UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS CAMPUS DE ARARAQUARA Isaías Eliseu da Silva A dramatização da crise dos valores sociais e humanos em Tess of the d’Urbervilles, de Thomas Hardy Araraquara – SP 2011 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS CAMPUS DE ARARAQUARA Isaías Eliseu da Silva A dramatização da crise dos valores sociais e humanos em Tess of the d’Urbervilles, de Thomas Hardy Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da narrativa Orientadora: Profª Drª Maria das Graças Gomes Villa da Silva Bolsa: CAPES Araraquara – SP 2011 Silva, Isaías Eliseu da. A dramatização da crise dos valores sociais e humanos em Tess of the d'Urbervilles, de Thomas Hardy / Isaías Eliseu da Silva – 2011 117 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Maria das Graças Gomes Villa da Silva l. Hardy, Thomas, 1840-1928. 2. Realismo. 3. Modernismo. 4. Sociedade vitoriana. 5. Mudança de valores. I. Título. 2 Isaías Eliseu da Silva AAA DDDRRRAAAMMMAAATTTIIIZZZAAAÇÇÇÃÃÃOOO DDDAAA CCCRRRIIISSSEEE DDDOOOSSS VVVAAALLLOOORRREEESSS SSSOOOCCCIIIAAAIIISSS EEE HHHUUUMMMAAANNNOOOSSS EEEMMM TTTEEESSSSSS OOOFFF TTTHHHEEE DDD’’’UUURRRBBBEEERRRVVVIIILLLLLLEEESSS,,, DDDEEE TTTHHHOOOMMMAAASSS HHHAAARRRDDDYYY Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da narrativa Orientadora: Profª Drª Maria das Graças Gomes Villa da Silva Bolsa: CAPES Data da aprovação: 23/05/2011 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profª Drª Maria das Graças Gomes Villa da Silva – UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Alcides Cardoso dos Santos – UNESP/Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Nelson Viana - UFSCAR Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 3 DEDICATÓRIA DEDICATÓRIA Aos meus pais, às minhas irmãs e ao meu saudoso avô Raimundo. 4 AGRADECIMENTO Agradeço aos meus pais, Francisco e Nair, às minhas irmãs, Ester e Raquel e ao meu saudoso avô Raimundo, pelo apoio irrestrito aos meus estudos e pela presença decisiva na minha trajetória pessoal. À Ana, minha noiva, pela cumplicidade indispensável. À minha orientadora, Profª Drª Maria das Graças Gomes Villa da Silva, pelos brilhantes ensinamentos desde a época da minha graduação. Aos professores doutores Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas, Alcides Cardoso dos Santos e Nelson Viana pela leitura e pelo diálogo acerca do trabalho desenvolvido. Aos amigos com quem convivi em Araraquara, ao longo da graduação, e àqueles que se somaram durante a pós-graduação, pelo companheirismo. Aos amigos e demais familiares em Caconde, pela partilha de experiência de vida. Aos funcionários da FCL, especialmente aos da Seção de Pós-graduação e aos da biblioteca, pelo apoio técnico. À CAPES, pela bolsa de mestrado. 5 EPÍGRAFE Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas. (MARX; ENGELS, 2005, p. 48). 6 RESUMO Thomas Hardy é um autor cuja produção se assenta no período que compreende o final do século XIX e o começo do século XX, momento que marca não apenas o fim de uma era histórica e o recomeço de novos tempos, mas caracteriza também uma ocasião de mudança na concepção literária. No caso inglês, aquele período apontava para um declínio da literatura vitoriana – com seus temas baseados na moral austera da época, ancorada na figura íntegra da rainha Vitória – e revelava os primeiros indícios de uma tendência literária voltada para o retrato do homem cindido, imerso no processo de crise existencial e destituído de muitas de suas antigas certezas. Este trabalho apresenta uma análise do romance Tess of the d’Urbervilles com vistas a flagrar, segundo o ponto de vista de Thomas Hardy, a crise de valores que se estabelece, quando o modo de produção capitalista avança sobre as antigas instituições feudais na Inglaterra daquele tempo e deflagra um processo de reconsideração dos papéis dos indivíduos na sociedade. O estopim desta efervescência foram os desdobramentos da Revolução Industrial e as inovações nos campos científico e cultural que convulsionaram os padrões de comportamento e colocaram em questionamento a própria conduta humana. Com ironia, a sociedade vitoriana é criticada e, seus costumes, em grande monta, são apresentados como hipócritas no romance de Hardy, que tem um desfecho fatalista e parece retratar a visão desencantada do homem daquele momento sobre o destino de sua própria espécie no mundo em ascendente ebulição. Publicado pela primeira vez em 1891 e concebido sob a forma realista, interessa à pesquisa o romance Tess of the d’Urbervilles justamente pelo seu caráter duplo: pertence ao cânone da literatura vitoriana e, ao mesmo tempo, antecipa a temática modernista do colapso da solidez humana. Para apontar esta crise, adotamos a posição de Raymond Williams que alega não ser Hardy simplesmente um autor regionalista apenas preocupado com o bucólico e o pitoresco, mas interessado de maneira mais profunda em questões humanas essenciais que, em determinados aspectos, permanecem contemporâneas. Palavras-chave: Tess of the d’Urbervilles. Mudança de valores. Sociedade vitoriana. Realismo. Modernismo. 7 ABSTRACT Thomas Hardy’s works are set in a time comprehending the end of nineteenth century and the beginning of twentieth century, a period that not only highlights the end of a historical era and the beginning of a new time, but also characterizes an occasion of change in literary conception. That period in England was representative of the decay of Victorian literature – with moral-based themes inspired in Queen Victoria’s integrity – and it showed up the first signs of a literary tendency of revealing the image of the divided man, sunk into the process of existential crisis and void of many of his previous certainties. This study presents an examination on Tess of the d’Urbervilles in order to depict, according to Thomas Hardy’s point of view, the crisis of values installed in the social order, when capitalism advances over the old feudal institutions in England at that time and sets forth a process of reconsideration of the roles of the individuals in society. The starting point of all this effervescence was the Industrial Revolution and its implications that brought innovation to scientific and cultural realms, disrupting old standards of behaviour and putting human conduct in check. The Victorian society is criticized with irony and many of its habits are taken as hypocrisies in Hardy’s novel, which ends fatalistically, seeming to portrait man’s disappointed view about his own destiny in the disturbed world in that time. Tess of the d’Urbervilles, written under the realist form, was published for the first time in 1891 and it is important to this research because of its double character: it belongs to the canon of Victorian literature and, at the same time, anticipates the modernist theme of the collapse of human solidity. To point out this crisis, we take Raymond Williams’s position that considers Hardy not simply a regionalist writer exclusively worried with bucolic and picturesque themes, but someone more deeply interested in essential human issues, which, in certain points, are still contemporarily valid. Keywords: Tess of the d’Urbervilles. Change of values. Victorian society. Realism. Modernism. 8 SUMÁRIO DEDICATÓRIA ......................................................................................................................... 3 AGRADECIMENTO ................................................................................................................. 4 EPÍGRAFE ................................................................................................................................. 5 RESUMO ................................................................................................................................... 6 ABSTRACT ............................................................................................................................... 7 SUMÁRIO .................................................................................................................................. 8 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9 1 O ROMANCE, O AUTOR E SEU TEMPO ......................................................................... 17 1.1 Um momento de transição........................................................................................................... 17 1.2 O rural e o urbano em Thomas Hardy ......................................................................................... 20 1.3 A personagem .............................................................................................................................. 24 1.4 O narrador ................................................................................................................................... 32 1.5 Feudalismo e Capitalismo: uma engrenagem insólita ................................................................. 35 2 TRAJETÓRIA DE UMA INAPTA: FORMAÇÃO EM TESS OF THE D’URBERVILLES 47 2.1 Realçando a representação da crise de valores ............................................................................ 47 2.2 Romance de formação: preliminares ........................................................................................... 48 2.3 Formação e deformação em Tess of the d’Urbervilles ................................................................ 51 3 DECADÊNCIA DA FÉ ......................................................................................................... 64 3.1 A clássica herança reconstrói o mundo moderno ........................................................................ 64 3.2 O mito e a narrativa ..................................................................................................................... 70 3.3 A representação da natureza ........................................................................................................ 75 4 DE ANJO A MONSTRO: A MUDANÇA DO VALOR DA REPRESENTAÇÃO MASCULINA DE TESS .......................................................................................................... 86 4.1 As bases iluministas do feminismo ............................................................................................. 86 4.2 Representações masculinas da mulher ........................................................................................ 92 4.3 Tess sob as representações masculinas ....................................................................................... 96 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 106 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 111 9 INTRODUÇÃO Esta proposta de estudo de Tess of the d’Urbervilles (1891), de Thomas Hardy, tem por objetivo apontar como o autor representa a dramatização da crise de valores sociais e humanos no romance na tentativa de exibir o choque entre o modo de vida feudal e o capitalista. O termo dramatização está sendo considerado no sentido de ficcionalização, a maneira como Hardy maneja a construção do enredo a fim de provocar a evidência de um conflito ideológico no mundo em que vive Tess e que a leva irreversivelmente ao destino fatal. Como pano de fundo para a discussão, toma-se o ponto de vista de Raymond Williams, segundo o qual a obra de Thomas Hardy perde muito de sua importância analítica, no que diz respeito à representação das experiências trazidas com a mudança no modo de viver e produzir, à dificuldade de escolha das personagens e às complicações geradas pela transformação do contexto sociocultural, quando o trabalho do escritor é examinado como sendo de vertente regionalista. Esse reconhecimento, mesmo quando feito com intenção de elogio, é acompanhado da ideia de que sua obra está cada vez mais distante de nós: de que Hardy não pertence ao nosso mundo, nem mesmo ao século XIX, mas é apenas o último representante da velha Inglaterra rural ou do campesinato. (WILLIAMS, 2011, p. 328). Para o crítico, tais mudanças e complexidades não advêm apenas do jogo entre a vida no campo e a vida na cidade, mas de um processo histórico muito mais complexo, ligado à questão da educação e seus laços com o avanço social que ocorre no interior da sociedade de classe. Efetivamente a paisagem rural é preponderante como espaço no romance e esta ambientação é claramente identificável como sendo Wessex, situado ficcionalmente na porção sudoeste da Inglaterra. Entretanto, o tratamento da cor local subjaz à relevância dos eventos que ali ocorrem, dada a significativa envergadura das ações e dos entraves vividos pelas personagens. Alka Saxena e Sudhir Dixit (2001, p. 52) reconhecem, do mesmo modo, a importância secundária de atribuir a Hardy a classificação de regionalista: Yet, Hardy in his characters and their presentation and their inter- relationship with the setting, rises much above the narrow bounds of regionalism. The settings and characters, though identifiable with the place 10 and spirit of their time have that element of universality which renders them timelessness and universality1. Os motivos e temas presentes na obra não são exclusivos do mundo rural. São apresentadas aflições e tormentas que assolam tanto o camponês no ermo espaço em que se encontra, quanto o citadino que habita as grandes cidades equipadas com a modernização. Dúvidas existenciais, questionamentos religiosos, conflitos morais dizem respeito à sociedade marcada pela heterogeneidade e pela gana de se desvencilhar de antigas amarras. A divisão de classes era marcante no período em que Thomas Hardy viveu: “In the mid-nineteenth century social class was an omnipresent fact, visible in where people lived, what they wore and ate, how and where they were educated, what occupation they followed, and how much money they earned” 2 (INGHAM, 2009, p. 9). Segundo Ingham (2009), Thomas Hardy desejava expor essa dicotomia: “Hardy in later life was always anxious to stress this division between the two sections of the working class […]”3 (INGHAM, 2009, p. 9). Mas é preciso ressaltar, uma vez mais, que, embora o interesse do escritor não fosse pela condição da Inglaterra em geral, mas pelo mundo rural de Wessex, sua obra expressa as condições da época: Nonetheless the half-real, half-imaginary account of Wessex draws its factual basis from roughly contemporary conditions. He is a social novelist, but not in the usual sense. He is engaged with two interlocked subjects which become the almost obsessive focus of his later novels [Tess e Jude são os seus últimos romances]: what he comes to perceive as the similar injustice in the conventional treatment of the working classes and of women, both of which he relates to the question of social mobility […].4 (INGHAM, 2009, p. 104). Dessa forma, Wessex transforma-se em metonímia de um espaço mais amplo, apontando para a possibilidade de uma leitura que supere as fronteiras do regionalismo, como entendem os próprios críticos: 1 Contudo, na apresentação de suas personagens e na relação destas com o ambiente, Hardy avança muito além das estreitas fronteiras do regionalismo. O espaço e as personagens, embora identificáveis com o local e o espírito da época, possuem aquele elemento de universalidade que lhes confere imortalidade e universalidade. (SAXENA; DIXIT, 2001, p. 52; tradução nossa). 2 Em meados do século dezenove, a classe social era um fato onipresente, visível no local onde as pessoas viviam, no que elas vestiam e comiam, em como e onde eram educadas, na profissão que seguiam e na soma de dinheiro que ganhavam. (INGHAM, 2009, p. 9; tradução nossa). 3 Hardy, no final da vida, esteve sempre ansioso para destacar essa divisão entre as duas partes da classe trabalhadora [...]. (INGHAM, 2009, p. 9; tradução nossa). 4 Todavia, o caráter meio real, meio imaginário de Wessex extrai sua base fatual das ásperas condições da época. Ele é um romancista social, mas não no sentido usual. Está comprometido com dois assuntos interligados que se tornam o foco quase obsessivo de seus últimos romances: aquilo que vem a perceber como a injustiça similar no tratamento convencional tanto das classes trabalhadoras quanto das mulheres, ambos relacionados à questão da mobilidade social. (INGHAM, 2009, p. 104; tradução nossa). 11 Hardy, for all the pains he takes to present before us the geographical landscape of Wessex, never lets us forget even for a moment that his Wessex is a part of the life of the whole human race. The local characteristics and the scenes of Wessex are seen in relation to ultimate destiny and this makes them individual and universal at the same time.5 (SAXENA; DIXIT, 2001, p. 55-56). Thomas Hardy viveu em meio a grandes mudanças, quando a economia da Inglaterra experimentava períodos de prosperidade e depressão. In the 1850s and 1860s followed the so-called ‘high-Victorian’ period of prosperity for the middle and upper classes and of relative adequacy for their ‘inferiors’ […]. But the boom ended about 1873 as one phase of industrial development world-wide gave place to another […]. A long depression then persisted through the 1880s and into the mid-1890s. 6 (INGHAM, 2009, p. 32-33). No campo da ciência e da tecnologia as alterações também eram marcantes. Essa ebulição levou o homem do período a achar-se perturbado e em crise com seu próprio interior: ele procura o senso de individualidade perdido, questiona valores pessoais, sociais e morais e, desta forma, imbrica-se num complicado conflito de personalidade. A inquietação trazida pela modernidade abre caminho para a eclosão do Modernismo, movimento do qual Thomas Hardy é precursor. Em Tess of the d’Urbervilles, a protagonista delineia a figura do “indivíduo sem lugar” do Modernismo por meio de suas experiências malogradas. Não há esperança para Tess, seu desenlace é fatal. As pressões pessoais, a constituição e o fracasso dos relacionamentos são a base para a temática da ‘mudança’ a todo momento procurada pela personagem; primeiramente, a transformação aparece como possibilidade de sucesso e, em seguida, é a oportunidade de redenção. A eclosão da Revolução Industrial na Inglaterra, no século XVIII, apresenta-se como fator determinante para a substituição da antiga ordem de relações comerciais intensificada em meados do século XIX, o que dinamizou a vida em sociedade, recrudesceu a avidez pelo lucro e pelo capital financeiro e imprimiu ao mundo o frenético ritmo da urgência e da 5 Hardy, por todo o esforço que empreende para apresentar-nos a paisagem geográfica de Wessex, nunca nos deixa esquecer, sequer por um momento, que seu Wessex é uma parte da vida de toda a raça humana. As características locais e as cenas de Wessex são vistas ligadas ao destino final e isso as torna individuais e universais ao mesmo tempo. SAXENA; DIXIT, 2001, p. 55-56; tradução nossa). 6 Nas décadas de 1850 e 1860 seguiu-se o denominado “alto período vitoriano” de prosperidade para as classes média e alta e de relativa adequação para os seus ‘inferiores’ [...]. Mas o crescimento estagnou-se por volta de 1873, quando, mundialmente, uma fase do desenvolvimento industrial foi substituída por outra. [...]. Uma longa depressão persistiu, então, desde a década de 1880 até meados dos anos 1890. (INGHAM, 2009, p. 32-33; tradução nossa). 12 competitividade. Na segunda metade do século XIX o progresso foi notório (HOBSBAWN, 1978): estradas de ferro, automóveis tracionados pelo motor à combustão, energia elétrica e os benefícios dela decorrentes tornaram, sem dúvida, a vida mais confortável; por outro lado, a excessiva valorização do aspecto material do mundo subjugou o homem aos ditames de uma vida vazia de significado e lançou-o numa complicada crise de identidade. Patricia Ingham (2009, p. 53) declara sobre Hardy que “what determined the nature and quality of life in his rural society, however, was the wider society […] of which the West Country was a part and to which Hardy moved as a young man”7. A prosperidade, a depressão, a Guerra da Crimeia, a exposição de 1851 no Illustrated London News que declarava não ser Londres apenas a capital de uma grande nação, mas a metrópole do mundo (INGHAM, 2009) faziam parte do contexto sócio-histórico em que viveu Hardy e sobre o qual escreveu. Neste ambiente convulsivo, dadas as condições de mudanças contundentes, valores canonicamente consolidados passaram a ser questionados e as certezas mais substanciais também foram abaladas. A família, esteio da sociedade, viu-se à beira de uma situação de instabilidade e a fé cristã foi arrefecida perante o pensamento eminentemente cientificista dos últimos cinquenta anos do século XIX (BURGESS, 2006). Thomas Hardy viveu nesse ambiente em transformação, em que o avanço tecnológico notável dá-se graças à introdução: da rede ferroviária, das bicicletas, dos carros e aviões, do telégrafo e do telefone. O que afetou de fato o escritor foram as descobertas científicas nos campos da astronomia, da geologia e a teoria da evolução: “For him speed of travel, ease of communication, and developments in the visual medium were as nothing compared with the shattering implications for humanity of what scientists like Herschel, Lyell, and Darwin had discovered”8 (INGHAM, 2009, p. 153). As descobertas dos astrônomos mostraram a Thomas Hardy que o mundo era insignificante diante de um universo infinito. O escritor manifesta essa visão em sua obra Two on a Tower (1882). É da torre, que compõe o título, que o astrônomo amador, Swithin St. Cleeve, volta o seu telescópio para os céus. Nesse jogo entre a grandiosidade do universo e a pequenez humana, Hardy desenvolve seu trabalho com a perspectiva alternando descrições panorâmicas com microscópicas, conforme destaca Ingham: 7 Entretanto, o que determinava a natureza e a qualidade da vida em sua sociedade rural era a sociedade mais ampla [...] da qual West Country fazia parte e para a qual Hardy mudou-se quando jovem. (INGHAM, 2009, p.33; tradução nossa). 8 Para ele, a velocidade das viagens, a facilidade da comunicação e os desenvolvimentos no meio visual eram nada, comparados às perturbadoras implicações que as descobertas de cientistas como Herschel, Lyell e Darwin traziam para a humanidade. (INGHAM, 2009, p. 153; tradução nossa). 13 Such recurrently panoramic perspectives alternate with a microscopically detailed focus famously illustrated by the contrast between the description of Tess seen from so close that the strands of colour in her irises are visible to the narrator and the view of her standing upon ‘the hemmed expanse of verdant flatness, like a fly on a billiard table of indefinite length, and of no more consequence to the surroundings than that fly’.9 (INGHAM, 2009, p. 156). No campo das Ciências Naturais, destaca-se o trabalho de Charles Darwin, A origem das espécies (1859), estudo que defende a teoria da evolução das espécies através do processo da seleção natural, ou seja, o homem é resultado de um processo de desenvolvimento de formas de vida menos complexas, contrariando a hipótese bíblica do criacionismo. Com o apoio na afirmação de Darwin de que existe uma herança genética, Hardy vai representá-la em suas obras A Pair of Blue Eyes (1873), The Woodlanders (1887) mas é em Tess (1891) que explora integralmente essa questão, seguindo de perto as ideias do evolucionista. The extension of the idea of heredity to the transmission of traits more than the physical fascinates Hardy because it involves the question of free will, an aspect of casuality which preoccupies him. [...]. The validity of this belief is raised in a dramatic form in Tess. She herself seems to feel trapped like the speaker in [the poem by Hardy] ‘The Pedigree’ after the affair with Alec.10 (INGHAM, 2009, p. 170). O romance selecionado para a consecução da pesquisa, concebido sob a égide desta efervescência cultural, no ano de 1891, traz em seu enredo a trajetória de Tess, uma jovem camponesa, cujo pai – John Durbeyfield – é descendente direto de uma antiga e já extinta família aristocrata – os d’Urbervilles – que remonta à Idade Média e ao poder dos senhores feudais naquele modelo de organização social. John Durbeyfield desconhecia sua ascendência nobre até o momento em que o sacerdote Tringham o fez saber numa conversa à beira da estrada: ‘ […]. I am Parson Tringham, the antiquary, of Stagfoot Lane. Don’t you really know, Durbeyfield, that you are the lineal representative of the ancient and knightly family of the D’Urbervilles, who derive their descent from Sir Pagan D’Urberville, that renowned knight who came from 9 Tais perspectivas recorrentemente panorâmicas alternam-se com um foco microscopicamente detalhado, notoriamente ilustrado pelo contraste entre a descrição de Tess vista de tão perto que as linhas de cores em suas íris são visíveis ao narrador, e sua permanência sobre ‘a vastidão limitada da indistinção verdejante, como uma mosca sobre uma mesa de bilhar de extensão indefinida e de nenhuma outra consequência aos arredores além daquela própria mosca’. (INGHAM, 2009, p. 156; tradução nossa). 10 A extensão da ideia da hereditariedade ligada à transmissão de traços mais que físicos fascina Hardy, porque envolve a questão do livre arbítrio, um aspecto da casualidade que o preocupa. [...]. A validação dessa crença é levantada de maneira dramática em Tess. Ela mesma parece sentir-se numa armadilha, como o eu-lírico no [poema de Hardy] ‘The Pedigree’, após o caso com Alec. (INGHAM, 2009, p. 170; tradução nossa). 14 Normandy with William the Conqueror, as appears by Battle Abbey Roll?’11 (HARDY, 1994, p. 4). O conhecimento desta informação faz com que John Durbeyfield embrenhe-se numa empreitada de recuperação do prestígio familiar e numa consequente busca por ascensão social. Seu maior trunfo para esta tarefa é a filha Tess que, por sugestão da mãe, Joan Durbeyfield, parte de Marlott para Trantridge, onde reside uma família rica com o vultoso sobrenome d’Urberville. A intenção deste gesto é reivindicar o parentesco entre as duas famílias e aproximar os Durbeyfield do status que gozavam seus antepassados. A partir da viagem de Tess à propriedade em Trantridge dão-se os contratempos e os logros que o enredo prepara para a protagonista: lá ela conhece Alec, ardiloso e galanteador que se constitui, ao longo da trama, no principal percalço para a vida de Tess. Ele a persegue por períodos esparsos e cruciais na trajetória da jovem e é responsável pelo desenlace da protagonista, por ser o opressor uma figura representativa de um passado que condena, no âmbito da sociedade repressora da época. Ao passar por Trantridge e envolver-se com Alec, Tess é fadada a perambular numa busca irremediável por um lugar que a acolha. Esta movimentação tanto diz respeito à procura por um local que pudesse propiciar sua subsistência, dadas as circunstâncias econômicas, quanto também é a ânsia por refugiar-se do juízo castrador da sociedade moralista. Na passagem pela queijaria Talbothays, Tess conhece Angel, que logo se configura como uma personagem antagônica a Alec. É dirigida àquele a devoção amorosa da jovem e ambos nutrem um sentimento afetivo recíproco que culmina no casamento. No entanto, o passado de Tess é implacável: ao saber que a esposa se envolvera com Alec e com ele tivera um filho, Angel abandona o lar e deixa Tess à conta de suas próprias forças. Rejeitada pelo marido e proscrita pela sociedade, a protagonista amarga duras provações e se sujeita a tarefas árduas para garantir seu próprio sustento. Açoitada pelas dificuldades da vida de uma mulher sem marido naquele ambiente social, Tess sucumbe à insistência de Alec que reaparece e a leva para um balneário, onde se instalam numa pensão. Dá-se, então, o arrependimento de Angel, que retorna a Tess e a encontra com Alec. Surpresa com a volta do marido e movida por um impulso de paixão, Tess assassina Alec com um golpe de faca e foge com Angel até que, ao fim e ao cabo, é presa e condenada à morte. 11 Sou o padre Tringham, antiquário de Stagfoot-Lane. É verdade que não sabe, Durbeyfield, que é representante em linha direta da antiga família de cavaleiros dos d’Urbervilles, cuja descendência vem desde Sir Pagano d’Urberville, célebre cavalheiro que veio da Normandia com Guilherme, o Conquistador, como está nos Arquivos de Battle Abbey? (HARDY, 1981, p. 16). 15 Todo o enredo é ambientado numa porção rural da Inglaterra, região que circunda o local de nascimento de Thomas Hardy. Wessex é o espaço preferido do autor e constitui cenário recorrente em toda a sua obra. O apreço pelo torrão natal e a insistência em utilizá-lo como referência em seus grandes romances fazem com que a produção de Hardy seja compreendida, muitas vezes, sob a ótica do regionalismo, numa perspectiva reducionista de abordagem que destaca o pitoresco e o choque entre campo e cidade. Muito mais do que um retrato despretensioso da Inglaterra rural, Tess of the d’Urbervilles é um receptáculo que acondiciona algumas das tensões mais vigorosas da época em que se passa o romance, segundo Thomas Hardy. Todas as crises apresentadas em cada capítulo da dissertação possuem um componente em comum: o traço social que se evidencia por conta da emergência da burguesia e da transformação do modo de produzir em Wessex. O primeiro capítulo traz uma apresentação do romance, do momento em que foi concebido e das forças atuantes na sociedade nele descrita, responsáveis pela representação do desencadeamento do conflito de valores. No segundo, discute-se o choque entre a ótica feudal e a perspectiva capitalista, essencialmente burguesa, que se apresenta pungente nas figuras de Tess e Alec d’Urberville, respectivamente. A oposição ganha força como uma tensão entre valores quando observada em uma trajetória de formação da protagonista que falha, representando o contraste de um modo de vida perante a renovação que a expansão capitalista anunciava. O terceiro capítulo trata da maneira como Hardy representa o drama da crise da fé cristã diante da supremacia do cientificismo, recorrendo ao arsenal mitológico. Utilizando-se da tradição clássica, o autor propõe uma releitura do mundo, amenizando a interferência da justificativa religiosa para os fatos da vida. Essa crise também se forma a partir da transformação dos modos de produção, que implica uma reconstrução ideológica da sociedade. Finalmente, no quarto capítulo, encontra-se a investigação sobre o papel feminino no romance. Para contextualizar a argumentação, discute-se a posição secundária da mulher no século XIX e sua submissão à hegemonia patriarcal. A partir da ótica masculina, Tess é descrita em uma trajetória que vai da imagem do anjo doméstico ao estereótipo de monstro, representativo de uma ameaça ao poder patriarcal, corroborando com esta transformação o ponto de vista de Thomas Hardy sobre a crise de valor humano desencadeada por conta da precedência masculina em relação à mulher vitoriana oprimida pelas convenções. A submissão feminina, que remonta a tempos imemoriais é questionada tendo em vista a 16 transformação social fomentada pela emergência de uma nova era calcada sobre os ideais de liberdade e que se pretende abster da hierarquia feudal. Os tópicos discutidos em cada capítulo concorrem para a elaboração de um mapeamento acerca dos entraves vistos por Hardy na sociedade e alardeados no romance. O trabalho de Patricia Ingham é tomado como eixo teórico que sustenta a crise de valores, juntamente com Raymond Williams, que reconhece a estatura da obra do escritor inglês na literatura dos tempos modernos. A fortuna crítica sobre o autor é exígua no Brasil e, até o momento, dois trabalhos desenvolvidos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por Paulo Roberto Costa Galvão tratam especificamente do romance Tess of the d’Urbervilles: a dissertação de mestrado A moral da história: os personagens românticos de José de Alencar e Thomas Hardy (1999) e a tese de doutorado Lucíola & Tess of the d’Urbervilles: dimensão ética do ceticismo religioso (2002). No exterior, há inúmeros trabalhos sobre o escritor inglês e a ênfase da produção estende-se entre as décadas de 1970, 1980 e 1990, tendo como uma das vertentes mais fecundas a discussão da figura da mulher. Dentre os trabalhos mais representativos figuram: Hardy’s views in Tess of the d’Urbervilles (1970), de Lucille Herbert; Myths of redemption in Hardy’s Tess of the d’Urbervilles (1970), de Henry Kozicki; Thomas Hardy and women: sexual ideology and narrative form (1982), de Penny Boumelha; ‘Tess’ and Tess: an experiment in genre (1982), de Suzanne Hunter Brown; The lure of pedigree in Tess of the d’Urbervilles (1991), de William Greenslade; Woman’s story: Tess and the problem of voice (1993), de Margaret Higonnet. Essas obras, entretanto, não são plenamente acessíveis e, para este trabalho, foram consultadas bases de dados tais como Jstor e Project Muse e tomados como suporte o conjunto de textos editado por Albert Guerard, Hardy: a collection of critical essays (1969), a coleção de ensaios editada por Dale Kramer, The Cambridge companion to Thomas Hardy (2005) e sobretudo a obra de Patricia Ingham, Thomas Hardy (2009), que recobre com muita segurança e precisão os detalhes sobre a obra, a vida do autor e o momento histórico em questão. 17 1 O ROMANCE, O AUTOR E SEU TEMPO 1.1 Um momento de transição Na Inglaterra, os anos que se estendem de 1837 a 1901 são conhecidos como o período vitoriano, pois correspondem ao reinado da rainha Vitória, soberana que conduziu o país ao apogeu econômico, garantindo-lhe lugar de destaque na geopolítica mundial. Evidentemente, o desenvolvimento atingido não extinguira de todo as mazelas sociais. Pelo contrário, o avanço tecnológico colaborou para que se realçasse a distância, então, gritante entre ricos e pobres. Sob vários aspectos, foi uma época de progresso – construção de estradas de ferro, navios a vapor, reformas de todos os tipos –, mas foi também uma época de dúvida. Havia pobreza demais, injustiça demais, feiúra demais e muito pouca certeza sobre a fé ou a moral – tornou-se assim uma época de cruzados, reformadores e teóricos. (BURGESS, 2006, p. 215). A figura da monarca foi tomada em sua gravidade como exemplo de retidão de caráter que balizara o comportamento social da época. Vivia-se sob uma aura de extremo conservadorismo, em que a moral era tema de suma importância e muito se primava pela boa conduta na família e na sociedade. Os tabus como o sexo e o cientificismo materialista eram ainda mais recalcados por conta desta moralidade convencional e da doutrina anglicana que ainda exercia grande influência no modo de agir das pessoas. Esse aparato de comportamento que havia se instalado na sociedade refletia-se na literatura: os romances eram dotados de conteúdo altamente moralizante, com uma linguagem ornamental e, através de exemplos da ficção, visavam alertar os leitores sobre a necessidade de se acautelarem. Na materialidade diacrônica da literatura, está o romance Tess of the d’Urbervilles disposto na extensão deste período denominado vitoriano. Entretanto, a data de 1891 é mais propriamente um ponto que se situa na transição entre a literatura vitoriana e o Modernismo do que um momento que possa conter a essência da filosofia do vitorianismo. Para o crítico Anthony Burgess (2006, p. 244), a duração do reinado da rainha Vitória não corresponde inteiramente ao período vitoriano na literatura: 18 O reinado da rainha Vitória terminou em 1901, mas a era vitoriana já havia terminado há cerca de vinte anos. Aquele espírito peculiar a que chamamos “vitorianismo” – uma mistura de otimismo, dúvida e culpa – começou a desaparecer com homens como Swinburne, o rebelde, Fitzgerald, o pessimista, Butler, o satírico, e outros mais. A literatura produzida de 1880 a 1914 se caracterizou quer pela tentativa de encontrar substitutos para uma religião que parecia estar morta, quer por uma espécie de vazio espiritual – um sentido da inutilidade de se tentar acreditar em alguma coisa. Como verificado, o teor das obras literárias sinaliza uma guinada a partir das últimas décadas do século XIX. A moralidade obsessiva começa a dar lugar a uma temática permeada pelo pessimismo e pelo desapego à fé cristã. Este novo rumo que norteia os escritores daí em diante tem sua origem na efervescência cultural da época advinda de trabalhos revolucionários de filósofos e cientistas. Charles Darwin foi um desses estudiosos que desestabilizaram uma concepção humana convencional e conseguiu prestígio com a publicação de A origem das espécies, em 1859, afirmando que a vida no planeta, como a conhecemos hoje, é o resultado de processos evolutivos de formas de vida menos complexas. O cristianismo sofre, então, um duro golpe, pois a assertiva de Darwin vai de encontro à teoria bíblica do criacionismo, que admite ter sido Deus o criador do homem e de tudo o que há no universo. Na esteira das inovações no campo do pensamento humano surgem ainda Marx, que em 1867 publica O capital, em que expõe uma nova maneira de organização social fundada na “interpretação materialista da história” (BURGESS, 2006, p. 215), Nietzsche, com sua teoria niilista, que em 1882 publica A gaia ciência, em que se encontra a célebre afirmação de que Deus está morto, e ainda Sigmund Freud, precursor da psicanálise, para quem o homem é guiado por seu próprio inconsciente. Mas as grandes influências no trabalho de Thomas Hardy são: Charles Darwin (The Origin of Species, 1859); Gideon Algernon Mantell (The Wonders of Geology, 1838), Herbert Spencer e Auguste Comte. The co-existence of such writers as these along with the major poets is an indication of the interlocking of the two in the nineteenth century. The connection is sharpened by the fact that both kinds of writers shared a common medium. The distinction between literary language and other kinds is of course arbitrary. Readers today accept a historian and essayist like Carlyle as a writer of literature’; but in the nineteenth century all serious writers shared a common language.12 (INGHAM, 2009, p.73). 12 A coexistência de escritores como esses e os principais poetas é uma indicação da ligação entre eles no século dezenove. A conexão é reforçada pelo fato de que os dois tipos de escritores compartilhavam um meio comum. A distinção entre a linguagem literária e outros tipos de linguagem é, obviamente, arbitrária. Os leitores de hoje 19 Sob esta conjuntura surge Tess of the d’Urbervilles, num período que, embora cronologicamente se rotule vitoriano, ultrapassa a fronteira de seu tempo mesclando na literatura, de forma crítica, o tradicionalismo virtuoso da sociedade conservadora que ficava para trás, com prenúncios daquilo que se exploraria exaustivamente no Modernismo que despontava: o homem em crise consigo mesmo por se achar sozinho no mundo, desprovido do suporte espiritual que o fortificava e buscando um porto seguro a que se ancorar. Ao comentar uma conversa entre Angel e Tess em que a camponesa declara sua impressão sobre as incertezas da vida, o narrador enfatiza a aura sob a qual viviam as personagens e que influenciava as percepções da jovem: “She was expressing in her own native phrases – assisted a little by her Sixth Standard training – feelings which might almost have been called those of the age – the ache of modernism”13. (HARDY, 1994, p. 159-160, grifo do autor). Tess relata em seu discurso toda a frustração que obtivera em decorrência de sua empreitada em Trantridge. O medo da vida, as dúvidas sobre o futuro e a sensação de estar vivendo em uma sociedade vigilante e de visão castradora são ocorrências que sintetizam o ambiente sob o qual esteve o homem daquele tempo. Essas incertezas e desencontros compõem o tratamento que Hardy dava a seus romances, expondo abertamente as relações sexuais sem os sentimentalismos que os romances tradicionais apresentavam e que o aproximavam do trabalho dos naturalistas. Por isso, a crítica, muitas vezes, os condenava, como é o caso, citado por Ingham, de Margaret Oliphant, que escreveu uma crítica sobre Jude The Obscure (1895), de Tomas Hardy, em que condena tanto Hardy quanto Zola na Blackwood’s Magazine: ‘The present writer [Margaret Oliphant] does not pretend to a knowledge of the works of Zola, which perhaps she [Margaret Oliphant] ought to have before presuming to say nothing so coarsely indecent as the whole history of Jude in his relations with his wife Arabella has ever been put in English print […]’; she [Margaret Oliphant] then adds a comment which is of interest: ‘[…] that is to say, from the hands of a Master. There may be books more disgusting, more impious as regards human nature, more foul in detail, in those dark corners where the amateurs of filth find garbage to their taste’.14 (apud INGHAM, 2009, p. 96). aceitam um historiador e ensaísta como Carlyle como um escritor de literatura; mas no século dezenove, todos os escritores sérios compartilhavam uma linguagem comum. (INGHAM, 2009, p. 73; tradução nossa). 13 Estava externando nas suas próprias expressões nativas – auxiliada nalguma coisa pela sua formação do Sexto Grau – sentimentos que quase podiam ter sido chamados os da época – o mal do modernismo. (HARDY, 1981, p. 149-150, grifo do autor). 14 ‘Esta escritora[ Margaret Oliphant] não aspira a um conhecimento das obras de Zola, embora devesse tê-lo antes de presumir algo tão grosseiramente indecente nunca antes colocado na literatura inglesa, como é o caso da 20 1.2 O rural e o urbano em Thomas Hardy O valor de uma obra literária deve ser julgado por aquilo que ela apresenta de esmero no estilo e na substância, a despeito da biografia de quem a concebera. No entanto, alguns traços da vida do autor podem ser úteis na investigação da tendência de seus escritos a fim de revelar ao leitor a força sob a qual a obra fora idealizada e conduzi-lo a uma depreensão atrelada, também, à circunstância do momento criativo. Dessa forma, é oportuno lembrar que Thomas Hardy nasceu em 1840, em Dorset, numa porção rural da Inglaterra que passava por transformações e conflitos oriundos da Revolução Industrial que se iniciara em meados do século XVIII. Portanto, Wessex – Dorset e os condados adjacentes – embora ainda apresentasse uma estrutura campesina, já experimentava os sabores de uma indústria que emergia vigorosamente na cidade grande – a primeira estrada de ferro de Dorchester foi instalada quando o escritor tinha apenas sete anos (CIVITA, 1971). Depois de ter exercido a profissão de arquiteto em Londres, Hardy retorna a Dorset, em 1867, onde começa sua carreira de escritor. Profundamente arraigado à sua terra natal, Wessex torna-se a ambientação preferida para seus romances, daí muito da crítica considerá- lo um escritor regionalista. Em Tess of the d’Urbervilles elementos das vidas urbana e rural coexistem, mas não devem ser vistos como antagônicos; as descrições do maquinário que equipa as propriedades rurais produtoras, antes de revelarem a invasão da tecnologia urbana no campo, marcando a mudança de uma forma de produção obsoleta por outra mais rentável, sugerem a adesão do homem às facilidades da industrialização que se apresenta para servi-lo. A convivência do homem e da máquina no romance é pacífica. Nem esta coexistência do urbano e do rural deve ser encarada como o marco da primeira transformação do modo de produzir, pois, quando se pretende estabelecer um ponto fixo para a mudança que ocorreu do velho modo de vida rural para a organização urbana trilha-se sobre um terreno muito instável, porquanto, na crítica historiográfica, há quem diga que esta transformação tenha ocorrido predominantemente a partir da Primeira Guerra Mundial – como é o caso de George Ewart Evans (1996) em The pattern under the plough. Hardy trata da mudança ocorrida depois da década de 1830 e, se seguirmos, num movimento retroativo, o que Raymond Williams (2011) intitula “escada rolante”, chegaremos história de Jude em suas relações com a esposa Arabella [...]’; ela, então, acrescenta um comentário que interessa: ‘[...] ou seja, das mãos de um Mestre. Haverá livros mais repugnantes, mais ímpios a respeito da natureza humana, mais asquerosos nos detalhes naqueles cantos escuros onde os apreciadores da depravação satisfazem-se com o lixo’. (OLIPHANT apud INGHAM, 2009, p. 96; tradução nossa). 21 à referência de uma mudança dessa ordem na Idade Média. “Até onde nos levará essa escada rolante? Uma resposta óbvia: ao Éden; mais adiante teremos de voltar a esse jardim tão conhecido”. (WILLIAMS, 2011, p. 27). Na verdade, o que caracteriza essa mudança é a profusão de valores religiosos, humanísticos, políticos e culturais, que têm significados diferentes em épocas diferentes. A presença do mundo rural na obra de Thomas Hardy é o resultado de sua própria experiência de vida, mas não se deve limitar a intenção do autor ao puro antagonismo entre campo e cidade, numa relação respectiva de explorado e explorador. Atenuada a importância de se considerar Hardy um escritor que se vale apenas da descrição da vida em sua terra natal, nota-se que as personagens que povoam o romance Tess of the d’Urbervilles, por exemplo, não representam apenas as mudanças que ocorrem numa forma de vida, mas ilustram as pressões psicológicas que oprimem a todos no nível social, ou seja, o desamparo e a decadência que acometem o campesinato, na obra, não são resultado da exploração selvagem do campo pela cidade, mas o esboço de uma situação mais ampla de desespero e fracasso, segundo a representação de Thomas Hardy. Isso significa que não se está tomando o romance Tess para uma exposição documental de todos os problemas que afligiam uma era. O que se busca mostrar é como Thomas Hardy faz a representação, no romance, da dramatização da crise de valores sociais e humanos que ele conseguia destacar no período. Não é a cidade a única, ou sequer a principal responsável pela mudança da dinâmica da vida no campo; o êxodo rural que leva para os grandes centros a mão-de-obra mais especializada das fazendas é fomentado pelas transformações que o próprio campo experimenta: trabalhadores que têm seu contrato de aluguel vencido e não conseguem a renovação veem-se obrigados a deixar a terra que não mais os abriga. É, propriamente, um processo autodestrutivo. They [Hardy’s novels] suggest not just a growing preoccupation with the rural problem, nor even a growing sense that an earlier way of life was inevitably vanishing. They suggest something more disquieting: a gathering realization that that earlier way did not possess the inner resources upon which to make a real fight for its existence. The old order was not just a less powerful mode of life than the new, but ultimately helpless before it through inner defect.15 (HOLLOWAY, 1963, p. 53). 15 Eles [os romances de Hardy] sugerem não apenas uma preocupação crescente com o problema rural, tampouco uma percepção crescente de que um modo de vida primitivo fosse, inevitavelmente, desvanecedor. Eles sugerem algo mais inquietante: uma percepção conclusiva de que aquele modo primitivo não possuía recursos internos pelos quais valeria a pena resistir para mantê-lo. A velha ordem não era apenas um modo de vida menos poderoso do que o novo, mas definitivamente inútil perante ele por conta de deficiência interna. (HOLLOWAY, 1963, p. 53; tradução nossa). 22 A decadência do antigo modo de produção é inevitável e acontece de maneira irreversível. Ao relatar o fracasso de Tess, Thomas Hardy anuncia também a queda da antiga ordem, como observa John Holloway (1963, p. 56): Yet it remains true that in these later works the essence of plot, the distinctive trajectory of the narrative, is the steadily developed decline of a protagonist who incarnates the older order, and whose decline is linked, more and more clearly, with an inner misdirection, an inner weakness.16 Dessa forma, as transformações do sistema político e econômico adquirem um caráter interior, intrínseco ao próprio contexto em que ocorrem, dada a ineficiência da antiga ordem que, então, cede lugar ao novo modo de produção com seus efeitos e influências sobre os indivíduos representados no romance sob a forma de personagens dotadas de um profundo desconforto psicológico, reflexo do próprio processo de desestruturação administrativa por que passava aquela sociedade. Esta ocorrência em Tess of the d’Urbervilles mostra uma percepção apurada do autor em relação à dicotomia campo/cidade num nível muito mais humanístico ao invés de puramente mecânico ou realista. Os romances de Hardy denunciam muitas das aflições que ainda assolam o homem contemporâneo e o contraste entre o novo e o velho explicita a dificuldade inerente ao processo de mudança. Neles há sempre a presença acentuada de um velho mundo rural: velho em seus costumes e na memória, mas velho também num sentido relativo aos novos tempos de educação formal, velho enquanto parte da história, e mesmo da pré-história: a consciência da transformação adquirida através da instrução. Nos grandes romances de Hardy, de vários modos diferentes, a experiência da mudança e da dificuldade da escolha são centrais, até mesmo decisivas. (WILLIAMS, 2011, p. 327-328). O mundo rural em Tess of the d’Urbervilles também é o mundo da tradição, das superstições e da sabedoria popular. A Sra. Durbeyfield, símbolo da típica camponesa, consulta suas práticas supersticiosas e delas conclui que a filha conquistará a simpatia da senhora d’Urberville e, por conseguinte, o coração de algum distinto cavalheiro. Eis a confissão a seu marido: ‘[...] Well, Tess ought to go to this other member of our family. She’d be sure to win the lady – Tess would; and likely enough ‘twould lead to some noble gentleman marrying her. In short, I know it.’ ‘How?’ 16 Entretanto é verdade que, nestas últimas obras, a essência do enredo, a trajetória distintiva da narrativa, é o declínio constante desenvolvido por um protagonista que encarna a ordem mais antiga e cujo declínio está ligado, cada vez mais claramente, com uma má orientação interior, uma fraqueza íntima. (HOLLOWAY, 1963, p. 56; tradução nossa). 23 ‘I tried her fate in the Fortune-Teller, and it brought out that very thing!... […]’17 (HARDY, 1994, p. 29, grifo do autor). Por outro lado, o mundo urbano é tido como a possibilidade de mudança, de ascensão social, é o lugar em que residem as oportunidades mais promissoras para os filhos de todas as famílias. Na casa dos Clare, Félix e Cuthbert estudaram em Cambridge e recebem o apreço dos pais pelo posto eminente que alcançaram, enquanto Angel, que renunciara à religião, não conquistou um título acadêmico e, então, limita-se ao trabalho na terra como um estagiário para que um dia possa vir a ser um proprietário. Essas condições de vida díspares impostas pelo campo e pela cidade remontam à percepção que se criou ao longo da história das sociedades de que a vida simples no campo liga-se à candura, à paz, à tranquilidade, enfim, à desafetação propiciada por uma existência muito próxima ao estado natural das coisas, ao passo que, na cidade, o dinamismo da vida decorre do fato de ser este o espaço das conquistas humanas, da ilustração e da troca de informações. Portanto, muito além desse traço regionalista que invariavelmente recai sobre Hardy ao escrever sobre Wessex, devem-se apreender as implicações que subjazem ao antagonismo entre o rural e o urbano, que, na verdade, apenas servem de palco para a representação de outros expedientes dicotômicos: a tradição e a erudição, os ricos e os pobres, a avidez pela conquista e a frustração, articulados sob a égide da ideologia dominante. Thomas Hardy não trabalha com os detalhes como o fazem Charles Dickens e Zola: Hardy is not offering a generic account of the working class as Dickens is. His only generic treatment of them is to be found in the highly stylized groups of rustics commenting chorus-like on the events which befall central characters. Specificity belongs to those central figures whose lives, like Tess’s, are minutely observed in terms of adverse external conditions.18 (INGHAM, 2009, p. 107). 17 [...] Bem, Tess deve ir à casa desse outro membro de nossa família. É certo que ela, Tess, conquistaria a dama; e é quase certo que isso faria um nobre cavalheiro casar-se com ela. Enfim, eu sei disso. - Como? - Olhei o destino dela no Revelador da Sorte, e foi justamente isso mesmo que deu... [...] (HARDY, 1981, p. 37, grifo do autor). 18 Hardy não apresenta uma abordagem genérica da classe trabalhadora como faz Dickens. Seu único tratamento genérico sobre ela é encontrado nos grupos de camponeses altamente estilizados comentando, como em um coro, os eventos que recaem sobre as personagens principais. A especificidade pertence àquelas figuras centrais cujas vidas, como a de Tess, são minuciosamente observadas em termos de condições externas adversas. (INGHAM, 2009, p. 107; tradução nossa). 24 Dessa forma, os pobres, nos romances de Hardy, não são meras figuras representativas, “but individuals whose lives are largely shaped by the effect of poverty upon their temperaments as well as their circumstances”19 (INGHAM, 2009, p. 108). 1.3 A personagem A experiência que se tem da trama de um romance, das peripécias que instigam a curiosidade do leitor e, enfim, do ensinamento adquirido a partir da leitura de uma obra de ficção apenas se torna possível por intermédio das personagens que se acham no enredo. Elas funcionam como arautos da mensagem que se pretende passar e delas depende a identificação do leitor com a história contada. A personagem é, muitas vezes, considerada a principal categoria narrativa de um romance, mas, embora sua importância seja imprescindível, ela deve ser encarada como mais uma ferramenta de que o escritor dispõe e que se aglutina a outras como o tempo e o espaço a fim de conferir à obra unidade e coesão. Sua posição de destaque dentre as categorias narrativas decorre, no mais das vezes, do fato de ser a personagem o elo entre o leitor e a ação; é a personagem que sofre as paixões da história e é nela que se realizam as provas de uma trama. A construção de uma personagem resvala na preocupação com a verossimilhança, ou seja, o efeito de verdade é essencial para o sucesso do enredo. E esta verossimilhança não depende necessariamente de que as personagens executem feitos admissíveis na realidade, mas que exerçam ações aceitáveis no contexto da trama em que se inserem, sejam tais ações, inclusive, sobrenaturais (CANDIDO, 2000). O desejável é que as personagens, quando humanas, se aproximem ao máximo do porte de pessoas e, quando esta aproximação é atingida, percebe-se uma vantagem do ser fictício sobre o ser real, que talvez explique parte da fascinação que se sente quando da leitura de uma obra de ficção. O fato é que quando conhecemos uma pessoa, projetamos uma eventual caracterização interior que ela possa ter a partir do que enxergamos em seu exterior. Portanto, nossa percepção é imprecisa e fragmentária. No romance, a personagem é pré-concebida no momento criativo do autor e, em seguida, emoldurada numa história finita de que se conhece o início e o final. A personagem é, então, mais coesa e se abre ao leitor que se sente à vontade 19 Mas indivíduos cujas vidas são amplamente delineadas pelo efeito da pobreza sobre seus temperamentos, bem como pelas circunstâncias. (INGHAM, 2009, p. 108; tradução nossa). 25 para esquadrinhá-la. O ser fictício é mais atraente que o ser real porque se submete completamente ao controle humano. Portanto, a compreensão que nos vem do romance, sendo estabelecida de uma vez por todas, é muito mais precisa do que a que nos vem da existência. Daí podermos dizer que a personagem é mais lógica, embora não mais simples, do que o ser vivo. (CANDIDO, 2000, p. 59). Como portadora da mensagem do texto, a personagem a ele serve assumindo, basicamente, duas dimensões. O primeiro tipo é aquele que se compõe de traços fixos que limitam sua caracterização, fazendo com que a personagem não sofra oscilações de seus aspectos distintivos e permaneça estável ao longo do enredo; esta personagem não surpreende o leitor com mudanças inesperadas, e, portanto, segundo Forster (apud CANDIDO, 2000), são denominadas planas. Estas também são conhecidas como personagens de costumes – nomeação dada por Johnson (apud CANDIDO, 2000) – por representarem de maneira vincada um determinado tipo e pela facilidade de atuarem como caricatura. O outro modo a partir do qual se apresenta a personagem é assumindo um papel de complicada psicologia, densa caracterização interior e traços exteriores que sucumbem à importância da complexidade de seu caráter. Surge, então, a definição de uma personagem esférica ou de natureza, segundo Forster e Johnson, respectivamente. Essa personagem surpreende o leitor de modo convincente com suas mudanças e é mesmo marcada por um caráter incógnito quanto ao seu desenlace ao cabo do enredo. Em Tess of the d’Urbervilles, a protagonista é caracterizada como uma personagem fundamental para a representação da dramatização da crise de valores, pois vivencia os conflitos desencadeados pelo estranhamento entre modos de vida diferentes. Ela se constitui como uma representante de uma antiga família aristocrática que fora à falência e sofre com as exigências de uma sociedade ainda conservadora, em grande medida hipócrita, guiada pela moral cristã e por um machismo agudo que reservava à mulher o papel exclusivo de servir. Decorrentes desta visão patriarcal que suaviza as capacidades da mulher, os atributos que mais se destacam na protagonista são relacionados à sua aparência: She was a fine and handsome girl – not handsomer than some others, possibly – but her mobile peony mouth and large innocent eyes added eloquence to colour and shape. She wore a red ribbon in her hair, and was the only one of the white company who could boast of such a pronounced adornment.20 (HARDY, 1994, p. 12). 20 Era uma jovem formosa, delicada de traços – não mais formosa que algumas das demais, provavelmente – mas dona de uma boca móvel de Peônia e de uns olhos grandes e ingênuos que davam mais eloquência à sua cor e 26 Eis a primeira descrição de Tess no romance, quando ela se encontra junto às garotas do clube May Day Dance, apresentada como uma jovem com menos de vinte anos, cujos traços principais são a ingenuidade e uma beleza peculiar. Adiante, um pouco mais das características desta personagem: Tess Durbeyfield at this time of her life was a mere vessel of emotion untinctured by experience. The dialect was on her tongue to some extent, despite the village school: the characteristic intonation of that dialect for this district being the voicing approximately rendered by the syllable UR, probably as rich an utterance as any to be found in human speech. The pouted-up deep red mouth to which this syllable was native had hardly as yet settled into its definite shape, and her lower lip had a way of thrusting the middle of her top one upward, when they closed together after a word.21 (HARDY, 1994, p. 13). A inexperiência de Tess é um traço bastante reforçado pelo narrador no início do romance, o que, de certa forma, prepara o leitor para os insucessos que advirão à personagem e constitui a base, neste trabalho, para a abordagem da trajetória de formação da protagonista, no segundo capítulo. É uma jovem passional, singela, de vida simples no campo, a quem falta a perspicácia que os anos e o conhecimento de mundo constroem. Neste ponto há também uma referência que remete à questão da posição social: para enfatizar a divisão de classes, Tess é definida de acordo com seu lugar na sociedade em que vive; as relações dos indivíduos e suas respectivas posições na comunidade muito interessam para a caracterização dos tipos. Muito mais do que uma mera alusão ao dialeto que Tess usa em casa, o texto coloca a personagem em seu lugar social. O dialeto é uma marca da criação tradicional, da falta da instrução ilustrada, e demonstra que Tess, mesmo tendo frequentado a escola do vilarejo, não se libertara de sua origem humilde, fato que denuncia sua ascendência. A caracterização da personagem prossegue conforme o estilo realista: forma. Levava nos cabelos uma fita vermelha e era a única do branco cortejo que podia orgulhar-se de tão vistoso adorno. (HARDY, 1981, p. 23). 21 Tess Durbeyfield era, naquela ocasião de sua vida, nada mais que um vaso de emoções, sem o colorido da experiência. Tinha no seu modo de falar boa parcela do dialeto local, não obstante a escola da aldeia, sendo entonação característica daquele dialeto, naquele distrito, a inflexão com que aproximadamente se dizia a sílaba ur – uma inflexão provavelmente tão saborosa como qualquer que se pudesse encontrar na fala humana. A boca saliente, de um vermelho profundo, na qual aquela sílaba era inata, mal havia até então adquirido a sua forma definitiva, e o seu lábio inferior tinha um modo de empurrar o meio do superior para cima, quando se fechavam depois de uma palavra. (HARDY, 1981, p. 24). 27 Phases of her childhood lurked in her aspect still. As she walked along to- day, for all her bouncing handsome womanliness, you could sometimes see her twelfth year in her cheeks, or her ninth sparkling from her eyes; and even her fifth would flit over the curves of her mouth now and then. Yet few knew, and still fewer considered this. A small minority, mainly strangers, would look long at her in casually passing by, and grow momentarily fascinated by her freshness, and wonder if they would ever see her again: but to almost everybody she was a fine and picturesque country girl, and no more.22 (HARDY, 1994, p. 13-14). Eis um recorte da vida de Tess que se inicia pela construção de sua constituição como mulher. Ela se apresenta como um amontoado de fases; uma garota ainda em formação, que no rosto aparenta doze anos, ou seja, desponta para as mudanças que lhe trarão a maturidade, mas ainda muito distante da compleição de uma personalidade pronta e definida. Os seus nove anos brilhando em seus olhos e os cinco que se esboçam em seus lábios concorrem para a depreensão de que muito ainda falta para que Tess possa tomar decisões, consciente de seus desfechos. Por trás dessa figura imatura existe, entretanto, uma disposição aguerrida aos cuidados com sua família. Tess é a filha mais velha de um casal com sete filhos e, além de auxiliar nos afazeres domésticos, preocupa-se também com o trabalho que traz o sustento à família: em certa ocasião, toma para si a responsabilidade de transportar algumas colmeias de Marlott a Casterbridge, substituindo o pai que, na noite anterior, embriagara-se a ponto de ficar impossibilitado de cumprir a tarefa. A camponesa nasce pobre, em meio às dificuldades de uma família numerosa e sem recursos, passa a vida toda experimentando peripécias que só lhe trazem desventura e cede, ao fim e ao cabo, a um desenlace que muito a aproxima das personagens convencionalmente trágicas. Vivem na casa, juntos a Tess, em Marlott, seus pais, John e Joan Durbeyfield e uma prole de mais seis crianças: Eliza-Louisa (Liza-Lu), de doze anos; Abraham, nove; duas meninas, Hope e Modesty; um garoto de três anos e o bebê que acabara de completar um ano. Destas personagens pouco é sabido, pois desempenham papéis coadjuvantes no romance. John é assim caracterizado: 22 No seu aspecto, escondiam-se ainda fases da sua infância. Embora caminhasse à frente, naquele dia, com toda a sua formosa e exuberante feminilidade, podiam ver-se às vezes os seus doze anos em seu rosto, ou os nove a cintilar-lhe nos olhos; e até os cinco insinuavam-se vez por outra nas curvas de sua boca. Poucos, porém, eram os que sabiam disso, e menos ainda os que prestavam atenção. Uma pequena minoria, de estranhos principalmente, ao passar por ela por acaso, costumava olhá-la demoradamente e ficar por momentos fascinada pelo seu frescor, a perguntar-se se ainda iria vê-la outra vez; mas, para quase toda a gente, era uma bonita e delicada camponesa, e apenas isso. (HARDY, 1981, p. 25). 28 [...] a middle aged man [...] The pair of legs that carried him were rickety, and there was a bias in his gait which inclined him somewhat to the left of a straight line. He occasionally gave a smart nod, as if in confirmation of some opinion, though he was not thinking in anything in particular. An empty egg-basket was slung upon his arm, the nap of his hat was ruffled, a patch being quite worn away at its brim where his thumb came in taking it off.23 (HARDY, 1994, p. 3). É a imagem de um homem que ainda goza do vigor da meia idade, mas que apresenta fragilidades que incidem sobre sua postura perante a família. John é um sujeito que mais valoriza a bebida que o trabalho e, depois que descobre sua ascendência nobre, vive fantasiando a ideia de que seu nome vultoso “d’Urberville” é capaz de lhe trazer proventos. É apenas uma personagem plana, que não foge à constância daquilo que pretende na vida. Sua esposa, Joan, é, do mesmo modo, alguém que pretende tirar proveito do nome da família. Encoraja Tess a pedir reconhecimento da senhora d’Urberville e, a todo custo, pretende conseguir um casamento vantajoso para a filha. Joan Durbeyfield passa a impressão de que seus esforços para com Tess visam ao seu próprio benefício, tamanha a desconsideração das consequências que seus atos possam acarretar. Representa a mulher submissa daquela sociedade conservadora, a senhora da casa, que se ajusta aos afazeres domésticos e aos cuidados dos filhos e do marido. Ao bater à porta da senhora d’Urberville a fim de anunciar-lhe que pertenciam a uma só família, Tess é recebida por Alec d’Urberville, que, mais tarde, tornar-se-ia sua primeira perdição. He had an almost swarthy complexion, with full lips, badly moulded, though red and smooth, above which was a well-groomed black moustache with curled points, though his age could not be more than three- or four-and- twenty. Despite the touches of barbarism in his contours, there was a singular force in the gentleman’s face, and in his bold rolling eye.24 (HARDY, 1994, p. 44). A caracterização dessa personagem o revela como um ser dual: é um homem que denota traços de severidade e, ao mesmo tempo, exterioriza uma feição gentil e jovial. É, sem dúvida, um galanteador e a perspicácia é um de seus mais notáveis atributos. Sagazmente 23 [...] um homem de meia-idade [...] As pernas que o conduziam eram vacilantes, e havia no seu modo de andar certa tendência que o fazia pender um pouco para a esquerda de uma linha a prumo. Vez por outra, fazia um vigoroso movimento de cabeça, como se a confirmar dada opinião, embora não estivesse pensando em nada de particular. Uma cesta de ovos, vazia, pendia-lhe do braço; o pelo de seu chapéu estava amassado e havia na aba um pedaço inteiramente gasto, no lugar onde pegava seu polegar para tirá-lo. (HARDY, 1981, p. 15). 24 Tinha ele a tez quase tisnada de sol, com lábios cheios, mal conformados, embora rubros e lisos, acima dos quais se via um bigode preto bem frisado, com pontas recurvadas, embora a sua idade não pudesse ser de mais de vinte e três ou vinte e quatro anos. Todavia, apesar dos traços de barbárie dos seus contornos, havia uma força singular no rosto do cavalheiro e nos seus olhos móveis e atrevidos. (HARDY, 1981, p. 51). 29 acua Tess e, aproveitando-se de sua posição privilegiada numa relação de favorecedor e favorecido, induz a jovem a prestar-lhe favores sexuais a contragosto. Assume, portanto, ao longo do romance o aspecto de uma figura perseguidora que não se esgota ao fim do primeiro sofrimento de Tess, mas persiste a assolá-la principalmente nos momentos mais cruciais de suas provações. É um burguês que se movimenta e se relaciona em um ambiente com resquícios feudais. Outra importante personagem do romance é Angel Clare, o homem com quem Tess se casa e por quem verdadeiramente se apaixona. Esta é também das mais densas figuras da obra por destoar sobremaneira dos convencionalismos instituídos para a época. He was the youngest son of his father, a poor parson at the other end of the county, and had arrived at Talbothays Dairy as a six months’ pupil, after going the round of some other farms, his object being to acquire a practical skill in the various processes of farming, with a view either to the Colonies, or the tenure of a home-farm, as circumstances might decide.25 (HARDY, 1994, p. 147). Clare nasce numa família sacerdotal cristã que lhe quer clérigo, à guisa de seu pai. Entretanto, por determinação própria, o rapaz opta pela vida de fazendeiro e se dedica à preparação para o ofício de proprietário de terras. Angel experimenta nas fazendas que percorre os mais variados serviços a fim de se tornar apto a dirigir as propriedades que vier a ter. Enquanto fazia um estágio na queijaria Talbothays, encontra-se com Tess que para lá rumara após seu fracasso em Trantridge. Clare, ao contrário de seus irmãos, Félix e Cuthbert, não estudara em Cambridge, pois, segundo seu pai, o reverendo James Clare, a instrução superior apenas se justificaria se servisse à prática religiosa, a que Angel era terminantemente avesso. Às tentativas de persuadi-lo à ideia de se tornar um sacerdote, Angel se posicionava adverso. ‘No, father; I cannot underwrite Article Four (leave alone the rest), taking it “in the literal and grammatical sense” as required by the Declaration; and, therefore, I can’t be a parson in the present state of affairs’, said Angel. ‘My whole instinct in matters of religion is towards reconstruction; to quote your favourite Epistle to the Hebrews, “the removing of those things that are shaken, as of things that are made, that those things which cannot be shaken may remain.”’26 (HARDY, p. 149, grifo do autor). 25 Era o filho mais novo de seu pai, pobre sacerdote do outro extremo do condado, e chegara à Queijaria Talbothays para ser aprendiz por seis meses, depois de passar por algumas outras fazendas, tendo por objetivo adquirir conhecimentos práticos dos vários processos de trabalho rural, com um olho voltado ou para as Colônias, ou para a manutenção de uma fazenda no país, conforme decidissem as circunstâncias. (HARDY, 1981, p. 139). 26 -Não, pai; não posso submeter-me ao Artigo Quatro (sem falar no resto), aceitando-o “no sentido literal e gramatical”, como é exigido na Declaração; e por isso, não posso ser padre no presente estado de coisas – disse 30 Angel Clare é, pois, um livre pensador que não aceita a concepção de mundo calcada na interpretação bíblica e em dogmas religiosos e refuta a “insustentável teolatria remissora” (HARDY, 1994, p. 149; tradução nossa) da igreja. Este caráter revolucionário de Angel prepara o leitor para a assimilação de uma personagem que se concebe contrária aos costumes tradicionais, transgressora dos hábitos conservadores e mesmo uma portadora de ideias inovadoras. Para Charlotte Bonica (1982, p. 850), a postura da personagem é esta porque “[...] in the pagan attitude toward the natural world, Angel begins to discover a new source of value and a replacement for the exhausted creed of his parents’ faith – a new way of making sense of a universe bereft of Providence”27. Essa atitude pagã emoldura um movimento de tentativa de substituição da religião cristã e será desenvolvida no terceiro capítulo, quando se ressaltará a presença do mito na narrativa. Após uma trajetória de postura contrária às convenções, Angel apresenta uma guinada em seu rumo esperado quando, na noite da lua-de-mel, toma conhecimento de que Tess tivera, no passado, um envolvimento com Alec e que deste caso lhe resultara um filho. Angel parece, então, desligar-se de toda a sua consciência reformista e arraigar-se a um comportamento tipicamente conservador, que tanto reprovava, rejeitando Tess Durbeyfield. O leitor é surpreendido, portanto, com esta reação inesperada de Angel, que confessa ter tido uma vida pregressa libidinosa, mas, incompreensivelmente, não perdoa o deslize da esposa. Ele é, sem dúvida, uma das personagens mais cativantes da obra e, pelo fato de promover o inesperado, destaca-se da maioria das outras personagens que se mantêm estáveis ao longo da trama. Esta não é apenas a típica personagem de costumes, representante de algum lugar social, mas é o dispositivo através do qual se torna muito evidente a crítica à velha ordem do mundo e à hipocrisia reinante naquela sociedade. Outras personagens que merecem menção são as leiteiras Izz, Marian e Retty. Estas conhecem Tess na queijaria Talbothays e apresentam um ponto em comum entre si: todas nutrem uma paixão platônica por Angel. As três amigas observam o estagiário pelas frestas das janelas, ao longe no campo, desejando-o, mas ao mesmo tempo conscientes da impossibilidade de se satisfazerem. Quando vêm a saber do interesse de Angel por Tess trabalham de maneira altruísta a favor da jovem que julgavam merecedora do amor do rapaz. Angel. – Todo o meu instinto em matérias de religião é no sentido da reconstrução; citando a sua favorita Epístola aos Hebreus, “da mudança das coisas móveis, como terminadas, para que permaneçam aquelas que são imóveis”. (HARDY, 1981, p. 141, grifo do autor). 27 [...] na atitude pagã em relação ao mundo natural, Angel começa a descobrir uma nova fonte de valor e um substituto para a crença desgastada de seus pais – uma nova maneira de dar sentido a um universo desprovido de Providência. (BONICA, 1982, p. 850; tradução nossa). 31 Após o casamento de Angel e Tess, duas das amigas se abatem com a realidade de terem perdido definitivamente a possibilidade de possuí-lo como esposo e, então, num desfecho irremediável, Retty tenta o suicídio por afogamento e Marian torna-se uma alcoólatra. O leitor depara-se, então, com uma gama de personagens que muito dizem acerca das implicações sociais no romance; são quase tipos que se exibem com seus traços bem delineados; é o ser fictício que se abre ao leitor com uma amplitude superior ao ser real; o escopo é a relação entre os indivíduos e não precisamente a complexidade interior de cada um. São, portanto, em sua maioria, personagens planas, fadadas a um destino incontornável e, no mais das vezes, apresentam características fixas e mantêm um curso perene ao longo da trama, com uma possível ressalva para as figuras de Tess Durbeyfield, pela complexidade de sua formação, e de Angel Clare, que manifesta uma atuação ziguezagueante. O que é importante no percurso das personagens e, em especial no de Tess, é o fato de haver um movimento de migração forçado de uma fazenda a outra. Tal movimentação, segundo o narrador, é a responsável pelo despovoamento de determinadas áreas. Esse movimento leva a protagonista ao destino funesto . “This [a movimentação de uma fazenda a outra] is seen as crucial source of depopulation of the countryside of which the departure of the Durbeyfields from Marlott with no home in prospect is a single example”28 (INGHAM, 2009, p. 109). Também é, no caso de Tess, a tentativa de fuga do julgamento da sociedade em que a mulher é totalmente submissa, sujeita às vontades do homem e presa às representações criadas por ele. Como as três personagens centrais da narrativa transitam entre dois modos de vida, o esquema a seguir ilustra o contexto que cada uma representa e como se dá a relação entre as eras decisiva para o estabelecimento do choque de valores que aqui se pretende demonstrar: 28 Isso é visto como uma fonte crucial de despovoamento do campo. A partida dos Durbeyfields de Marlott sem um lar em perspectiva é apenas um exemplo. (INGHAM, 2009, p. 109; tradução nossa). Tess Durbeyfield Angel Clare Alec d’Urberville Contexto feudal Contexto capitalista 32 1.4 O narrador Basicamente, a voz do narrador constitui a única realidade do relato. É o eixo do romance. Podemos não ouvir em absoluto a voz do autor nem a dos personagens. Mas sem narrador não há romance.29 (TACCA, 1983, p. 65). Esta categoria narrativa é a instância que promove a mediação entre o autor e o leitor e, a partir da sapiência do narrador é que se dá a medida do conhecimento que o leitor apreende da história narrada. Convencionalmente, o narrador se expressa em primeira ou em terceira pessoa – na teoria genetteana, narrador homodiegético e narrador heterodiegético (GENETTE, 1972), respectivamente –, o que define sua inclusão ou ausência na trama. Em primeira pessoa, o narrador toma parte nos acontecimentos narrados e insere-se como uma personagem do enredo, limitando sua visão dos fatos à capacidade restringida de um ente sujeito às peripécias da trama e, portanto, narra a história circunscrevendo-se à sua própria subjetividade. Neste caso, a percepção que o leitor capta do relato é potencialmente tendenciosa e suscita questionamentos quanto à credibilidade dos acontecimentos e das opiniões, dado o caráter subjetivo da narração. O narrador em terceira pessoa também pode constituir uma personagem do enredo e, como tal, inteira-se dos acontecimentos na medida em que se dão, abstendo-se da capacidade de conhecer os eventos antecipadamente. No entanto, a expressão mais característica desta voz narrativa ocorre por meio da perspectiva onisciente, que permite ao narrador relatar os fatos de uma história da qual não participou, valendo-se de uma posição privilegiada. O distanciamento existente entre esse narrador e a trama confere certa isenção de juízo aos valores ali transcritos, pois a manipulação dos fatos não interessa a essa entidade exterior à história. Entretanto, o discurso desse narrador não é, de todo, isento, já que através do fenômeno da “intrusão” ficam implícitos julgamentos, ideias e posicionamentos críticos a respeito do objeto narrado. Em Tess of the d’Urbervilles, quem conta a história é o narrador heterodiegético e onisciente. Com essas características, ele detém os entraves do enredo soberanamente e, de modo seletivo, libera ao leitor detalhes que antecipam os desfechos futuros. Nas linhas finais da primeira parte do romance, após relatar o episódio do suposto estupro de Tess, o narrador dá à sua voz um tom premonitório que adverte o leitor sobre as 29 Esta é uma referência selecionada para ilustrar exclusivamente o caso do romance realista, gênero em que se enquadra Tess of the d’Urbervilles. 33 mudanças por que passará a protagonista: “An immeasurable social chasm was to divide our heroine’s personality thereafter from that previous self of hers who stepped from her mother’s door to try her fortune at Trantridge poultry-farm”30 (HARDY, 1994, p. 91). Aqui já se refere ao processo de formação da personagem, que terá a compreensão de si mesma alterada em termos de adaptação a um espaço regido por preceitos distintos daqueles em que foi criada e educada. É frequente, ao longo do romance, a aparição da voz do narrador ao final de cada capítulo e um comentário acerca do episódio relatado. Esta intrusão dirige, de certa forma, a compreensão do leitor, sinalizando-lhe tendências interpretativas carregadas de intencionalidade. As perguntas lançadas nesses comentários não são especificamente dirigidas ao leitor, tampouco requerem resposta objetiva, mas têm conteúdo retórico e servem à instigação reflexiva. No excerto seguinte, o narrador realça a inevitabilidade do percalço que Tess tem de enfrentar ao seguir, pusilânime, para Trantridge com Alec, após deixar sua casa em Marlott: “How could she face her parents, get back her box, and disconcert the whole scheme for the rehabilitation of her family on such sentimental grounds?”31 (HARDY, 1994, p. 67). Não há volta neste movimento. É o próprio rapto de Perséfone operado por Hades, conforme relata o mito clássico descrito no terceiro capítulo deste trabalho. O leitor é, portanto, “influenciado” a reforçar a ideia do fatalismo e da vida sem saída que reveste o enredo, pois, deliberadamente, a nota do narrador tende para esta direção. Para dar forma a esse fatalismo, o narrador move-se em perspectivas flutuantes e contraditórias de tempo e espaço, incluindo a perspectiva de que os seres humanos têm pouca ou muita importância, sobretudo quando as personagens são forçadas a migrar de uma fazenda a outra em busca de trabalho. Ao manter essa perspectiva variante, os eventos surgem como estritamente domésticos e contribuem para revelar a grande tragédia que se abaterá sobre Tess. As circunstâncias que envolvem o retorno de Tess para Alec são tratadas dessa forma: a morte do pai, a pobreza da família e a ausência de um teto para abrigo atuam como prelúdio para o assassinato de Alec. Em outra passagem, o narrador é irônico e sua questão suscita o descrédito da instância espiritual: “But, might some say, where was Tess’s guardian angel? Where was the 30 Um abismo social imenso estava para separar a personalidade da nossa heroína, a partir dali, daquela sua identidade anterior, com que abandonara a porta de sua mãe para tentar a sorte na granja de galinhas de Trantridge. (HARDY, 1981, p. 92). 31 Como poderia enfrentar seus pais, receber de volta sua mala, e atrapalhar todo o plano de reabilitação da família por causa de fundamentos emocionais como aqueles? (HARDY, 1981, p. 71). 34 providence of her simple faith?”32 (HARDY, 1994, p. 90-91), em que o ceticismo da voz narrativa contamina a imparcialidade de julgamento e colabora sobremaneira com a depreensão de mais um tópico muito caro a essa conjuntura que desenha a crise dos valores daquela sociedade: a perda da fé. O narrador, então, enriquece o romance com suas intrusões e livra-o do formato documental inserindo, vez ou outra, suas impressões que tendem à conclusão trágica da obra. Passando pelos comentários irônicos e pelas antecipações de eventos, este narrador onisciente faz sua última intrusão comentando, com uma sutil ironia, a sentença de Tess: “‘Justice’ was done, and the President of the Immortals, in Aeschylean phrase, had ended his sport with Tess”33 (HARDY, 1994, p. 508). Constata-se aqui a presença do típico narrador realista, aquele que atua como o senhor dos fatos, profundo conhecedor da trama e que se utiliza da onisciência seletiva para dosar a revelação dos acontecimentos. Embora haja diálogos ao longo do romance, a principal voz é a do narrador intruso que controla o ritmo das ações, o que corrobora a afirmação de Colin MacCabe (apud COBLEY, 2005) que diz existir uma hierarquia no clássico romance realista: ouvem-se as vozes das personagens, mas estas ficam subordinadas à voz do narrador. A voz do narrador permite que o leitor vá registrando as implicações sociais inseridas na trajetória das personagens. No terceiro capítulo, o narrador realça como a mudança avassaladora das práticas sociais coloca mãe e filha em pontos históricos distintos naquela sociedade: Between the mother, with her fast-perishing lumber of superstitions, folk- lore, dialect, and orally transmitted ballads, and the daughter, with her trained National teachings and Standard knowledge under an infinitely Revised Code, there was a gap of two hundred years as ordinarily understood. When they were together the Jacobean and the Victorian ages were juxtaposed.34 (HARDY, 1994, p. 23-24) Essa distância diz respeito à velocidade da mudança do aparato social que se estabelecia com a sedimentação do novo modo de produção, permitindo um descompasso tão incisivo entre o comportamento de duas gerações. 32 Onde, porém, poderia alguém perguntar, estava o anjo-de-guarda de Tess? Onde estava a providência da sua fé simples? (HARDY, 1981, p. 91). 33 A “Justiça” havia sido feita, e o Presidente dos Imortais, para repetir a frase de Ésquilo, havia terminado o seu jogo com Tess. (HARDY, 1981, p. 442). 34 Entre a mãe, com o seu amontoado que depressa se esgotava, de superstições, de tradições do povo, de dialeto e de baladas oralmente transmitidas, e a filha, com a sua instrução escolar nacional e conhecimentos de sexto grau, nos termos de um Programa infinitamente revisto, havia uma diferença de duzentos anos, para dizer a verdade. Quando estavam juntas, as eras do Rei Jaime e da Rainha Vitória achavam-se justapostas. (HARDY, 1981, p. 33). 35 Mais adiante, o narrador comenta as impressões de Angel sobre a educação dos camponeses, especialmente de Tess, e reforça como a personagem percebe a importância da formação intelectual para a transformação social: He held that education had as yet but little affected the beats of emotion and impulse on which domestic happiness depends. It was probable that, in the lapse of ages, improved systems of moral and intellectual training would appreciably, perhaps considerably, elevate the involuntary and even the unconscious instincts of human nature […].35 (HARDY, 1994, p. 211-212). Levar em consideração a importância da personagem e do narrador na constituição do romance é enfatizar a condição estratégica conferida a essas categorias pelo autor da obra, que, a partir desses elementos, opera a representação da dramatização da crise de valores. A personagem, ao apresentar ao leitor as experiências da trama, e o narrador, fazendo emergir com intrusões tendenciosas o desenrolar do enredo, trazem à tona as marcas de um estilo de vida desgastado e ávido por mudança. 1.5 Feudalismo e Capitalismo: uma engrenagem insólita O essencial da ação é a frustração de todos: frustração causada por processos muito complicados de divisão, separação e rejeição. As pessoas escolhem mal, porém o fazem sob pressões terríveis: em meio às confusões de classe social, os mal-entendidos por elas gerados, as rejeições calculadas de um mundo dividido e divisor. (WILLIAMS, 2011, p. 353). As diferenças entre classes sociais, sua implicação no rumo da vida das personagens e a religiosidade são tópicos que concorrem para a depreensão de como os valores são conflituosos dentro do romance, considerando-se o choque entre os modos de vida: o feudal e o capitalista. Com isso, Hardy compõe estrategicamente o cenário social e as injustiças que o assolam para representar de forma dramática como o ser humano revela angústia quando se vê diante da privação, que a pobreza traz e, da opressão. Thomas Hardy não oferece um panorama geral sobre a classe trabalhadora como Dickens em Bleak House (1852-1853). 35 Afirmava que a educação até ali pouca influência tivera sobre a vibração da emoção e do impulso, dos quais depende a felicidade doméstica. Era provável que, no decorrer das eras, sistemas aperfeiçoados de formação moral e intelectual, viessem a elevar apreciável e mesmo consideravelmente os instintos involuntários e até inconscientes da natureza humana[...]. (HARDY, 1981, p.192-193). 36 Assim, os detalhes da privação pela qual passam os familiares de Tess não têm o objetivo de atuar como crônica desses eventos. Mas a pobreza do fecundo casal Durbeyfield é importante pelas consequências que traz para Tess. Como mostra Ingham (2009), a morte do único cavalo da família e a perda da habitação, após a morte de John Durbeyfield, contribuem para a trajetória dramática de Tess. Os detalhes da pobreza não estão aí apenas com o caráter de crônica, eles têm outra função, a saber, indicam como a inserção social, na sociedade inglesa no período, pode levar a consequências dramáticas. Para Ingham, não há sentido em considerar os romances de Hardy como tratados sociais nos moldes de Dickens e Gaskell. Os traços sociais estão presentes, mas “they arise naturally in the course of the narratives. They include the nature of working-class tenancies, rural immigration, and the impact of machinery on the nature of agricultural labour”36 (INGHAM, 2009, p.109). Por isso, Ingham faz a seguinte distinção: In this way they [os detalhes das privações] are far removed from the comprehensive picture of urban misery in Gaskell’s and Dickens’s novels which do aim at description assumed to reveal to readers circumstances of which they are supposedly unaware and which for the characters involved are as unavoidable as the weather.37 (INGHAM, 2009, p. 108-109). A tradição do romance realista, amplamente explorada nas décadas finais do século XIX, prevê a representação do mundo na literatura sob a perspectiva da fidelidade ao objeto observado, ou seja, a verossimilhança realista não admite artifícios que possam mascarar a descrição objetiva do que se vê. Contrapõe-se, nesse aspecto, à poética romântica que se utiliza do sublime e do fantástico para provocar catarse, criando situações improváveis e inadmissíveis ao juízo humano por conta de seu caráter sobrenatural. O romance realista prende-se aos acontecimentos cotidianos do homem comum, carnal e sujeito às forças superiores da natureza e da própria sociedade em que está inserido. É a voz crítica do meio social, pois atua em tom de denuncismo das misérias e dos comportamentos dos indivíduos (BURGESS, 2006). Para tanto, alia-se a correntes cientificistas como o Determinismo e o Evolucionismo e concebe seus heróis sob a pressuposição de que o meio em que vivem e os fatores biológicos que levam em seus genes são os grandes responsáveis 36 Surgem naturalmente no decorrer das narrativas. Eles abordam a natureza do inquilinato da classe trabalhadora, a imigração rural e o impacto das máquinas sobre a natureza do trabalho agrícola. (INGHAM, 2009, p. 109; tradução nossa). 37 Nesse sentido, eles [os detalhes das privações] estão bem distantes do retrato abrangente da miséria urbana dos romances de Gaskell e de Dickens que têm de fato por objetivo a descrição assumida de revelar aos leitores as circunstâncias daquilo a que eles estão supostamente alheios e que para as personagens envolvidas são tão inevitáveis quanto o tempo. (INGHAM, 2009, p. 108-109; tradução nossa). 37 pelo desfecho de suas trajetórias. Esses heróis são colocados à prova e experimentam peripécias às quais subsistem apenas os mais aptos (BURGESS, 2006). Embora distante do romance realista escrito por Dickens e Gaskell, Thomas Hardy promove em Tess of the d’Urbervilles a aplicação dessas teses científicas, destacando que as implicações socioeconômicas de um mundo em transformação têm papel principal na dramatização da crise dos valores humanos daquela sociedade e, portanto, mostra que a protagonista luta em vão contra o curso da História: é uma filha do velho modo de produção feudal abatido ante o avanço capitalista que vive a opressão exercida nesse novo meio social. Seu destino incontornável é fruto da nova disposição dos fatores econômicos, políticos e sociais e a irreversibilidade de sua condição é clara, pois a personagem está sujeita aos ditames da nova organização de relações comerciais que vitima os menos predispostos à situação da mudança. Utilizando-se do expediente da queda de uma família abastada, Tess of the d’Urbervilles não deixa de mostrar também, num plano mais dilatado, a prostração do próprio homem. Os d’Urberville, na ficção, remontam à Idade Média, tempo em que gozavam de prestígio e poder, na condição de uma família aristocrata, proprietária de uma vasta extensão de terra na região de Kingsbere. Alguns séculos depois de seu auge, os únicos remanescentes da família grandiosa são John Durbeyfield e seus descendentes que, agora, no outro extremo da pirâmide social, vislumbram um retorno ao passado nostálgico. A decadência dos d’Urberville parece, contudo, resultado de uma imposição de regras por parte dos detentores do poder. Quem domina é aquele que tem poder e isso significa ter dinheiro, propriedades e também empregados. Os d’Urberville já não são nobres e, portanto, estão sujeitos às regras do jogo que os novos proprietários dos meios de trabalho impõem. A mudança dos modos de produção implica mudança nas relações interpessoais e, por conseguinte, altera a estabilidade econômica da sociedade. Marx e Engels (2005) lembram que em Roma da Antiguidade havia patrícios, plebeus e escravos, determinando uma sociedade hierarquizada segundo o nascimento do indivíduo; na Idade Média, a gradação se postava a partir do senhor feudal e, então, numa escala descendente de poder seguia-se com o vassalo, o mestre, o oficial e o servo. O ponto de referência era, sem dúvida, o senhor feudal que, investido de poderes absolutos sobre seus domínios, conferia a seus tributários títulos, proteção, e uma dedicação que se fundava no princípio da ajuda mútua. A relação social que se estabelecia naquele modo de produção dava-se entre soberano e súdito; aquele, pertencente à nobreza, este, oriundo da população obreira dos feudos. 38 Esta sociedade, porém, convulsionou-se por conta de pressões internas e das relações comerciais externas que se recrudesciam. As grandes navegações e o comércio que a Europa estabeleceu com a Índia e com a China concorreram para o fim do modo de produção feudal e, então, o mercantilismo despontava como embrião do capitalismo, que chegava para marcar uma sociedade extremamente dinâmica e agressiva em suas relações comerciais. Foi, pois, a ineficiência do feudalismo que decretou seu próprio fim, e com ele também sucumbiu grande parte da nobreza. Os d’Urberville estavam na esteira avassaladora desta mudança. No final do século XIX, época em que se passa o romance, o que se verifica é um expediente de relações sociais grandemente desumanizadas por conta do capitalismo agressivo e que se tornava ainda mais severo devido à recente Revolução Industrial. Segundo Raymond Williams (2011, p. 12), “a Revolução Industrial não transformou só a cidade e o campo: ela baseou-se num capitalismo agrário altamente desenvolvido, tendo ocorrido muito cedo o desaparecimento do campesinato tradicional”. A mudança de poder econômico e político transformou muito mais do que apenas a base da economia. Alterou também a relação dos indivíduos no ambiente em que viviam. A sociedade não era mais composta por nobres e súditos, mas, segundo Marx e Engels (2008), por burgueses e proletários, ou seja, as desigualdades sociais subsistiam, já que as mudanças ocorridas não deram