minotauro, Histórias da tia Nastácia, O Saci, Reinações de Narizinho, Fábulas de Monteiro Lobato. Em se tratando de experiências marcantes e coletivas, a escola promoveu uma visita ao ambiente que Monteiro Lobato viveu: o Sítio do Picapau Amarelo e o Reino das Águas Claras, na cidade de Taubaté, São Paulo. Os estudantes conheceram a casa do autor, os locais de inspiração, museu entre outros. Após o desenvolvimento da leitura e de inúmeras atividades afins, foi realizada uma semana para troca de experiências entre todas as séries, com o intuito de socializar os conhecimentos produzidos por todas as séries e grupos de estudos sobre o universo de Monteiro Lobato.4 3 Projeto Monteiro Lobato. 2009. Escola Municipal de Ensino Fundamenta Dezenove de Abrill, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, 2009. Responsáveis: Fátima Stuani Baldissera; Maria Ramos Justina Testolin. Disponível em: . Acesso em: 5/abr/2011. 4 Projeto de incentivo à leitura de obras de Monteiro Lobato, realizado pelo Colégio Anglo Campinas Taquaral, 2007. Relato de experiência publicado nos anais do 16º COLE (Congresso de Leitura do Brasil). Disponível em: < http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem08pdf/sm08ss02_09.pdf>. Acesso em: 5/abr/2011. 6 Com relação ao incentivo a leitura das obras de Lobato pelas crianças e adolescentes, Leo Pires Ferreira5, em entrevista ao Jornal Proleitura é inquirido com a seguinte pergunta: “Você não acha que as crianças de hoje teriam dificuldades para compreender as histórias de Lobato em razão de sua linguagem estar distanciada de nosso tempo?”. Ferreira, em seguida responde enfaticamente: Eu acho que não. É claro que toda a leitura pode às vezes parecer difícil. Eu não sou professor de literatura, mas tenho a certeza de que toda a situação em que se está passando por um processo de aprendizado tem que ser conduzida. Então a leitura para as crianças também tem que ser conduzida. Obviamente os pais e professores têm que saber conduzir e criar esse gosto. É necessário tornar a leitura agradável para as crianças. Ler Lobato é fácil desde que haja um acompanhamento (FERREIRA, 1992). Em outro trecho dessa mesma entrevista, Ferreira referindo-se ao conjunto das obras sobre o Sítio do Picapau Amarelo, destaca: Esse conjunto todo forma a república d´O Picapau Amarelo, que é um sítio do interior do Brasil. É importante dizer que mesmo que estejamos dentro de um apartamento, fechados em uma cidade grande, cercados de mil automóveis e ar condicionado, se nós abrirmos os livros de Lobato e quisermos lê-los como todo o espírito, nós nos transportaremos imediatamente para o Sítio do Picapau Amarelo e passaremos a conviver com aquele ambiente gostoso (FERREIRA, 1992). Por meio da presente dissertação de mestrado busca-se dentre outros objetivos, o resgate das obras de Lobato aplicadas em um contexto escolar com ênfase no despertar da curiosidade, em especial para as alusões e relações à ciência presentes no conjunto de obras do Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato, sobretudo a obra foco da análise: Serões de Dona Benta6. Utilizando dessa forma um artifício literário para aplicar posteriores discussões de cunho científico, introduzir e contextualizar conteúdos e/ou termos científicos através das “chamadas” nas obras do autor, buscamos uma aplicação no Ensino de Ciências. Em busca desse resgate, João Luís Ceccantini7, realiza o seguinte questionamento: 5 Leo Pires Ferreira, Agrônomo aposentado da EMBRAPA de Londrina-PR, Doutor em Fitopatologia pela Universidade de Viçosa-MG, paralelamente ocupou vice-presidência do Conselho de Cultura do Município de Londrina. Atualmente exerce funções de professor convidado na Universidade Estadual de Londrina-PR, conhecido como profundo estudioso das obras de Lobato. 6 8ª Edição, 1960, Editora Brasiliense. 7 João Luís Ceccantini, atualmente é professor de Literatura Brasileira da UNESP de Assis, possui graduação em Letras, mestrado e doutorado em letras, tem trabalhado sistematicamente com pesquisas relacionadas à literatura infantil e juvenil e formação de leitores, e coordena grupos de pesquisa acerca do tema. Contribui para o avanço de pesquisas relacionadas à literatura de Monteiro Lobato e é, na atualidade, grande pesquisador com relação ao tema. 7 [...] até que ponto, ainda hoje, as crianças conhecem Lobato e sua obra infantil, que deslumbrou tantas outras gerações? Em que medida sua obra não envelheceu e pode ser lida com prazer pelo leitor de nossos dias? E, finalmente, qual tem sido o papel da escola na difusão da obra extraordinária do escritor? (CECCANTINI, 1992) Para ajudar a responder as questões Ceccantini (1992) recorreu a uma pesquisa realizada entre os estudantes do ensino fundamental de uma escola pública em Assis, interior de São Paulo, em que os resultados de uma simples enquete sobre o conhecimento de Lobato e sua obra, confirmaram as suspeitas: Lobato é um ilustríssimo desconhecido para as crianças que estavam na escola. Considerando esse argumento de Ceccantini (1992), fica latente uma maior aproximação dos alunos à literatura lobatiana nas escolas. Como já mencionado anteriormente, as obras de Lobato são divididas em três vertentes por estudiosos do autor: obras ficcionais, paradidáticos e as adaptações de outras narrativas. Cabe à escola se embrenhar por caminhos não convencionais e explorar o potencial de cada obra do autor, como Ceccantini (1992) aponta: livros como As caçadas de Pedrinho, O Saci, ou O Picapau Amarelo, são obras ágeis e com caráter infantil; livros como A chave do tamanho, são leituras para séries mais avançadas e também para eventuais trabalhos interdisciplinares. Outro fator importante segundo Ceccantini (1992) é deixar de lado os preconceitos incutidos nas práticas pedagógicas provindos de ranços de editoras, e sim colocar os livros nas mãos das crianças. É preciso deixar de pensar que só porque as crianças estão em fase de ensino fundamental somente se devem trabalhar livrinhos finos, muitas ilustrações e pouco texto escrito, esquecendo que muitos são os leitores fluentes que não devem estacionar nessa limitação; o nível de leitura deve ser elevado sempre, não estagnado ou limitado. Continuando em defesa da utilização e leitura de Lobato na escola, Ferreira (2009) destaca: “Os textos de Monteiro Lobato fazem o seu leitor pensar, condicionando a formação de jovens e adultos com mais capacidade de raciocínio e com senso crítico em cidadania” (FERREIRA, 2009). Todos devem ler os livros que Monteiro Lobato escreveu, crianças e adultos. As crianças e os jovens para aprenderem muita coisa, entre elas um bom conhecimento da língua portuguesa e a formação de um senso crítico positivo das coisas que nos cercam, e os adultos para voltarem a rever conceitos que, talvez, tenham esquecido ou que não tenham aprendido (FERREIRA, 2009). 8 Vendo a necessidade de explorar a conversa cientifica versada nas obras de Monteiro Lobato, fica aqui explícito o objetivo principal desse trabalho da seguinte maneira: realizar um mapeamento no conjunto dos textos da obra Serões de Dona Benta8, das expressões e conceitos relacionados à Ciência em geral e discutir a possível relevância do uso no Ensino de Ciências. Tem-se como provocação a esse trabalho, uma nota de rodapé escrita por Milena Ribeiro Martins9. Como coloca: Ainda esta por ser feita uma análise da “Viagem ao Céu” do ponto de vista de um especialista da Astronomia ou da Física. Localizar essa obra de Lobato em meio a outras de divulgação cientifica seria uma contribuição valiosa não só para os estudos sobre o autor, mas também para os estudos sobre o ensino de Ciências, no Brasil (MARTINS, 2008). E ainda para fundamentar os argumentos de que, não somente o tema Ciência e Literatura, como também Ciência nas obras de Monteiro Lobato possuem bibliografias em nível de escassez, tem-se uma busca bibliográfica realizada por Luana von Linsingen10, que demonstra o fato acima citado. Como complemento da busca bibliográfica de Linsingen (2008), posteriormente, no terceiro capítulo – Ciência e literatura na sala de aula: uma relação possível –, foi realizada uma busca bibliográfica complementar a Linsingen (2008), no universo do último evento do ENPEC (Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Ciências), ocorrido no ano de 2009, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina. Com isso, além de demonstrar o levantamento de bibliografias sobre o tema Ciência e Literatura existentes, contribui-se no sentido das justificativas acerca da escassez de materiais acerca do tema desse trabalho. Contribuindo com as justificativas do objetivo principal desse trabalho pode-se citar João Zanetic11 que publicou vários trabalhos discutindo a associação de Literatura e Ciência, 8 8ª Edição, 1960, Editora Brasiliense. 9 Milena Ribeiro Martins, Doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, em suas pesquisas estuda o processo de escrita e a história editorial dos contos de Monteiro Lobato. É professora do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Dedica-se especialmente ao ensino e à pesquisa dos seguintes temas e áreas: Monteiro Lobato, Literatura Brasileira, Modernismo, Teoria Literária, Literatura Comparada, Literaturas em língua portuguesa, Ensino de Literatura, Teorias da Leitura, Formação de Leitores. 10 Luana von Linsingen, Mestre em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina, escritora, redatora, editora, revisora, bióloga, pesquisadora e professora. É autora e co-autora de livros infanto-juvenis, contos, poesias e resenhas, além de autora de diversos artigos sobre Ensino de Ciências. Integrante da Associação dos Escritores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ) da região de SC. Texto extraído de Books Divulgação Literária, . 11 João Zanetic, possui graduação em Física pela Universidade de São Paulo, mestrado em Science Education Med pela University of London, mestrado em Física pela Universidade de São Paulo e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor na Universidade de São Paulo (USP) e atua principalmente nos seguintes temas: Cultura Cientifica, Fisica Escolar, Ensino Médio. Texto extraído da Plataforma de Lattes de Currículo, . 9 mais precisamente Física, defendendo esta ação não como mais uma forma de chamar atenção dos estudantes para o estudo da Física, mas com uma real contribuição para aprendizagem e estudo crítico de ambas as áreas. Que literatura utilizar em aulas de ciência? Brevemente, diria que tenho em mente não apenas os grandes escritores da literatura universal que em suas obras utilizam conceitos e métodos das ciências, e da física em particular, os escritores com veia científica, como também várias obras escritas por cientistas com forte sabor literário, os cientistas com veia literária (ZANETIC, 2006a). Falando sobre o cidadão contemporâneo, em que o mesmo deve ter a leitura como formadora da rede de conhecimento pessoal, deve ter também dentre outras dimensões a literatura, a Física e as Ciências. Desse modo, a ciência ocupa um papel fundamental na formação básica do cidadão contemporâneo, Zanetic (2006a), apresenta algumas argumentações a esse respeito: I. Vivemos numa época fortemente influenciada e/ou determinada pelas ciências da natureza, com papel de destaque para a física; II. Muitos fenômenos da natureza são basicamente explicados através da ciência; III. A tecnologia contemporânea é fortemente baseada na ciência; IV. O método científico pode ser facilmente transferível para outras atividades humanas; V. A ciência pode favorecer o uso do discurso racional, da razão, tão em desuso nos nossos tempos; VI. A ciência permite um diálogo inteligente com o cotidiano; VII. A ciência enriquece e promove a imaginação; VIII. A ciência influencia outras áreas do conhecimento, as artes aí incluídas; IX. O processo histórico dos últimos séculos é incompreensível sem a presença da ciência; X. A ciência ... tem 1001 utilidades! (ZANETIC, 2006a) Para estabelecer um discurso inteligente com o mundo globalizado, o leitor deve dominar de forma competente a leitura e escrita, fazendo como que a literatura tenha um fator preponderante no desenvolvimento dessa competência. Recentes resultados apontam o Brasil em uma colocação não muito favorável com relação a avaliações internacionais em leitura e escrita (ZANETIC, 2006a). Em conformidade a isso, Silva (2007) trata de ciência, leitura e escola em três teses, sendo: 10 1ª tese: todo professor, independentemente da disciplina que ensina, é professor de leitura; 2ª tese: a imaginação criadora e a fantasia não são exclusividade das aulas de literatura; 3ª tese: as sequências integradas de textos e os desafios cognitivos são pré- requisitos básicos à formação do leitor (SILVA, 2007). Com essas ideias citadas acima, encontramos um ponto de convergência de argumentações no entorno do tema Física e/ou Ciência e Literatura, essa junção tem inúmeros feitos, dos quais destacamos Monteiro Lobato com sua série de obras do Sítio do Picapau Amarelo, nas quais Ciência e Literatura se combinam numa mistura temperada com uma boa pitada de imaginação e muita substância da leitura crítica, na qual impera a construção do pensamento e a instigante busca ao desconhecido e curioso. Lobato como pioneiro no novo modo de escrever para o público infantil foi motivado por Anísio Teixeira, a investir cada vez mais no caráter didático de suas obras, porém sem deixar de lado seu diferencial na literatura infantil – proporcionar aos leitores formas diversas de facilitação ao aprendizado e compreensão de conceitos científicos e entre outros – pelos inúmeros discursos, curiosidade, tratamento das informações e dados apresentados e, pelo desejo de aventura presente em todas as obras do escritor. Segundo Bignotto (1999), a literatura de Lobato se aproxima dos elementos do movimento da Escola Nova, visto que sempre em seus trabalhos, Lobato primava pelo desejo ao conhecimento, despertado pela curiosidade e fantasia. Lobato revela bem seu pensamento, salientando que: [...] a inteligência só entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginação lhe serve de guia. A bagagem de Julio Verne, amontoada na memória, faz nascer o desejo do estudo. Suportamos e compreendemos o abstrato só quando já existe material concreto na memória. Mas pegar de uma pobre criança e pô-la a decorar nomes de rios, cidades, golfos, mares, como se faz hoje, sem intermédio da imaginação, chega a ser criminoso. É no entanto o que se faz!...Arte abrindo caminho à ciência: quando compreenderão os professores que o segredo de tudo está aqui? (LOBATO, 1956 apud BIGNOTTO, 1999). O papel do professor está em facilitar o caminho para que o estudante desenvolva por si mesmo a compreensão, com experiências, imaginação, ação concreta, não somente por transmissão de conhecimento, sem qualquer exemplo ou situação que promova ou facilite o aprendizado. Dessa forma, Lobato exprime esse conceito pedagógico em suas obras infantis, desde seus primeiros trabalhos voltados ao público infantil. Mas é no contato mais direto com Anísio Teixeira, seu amigo a partir da viagem aos Estados Unidos, que toma conhecimento 11 sistematizado de tais teorias da educação e pedagogia. Lobato sempre levava em simultâneo a todos os seus projetos, uma viva chama por uma educação e ensino de qualidade, facilitada em grande parte pelo modo em como se é submetido o apreendente. No escopo desse trabalho encontra-se o primeiro capítulo – No curso da literatura: Monteiro Lobato e sua obra –, uma breve biografia direcionada ao objeto de estudo do trabalho, uma importante contextualização histórica de Lobato frente ao universo de suas obras cheias de fatores inspirados em Ciência; e uma exploração detalhada da literatura de Monteiro Lobato e sua aspiração para a Ciência encontrada na obra Serões de Dona Benta12 juntamente a seu contexto histórico no qual foi escrita. Nesse mesmo capítulo é traçado um panorama de interação de Lobato com o movimento escolanovista, o qual apóia e constrói uma relação de amizade intensa com um de seus líderes, Anísio Teixeira. No segundo capítulo – Considerações sobre conceitos científicos e a literatura de Monteiro Lobato –, fez-se necessário um detalhamento do que é ciência, algumas de suas bases e como Lobato deixou transparecer em suas obras Em sequência, no terceiro capítulo – Ciência e literatura na sala de aula: uma relação possível –, inicialmente foi realizado um apontamento de autores que contribuíram e/ou contribuem com estudos no campo de interação entre Ciência e Literatura. Também foi apresentada uma revisão da literatura sobre o emprego de obras de ficção no Ensino de Ciências. Com isso, pretende-se contribuir de forma sucinta com o escopo teórico sobre essa linha de pesquisa, em que se encontram escassos materiais bibliográficos. No quarto capítulo – Encaminhamentos metodológicos –, foram desenvolvidos os referenciais teórico-metodológicos utilizados para a análise do livro selecionado, buscando elucidar como a metodologia de análise contribui para os objetivos da pesquisa. Nesse quinto capítulo – Serões: presença marcante das ciências, suas visões e concepções –, são compilados e apresentados os resultados, discussões, além das argumentações com relação aos termos e propostas de cunho científico encontrados na obra analisada e possíveis inferências sobre a possibilidade educacional dessas, tais como de que formas podem ser inseridas na escola. No último capítulo – Sobre as perspectivas para o tema Ciência e Literatura: considerações finais –, faz-se importante a argumentação frente às possibilidades futuras para utilização desse tema na escola, assim como a discussão final dos resultados apresentados; e por fim, as referências bibliográficas. 12 8ª Edição, 1960, Editora Brasiliense. 12 Nesse capítulo apresenta-se uma breve biografia de Monteiro Lobato (1882 – 1948), importante por colocar o escritor em seu contexto histórico junto as suas produções literárias assim como em tantas outras contribuições exercidas pelo escritor. Podendo talvez responder questões que versam sobre as aspirações sobre ciências recheadas em suas obras. Visa-se expor essa biografia com ajuda de estudiosos na vida e obra de Monteiro Lobato, especialistas que dedicaram e continuam dedicando estudos e pesquisas nas obras desse grande escritor de nossa literatura, que continua sendo atual com suas questões, discussões, aspirações e críticas. O presente capítulo fundamenta-se nas obras de Azevedo, Camargos e Sacchetta (1998) e Edgard Cavalheiro (1956), visto que se colocam como as biografias mais completas sobre o autor existentes atualmente. Outras bibliografias e livros do próprio escritor compõem o acervo biográfico base para esse capítulo dessa dissertação. Para a segunda parte desse capítulo tem-se um breve estudo sobre a obra que será analisada, apresentando o contexto histórico e científico envolvido nas mesmas. Para tanto, estudiosos em torno do tema compõem as bases que fazem parte da finalização deste capítulo. Sabe-se que, Lobato e sua obra vêm despertando crescentemente o interesse por pesquisas, pesquisadores e estudiosos de diferentes áreas de atuação. Pelo fato de ser: [...] personalidade de múltiplas facetas, ao procurar associar vocação artístico-literária com interesses diversificados, Monteiro Lobato alargou os horizontes de seu tempo. Movido por sonhos e utopias, empenhou-se em campanhas memoráveis para colocar o Brasil no caminho da modernidade. Consagrou-se como nosso maior escritor infanto-juvenil e promoveu uma revolução editorial no país (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). Por tudo isso, como relatado no primeiro parágrafo, Lobato tem sido explorado ao longo dos anos como um personagem que veio revolucionar a literatura brasileira, aliando criatividade no campo artístico à ação de empreendedor (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). 13 José Bento Monteiro Lobato era uma criança diferente das demais, vivia sempre às voltas com leituras e um de seus preferidos lugares era a biblioteca de seu avô. Era leitor assíduo das literaturas européias traduzidas que existiam no país. Quando adolescente vai estudar na capital paulista em escola preparatória e decide cursar a Faculdade de Belas Artes, porém é detido por seu avô Visconde de Tremembé. É obrigado então a cursar Bacharelado em Direito na Faculdade de Direito Largo de São Francisco, para atender uma aspiração de seu avô. Dentro da Academia de Direito Lobato escrevia artigos em um jornal de Centro Acadêmico chamado Onze de Agosto, uma agremiação fundada em 1903, participava como um dos principais redatores. Porém era fora do ambiente escolar que Lobato vivenciava seu lado mais emocionante e poético, cria grupos de discussão sobre literatura e arte, escreve para periódicos pequenos como colaborador (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). Quando volta ao Vale do Paraíba dedica-se a leituras, reescreve textos e colabora com a imprensa, escreve para o Minarete, e O povo, de Caçapava. Viaja com frequência a capital para matar saudades dos companheiros. Em 1906, fica noivo de Maria da Pureza, neta do Dr. Quirino, antigo professor de infância, com a qual se casa em 1908. Vira promotor da Comarca de Areias, mas não deixa de trabalhar com as letras, traduzindo artigos do Weekly Times para O Estado de São Paulo, colabora com a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, e com a Tribuna de Santos no qual passa a publicar contos. Lobato redige um artigo ao O Estado de São Paulo, criticando em como a guerra na Europa tomará conta da sociedade com um ufanismo e consternação nacional; enquanto no Brasil as mazelas e indiferenças tomam proporções cada vez maiores. Escreve esse primeiro artigo de nome “Uma velha praga”, que produz uma repercussão não esperada por Lobato. Nesse artigo ele esboça o personagem que se tornaria símbolo de uma fase de sua literatura e de toda literatura brasileira: Jeca Tatu (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). Com o prestígio adquirido no periódico jornalístico, Lobato publica um livro não assinado por ele, um resultado de um inquérito popular a respeito do folclore regional. Um livro que insere a figura do saci, como autêntica manifestação da cultura popular. O livro é produzido na gráfica da Revista do Brasil, que posteriormente se figuraria com o local de sua casa editora, pois efetuaria a compra da mesma das mãos do grupo Estado. 14 Até então ao fim do século XIX, os livreiros eram peças da corte, figuravam filiais de grandes casas editoriais européias, no mercado editorial brasileiro era massiva a tradução de obras portuguesas e francesas. Livros eram objetos de luxo, materiais de acesso a poucos. Frente a esse cenário: “[...] ao adquirir a Revista do Brasil junto ao Estado de S. Paulo, em 1918, Lobato inicia imediatamente a revolução editorial” (PASSIANI, 2007). A frente de seu empreendimento editorial Lobato realmente deixa um lastro no campo editorial do Brasil. O escritor e editor inaugura a produção de livros no Brasil, que na época somente era realizado em Portugal, elabora um sistema de logística e distribuição de livros antes não praticados no país. Adquire prestígio em suas publicações, iniciadas com sua primeira obra, um conjunto de contos denominado Urupês13. Embrenhando-se para o lado do gênero didático, Lobato tem aceito pelo governo de São Paulo o título Narizinho arrebitado14, livro didático que seria utilizado no segundo ano nas escolas públicas, o mesmo recebe elogios pela crítica e pelos professores; Lobato assim fecha o ano de 1921 com cinquenta mil exemplares de uma edição (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). Lobato torna-se figura proeminente em relação à questão literária no Brasil, com isso acumula para si vários embates e críticas, como por exemplo a briga contra os modernistas. “A influência de Lobato nos círculos intelectuais era tão grande que o carimbo com seu nome, provavelmente, resultaria em dividendos simbólicos para o autor e seu livro” (PASSIANI, 2007). Como continua a argumentar Passiani (2007): “Por alguns anos Lobato definiu e ditou os critérios estéticos do nosso campo literário, decidiu quem merecia ser editado e que não merecia; por alguns anos Lobato monopolizou os critérios de classificação estética em nossa literatura” (PASSIANI, 2007). A atividade editorial transformou-se em uma arma para Lobato (PASSIANI, 2003; 2007), de modo que para o escritor e editor, garantia certa vantagem em disputas literárias. Assim, Lobato vai agregando doses cada vez maiores de um novo capital social adquirido, e aumenta seu poder de negociação, bem como seu poder de fogo na hora das contendas literárias – contra outros integrantes do campo literário, principalmente, naquele momento, os modernistas, que elegeram Lobato o símbolo de uma literatura, segundo eles, ultrapassada, sem originalidade, presa a critérios estéticos naturalistas-realistas sem o menor apego à realidade histórica brasileira [...] (PASSIANI, 2007). O que se configurava não era somente contenda de ciúmes, nem vaidades. O que se 13 1ª edição, 1918. 14 1ª edição, 1920. 15 tinha em foco, na verdade, era uma grande disputa por bens simbólicos de muito valor: a importância, o prestígio e a consagração (PASSIANI, 2003; 2007). Completando: “Tanto os modernistas quanto Monteiro Lobato pretendiam, ainda que inconscientemente, a hegemonia no campo literário” (PASSIANI, 2007). Desse período até 1926 quando sua companhia editorial entra em falência, Lobato publica vários outros livros de sua autoria, assim como edita títulos de outros escritores. Lobato é nomeado Adido Comercial junto ao Consulado Brasileiro em Nova Iorque, e se muda para os Estados Unidos, em maio de 1927, seu grande prestígio e influencia na sociedade mostram-se fatores que vincularam o seu nome para o cargo público do governo brasileiro. Sempre em contato com suas leituras Lobato vai formando seu espírito crítico e seus ideais, e isso ocorre principalmente no começo de sua carreira quando após a formatura no curso de direito, retorna ao Vale do Paraíba. Embarca em leituras de Maquiavel, Tolstoi, Balzac e Shakespeare, assim como Nietzsche de onde extrai sua liberdade intelectual e moral. Lobato entende em Nietzsche o aforismo “Vade mecum”, “Vade tecum”, como a libertação das amarras da sociedade, o contraditório a imposição, sua melhor significação: liberdade mental e moral. Nas palavras de Lobato: Foi a maior bebedeira de minha vida. Aquele pensamento terrivelmente libertador intoxicou-me. Um de seus aforismos penetrou em meu ser como a coisa que procurava. “VADE MECUM”, “VADE TECUM.” Queres seguir-me? Segue-te. Essas palavras foram tudo – foram o meu remédio certo. Marcaram o fim da minha crise mental. Normalizaram-me. Entregaram-me a mim mesmo. O que naquela ânsia através das filosofias eu procurava era eu mesmo – e só Nietzsche me contou que era assim. Em vez de seguir a alguém, ia seguir a vaga intuição do meu eu...[...] E assim foi que fiquei na vida sem sistematização nenhuma, livre como um passarinho, a esvoaçar para onde aprazia, levado apenas pelas minhas intuições, insubmisso a fórmulas e autoridades. Essa insubmissão estendeu-se à minha literatura [...] (LOBATO, 1959, p. 222-224). 16 Para Vasconcellos (1982), o espírito libertário do escritor, sua intolerância a sistemas fechados e preestabelecidos, sem dar abertura para a crítica do pensamento, veio da filosofia existencialista de Nietzsche. Cavalheiro (1956) também aponta que o individualismo libertário do escritor advém dos ideais do filósofo Nietzsche. Assim também colaborando com os argumentos, Whitaker (1997) relata que Lobato construiu seu ceticismo devido às leituras do filósofo alemão. Para Morelato (2011): Monteiro Lobato tem uma ideia muito clara de como deve ser a educação da criança; a qual deve estar fundada no humano com o objetivo unicamente de fazê-la seguir a si própria, uma educação que dê autonomia para que ela torne segura de seus interesses e desejos. Pois foi lendo Nietzsche que Lobato compreendeu o significado de seguir a si – mesmo [...] (MORELATO, 2011). E Morelato (2011) continua argumentando no sentido que: Essa confluência com Nietzsche fez de Monteiro Lobato implacavelmente defensor de suas ideias, e não poderia deixar de participar da sua concepção de educação que invariavelmente perpassa a criação do Sítio do Pica-Pau Amarelo (MORELATO, 2011). Baseando-se em princípios libertários, a educação nunca será dominadora, condicionadora, mas colocará de forma a expor todas as contradições humanas. A criança deverá ser sujeito da educação e não apenas receptora (MORELATO, 2011). Lobato então vê na filosofia de Nietzsche um incentivo para seu próprio estilo de vida e procedimento no trato com a sociedade e com sua literatura. Com seu espírito impetuoso sempre esteve engajado em ações, campanhas, empreendimentos de forma que a filosofia do ser libertário e crítico encontrou um reflexo no trilhar da vida do escritor de Taubaté. 17 Em um dos encontros de costume na redação da Revista do Brasil entre amigos, colaboradores entre outros, Lobato tem a súbita idéia que revolucionaria a literatura até então, além de mudar radicalmente sua carreira de escritor. Uma fábula sobre um peixe que havia morrido ter desaprendido a nadar, contada por Hilário Tácito, autor do livro editado e publicado por Lobato, Madame Pommery. Instigado transformou a historinha em conto, o qual recebeu o título de “A historia do peixinho que morreu afogado” e assim como resultado do melhoramento da fábula no desenvolvimento da mesma, lança a primeira versão do livro A menina do narizinho arrebitado2, cheio das cenas da roça e de suas lembranças reavivadas através dos tempos em sua memória: história das aventuras de uma menina, Lúcia, e sua inseparável boneca de pano, Emília, sua avó, além da tia negra, Anastácia (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). Menotti del Picchia escreve sobre o pioneirismo de Lobato: Senhor de um mágico estilo, feito para deslumbrar adultos, soube – e nisso está o grande elogio da sua obra – criar um linguagem comovida e simples para, com ela, nivelando em nossos pequerruchos, falar à ingênua imaginação das crianças (DEL PICCHIA apud AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). Com mais observações sobre a obra de Lobato, Tristão da Ataíde destaca que quem escreve para o público infantil deve despertar interesse do mesmo (p. 158), assim: Por ele a criança criará gosto pela leitura, sentirá que o livro não é apenas um instrumento de disciplina mas um campo maravilhoso para a expansão de um mundo interior, reprimido ou apenas pressentido. É um livro que estimula a vida, que fecunda a imaginação, que desperta a curiosidade (AMOROSO LIMA, 1966 apud AZEVEDO et al., 1998). Lobato submete esse primeiro trabalho a aprovação do governo de São Paulo, o qual é aceito e recomendado para o uso no segundo ano das escolas públicas, sua impressão bate o recorde de 50.500 exemplares rodados em 1921, com ilustrações e em formato brochura de 181 páginas, o título sofreu uma adaptação para Narizinho arrebitado15. Vendo a enorme aceitação segue escrevendo e publicando, e assim lança no mesmo ano O Saci16, seguido de Fábulas de Narizinho17. 15 1ª edição, 1921. 16 1ª edição, 1921. 17 1ª edição, 1921. 18 Edita em seguida O Marquês de Rabicó18 e Fábulas19. Esse último recebeu aprovação da Diretoria da Instrução Pública dos Estados de São Paulo, Paraná e Ceará. Com a nova editora, Companhia Editora Nacional lança Aventuras de Hans Staden20, As caçadas de Pedrinho21. Livros que foram todos sucessos de venda e aceitação com a publicação de outras edições. Como completa Edgard Cavalheiro (1956): “[...] vão formando [os livros] uma narrativa sem fim, cada volume não passando de um capítulo, a ser lido separado ou em sequência” (CAVALHEIRO, 1956) Na perspectiva que Lobato vem seguindo, o Sítio do Picapau Amarelo caracteriza-se pelo ambiente do interior, com seus mitos e crenças populares, lugar de encantamento e muita diversão, e a realidade passa a ser vista sob novos ângulos através do fantástico dos sonhos. As suas histórias possuem caráter de universalidade tornado-se de fácil acesso e chamativas a qualquer criança (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998). Sem dúvida, a literatura de Lobato caracterizou-se no decorrer da história literária do Brasil como um divisor de águas e um escritor que mudaria a visão de literatura no país, como relata Coelho (1991): A Monteiro Lobato coube a fortuna de ser, na área da Literatura Infantil e Juvenil, o divisor de águas que separa o Brasil de ontem e o de hoje. Fazendo a herança do passado imergir no presente, Lobato encontrou o caminho criador que a Literatura Infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz, com as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas ideias e formas que o nosso século exigia (COELHO, 1991, p. 225). Monteiro Lo bato sempre demonstrou um nacionalismo esplêndido por sua terra mãe, buscou contribuir para transformar uma cultura arraigada em costumes atrasados e cegos numa cultura comprometida com o progresso e com o desenvolvimento intelectual, coletivo- social, comercial e político. Tentou novos métodos de produção agrícola em sua fazenda, tornou-se defensor das políticas públicas para o saneamento básico contra as doenças e 18 1ª edição, 1922. 19 1ª edição, 1922, que se torna uma ampliação de Fábulas de Narizinho. 20 1ª edição, 1927. 21 1ª edição, 1933. 19 parasitas ao contrário da confiança em cura por benzimento. Sempre teve na comunicação e poder da palavra escrita, a solução para a ignorância da população de baixa renda, defendeu o livro de baixo custo, assim como editou e produziu livros através de sua atividade como editor. Sempre foi adepto dos processos científicos em todos os níveis, inspirado nos métodos de produção industrial de Henry Ford e Gutenberg. E na fase que se encontrava nos Estados Unidos relataria e apontaria várias “soluções” para os atrasos brasileiros, perda de competitividade comercial e mercadológica para outros países. Lobato era um visionário de seu tempo e na produção do romance O choque22, coloca sonhos que hoje se apresentam na forma real e corriqueira, tudo com grau certo de lógica, frente ao exercício da imaginação. Nesse romance traz um instrumento chamado de porviroscópio capaz de visualizar o futuro, sendo manuseado pelas personagens. Reeditado em 1945, em nota de apresentação os editores destacam que a obra abrangia o [...] quadro do que realmente seria o mundo de amanhã [...] que sob aparências brincalhonas brilha um pensamento de grande penetração psicológica e social. [...] Monteiro Lobato talvez não tenha imaginado coisas, e sim apenas antecipado coisas (LOBATO, 1956). Sendo um fato interessante a capacidade de Lobato de desvendar o futuro, produzindo engenhos que atualmente são corriqueiros, assim como Júlio Verne que criara máquinas fantasiosas que se materializaram em realização de hoje, tais como naves espaciais e submarinos. Além do desbravamento futurista colocado nessa obra, Lobato também realiza uma profunda discussão a respeito dos assuntos que sempre tomaram a mente da humanidade: luta entre sexos, conflitos raciais, sociais, culturais e étnicos, injustiça social, liberdade e dominação. Com o tema eugenia, sendo o tema principal, definindo a superioridade da raça branca em relação a negra, Lobato antecipa a utilização dessa ideologia no modelo de governo nazista, o qual pregava a superioridade da raça ariana que culminaria no Holocausto. Em América23 Lobato conta sua experiência frente ao grande crash de 1929, que provocou abalos não somente na economia dos Estados Unidos, mas em outros países que mantinham relações econômicas com os mesmos. Relacionando em sua obra o tema de economia e globalização. Lobato sempre se mostrou admirador do progresso e da organização 22 1ª edição, 1926, Cia Editora Nacional, que posteriormente é reeditado pela Editora Brasiliense em 1945, recebendo o nome de O presidente negro. 23 1ª edição, 1932, Cia. Editora Nacional. 20 que os Estados Unidos vinham desenvolvendo. Porém, como ele tivesse o poder de seu instrumento porviroscópio revela sua percepção sobre esse progresso vertiginoso dos Estados Unidos, escrevendo sobre o corporativismo do futuro, agregação de valores em massa, padronização da individualidade, consumismo influenciado pela propaganda, o capitalismo desenfreado, o câmbio flutuante e instável e a globalização do sistema econômico. Não como se prevendo uma grande crise nos Estados Unidos, estendida ao mundo, transcorrida no final da primeira década do século XIX, mas sim analisando os fatores do presente que apontavam para tal fim. Nas palavras do autor: Vejo, entretanto, um ponto perigoso no sistema. O povo já está comprando a crédito, já está sacando sobre o futuro. O operário que adquire uma Frigidaire para pagar em 20 meses, está usando, como se dólar fosse, a probabilidade de manter-se no gozo daquele salário durante 20 meses. Venha uma perturbação econômica qualquer, tenha esse operário o seu ganho diminuído ou suprimido – e desabará sobre a América um cataclisma econômico de proporções únicas, capaz de refletir-se desastrosamente no mundo inteiro (LOBATO, 1959, v. 9, p. 263). Quando em estada nos Estados Unidos como adido comercial do Brasil, Lobato vê que a chave para o crescimento do país é o desenvolvimento e a tecnologia. Nessa vontade característica do escritor, o mesmo obtém informações e métodos de produção industrial de ferro para futuros investimentos em terras brasileiras. Mas a lentidão e morosidade dos trâmites do governo brasileiro, ele mesmo através de seu parceiro brasileiro que conhece em terras Norte Americanas, Fortunado Bulcão (AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETTA, 1998), realiza movimentações no Brasil para empreender um projeto de produção siderúrgica de ferro. Porém depois de muito tramitar, relatar, trocar cartas entre o governo, Lobato tem seu projeto sufocado diante dos interesses maiores do governo brasileiro. Mas Lobato nunca parou com seu espírito inquieto, não contente com a situação em que o Brasil se encontrava, mesmo possuindo recursos naturais tão mais abundantes, mesmo possuindo extensão territorial quase similar aos Estados Unidos, ainda se encontrava atrasado 21 e arcaico. Coloca-se então em campanha nacional de difusão de suas ideias acerca do desenvolvimento e progresso para o país: carvão, petróleo e ferro. [...] Quem olha para o mapa da América vê logo que a América é o grande continente do petróleo, de norte a sul, desde o Alasca até a Patagônia. E vê que praticamente todos os países da America já tiraram petróleo, menos o Brasil, que é o colosso em território que sabemos. Estados Unidos, México, Canadá, ilha de Trinidad, ilha de Barbados, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Argentina – todos nadam em petróleo. Só o Brasil persiste na sua bobagem de duvidar. E no entanto não existe no mundo país mais rico que o nosso em sinais superficiais de petróleo (LOBATO, 1959, v. 15, p. 22-23). Fundamentado na ideia de existência de petróleo no continente americano, Lobato dispõe-se a libertar seu país das amarras da dependência econômica, empenhando esforços para a viabilização de estruturas industriais para incrementar o desenvolvimento do Brasil, funda uma companhia para exploração de petróleo, mas sempre se vê frustrado pelos interesses do governo brasileiro, sempre embargando seus avanços e censurando suas críticas. Assim foi durante a máxima do Estado Novo, marcado pelo autoritarismo de Vargas. Nessa “era” o escritor travou inúmeros embates contra o governo, pois sempre denunciava na forma do veículo de escrita as incoerências do governo. Nessa mesma fase de sua vida Lobato escreve e lança O escândalo do petróleo24, uma denuncia fundamentada em provas, artigos e na Lei de Minas, sobre as negociações entre uma companhia de petróleo internacional e o governo brasileiro, impedindo os avanços brasileiros em prol de interesses econômicos de outros. Em meio a campanha de luta pelo petróleo brasileiro, Lobato encontra no golpe do Estado Novo uma mordaça para seus escritos, porém não se cala despertando hostilidade no interior do governo, que o prende pelo crime de tentativa de destruição de uma instituição nacional, o Conselho Nacional de Petróleo, alvo constante de suas denúncias. É preso ficando recluso por alguns meses até que lhe é indultado a liberdade vigiada pelo governo, censurando totalmente o escritor. Lobato vê em seus últimos anos de vida a queda de Vargas, a morte de seu filho Edgard, o início e fim da segunda guerra mundial e se convence cada vez mais da escrita para crianças. Acreditando potencialmente na formação do seu caráter através da leitura. Embrenha-se cada vez mais nos caminhos da literatura infantil e corresponde-se com seus 24 1ª edição, 1936 , Cia. Editora Nacional. 22 pequenos leitores, para que a cada nova edição de um trabalho traga coisas diferentes, com adaptações, correções e novas ideias aos seus próprios textos e histórias. Reconhecendo Monteiro Lobato como um grande escritor, jornalista, pensador e crítico nos seus dias, esta breve biografia contemplou, com ajuda de algumas bibliografias, os passos de Lobato em seu tempo. Faz-se necessário registrar o apreço de muitos e muitos estudiosos do escritor e suas obras, como sendo um influenciador sobre toda a literatura geral, infantil e jornalismo, assim como um divisor de águas com relação a progressos na área da editoração e impressão no Brasil. Sempre com projetos de vanguarda, Lobato desenvolveu inúmeros empreendimentos não somente no campo da leitura e escrita, mas também no campo do comércio, indústria a propaganda. Teve sede por justiça e mudança de rumos econômicos e políticos do Brasil; foi um defensor ferrenho do progresso e modernização do país em prol de melhores condições de vida ao povo, melhor distribuição de renda e esclarecimento intelectual via comunicação pela escrita e leitura. Em Nova Iorque, Lobato conhece dois de seus grandes amigos daí por diante, Artur Coelho e Anísio Teixeira, sendo esse último o grande motivador de Lobato no investimento total em literatura didática, peça que se tornava cada vez mais frequente nas obras do mesmo. Quando no Brasil, com o mesmo amigo, Anísio Teixeira, Lobato planeja fundar em épocas de sufocamento frente ao Estado Novo, uma escola modelo: um centro educacional, por ele mesmo financiado e com Anísio Teixeira à frente (BIGNOTTO, 1999). O financiamento viria de suas companhias de petróleo, pois imaginava a concretização de seu sonho petrolífero, porém a escola não sairia do papel. Lobato e Teixeira, não estavam de acordo com os rumos que o Estado Novo estava levando os ideais escolanovistas, tanto que imaginaram essa escola modelo totalmente desvinculada dos moldes escolares que vigoravam no Brasil ditado pelo regime totalitarista de Vargas. Lobato adere a Teixeira e os ideais da Escola Nova, chamadas por ele de Escola Progressista, e ajuda a difundir ideias que para o escritor já haviam ocorrido na prática; assim Teixeira teorizava várias ideias que de antemão o escritor já as haviam colocado em prática em sua literatura (BIGNOTTO, 1999). 23 Na tensa prática lobatiana sempre escrevendo em prol de um Brasil digno de se viver, e nessa empreitada Lobato não estava só: tanto ele como os educadores, tais como Anísio Teixeira, inconformados com a pasmaceira vigente, também propuseram revoluções que puseram o país à reflexão. O panorama político do Brasil na década de 20 e 30 ainda resguardava os ranços da velha república, com suas oligarquias rurais, barões e uma sociedade timbrada por costumes europeus. O movimento da escola progressiva foi inspirado na liberdade criativa a qual era defendida por um de seus pioneiros, Anísio Teixeira. O modelo de sociedade da época era do domínio aristocrático, e mesmo com a instauração da República no país, a liberdade democrática experimentada por países como os Estados Unidos ainda estava longe do Brasil. Dentro desse argumento, Anísio Teixeira e os pioneiros da Escola Nova julgaram ser o sistema escolar o principal pivô das amarras contrarias à liberdade. A Escola Nova, não isola a educação dos processos sociais, não sendo o aluno que deve se adaptar à escola, ao professor, e ao seu método. Mas sim a escola quem deve responder criativamente aos desafios da realidade. Escola e sociedade fazem parte de um todo, e se articulam dialeticamente ou para gerar a liberdade ou então para perpetuar sociedades segregadoras e exclusivistas, modelos implementados pela escola tradicional. A Escola Nova versava premissas e ideais apoiados no Pragmatismo de John Dewey para fundamentar a democracia e educação proposta pelo movimento. Com o início do país na integração do processo de industrialização e urbanização, a idéia de modernização se tornou imprescindível, mudando na conjuntura total do país. Para tal mudança a escola era vista como o principal palco para efetivar toda a transformação almejada para a sociedade brasileira, ideias de renovação da escola (CUNHA, 1999; 2001). Para tal implementação, [...] o pensamento de John Dewey foi utilizado pelos educadores brasileiros, [...], para discutir a educação no campo dos valores fundamentais do homem e da vida em sociedade. A característica marcante de todos os discursos inspirados na filosofia deweyana é que tais valores não são dados a priori, mas buscados na situação de um mundo em permanente mudança. Sob a influência de Dewey, a perspectiva de fundar a educação sobre princípios normativos implicava que estes jamais fossem estabelecidos de maneira definitiva, fixa e categórica, dado que a realidade é algo em permanente movimento (CUNHA, 2001, p. 97). Diferentemente do que se tornou o pragmatismo de Dewey após a segunda guerra mundial, o ideário escolanovista primava pela democracia e liberdade. A industrialização vertiginosa imprimida pelas políticas nacionais no período pós-guerra buscou para a 24 educação, um sentido de tradutora dos processos científicos, que por sua vez eram considerados a solução para o desenvolvimento da democracia. Anísio Teixeira defendia que a objetividade científica devia ser conduzida pelo caráter provisório do conhecimento científico, sendo que a ciência não oferece uma receita para a solução definitiva e imutável dos problemas nacionais. Extrai de Dewey o sentido de movimento, mudança e transformação: “a escola, a sociedade e o progresso científico jamais assumem formas estáticas e definidas, quando em ambiente democrático” (CUNHA, 2001). A “sociedade em permanente mudança”, sob a democracia, continha, em sua essência, a possibilidade de conflito, discussão e reflexão dirigidas pela coletividade. No contexto de uma sociedade assim, em “indefinido estado de reconstrução”, os problemas educacionais não podiam ser vistos como estritamente técnicos, solucionáveis pela mera aplicação de saberes científicos, supostamente objetivos e inquestionáveis. As questões educacionais apresentavam-se, então, como “um problema de filosofia de educação” (TEIXEIRA, 1930 apud CUNHA, 2001). Nas bases da teoria de John Dewey, Anísio Teixeira e os pioneiros da Escola Nova viram sentido da fundamentação para a mudança que os mesmos compartilhavam para uma efetiva contribuição educacional, social e política para o Brasil na década de 20. Através de Anísio Teixeira um companheiro de ideais, Lobato compartilha com os avanços da escola progressiva. Nas palavras de Teixeira: [...] companheiros inseparáveis que buscaram entender e interpretar juntos o laborioso triunfo americano. Ele [Lobato], mais voltado para as coisas econômicas; eu [Teixeira], para os aspectos da educação, ambos, entretanto, norteados por um sadio idealismo comum de humanidade melhor e mais feliz (TEIXEIRA, 1989). Como relata Russeff (2002): “Lobato mantinha-se na condição de diletante entusiasmado com as mudanças iniciadas nos anos 30 pelos escolanovistas, repudiando, no que podia compreender, o ensino tradicional” (RUSSEFF, 2002). Nas palavras de Lobato: “nas escolas futuras, muitas disciplinas inúteis, ensinadas hoje, serão substituídas por outras de alto utilitarismo” (LOBATO, 1959, p. 213). A pedagogia lobatiana permanecia de acordo com os ideais escolanovistas, não como sendo reprodução prática dos mesmos, mas envolvido no mesmo ideário (CATINARI, 2006). A invenção do Sítio foi da parte de Lobato uma viva prova do comprometimento do escritor e editor com um projeto literário-pedagógico voltado exclusivamente ao público infantil. Em concordância a tal argumento Catinari (2006) coloca: 25 Foi a visão futurista e pragmática acerca do mundo editorial que o levou a escrever uma obra dedicada às crianças. O escritor, de modo distinto da mentalidade empresarial de sua época, soube ver a criança como um público consumidor em potencial de uma literatura específica de qualidade, que pudesse vir a ser promovida e divulgada pela escola (CATINARI, 2006). Comparando trechos de Monteiro Lobato e Anísio Teixeira, pode-se estabelecer um paralelo bem próximo, que os dois textos fazem dirigindo-se a um mesmo foco, o ideal da educação progressiva. Nas palavras de Lobato (1959): Recordando minha vida colegial vejo quão pouco os mestres contribuíram para a formação do meu espírito. No entanto, a Julio Verne todo um mundo de coisas eu devo! E a Robinson? Falaram-me à imaginação, despertaram- me a curiosidade — e o resto se fez por si. Julio Verne levou-me a Humboldt, e depois à Geografia e às demais ciências físicas e sociais.(...) A inteligência só entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginação lhe serve de guia. A bagagem de Julio Verne, amontoada na memória, faz nascer o desejo de estudo. Suportamos e compreendemos o abstrato só quando existe material concreto na memória. Mas pegar de uma pobre criança e pô-la a decorar nomes de rios, cidades, golfos, mares, como se faz hoje, sem intermédio da imaginação, chega a ser criminoso. É no entanto o que se faz!... A arte abrindo caminho à ciência: quando compreenderão os professores que o segredo de tudo está aqui? (LOBATO, 1959, p. 8). Em paralelo, as palavras de Teixeira (1954): A nova escola deve ser: 1. Uma escola de vida e de experiência para que sejam possíveis as verdadeiras condições do ato de aprender; 2. Uma escola onde os alunos são ativos e onde os projetos formem a unidade típica do processo da aprendizagem. Só uma atividade querida e projetada pelos alunos pode fazer da vida escolar uma vida que eles sintam que vale a pena viver. 3. Uma escola onde os professores simpatizem com as crianças sabendo que só através da atividade progressiva dos alunos podem eles se educar, isto é, crescer, e que saibam ainda que crescer é ganhar cada vez melhores e mais meios de realizar a própria personalidade dentro do meio social onde se vive (TEIXEIRA, 1954, p. 46). Como considera Nunes (2004), o principal ponto de convergência entre Lobato e Teixeira reside no pensamento de uma educação para filosofar, não apenas considerando os 26 aspectos lógicos, como os morais e políticos. Tanto o ponto de vista literário de Lobato, quanto o pedagógico de Teixeira, via nessa filosofia um modo de modernização da [...] sociedade brasileira em termos materiais e em termos espirituais, além de perspectivarem uma forma de vida social que fosse democrática, traduzida, respectivamente, na filosofia da educação anisiana e na literatura infantil lobatiana, ocorrendo aí seu principal ponto de concordância (NUNES, 2004). Lobato e Teixeira compartilharam o mesmo ideal assim como seus modos de visualizar as questões relacionadas a educação e encontram respaldo um no outro. Mesmo Lobato tendo implementado muito antes em sua literatura a vanguarda educacional que os pioneiros da educação defendiam, faz-se necessária à vinculação tanto de um como do outro aos ideais da escola progressiva. 27 Para melhor fundamentar a análise proposta é preciso primeiramente compreender o que se pretende chamar de conceito científico. As passagens abordadas na obra escolhida são estudadas em busca de conhecimentos científicos. Contudo, há uma série de interpretações sobre como a ciência se desenvolve, elucidando assim, o que seria uma informação cientificamente válida. A preocupação da pesquisa em educação para a ciência, ao analisar algumas das diversas concepções, pode consistir na busca pela melhor maneira de ensinar o aluno de forma significativa. As concepções implicitamente manifestadas no material de ensino podem ser importantes para a decisão sobre seu uso ou não. A seguir apresentamos as principais proposições sobre o conhecimento científico. Inicialmente, é importante compreender o significado do termo epistemologia, que, de forma sintética, pode ser definido como o estudo da ciência ou estudo do conhecimento. Esse termo é usado para indicar o estudo da origem e do valor do conhecimento humano em geral, ou também para tratar do estudo das ciências ditas empíricas (física, química, etc), seus princípios, critérios, valores, conceitos, verdades etc (BADARÓ, 2001). Essa forma de conceber ciência pode ter significações distintas. De forma geral, essa busca por entender o significado do conhecimento, a relação deste com a realidade e a capacidade humana de conhecer essa realidade de maneira mais ou menos objetiva, foi preocupação de diversos pensadores desde a antiguidade (ZANETIC, 2004). Um dos primeiros a estudar e sistematizar o conhecimento científico foi o filósofo inglês Francis Bacon (1561–1626), considerado o precursor em estabelecer roteiros metodológicos na busca pela explicação dos fenômenos naturais. É considerado o maior 28 expoente do que é conhecido hoje como Método Científico Tradicional ou Método Indutivista (ZANETIC, 2004). O princípio da indução é descrito tal que, se um amplo conjunto de dados extraídos de um determinado fenômeno denominado genericamente X forem observados sob uma ampla variedade de condições, e se todos esses dados observados, sem exceção, concordarem que o fenômeno X possui a característica Y, então todos X possuem a característica Y (CHALMERS, 1993). Ou seja, a partir de finitas analises de um determinado fenômeno é possível extrair um enunciado geral que contemple todas as possibilidades de ocorrência do referido fenômeno. Chalmers (1993) alerta que essa é uma concepção de senso comum da ciência amplamente aceita no mundo contemporâneo. Segundo ele, a visão de que o conhecimento científico é construído apenas da análise sensorial é expressa em afirmações do tipo: Conhecimento científico é conhecimento provado. As teorias científicas são derivadas de maneira rigorosa da obtenção dos dados da experiência adquiridos por observação e experimento. A ciência é baseada no que podemos ver, ouvir, tocar, etc. Opiniões ou preferências pessoais e suposições especulativas não têm lugar na ciência. A ciência é objetiva. O conhecimento científico é conhecimento confiável porque é conhecimento provado objetivamente (CHALMERS, 1993). O que é possível destacar com relação à concepção Indutivista, é que esse método encontraria, mais adiante, alguns opositores e teriam suas principais inconsistências apontadas por outros filósofos e cientistas especialmente com relação à concepção de que o conhecimento provém apenas da observação. Chalmers (1993) argumenta: Uma resposta comum à afirmação que estou fazendo sobre a observação, apoiada pelos tipos de exemplos que utilizei, é que observadores vendo a mesma cena do mesmo lugar vêem a mesma coisa mas interpretam o que vêem diferentemente (CHALMERS, 1993). Ao contrário do que era tido como um método que protegeria a ciência de critérios subjetivos como tradições, preconceitos e ideologias, o método indutivista tradicional demonstra ser, de certa forma, uma concepção ingênua de tratar o conhecimento científico (CHALMERS, 1993). Bertrand Russell (1872–1970), um dos fundadores da filosofia analítica, em sua obra, ilustra um problema característico do raciocínio puramente indutivo: 29 Bacon foi o primeiro de uma longa série de filósofos de espírito científico que ressaltou a importância da indução como coisa oposta à dedução. Como a maioria de seus sucessores, procurou encontrar algum tipo de indução melhor do que a chamada "indução por simples enumeração". A indução, como simples enumeração pode ser ilustrada por meio de uma parábola. Era uma vez um empregado do censo que tinha de anotar os nomes de todos os chefes de família de uma certa aldeia de Gales. O primeiro que ele interrogou se chamava William Williams; o mesmo aconteceu com o segundo, o terceiro, o quarto ... Por fim, disse com seus botões: "Isto é tedioso; todos eles se chamam, evidentemente, William Williams. Anotarei assim todos eles e tirarei uma folga." Mas estava equivocado; havia um cujo nome era John Jones. Isto mostra que podemos extraviar-nos, se confiarmos demasiado implicitamente na indução por simples enumeração (RUSSELL, 1967). Entretanto, de forma alguma, isso tira o mérito desse método ter contribuído para a o desenvolvimento do pensamento científico, sobretudo na sistematização do conhecimento. Como alternativa à concepção indutivista, tem-se o método proposto pelo crítico do método indutivo, o filósofo austríaco Karl Popper (1902–1994). Em sua principal obra, A lógica da pesquisa científica, Popper argumenta à respeito da concepção indutivista: [...] está longe de ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independente de quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode revelar-se falsa (POPPER, 1972). Ou seja, o problema da indução residia especialmente no fato de que uma única observação contrária à teoria seria suficiente para desprezá-la. Uma descrição de uma observação ou de um experimento só pode ser um enunciado singular e não um enunciado universal (POPPER, 1972). Assim, o verificacionismo indutivista seria substituído pelo falseamento popperiano, que pode ser melhor compreendido a partir da argumentação de Magee (1974): 30 A solução de Popper principia apontando para a assimetria lógica existente entre a verificação e o falseamento. Pondo o ponto em termos da lógica sentencial: embora não exista número de enunciados de observação relatando a observação de cisnes brancos que permita derivar o enunciado universal “Todos os cisnes são brancos”, um só enunciado de observação, relatando uma única observação de cisne preto, é suficiente para permitir a dedução lógica do enunciado “Nem todos os cisnes são brancos”. Neste importante sentido lógico, as generalizações empíricas, embora não verificáveis, são falseáveis. Isto significa serem as leis suscetíveis de teste, ainda que não sejam demonstráveis: podem as leis científicas ser submetidas a teste mediante sistemático esforço dirigido para sua refutação (MAGEE, 1974). O método popperiano, segundo Zanetic (2004) basicamente seguiria os passos descritos a seguir: 1. existência de um problema a ser resolvido; 2. procura de soluções para o problema através da elaboração de várias hipóteses tentativas e a escolha de uma delas segundo o critério de aceitar aquela que apresenta maior grau de possibilidades de refutação; 3. dedução de consequências dessa hipótese; 4. critério de refutabilidade em ação: a hipótese é testada, isto é, procura-se refutá-la buscando contra-exemplos significativos; 5. passando por esse teste, isto é, na ausência de refutação, a hipótese se transforma na nova teoria; 6. em caso de uma descoberta refutadora ou de uma dedução não confirmada, voltamos ao estágio inicial (ZANETIC, 2004). Um conceito importante abordado por Popper é o conceito de verdade. Segundo ele a busca pela verdade a respeito da natureza consiste no objetivo maior da ciência, mesmo essa verdade sendo, para Popper, inatingível. Assim, resta ao cientista buscar uma aproximação dessa verdade, e para tanto estabelecer, através do critério de refutabilidade, a construção do conhecimento de hipóteses e refutações em sucessão. Sobre isso, argumenta Popper (1972): O cientista aspira a uma descrição verdadeira do mundo ou de alguns de seus aspectos e a uma explicação verdadeira dos fatos observáveis, mesmo podendo não ser verdadeira. Mesmo quando não é possível mostrar que são verdadeiras, são tentativas de descobrir a verdade (POPPER, 1972). Mas, ainda assim, esse não seria o método mais adequado segundo Chalmers (1993), pois Falsificações conclusivas seriam descartadas pela falta de uma base observacional perfeitamente segura da qual elas dependem (CHALMERS, 1993): 31 As teorias podem ser conclusivamente falsificadas à luz das provas disponíveis, enquanto não podem jamais ser estabelecidas como verdadeiras ou mesmo provavelmente verdadeiras qualquer que seja a prova. A aceitação da teoria é sempre tentativa. A rejeição da teoria pode ser decisiva. Este é o fator que faz com que os falsificacionistas mereçam seu título. As afirmações do falsificacionista são seriamente solapadas pelo fato de que as proposições de observação dependem da teoria e são falíveis. Isto pode ser visto imediatamente quando se lembra da particularidade lógica invocada pelo falsificacionista em apoio à sua afirmação. Se são dadas proposições de observação verdadeiras, então é possível deduzir logicamente a falsidade de certas proposições de observação, enquanto não é possível deduzir a verdade de qualquer proposição de observação (CHALMERS, 1993). Outro aspecto que poderia ser utilizado para a refutação dos discursos indutivistas ou falsificacionistas é com respeito à análise histórica do desenvolvimento do conhecimento científico. A necessidade e o desejo de proposição de uma teoria da ciência que fosse coerente com as características sociológicas da comunidade científica e com a situação histórica desse desenvolvimento levaram o físico, historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922– 1996) a propor uma concepção alternativa em seu livro A estrutura das Revoluções científicas. A teoria de Kuhn (1975) enfatiza o caráter revolucionário do progresso científico. Nesse processo, uma revolução na ciência resulta no abandono de uma estrutura teórica e na substituição por outra. O processo de progressão do conhecimento científico segue, de acordo com Kuhn (1975), a lógica esquematizada a seguir: 32 Figura 1 – Esquema para progresso da ciência segundo as ideias de Kuhn. Kuhn (1975) define ciência normal como a pesquisa que se baseia em realizações científicas que são reconhecidas em um determinado período, por uma determinada comunidade científica, tendo assim os fundamentos para a prática sequente (KUHN, 1975). A prática dessa ciência normal englobaria em sua construção: uma bagagem conceitual característica (conceitos e leis científicas), o desenvolvimento instrumental para a obtenção de dados (equipamento experimental e seu modo de uso), além, é claro, da abordagem epistemológica (filosofia dominante). Essa prática não é difícil de ser observada nos ambientes científicos e no meio acadêmico. Os conceitos descritos acima, jamais são compreendidos e transmitidos de forma abstrata, e o processo de aprendizagem é sempre relacionado à vasta aplicação, seja ela teórica ou experimental. A respeito disto, Zanetic (2004) comenta: A ciência normal, segundo Thomas Kuhn, representaria o procedimento de investigação científica da quase totalidade dos cientistas num determinado período histórico, enquanto a revolução científica representaria a atividade posta em prática por determinados cientistas em épocas especiais da história da ciência, por razões que deverão ser esclarecidas mais adiante. Essa divisão da prática científica em função dos períodos históricos leva Kuhn a introduzir conceitos sociológicos, como o de comunidade científica, na formulação de sua proposta (ZANETIC, 2004). As realizações científicas vão sendo gradativamente absorvidas ao conhecimento científico de uma comunidade, sob diversas formas, que vão desde conceitos até aparato 33 experimental. Essa junção de aspectos compõe o que Thomas Kuhn define como paradigma. O período de ciência normal é, então, caracterizado por um único paradigma que orientaria a produção de conhecimento científico (ZANETIC, 2004). Chalmers (1993) coloca o conceito de paradigma como: Um paradigma é composto de suposições teóricas gerais e de leis e técnicas para a sua aplicação adotadas por uma comunidade científica específica. Os que trabalham dentro de um paradigma, seja ele a mecânica newtoniana, ótica de ondas, química analítica ou qualquer outro, praticam aquilo que Kuhn chama de ciência normal. Os cientistas normais articularão e desenvolverão o paradigma em sua tentativa de explicar e de acomodar o comportamento de alguns aspectos relevantes do mundo real tais como relevados através dos resultados de experiências (CHALMERS, 1993). Nesse processo, os cientistas estão suscetíveis a obstáculos e falsificações aparentes. Essa falsificação pode ser resultado de um desenvolvimento instrumental ou simplesmente de anomalias detectadas no paradigma vigente. Caso essas dificuldades tomem proporções que fujam do controle da ciência normal, estabelece-se um período de crise, que é resolvida com o surgimento de um novo paradigma que conquiste a adesão de grande parte da comunidade científica, sendo assim, o paradigma anterior é abandonado. Esse processo de mudança é entendido por Kuhn (1975) como uma Revolução Científica. Após o período de Revolução, uma nova ciência normal passa a ser orientada pelo novo paradigma, até que surjam novas dificuldades e/ou inconsistências que resultem em nova Revolução na ciência. Entretanto, essa mudança de paradigma por parte dos cientistas é comparada a uma conversão religiosa. Isso ocorre, pois não existiria argumentação suficientemente lógica que demonstrasse a superioridade de um paradigma sobre outro forçando, assim, um cientista racional a optar pela conversão. Tal demonstração não é viável devido à complexidade de aspectos envolvidos no julgamento do cientista quanto a uma teoria científica. As ideias do filósofo austríaco Paul Feyerabend (1924–1994) ocupam um lugar de destaque entre os estudos dos processos envolvidos na construção do conhecimento científico. 34 O próprio Feyerabend no início de sua obra Contra o Método introduz sua intenção ao propor sua concepção: “Este ensaio é escrito com a convicção de que o anarquismo epistemológico, embora não constituindo, talvez, a mais atraente filosofia política, é, por certo, excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência” (FEYERABEND, 1977). Paul Feyerabend afirma que a existência de um único método científico não passava de um “mito que não resistiria a qualquer investigação da história da ciência” (ZANETIC, 2004). Ele busca ainda apoio, inclusive, em Einstein (1951) para seu ponto de vista: As condições externas que os fatos da experiência colocam (diante do cientista) não lhe permitem, ao erigir seu mundo conceitual, que ele se prenda em demasia a um dado sistema epistemológico. Em conseqüência, o cientista aparecerá, aos olhos do epistemologista que se prende a um sistema, como um oportunista inescrupuloso [...] (EINSTEIN, 1951, apud FEYERABEND, 1977). Citando, novamente Feyerabend (1977) em colaboração, a argumentativa: A ideia de que a ciência pode e deve ser governada de acordo com regras fixas e universais é simultaneamente não-realista e perniciosa. E, não- realista, pois supõe uma visão por demais simples dos talentos do homem e das circunstâncias que encorajam ou causam seu desenvolvimento. E é perniciosa, pois a tentativa de fazer valer as regras aumentará forçosamente nossas qualificações profissionais à custa de nossa humanidade. Além disso, a ideia é prejudicial à ciência, pois negligencia as complexas condições físicas e históricas que influenciam a mudança científica. Ela torna a ciência menos adaptável e mais dogmática [...] (FEYERABEND, 1977). Outro aspecto na argumentação de Feyerabend é o da inexistência de um método de trabalho na construção da ciência que não tenha sido menosprezado em algum momento. Isto implica no caráter limitado da validade das metodologias defendidas anteriormente (ZANETIC, 2004). A meta, segundo ele, seria recuperar o caráter humano que a ciência teria esquecido. Essa concepção compreende a forma anarquista do trabalho do cientista, utilizando métodos e práticas conforme sua necessidade de avanço da sua compreensão do mundo. A essência do empirismo (ideias verificacionistas) é uma das primeiras vítimas da contraregra de Feyerabend. Ele propõe que o cientista deva proceder contra-indutivamente, 35 defendendo que uma teoria deveria levar a predição de fatos que rompessem com as expectativas correntes, e não apenas confirmar fatos já consumados. Zanetic (2004) completa: O cientista seria livre para praticar aquilo que mais lhe agrade, podendo - na verdade, devendo - propor hipóteses que estariam em flagrante contradição com as teorias confirmadas ou mesmo com as evidências experimentais que definem até uma tradição de como ver. O cientista inovador tem que persuadir os outros cientistas a aceitar seus fatos novos e de que estes se ajustam às novas teorias. Aliás, Feyerabend não propõe simplesmente a substituição de uma teoria antiga por uma teoria nova. Ao contrário, ele sugere a proliferação de teorias como muito mais benéfica para a ciência que a uniformidade que lhe debilita o poder crítico. Assim a ciência progrediria muito mais, afirma Feyerabend, se houvesse uma construção de teorias revolucionárias que fornecessem, cada uma isoladamente, suas visões de mundo (ZANETIC, 2004). Esse argumento pode ser observado nos argumentos de Feyerabend (1977): Unanimidade de opinião pode ser adequada para uma igreja, para as vítimas temerosas ou ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno) ou para os fracos e conformados seguidores de algum tirano. A variedade de opiniões é necessária para o conhecimento objetivo. E um método que estimule a variedade é o único método compatível com a concepção humanitarista (FEYERABEND, 1977). Por fim, é útil salientar ainda, a crítica feita por Feyerabend a aqueles que vêm a ciência como uma forma de conhecimento superior às demais. Chalmers (1993) resume essa concepção: Feyerabend reclama, justificadamente, que os defensores da ciência a julgam superior a outras formas de conhecimento sem investigar de forma adequada estas outras formas. Ele Feyerabend não está preparado para aceitar como necessária a superioridade da ciência sobre outras formas de conhecimento [...] Deste ponto de vista humanitário, a visão anarquista de ciência de Feyerabend ganha sustentação porque, no interior da ciência, ele aumenta a liberdade dos indivíduos encorajando a remoção de todas as restrições metodológicas, ao passo que, num contexto mais amplo, ele encoraja a liberdade dos indivíduos de escolher entre a ciência e outras formas do conhecimento. Do ponto de vista de Feyerabend a institucionalização da ciência em nossa sociedade é inconsistente com a atitude humanitária. Nas escolas, por exemplo, a ciência é ensinada rotineiramente (CHALMERS, 1993). Para concluir o relato da concepção anárquica, a seguir consta o relato que Zanetic (2004) considera como a profissão de fé epistemológica de Feyerabend (1977): 36 Em resumo: para onde quer que olhemos, sejam quais forem os exemplos por nós considerados, verificamos que os princípios do racionalismo crítico (tomar os falseamentos a sério; aumentar o conteúdo; evitar hipóteses ad hoc; “ser honesto” - signifique isso o que significar; e assim por diante) e, a fortiori, os princípios do empirismo lógico (ser preciso; apoiar as teorias em medições; evitar ideias vagas e imprecisas; e assim por diante) proporcionam inadequada explicação do passado desenvolvimento da ciência e são suscetíveis de prejudicar-lhe o desenvolvimento futuro. Proporcionam inadequada versão da ciência, porque esta é muito mais “fugidia” e “irracional” do que sua imagem metodológica. E são suscetíveis de prejudicar a ciência, porque a tentativa de torná-la mais “racional” e mais precisa pode, como vimos, destruí-la. (...) Sem “caos”, não há conhecimento. Sem freqüente renúncia à razão, não há progresso. Ideias que hoje constituem a base da ciência só existem porque houve coisas como o preconceito, a vaidade, a paixão; (...) Não há uma só regra que seja válida em todas as circunstâncias, nem uma instância a que se possa apelar em todas as situações. (...) Há mitos, há dogmas de teologia, há metafísica e há muitas outras maneiras de elaborar uma cosmovisão. Faz-se claro que uma conveniente interação entre a ciência e essas cosmovisões “não científicas” necessitará do anarquismo ainda mais que a própria ciência. E, assim, o anarquismo não é apenas possível, porém, necessário, tanto para o progresso interno da ciência, quanto para o desenvolvimento de nossa cultura como um todo (FEYERABEND, 1977 apud ZANETIC, 2004). O matemático, engenheiro, químico, filósofo, epistemólogo, poeta e crítico literário, Gaston Bachelard (1884–1962) queria “desvelar o lado secreto do mundo”. Dizia ele mesmo, que isso somente seria possível “rompendo com o aparente”. De acordo com sua concepção, as imagens e os conceitos formam os dois pólos opostos da atividade intelectual representados pela imaginação e pela razão. A imaginação desfrutaria de total liberdade com relação à sua vinculação com o mundo real. Ou seja, os produtos de natureza poético-literária não necessitam, necessariamente, de ligação com a realidade. Já com relação à razão, no campo do pensamento científico, as conjecturas intelectuais não poderiam ser totalmente livres, pois há um compromisso determinante com o real (ZANETIC, 2004). Em seu discurso preliminar em seu livro A formação do Espírito Científico o próprio Bachelard afirma: 37 Nossa proposta, neste livro, é mostrar o grandioso destino do pensamento científico abstrato. Para isso, temos de provar que pensamento abstrato não é sinônimo de má consciência científica, como parece sugerir a acusação habitual. Será preciso provar que a abstração desobstrui o espírito, que ela o torna mais leve e mais dinâmico (BACHELARD, 2002). Bachelard é o principal defensor do que se denomina Racionalismo Científico. Segundo essa concepção, a ciência é obra da razão humana, semelhante a uma máquina, gerada pela própria razão, cuja funcionalidade é posta em estudo. Novamente citando o próprio Bachelard (2002): “[...] é o esforço de racionalidade e de construção que deve reter a atenção do epistemólogo. Percebe-se assim a diferença entre o ofício de epistemólogo e o de historiador da ciência” (BACHELARD, 2002). Para Bachelard não existe continuidade entre a ciência e o senso comum, para ele, não existe mais do que uma diferença de profundidade, portanto, ausência de continuidade epistemológica. Isso devido, em grande parte, à superação do empirismo, resultado do racionalismo (JAPIASSU, 1976). O novo cientista não se satisfaz com aproximações puramente empíricas sobre os objetos de estudo. As experiências são as realizações teóricas por excelência. Na nova ciência os métodos não são mais baseados nos sentidos, na experimentação comum, mas aproximam- se através da teoria por intermédio da razão humana. A formação do espírito científico, segundo Bachelard (2002) passaria por três estados característicos: Inicialmente, o estado concreto, consiste no estado em que “o espírito se entretém com as primeiras imagens do fenômeno e se apoia numa literatura filosófica que exalta a Natureza, louvando curiosamente ao mesmo tempo a unidade do mundo e sua rica diversidade” (BACHELARD, 2002). No estado concreto-abstrato, [...] o espírito acrescenta à experiência física esquemas geométricos e se apóia numa filosofia da simplicidade. O espírito ainda está numa situação paradoxal: sente-se tanto mais seguro de sua abstração, quanto mais claramente essa abstração for representada por uma intuição sensível (BACHELARD, 2002). Por fim, no estado abstrato, “o espírito adota informações voluntariamente subtraídas à intuição do espaço real, voluntariamente desligadas da experiência imediata e até em polêmica declarada com a realidade primeira, sempre impura, sempre informe” (BACHELARD, 2002). 38 Bachelard (2002) promove ainda, uma luta contra os obstáculos que se colocam contra o desenvolvimento do pensamento científico. Esses são os chamados obstáculos epistemológicos. Zenetic (2004) define a idéia de obstáculo epistemológico como “[...] conceitos ou pré-conceitos adquiridos através de uma relação supostamente ingênua com os fenômenos, sejam eles relativos ao universo físico ou psíquico” (ZANETIC, 2004). Esses obstáculos podem ser observados inclusive no campo da educação, e os responsáveis pela tentativa de romper com esses obstáculos, recebem a crítica de Bachelard (2002) que, por cerca de dezesseis anos se dedicou ao ensino secundário, ministrando as mais diferentes disciplinas. Extraindo a inspiração para algumas importantes incursões pedagógicas: Os professores de ciências imaginam que o espírito começa como uma aula, que é sempre possível reconstruir uma cultura falha pela repetição da lição, que se pode fazer entender uma demonstração repetindo-a ponto por ponto. Não levam em conta que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos empíricos já constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana (BACHELARD, 2002). Com estes estudos acerca das concepções sobre epistemologia da ciência vemos que não é precisamente possível definir de maneira única o que seja um conceito científico, mas uma série de interpretações para estes. Essa revisão é importante, pois, dado que assumimos a necessidade de se estudar a presença de conceitos científicos na obra de Lobato, é importante verificarmos em qual dessas ideias está ancorada a concepção do autor ao apresentar, mesmo que implicitamente, ciência em suas obras e a partir disso, analisar seu potencial de ensino de ciências. Um aspecto a ser destacado nesta discussão a respeito das concepções de ciência é com relação ao poder por vezes atribuído ao Conhecimento Científico e a Ciência. Em geral, a sociedade vê os cientistas como gênios solitários e loucos, admirando-os como magos vestidos com suas roupas brancas no interior de seus pomposos laboratórios, abarrotados de 39 instrumentos incompreensíveis, na companhia de outros magos, fazendo cálculos e conjecturas sobre-humanas. Essa concepção integra a perspectiva de senso comum a respeito do conhecimento científico, na qual a ciência é tida como algo a parte da realidade, com finalidade única de buscar, desinteressadamente, a solução de problemas (BADARÓ, 2001). Mas essa concepção, entretanto, não resiste a uma análise do desenvolvimento do conhecimento científico no decorrer do tempo, afinal: “[...] Muitas certezas em relação ao conhecimento científico foram abaladas, fazendo surgir novos questionamentos e reavaliações dos critérios de verdade e validade dos métodos e teorias científicas [...]” (BADARÓ, 2001). Mesmo assim, observa-se que ao longo desse desenvolvimento, a ciência tornou-se a detentora de uma verdade quase que absoluta, exercendo um domínio extraordinário na consciência da humanidade. A perspectiva do homem comum é submetida a mecanismos de racionalização sendo este obrigado, de certa forma, a crer na neutralidade e no desinteresse daquilo que se apresenta como científico. Essa concepção e essa utilização do discurso científico só são possíveis, segundo Badaró (2001), a partir do que ele define como O Mito do cientificismo ou A Ideologia Cientificista: [...] O cientificismo como crença infundada de que a ciência pode e deve explicar tudo, que, de fato conhece tudo e é a explicação causal das leis da realidade tal como esta em si mesma [...]. A Mitologia e Ideologia cientificistas encaram a ciência não pelo prisma do trabalho, mas pelo prisma dos resultados (apresentados como espetaculares e miraculosos) e, sobretudo como uma forma de poder social e de controle do pensamento humano [...] (BADARÓ, 2001). Toda essa abordagem idealizada é utilizada para manter de forma imperativa a crença no poderio ilimitado da ciência sobre tudo. Compreende também, a crença na suposta neutralidade científica, conferindo assim, ao conhecimento científico, um lugar de destaque frente aos demais saberes, sendo imposta como um conjunto de verdades absolutas, inquestionáveis, atemporais, trazendo para si uma qualidade normalmente atribuída à religião. Nos diversos níveis de educação pode-se observar tal tratamento. O senso comum cientificista impera, levando o homem comum a crer na ciência como “a busca desinteressada na solução de problemas”, cujas finalidades são supostamente dissociadas de intenções. 40 [...] o senso comum, não enxerga que a maioria dos resultados científicos que usamos em nossa vida cotidiana – máquinas, remédios, fertilizantes, produtos de limpeza, computadores – teve como origem investigações militares estratégicas, competições econômicas entre grandes empresas, competições políticas entre estados, etc. Deste modo, quando a razão científica se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros, ou pelo menos a busca dos mesmos, para se tornar um instrumento de dominação, poder e exploração. Para que não seja percebida como tal passa a ser sustentada pela ideologia cientificista, que através de mecanismos eficazes de ideologia invade as escolas, os meios de comunicação reforçando a ideologia e mitologia cientificista (BADARÓ, 2001). Essa concepção se remete ao positivismo, tal qual o concebeu Augusto Comte (1798–1857), como sendo a devoção à ciência, vista como único guia da vida individual e social, única moral e única religião possível. Assim o positivismo foi compreendido como a religião da humanidade. E assim Comte, através de “sua corrente filosófico-científica denominada positivismo, estende os pressupostos da ciência natural que nascia [no] âmbito das relações humanas” (CHAVES FILHO; CHAVES, 2000). Para Comte, o conhecimento científico teria de ser baseado na observação dos fatos e nas relações entre eles. Estas relações são as descrições das leis que regem o fenômeno. Portanto, para Comte, o conhecimento científico só seria possível quando se observasse o real, o concreto. Tudo aquilo que pudesse ser provado por meio de experiências seria considerado científico. As denominações: útil, certo, preciso, positivo, relativo e neutro, descreveriam as qualidades do conhecimento a ser produzido a partir da filosofia de Comte. Caberia ao conhecimento científico então, reconhecer a ordem da natureza e utilizá-la em benefício do homem (CHAVES FILHO; CHAVES, 2000). O positivismo esteve junto à organização técnico-industrial da sociedade moderna e fez com preponderância um elogio e incentivo ao industrialismo e a sociedade indu