unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP RODOLFO PEREIRA PASSOS EEENNNSSSAAAIIIOOO SSSOOOBBBRRREEE AAA CCCEEEGGGUUUEEEIIIRRRAAA,,, DDDEEE JJJOOOSSSÉÉÉ SSSAAARRRAAAMMMAAAGGGOOO,,, EEE AAA EEEXXXPPPEEERRRIIIÊÊÊNNNCCCIIIAAA PPPÓÓÓSSS---MMMOOODDDEEERRRNNNAAA DDDAAA VVVEEERRRDDDAAADDDEEE... ARARAQUARA – S.P. 2012 2 RODOLFO PEREIRA PASSOS EEENNNSSSAAAIIIOOO SSSOOOBBBRRREEE AAA CCCEEEGGGUUUEEEIIIRRRAAA,,, DDDEEE JJJOOOSSSÉÉÉ SSSAAARRRAAAMMMAAAGGGOOO,,, EEE AAA EEEXXXPPPEEERRRIIIÊÊÊNNNCCCIIIAAA PPPÓÓÓSSS---MMMOOODDDEEERRRNNNAAA DDDAAA VVVEEERRRDDDAAADDDEEE... Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de Pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa. Orientador: Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim ARARAQUARA – S.P. 2012 3 Rodolfo Pereira Passos EEENNNSSSAAAIIIOOO SSSOOOBBBRRREEE AAA CCCEEEGGGUUUEEEIIIRRRAAA,,, DDDEEE JJJOOOSSSÉÉÉ SSSAAARRRAAAMMMAAAGGGOOO,,, EEE AAA EEEXXXPPPEEERRRIIIÊÊÊNNNCCCIIIAAA PPPÓÓÓSSS---MMMOOODDDEEERRRNNNAAA DDDAAA VVVEEERRRDDDAAADDDEEE... Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Data da defesa: 25/01/2013 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Jorge Vicente Valentim Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Outeiro Fernandes Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Luci Ruas Pereira Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 4 Para Professor Jorge Valentim, que me despertou o interesse pela Literatura Portuguesa e por José Saramago, e, sobretudo, me motivou a buscar o inalcançável, porque o pensamento crítico jamais se daria por caminhos superficiais. 5 Agradecimentos Agradeço aos professores que contribuíram, cada dia, de maneira especial, tanto pela mostra de humildade, quanto pela imensa paixão ao compartilhar o conhecimento. Foram eles que me serviram e são eles que continuarão servindo, sempre, de inspiração: Jorge Vicente Valentim, Joyce Ferraz Infante, Luci Ruas Pereira, Marcio Thamos, Maria Lúcia Outeiro Fernandes, Rejane Cristina Rocha e Renata Junqueira. 6 No esplêndido mundo da arte – como é que filosofaram? Quando se alcança uma realização da vida termina o filosofar? Não, é só neste momento que começa o verdadeiro filosofar. Seu juízo sobre a existência diz mais sobre ela porque tem, diante de si, uma realização relativa, todos os véus da arte e todas as ilusões. [FRIEDRICH NIETZSCHE. O livro do filósofo.] 7 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo pesquisar as relações intertextuais existentes entre o romance Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, e as reflexões propostas pelo pensamento de Martin Heidegger (1889-1976). Tendo como ponto central a obra Ser e Tempo (1927), e a partir de questões como o ser e a verdade, tentaremos estabelecer parâmetros possíveis de leitura da representação da “cegueira”, apresentada e criada por Saramago, capaz de afetar o homem contemporâneo. Delimitando como palco de atuação o mundo denominado pela crítica como “pós-moderno”, é nosso intuito apresentar e questionar algumas teorizações sobre o pós-modernismo e refletir sobre sua correspondência com a sociedade atual e suas consequentes correlações com a ficção de Saramago. Servirão, também, como acicate ao pensamento interpretativo, conceitos filosóficos heideggerianos, tais como pre-sença, ser-no-mundo, impessoal, angústia, e ser-para-a-morte. A verdade será (des)construída, principalmente no sentido de evidenciar que o sujeito racional perdeu sua força dentro da trama complexa do mundo pós-moderno. Pensaremos, também, neste sujeito cego e sua caminhada por uma cidade labiríntica. A realidade tornou-se plural e o homem não pode enxergar mais sua segurança epistemológica. Procuraremos perceber como o romancista português utiliza- se destes dados, através de uma dominante ontológica, para problematizar o ser humano e seu vínculo com um mundo marcado por um estado de “cegueira”, e assim, através da ficção, compor seus questionamentos pautados na ética e na existência. PALAVRAS-CHAVE: Ficção Portuguesa, José Saramago, Pós-modernismo. 8 ABSTRACT The objective of the present work is to research the existent relation between José Saramago‟s novel Ensaio sobre a Cegueira, and the reflections offered by Martin Heidegger (1889-1976). Based in the philosophic work Ser e Tempo (1927), by Heidegger, as our main point, and in accordance with questions as being and truth, we have tried to establish possible parameters to interpret the “blindness” proposed by José Saramago, capable of affecting the contemporary man. We have the post-modern world as the center stage with the intention to expose and to ask about the postmodernism and to reflect about the relation between contemporary society and the consequent relation with Saramago´s fiction. Heideggerian concepts will be used as incentive to comprehend Saramago´s ideas as dasein, being-in-the-world, who, angst, and being-towards-death. The truth will be deconstructed to show that the rational subject lost his strength inside the complex postmodern world. We´ll also think about this blind subject and his walk through a maze city. The reality became plural and the human being could no longer see his epistemological safety. We´ll try to understand how the Portuguese writer has utilized these data through an ontological dominant to analyze the human being and his connection with a world marked by a state of blindness, and then, through the fiction, to establish his questionings based on ethic and existence. KEYWORDS: Portuguese Fiction, José Saramago, Post-modernism. 9 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 10 INTRODUÇÃO À “INEXPLICABILIDADE” 14 PRIMEIRO CAPÍTULO: A LINHA PÓS-MODERNA DE QUESTIONAMENTO DO SER 19 1.1. Saramago: evolução ou paradoxo? 26 1.2. O “lado de dentro da pedra” 30 1.3. Estilhaços pós-modernos 35 SEGUNDO CAPÍTULO: A CEGUEIRA BRANCA E A (DES)CONSTRUÇÃO DA VERDADE 45 2.1. Primeiros passos: para uma poética da cegueira branca 45 2.2. O encontro da cidade e o desencontro do ser 61 2.3. Ser verdadeiro enquanto ser descobridor 67 2.4. O ser-no-mundo e o Impessoal 73 2.5. Na senda da verdade: a angústia e a experiência negativa 79 TERCEIRO CAPÍTULO: A MULHER DO MÉDICO E A TEORIA PENDULAR 85 3.1. Confiança cega e consciência do ser 91 3.2. Luz e sombra e a desterritorialização das almas 97 3.3. A reticência da dúvida: relações miméticas? 106 QUARTO CAPÍTULO: A “PRECISÃO” ÉTICA 112 4.1. Eterno retorno ético? 114 4.2. Saramago e as fendas da razão 119 4.3. O chamado do ser e o evento da arte-pensamento 125 CONCLUSÃO EM MOVIMENTO 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 133 10 APRESENTAÇÃO Ao refletir sobre seu tempo, e principalmente sobre sua produção ficcional de meados dos anos 1990 até 2004, José Saramago sempre deu sinais de preocupação com as questões da pós-modernidade. Em uma de suas entrevistas, o escritor português lança a seguinte pergunta, referindo-se à sua obra Ensaio sobre a lucidez: “Estamos ou não perante uma obra-ensaio sobre a condição pós-moderna?” Em seguida, complementa seu raciocínio com a afirmação: “É um tipo de observação que podemos fazer, sobretudo a partir de Ensaio sobre a cegueira [...] Existe, pois, um processo reflexivo ligado à pós- modernidade e um questionamento” (SARAMAGO apud LOPES, 2010, p.147). Neste sentido, Isabel Pires de Lima (1998), em um artigo intitulado “Saramago pós-moderno ou talvez não”, faz referência a Douwe Fokkema, que, segundo a autora, trata-se de um dos pensadores do pós-modernismo que mais tem olhado a narrativa europeia à luz desse conceito. Fokkema, por sua vez, escreve um artigo a respeito da obra de Saramago, com um título em forma de interrogação, chamado “How to decide whether Memorial do Convento by José Saramago is or is not a postmodernist novel?” Cabe alertar para o fato de que não se trataria de decidir se aquele romance seria ou não pós-moderno, mas de defender a vantagem de fazer dele uma leitura pós-moderna. E se o pós-moderno suscita uma série de questionamentos, muitos deles nem sempre concordantes uns com os outros, tal constatação não seria diferente no contexto cultural português. Ana Paula Arnault (2002), por exemplo, defende que o ano de 1968 foi fundamental para o estabelecimento desta estética em Portugal, a partir do lançamento de O Delfim, de José Cardoso Pires. Já para Maria Alzira Seixo (2001) e Carlos Reis (2004), as incidências pós-modernas na ficção portuguesa podem ser definitivamente sentidas a partir da Revolução dos Cravos, em 1974, evento que abriu o caudal de criação, em virtude da liberdade de expressão que propiciou entre os intelectuais e artistas. Tanto no primeiro caso, quanto nos seguintes, um dado é recorrente: os críticos são unânimes em apontar a presença de José Saramago e as nuances destiladas na sua obra que o colocam diretamente em contato com as ideias de uma poética pós-moderna. Seja com Manual de pintura e caligrafia, como sublinhará Ana Paula Arnaut (2002), seja com Levantado do chão (1980) e Memorial do convento (1982), nas considerações de Maria Alzira Seixo (2001) e Carlos Reis (2004), fato é que o nome do autor português tornou-se citação obrigatória quando se fala nas principais 11 tendências da ficção portuguesa nos últimos 30 anos e, consequentemente, nas aproximações possíveis entre a sua obra e as possibilidades de uma tendência pós- moderna na literatura portuguesa contemporânea. Aqui, chegamos a um ponto fundamental deste trabalho: não se trata de precisar se Ensaio sobre a cegueira seria um romance pós-moderno, mas antes propor as vantagens de uma leitura pós-moderna da obra. Colhendo os frutos dessa discussão, deparamo-nos com a perspectiva de uma descentralização do olhar, ou seja, o “descentramento de um sujeito unitário e racional, o sujeito epistemológico ocidental” (LIMA, 1998, p. 934), situado num eixo de autoridade e força para uma interpretação do mundo. É preciso, antes, entender que o viés de “questionamento” torna-se elemento central em Ensaio sobre a cegueira, o questionamento da verdade para, consequentemente, desdobrar e apreender os modos de ser do homem lançado no mundo. Por esta perspectiva, o pensamento de Martin Heidegger será uma constante deste trabalho, pois, o filósofo alemão também investiga os modos de ser do homem (para ele chamado de Dasein), relacionando-o com o tempo. Redimensionando suas ideias para o pensamento saramaguiano, a questão da impropriedade do homem será um fato decisivo. Ou seja, o homem pode ser cego e não ser ele mesmo, caracterizando, assim, um modo de vida inautêntica. Neste sentido, um mergulho no pensamento do ser possibilita um questionamento da verdade no mundo contemporâneo. Seguiremos também, assiduamente, o viés do filósofo italiano Gianni Vattimo (1996), que faz a ligação de Heidegger com o pós-modernismo, e também para quem uma concepção pós-moderna da verdade significaria estabelecer uma correlação com a chamada época pós-metafísica. Dito de um modo mais claro, o homem e o ser não devem estar mais estabelecidos em termos de estruturas fortes e estáveis. Isto implica, portanto, uma relação com a obra Ensaio sobre a cegueira de Saramago na problemática da estabilidade da visão do homem e seu conhecimento fixo sobre as coisas e o que ele julgaria ser o mundo. Desta forma, o ocaso da modernidade produz a emergência do pensamento fraco; um modo de reflexão tipicamente pós-moderno, que vai à contramão da metafísica e seu assente pensamento forte, que, segundo Matei Calinescu, se constitui como um pensamento “dominador, impositivo, universalista, atemporal, agressivamente autocentrado, intolerante face a tudo que pareça contradizê-lo” (CALINESCU, 1999, p.239). 12 De um modo geral, em Ensaio sobre a cegueira, José Saramago joga com a dissolução das verdades absolutas, a partir da efabulação de uma epidemia de cegueira branca da ordem do inexplicável. Contudo, o homem ainda deve assumir a responsabilidade perante suas ações e suas escolhas, isto significa que, acometido pela cegueira de seu tempo, o ser humano deverá, cada vez mais, repensar seus modos de ser e sua atuação no mundo. Esta será, portanto, a ênfase desta dissertação, que seguirá a seguinte disposição no tratamento da temática escolhida. No “Primeiro capítulo: a linha pós-moderna de questionamento do ser”, apontaremos as primeiras indagações, à luz do pensamento de Heidegger (2002), sobre o problema do ser e a perspectiva desenvolvida por José Saramago em Ensaio sobre a Cegueira, sobretudo no que diz respeito ao próprio ato de criação ficcional. Discutiremos ainda os conceitos da pós-modernidade, retomando os pressupostos teóricos de Linda Hutcheon (1991), David Harvey (1992), Andreas Huyssen (1991), Gianni Vattimo (1996), Perry Anderson (1999) e Steven Connor (1993), dentre outros, e como estes podem ser articulados na leitura do romance em estudo. No “Segundo capítulo: a cegueira branca e a (des)construção da verdade”, em continuidade com a linha apresentada na seção anterior, abordaremos inicialmente a instância do narrador sob o viés da incerteza e do “enfraquecimento do ser” ligado ao pensamento pós-moderno. Como desdobramento axiológico e ontológico, interroga-se a própria condição do espaço urbano como labirinto e como crítica à noção de progresso. Tendo em conta a formulação adotada para o presente capítulo, conceitos heideggerianos serão correlacionados para um pensamento de ruptura de um estado dogmático do homem, ideia essencial para a leitura do universo saramaguiano. Analisando especificamente uma das personagens da trama, o “Terceiro capítulo: a mulher do médico e a teoria pendular” aborda a singularidade da personagem protagonista do romance e como a sua atuação na trama desencadeia uma oscilação entre a reconstrução e a desconstrução da verdade. Através deste processo, percebe-se também um diálogo do texto ficcional de Saramago com o “mito da caverna” de Platão, por onde outras teias intertextuais são tecidas, sobretudo com a pintura A parábola dos Cegos de Pieter Bruegel. No “Quarto capítulo: a „precisão‟ ética”, por fim, trataremos da busca de Saramago por uma ética existencial para compor seu horizonte artístico. Destacamos, neste sentido, a ideia nietzschiana do eterno retorno, assim como os questionamentos 13 tecidos em torno do fenômeno da racionalidade e a relação do romancista com a filosofia. Apresentados os passos desta proposta, passamos definitivamente ao nosso objeto de estudo e análise. 14 INTRODUÇÃO À “INEXPLICABILIDADE” A verdade é sempre um contacto interior inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe. [CLARICE LISPECTOR. A hora da estrela] O homem contemporâneo está cego, porém ainda não se deu conta disso. Esta constatação é possível de ser observada desde a epígrafe de Ensaio sobre a cegueira, recolhida do fictício Livro dos Conselhos: “Se podes olhar vê. Se podes ver, repara” (SARAMAGO, 1995, p. 9). Deste simples conselho, verificamos que é necessário um esforço, é necessário estarmos atentos à realidade e aos elementos, tão perto dos nossos olhos, que provêm dela, e que também somos partes integrantes e sem escapatória. Neste viés, José Saramago jamais abandonou sua concepção de literatura como instrumento cultural de intervenção social. É necessário reparar que, em Ensaio sobre a cegueira, esta intervenção se dá numa compreensão e correlação entre a problemática existencial e o peso das determinações sociais pautadas pela alienação. Faz-se necessário, portanto, repensar uma nova figuração temática desta alienação voltada para a época contemporânea e, consequentemente, compreender que a cegueira que atinge o homem não está em meio às trevas e à escuridão. A cegueira, a que se refere Saramago, se dá em meio ao cotidiano, em meio à luz do dia-a-dia, nas relações sociais e afetivas. A situação cultural e filosófica em que Martin Heidegger (1889-1976) se encontrava para escrever sua obra Ser e Tempo, de 1927, apesar de contextos caracterizadores específicos, não era tão distinta da nossa, em virtude do problema do esquecimento do ser. Heidegger esclarece que a todo o momento utiliza-se e compreende-se a palavra “ser”, no entanto, “essa compreensão comum demonstra apenas a incompreensão” (2002, p.29). Deste modo, entendemos que “a história da civilização ocidental, vista das perspectivas cruciais da metafísica, na esteira de Platão, e da ciência e tecnologia, depois de Aristóteles e Descartes, é nem mais nem menos do que a história de como o ser acabou sendo esquecido” (STEINER, 1978, p.39). Mergulhado em suas incertezas e angústias, o século XX constitui-se, ainda segundo Steiner, como um “produto culminante, mas perfeitamente lógico dessa amnésia” (Ibidem, p.39). Por conseguinte, este esquecimento afeta o modo de vida do homem em relação à sua existência e, principalmente, em relação ao outro. Ora, acreditamos que é disso que se propõe a falar Saramago: a essência do homem esquecida deve ser buscada, assumindo papel fulcral para o entendimento das relações sociais. O ser não pode ser 15 considerado um não-problema. A tarefa é árdua, pois como propor em palavras comuns a busca do sentido do ser? José Saramago, através de sua poética da cegueira branca, indica um caminho possível entre vários, como num jardim de caminhos que se bifurcam. A tarefa aqui proposta é a de ler este caminho criado por Saramago, através das idéias de Heidegger1, e, mais do que obter respostas interessantes, apontamos a necessidade de se propor perguntas desafiadoras. O que é ser? Existe um caminho para a essência da verdade? O que é ser cego no mundo atual? Por que cegamos? Já éramos cegos no momento em que cegamos? Tentaremos propor alguns caminhos possíveis de resposta para estas perguntas num espaço alternativo de significados – a filosofia de Heidegger –, com vistas de modo único e exclusivo a propor uma leitura para a obra de Saramago. Não se trata de utilizar-se a filosofia para explicar a literatura, mas pensar como os dois discursos, juntos, podem abrir caminhos de pensamento para os modos de ser do homem. Vale salientar que a busca da verdade deve estar pautada na compreensão de que o homem não é mais o centro, de que o problema da existência humana não se reduz somente ao homem, mas ao problema do ser. Em Heidegger, a questão do ser e da verdade devem estar correlacionadas, contudo, sabendo que o homem é um respondente privilegiado da existência, ele é aquele que pode levantar a questão do ser2. A verdade não é uma função da certeza do sujeito humano. O “Penso logo existo”, de Descartes, não parece ser suficiente para compreender a realidade, pois o espectador humano agora é falho e cego. O ser não reside mais em matrizes eternas e imutáveis, tal qual se concentra a concepção platônica que engendrou a totalidade da metafísica ocidental até a época de Nietzsche3 (STEINER, 1978, p.31). O sujeito universal, ou estrutura a priori 1 Heidegger, em Ser e Tempo, expõe seus pontos de vista através de “um novo vocabulário, fazendo da composição e redefinição de termos e formas gramaticais o instrumento particular de sua doutrina. Talvez descubra que tem de construir uma „metalinguagem‟ especial a fim de obter um vantajoso ponto de observação para a sua investigação” (STEINER, 1978, p.13). Steiner ainda explica que “a fala filosófica de Heidegger torna-se o que os lingüistas chamam um „idioleto‟, o idioma de um único indivíduo”. (Ibidem, p.15). 2 O privilégio do homem é exatamente este. Vale recuperar, aqui, a afirmação de Steiner: “[...] no fato de que só ele experimenta a existência como problemática, só ele é uma presença ôntica buscando uma relação com o entendimento ontológico, com o próprio ser. Só o homem pode interrogar o ser, pode empenhar-se em „pensar ser‟. Mas pode é uma palavra demasiado fraca. Ele deve fazê-lo”. (STEINER, 1978, p.37). 3 Os filósofos ocidentais acreditavam na possibilidade de haver tipos de conhecimentos absolutos e totais. Sócrates encorajava a crença em almas imortais e verdades absolutas. Seu discípulo, Platão, criou uma filosofia de dois mundos, segundo a qual nosso mundo material e cotidiano é uma cópia inferior de um mundo perfeito e transcendente, ou seja, ideal. Essas crenças e verdades superiores combinaram facilmente com a subsequente teologia da igreja católica. Tratava-se, portanto, de toda uma tradição metafísica que Nietzsche pretendia encerrar (cf. ROBINSON, 2008, p.11). 16 universal, que Kant chamou de sujeito transcendental, também não é capaz de por a essência das coisas. Se o homem continua cego, é porque a tradição metafísica compreende a história do esquecimento do ser. Por isso, para pensarmos a (des)construção da verdade, partimos daquelas tendências pós-modernas postuladoras de que desconstruir o discurso não é destruí-lo, nem mostrar como foi construído, mas revelar o não-dito por trás do que foi dito, buscar o silenciado ou o reprimido sob o que foi falado (cf. SANTOS, 1986, p.71). Os próprios estatutos “moderno” e “pós-moderno” podem ser (des)construídos nestas mesmas vias. As indagações platônicas, que mais tarde nos serão úteis para a interpretação de Ensaio sobre a cegueira, principalmente com relação ao mito da caverna, também serão (des)construídas. Ao convocarmos o discurso filosófico em diálogo com a ficção de Saramago, entendemos que aquele oferece subsídios coerentes com as reflexões propostas pelo escritor português, posto que a filosofia não deixa fixar as normas e os valores do conhecimento, ou seja, não esconde sua producente ameaça ao saber humano estabilizado. Na esteira de Nietzsche e Heidegger, Saramago rompe com a ideia de fundamento, ou seja, o romance do escritor português problematiza ou torna “inverossímil a existência de um saber que sustente todos os outros saberes de maneira fundante” (TEIXEIRA, 2009, p.387). Todas as certezas racionais tornaram-se incoerentes, assim como todas as convicções inabaláveis dos homens, sobretudo o ideal de progresso, e a certeza de que a modernidade pudesse assegurar uma vida mais livre e próspera começaram a ruir, principalmente diante dos olhos dos artistas e filósofos, que puderam expor estes fatos com maior assiduidade. Entretanto, para os homens comuns, estes dados tendem a permanecer na sua obscuridade. Tenta-se revelar a tessitura do incomensurável, posto que este parece ser o cuidado diligente da escrita pós-moderna4. Uma criança nascida no princípio do século XX terá presenciado as maiores atrocidades com a Primeira e a 4 Vale a pena falar sobre dificuldade de interpretação de uma obra pós-moderna, pois, de acordo com Lyotard, em seu O pós-moderno explicado às crianças (cartas reunidas a propósito do debate pós- moderno), compreendemos que “um artista, um escritor pós-moderno está na situação de um filósofo: o texto que escreve, a obra que realiza não são em princípio governadas por regras estabelecidas, e não podem ser julgadas mediante um juízo determinante, aplicando a esse texto, a essa obra, categorias conhecidas. Estas regras e estas categorias são aquilo que a obra ou o texto procura. O artista e o escritor trabalham portanto sem regras, e para estabelecer as regras daquilo que foi feito. Daí também que cheguem demasiado tarde para o seu autor, ou, e vem a dar no mesmo, que a sua preparação comece sempre demasiado cedo” (LYOTARD, 1993, p. 26). 17 Segunda Guerras Mundiais, as experiências de Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki. Assim, a criança que se tornou adulta descobriu que a ciência e a tecnologia não puderam criar artefatos suficientemente úteis para assegurar às vidas humanas mais segurança e estabilidade. Em termos concretos, esta sabedoria demonstrou sua total incompetência para o lado humano da existência. Lyotard não cansaria de dizer que o mal-estar aumenta com esta civilização, assim como a exclusão aumenta com a intensidade de informações. Da mesma forma, reveladora é a ideia de que “o desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa, reter apenas a informação útil no momento, como acontece com a leitura rápida”, (1997, p.10). Por isso, Lyotard investe na ideia de que a consequência maior do sistema é fazer esquecer tudo que lhe escapa. Entretanto, a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direção do desconhecido. Daí a importância da arte e da literatura, de forma a revelar não somente o inexplicável, mas também a desmistificar o que parece óbvio: a ciência e a tecnologia como forças onipotentes ou o homem como o centro de todas as coisas através de sua sabedoria. Neste sentido, José Saramago quer ensaiar sobre a cegueira dos homens para desmontar estas certezas. Não será, aqui, nosso intuito, evidenciar plenamente o axioma moderno, porém não poderemos negligenciar seus ramos de sentido, uma vez que, para Lyotard, descobrir o pós-moderno é encontrar o lugar que ocupa “no trabalho vertiginoso das questões lançadas às regras da imagem e da narrativa”, e, assim, desdobrando suas visões, é também poder dizer, sem receio, que o pós-moderno “faz certamente parte do moderno” (1993, p.24). Não de forma gratuita, a espiral da complexidade e da incerteza nos foi dada. Contudo, professar seu ritmo é também escapar da tese geral de uma experiência dogmática, na qual esta fuga compõe também, desde sempre, o desejo saramaguiano. Por conseguinte, valerá sempre a pena problematizar os sistemas totalizadores e as verdades impostas, uma vez que se deve compreender também que “a experiência dos tempos não tem feito outra coisa que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras” (SARAMAGO, 1995, p.308). É preciso evidenciar, assim, a fragilidade essencial de qualquer legitimação da verdade. Neste viés, o filósofo italiano Gianni Vattimo nos é muito caro, pois estabeleceu, uma vez, a conexão entre Nietzsche e Heidegger e a fisionomia cultural pós- moderna. Ou seja, ambos os filósofos, afirma Vattimo, se distanciaram criticamente do pensamento ocidental, enquanto pensamento do fundamento-origem, porém, já não o 18 puderam criticar apontando qualquer categoria de novidade ou superação, isto é, a partir de uma teorização fundada em novas certezas absolutas. Portanto, “é nisso, que, a justo título, podem ser considerados [Nietzsche e Heidegger] os filósofos da pós- modernidade” (VATTIMO, 1996, p. 7). Verifica-se, agora, o chamado “enfraquecimento do ser” ou “pensamento fraco”. Em termos concretos, não se estabelece mais o ser como imponência e força, atributos de uma visão metafísica. Em Saramago, por conseguinte, com a debilidade do ser, “perde-se a grandiosidade e ganha-se a tolerância” (SANTIAGO, 1990, p.5), sentido evidenciado principalmente pela personagem central do romance: a mulher do médico. A partir desta ideia essencial, poderemos investigar com maior clareza o horizonte estabelecido pela escrita saramaguiana, ou seja, compreendendo uma experiência pós-metafísica da verdade. Isto não prescinde de uma leitura do atual momento em que o homem cega, uma vez que “a ontologia nada mais é que a interpretação da nossa condição ou situação, já que o ser não é nada fora do seu evento” (VATTIMO, 1996, p.8). Desta forma, o diálogo do discurso romanesco com algumas diretrizes do pensamento filosófico, como a questão do ser e a questão da verdade, possibilita o levantamento de chaves para o entendimento da obra de José Saramago, pois “o tema da verdade não diz respeito somente às teorias científicas, mas é também de fundamental importância para as multiformes situações concretas do homem” (SIMON, 1979, p.8). Acreditamos que, com o estudo da obra Ensaio sobre a cegueira, caminharemos para o entendimento de um conceito de verdade como movimento, seguindo a máxima nietzschiana de que os fatos são interpretações e que, por isso, aquela deve ser buscada além das estagnadas instituições da sociedade e representações de homens cegos. A busca pelo sentido do ser ainda aparece como possibilidade, entretanto, pelas ideias de Saramago, já não se espera que nenhum conhecimento ou poder transcendente justifique o mundo. À luz desta perspectiva, o homem somente encontraria seu amadurecimento através da contingência do tempo. 19 PRIMEIRO CAPÍTULO: A LINHA PÓS-MODERNA DE QUESTIONAMENTO DO SER Os olhos de ouro continuavam ardendo com sua doce, terrível luz; continuavam me olhando de uma profundidade insondável, que me dava vertigem. [JULIO CORTAZAR. Final do jogo]. Termo que evoca e conota práticas sociais, econômicas e políticas, o pós- modernismo pode desenvolver-se de formas variadas. Como bem salienta David Harvey, é perigoso supor que o pós-modernismo seja só mimético, no sentido de que a injeção de ficção na sensibilidade comum, por exemplo, deve desencadear consequências não previstas na ação social. Segundo ele, “a ampla gama do pós-modernismo só pode fazer sentido nesses termos bem amplos da conjugação entre mimese e intervenção estética” (HARVEY, 2010, p.110). A razão de uma obra de arte é medida por seu conteúdo e seu significado. O artista, agente fundamentalmente livre, pode propor seus próprios objetivos de acordo com sua relação com o mundo e suas incertezas. Se um artista estivesse interessado apenas em contemplar a realidade, sem intenção de modificá-la, diríamos que este faz parte de um “pós-modernismo desconstrutivista”, na feliz expressão de Suzi Gablik (2005), posto que compreende já não existir nenhum remédio para a cultura atual e suas contradições. Nesta circunstância, a arte não se apresenta como esperança de uma realidade melhor, nem capaz de desenvolver utopias para uma civilização que caminha ao progresso, podendo apenas revelar a natureza problemática dessa situação, refletindo-a. De maneira oposta deu-se a arte pós-moderna “reconstrutivista” que, ainda segundo Suzi Gablik (2005, p. 612), não tem sido muito visível, contudo apresenta um grande potencial para remodelar as crenças da sociedade. Assim, a diferença entre estas duas perspectivas artísticas parece fundamental, pois: São mais que meramente filosóficas, acrescentando que é precisamente entre o papel de espelhar (no qual o artista é um observador imparcial (...) e o papel de modelar (no qual não somos meramente testemunhas ou espectadores, mas orquestradores da cultura e da consciência) que reside o ponto em que a mudança de pensamento do velho paradigma para o novo paradigma ocorrerá. Com efeito, o novo paradigma já foi por vezes considerado um tipo de reencantamento, pois ele abre o futuro para novas possibilidades e, nele vêem-se novas opções, não a conclusão. (GABLIK, 2005, p.613) 20 A partir destas indagações iniciais, caminhamos rumo à percepção de que José Saramago faz parte dos dois processos: o desconstrutivista, ao apresentar uma sociedade profundamente marcada por um estado de cegueira, e o reconstrutivista, ao elaborar a questão do ser humano e suas novas possibilidades. Este segundo processo atua de forma a promover uma espécie de reencantamento, de maneira atuante em novas relações sociais que transcendem ao individualismo. A linha pós-moderna de questionamento do ser, neste caso, estaria longe de ser um discurso totalizante, pois exige ainda um questionar da indeterminação do homem, assim como privilegia “a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural” (HARVEY, 1992, p. 19). Perguntas importantes são feitas por David Harvey (1992) a respeito do pós- modernismo, como por exemplo, se ele terá potencial revolucionário em virtude de sua oposição a todas as formas de metanarrativas (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades da razão iluminista). Ou, ainda, se este mesmo potencial compreenderia sua estreita atenção a outras vozes e a outros mundos que sempre foram silenciados, como exemplo, mulheres, gays, negros e povos colonizados. Nós entendemos que sim, porém, sem nenhuma exaltação eufórica, deveremos, apenas, compreender este potencial com uma relação e apreensão das obras de arte que nos cercam. O caminho que se vê é o de deslindar qualquer modalidade de opressão, e não fixar novas narrativas legitimadoras. A questão do ser-no-mundo5 e da percepção do outro colaboram, assim, com a linha em que o pensamento pós-moderno pode não prezar pela estética anterior à ética, já que estas devem agora estar conectadas de modo a revelar a busca de respostas para o problema do ser humano em meio a um mundo caótico. O que deve ficar claro é que a pós-modernidade compreenderá, cada vez mais, uma crítica da própria realidade. Sua constituição pacífica, mas precária, é desvendada através da aceitação do pluralismo do real. Em outras palavras, não existe um único universo simbólico estável regendo toda e qualquer experiência no interior da sociedade. Assim, o deslindar da realidade parte do pressuposto de que há um universo simbólico mais alargado, cujas supostas falhas ou deficiências serão supridas pela feição conceitual dos universos parciais mais especializados (cf. DUARTE JUNIOR, 2004). Em Ensaio sobre 5 Esta questão será abordada no segundo capítulo deste trabalho, juntamente com outros conceitos heideggerianos. 21 a cegueira, é perceptível esta atitude de erradicar uma cobertura simbólica estável e válida para todos os homens. Com a aparição da epidemia de cegueira branca, não haverá uma explicação única e verdadeira quanto a seu surgimento, da mesma forma que não haverá uma possibilidade concreta de solucioná-la por parte das autoridades médicas e científicas, nem pelas autoridades do governo. Neste sentido, o relato do velho da venda preta, com interferências do narrador, é sintomático desta nova ordem social refletida por Saramago: As expectativas do Governo e as previsões da comunidade cientifica foram simplesmente por água abaixo. A cegueira estava alastrando, não como uma maré repentina que tudo inundasse e levasse à sua frente, mas como uma infiltração insidiosa de mil e um buliçosos regatinhos, que tendo vindo a empapar lentamente a terra, de repente a afogam por completo. [...] A prova da progressiva deterioração do estado de espírito geral deu-a o próprio Governo, alterando por duas vezes, em meia dúzia de dias, a sua estratégia. Primeiro, tinha acreditado ser possível circunscrever o mal recorrendo ao encarceramento dos cegos e dos contaminados em uns espaços determinados como o manicômio em que nos encontramos. Logo, o inexorável crescimento dos casos de cegueira levou alguns membros influentes do Governo, receosos de que a iniciativa oficial não chegasse para as encomendas, donde resultariam pesados custos políticos, a defender a ideia de que deveria competir às famílias guardar em casa os cegos, não os deixando sair à rua, a fim de não complicarem o já difícil trânsito nem ofenderem a sensibilidade das pessoas que ainda viam com os olhos que tinham e que indiferentes a opiniões mais ou menos tranquilizadora acreditavam que o mal-branco se propagava por contato visual, como mau-olhado (SARAMAGO, 1995 p.124- 5). Ora, o cenário descrito por Saramago incita o leitor a refletir sobre as constantes mudanças a que as organizações sociais estão sujeitas e as formas como estas reagem, numa tentativa de controle do que lhes foge das mãos. Percebe-se, portanto, nesta efabulação romanesca de Saramago, que os universos simbólicos são criados para legitimar as instituições sociais já existentes, encontrando explicações e integrando-as num todo significativo. Entretanto, o inverso também poderá ser verdadeiro, ou seja, as instituições sociais podem ser modificadas a fim de se conformarem às teorias já construídas. (DUARTE JÚNIOR, 2004). Duarte Júnior sustenta que as instituições possuem sempre uma origem histórica e desta forma surgiram com uma finalidade específica de acordo com seus criadores. Isto significa também o estabelecimento de padrões de comportamento que vão sendo transmitidos a sucessivas gerações. Contudo, na medida em que vão sendo transmitidas às gerações posteriores, as próprias 22 instituições se “cristalizam” e passam a ser percebidas como independentes de seus criadores; começam a ficar “acima” dos homens, com uma espécie de vida independente. A institucionalização sobre o qual se edifica a realidade possui em si um controle social ao ser percebida como algo dado e tende a evitar que os indivíduos a alterem. A instituição torna-se, assim, soberana, tendo os homens que adaptarem-se a ela, cumprindo papéis já estabelecidos. Neste sentido, é extremamente difícil para os indivíduos perceberem a estrutura social onde vivem e que outros homens a edificaram e a mantêm de determinado modo. (Cf. Duarte Junior, 2004). De modo análogo, o contexto onde surge a “cegueira branca” não deixa de dialogar, por exemplo, com as ideias de Linda Hutcheon (1991), que, ao retomar alguns termos de Foucault (apud HUTCHEON, 1991, p. 236), afirma que o poder é onipresente, não apenas por abranger toda a ação humana, mas também por ser incessantemente produzido. Pode existir um repúdio, porém haverá sempre uma posterior reinserção do controle ou poder. Entretanto, a arte pós-moderna se diferencia deste aspecto descrito por Foucault, pois ela nunca se considera fora das relações de poder, promovendo sua admissão simultânea. Desta forma, existirá sempre uma compreensão maior do discurso duplicado. Assim, a trama de Saramago parece encontrar ecos com a tese de que a arte pós-moderna também é um discurso duplicado, pois compreende sua própria relação de poder. Talvez, por isso, Linda Hutcheon saliente que é comum, em uma ficção pós- moderna, o poder assumir uma importante força crítica no discurso incorporado, especialmente nos protestos de classe, sexo e raça. Logo, o poder não é um simples elemento presente no romance, ou seja, “mais uma vez, demonstra-se que a linguagem é uma prática social, um instrumento para manipulação e controle, tanto quanto para a auto-expressão humanista” (Ibidem, p.237). É preciso considerar, portanto, a íntima relação entre arte e ideologia; e mais do que isso, pensar que o pós-moderno vem para questionar e desmistificar todo e qualquer sistema dominante de totalização, incluindo a arte como possível salvaguarda da verdade. Vale ressaltar, neste sentido, que Ensaio sobre a cegueira possui, antes de tudo, o viés de “ensaio”, o que caracterizaria a obra como uma “tentativa” de compreensão das coisas e de nossa cegueira; ou ainda, o “ensaio” como sendo um “exercício intelectual que não busca definições estanques e redutoras dos temas sobre os quais se debruça” (BARBOSA, 2009, p.142). Para dizê-lo de outro modo, recuperando as palavras de Francisco Leandro Barbosa: 23 O ensaio tende a recusar as soluções apriorísticas e as doutrinas infalíveis, porque duvida das postulações definitivas e confia no contínuo reexame, vendo a si mesmo apenas como etapa na busca de respostas. Neste sentido, ensaio e ficção se aproximam, uma vez que nem um nem outro possuem qualquer compromisso com uma verdade definitiva e colocam seriamente em questão até a possibilidade de haver alguma verdade definitiva sobre o que quer que seja. Um ensaio que se utiliza da ficção para a demonstração de uma ideia ou teoria coloca em questão a natureza dos dois tipos de texto, aproximando-os, pois a admissão de que o conhecimento objetivo do mundo é uma falácia, de que tanto a lógica quanto a linguagem não podem chegar a um conhecimento verdadeiro do homem por se tratarem de convenções, constituiriam a natureza dos dois gêneros (BARBOSA, 2009, p.143). Este ponto é fundamental para a leitura da obra saramaguiana, especialmente na qual a desestabilização das instituições ocorre de forma lancinante, tendo como ponto de partida a instauração da epidemia de cegueira branca. Porém, esta tem em vista, desde sempre, uma crítica da realidade que já não poderá prescindir do interesse por transformações sociais. Desta forma, é válido notar que a existência de uma realidade labiríntica e sem referência, exaltada a todo o momento na obra, pretende atingir a anuência de uma heterogeneidade, uma união direta com inúmeros universos simbólicos coexistentes. Portanto, é importante ter em mente que a condição labiríntica da realidade, proposta por Saramago, pode ser lida em um sentido positivo, nos termos de Duarte Júnior: Esta situação pluralista é, inclusive, o que torna mais rápidas e mais fáceis as mudanças sociais. (...) O pluralismo da civilização acelerou as transformações e, de certa forma, obrigou o desenvolvimento de uma tolerância maior entre os grupos que apresentam diferenças em suas visões da realidade (DUARTE JUNIOR, 2004, p. 54). Em outras palavras, a pós-modernidade aponta para a heterogeneidade e diferença em sentido ético. Desta forma, com a mesma assiduidade, o pensamento de Saramago tornou evidente a fragilidade da realidade, assim como todas as instituições edificadas pelo homem. Estas ainda podem e devem ser transformadas, pois a ruína de toda legitimação indica mudança de pensamento e uma alteração no modo de ver da própria sociedade. Nenhuma construção (manicômio, cidade ou governo, por exemplo), ou teoria duram para sempre e percebe-se tal desestabilização e a perda de suas forças com o pensamento pós-moderno. Ficção e realidade nunca estiveram tão próximas, daí a nossa ideia de que, em Ensaio sobre a cegueira, a deslegitimação dos universos 24 simbólicos tem como foco uma fisionomia cultural que incorpora a ética em conexão com a existência do homem. A propalada superficialidade do pós-modernismo começou a se desmoronar diante dos nossos olhos. Como no entendimento de Andreas Huyssen (1991), por exemplo, o que aparece como última tendência, auge publicitário e espetáculo vazio é, na verdade, parte de uma transformação cultural inerente às sociedades ocidentais. Trata-se de uma mudança de sensibilidade em que o termo “pós-moderno”, por enquanto, é inteiramente adequado. Porém, o ensaísta ressalta que não se trata e nem poderia ser uma total modificação do paradigma cultural, mas registra uma “notável mudança nas formações de sensibilidade e das práticas de discurso que torna um conjunto pós-moderno de posições, experiências e propostas distinguível do que marcava um período precedente” (HUYSSEN, 1991, p.20). Gianni Vattimo (1996) deixa claro que existe a possibilidade de efetuar a conexão entre Nietzsche, Heidegger e o pós-modernismo, uma vez que o prefixo “pós”, agora, investe no desejo de por radicalmente em discussão um pensamento (ocidental), recusando-se, porém, a estabelecer uma ideia de novidade, para não continuar preso nesta mesma lógica de desenvolvimento. Assim, para Vattimo, a modernidade pode ser caracterizada pela história do pensamento como uma “iluminação progressiva”, que se desenvolve a partir de um fundamento pensado como origem. Desta forma, tradicionalmente, a modernidade tem o curso do pensamento como um desenvolvimento progressivo, identificando o “novo” e recuperando sua origem. Nietzsche e Heidegger podem ser considerados, segundo Vattimo (1996), como filósofos da pós-modernidade, pois se distanciam criticamente do pensamento ocidental e sua ideia de fundamento, ao passo que não podem criticar este pensamento em nome de uma “fundação” mais verdadeira. Richard E. Palmer, por exemplo, afirma que uma das formas de articular a questão da pós-modernidade a Heidegger seria o fato de que filósofo alemão possui uma listagem de “pensamentos de superação” (mutuamente dependentes) os quais deixariam, assim, mais clara a crítica de Heidegger à modernidade. Como exemplos básicos, encontram-se a “superação” do humanismo, da metafísica e da subjetividade. Segundo ele, Estas “superações” tendem a formar uma corrente e depender de si: a profundidade do que o “pós-humanismo” significa somente emerge quando se compreende o modo em que Heidegger se move numa “pós-metafísica” e numa “pós-subjetividade”, a forma com que, mais tarde, Heidegger move-se 25 para um pensamento em linguagem orientada, centrado num “Ereignis” (o evento de entrar no seu próprio ser), e a sua crítica do pensamento tecnológico em si. Esta abordagem de listar as negações, as “superações”, teria a vantagem que esclarece a sua crítica da modernidade. Assim, seria uma forma de articular a “pós-modernidade” de Heidegger (PALMER, 1979, p.74). 6 Porém, é evidente que não podemos negar a necessidade de compreensão do “ponto” em que nós nos encontramos. A discussão sobre a questão do ser parte deste pressuposto fundamental: da interrogação do tempo e da própria condição do sujeito. Ainda de acordo com Vattimo, dizer que estamos num momento totalmente posterior à modernidade pressupõe a aceitação do ponto de vista que a caracteriza, ou seja, a ideia de história e seus corolários, a noção de progresso e novidade. Daí a complexidade da questão, a de identificar um autêntico caráter de mudança radical nas condições do pensamento que se mostrassem como pós-modernas. Nenhum artista estará fora do sistema, porém como numa “estratégia de guerrilha”, a marginalidade desentranhada poderá habitar no sistema, ou seja, estará “nos interstícios e subterrâneos de seus fundamentos, o que gera um dos efeitos mais polêmicos da pós-modernidade, que é o fato de propor uma crítica não mais estruturada no esquema de oposições binárias, mas que atua com base em contradições e paradoxos” (FERNANDES, 2011, p.23). Para Vattimo, a situação que vivemos é a do “ocaso da arte”, legível filosoficamente como aspecto do acontecimento mais geral que é a Verwindung da metafísica, evento que diz respeito ao próprio ser. Ou seja, uma ultrapassagem que, na realidade, é reconhecimento de vínculo. Assim, a experiência que fazemos do ocaso da arte pode ser descrita pela noção heideggeriana de obra de arte como “por-em-obra da verdade”. Essa noção, diz Vattimo, possui dois aspectos fundamentais: a obra é “exposição” de um mundo e “produção da terra”. A exposição terá o sentido de uma exibição ou mostra: “A obra de arte tem um papel de fundação e constituição das linhas que definem um mundo histórico. Um mundo histórico, uma sociedade ou um grupo 6 “These „beyonds‟ tend to form a chain and to hinge on each other: the profundity of what being „beyond humanism‟ means only emerges when one understands the way in which Heidegger moves „beyond metaphysics‟ and „beyond subjecticity‟, the way in which the later Heidegger moves into a language- oriented thought centered in „Ereignis’ (the event of coming into one´s own), and his critique of technological thinking itself. This approach of listing the negations, the „beyonds‟, would have the advantage that it clarifies his critique of modernity. Thus it would be one way of articulating the „postmodernity‟ of Heidegger” (PALMER, 1979, p.74; versão minha para o português). 26 social reconhecem os traços constitutivos de sua própria experiência de mundo” (VATTIMO, 1996, p.51). Porém, Vattimo alerta que se esta noção heideggeriana de “por-em-obra da verdade” possuísse apenas o sentido de “exposição”, seria, novamente, considerar a obra de arte como grande êxito individual ou o artista como “gênio”. Por isso, o outro aspecto da noção, chamado “produção da terra”, deve ser ressaltado. Este, portanto, é o que possibilita novas interpretações, suscita sempre novas leituras e, assim, é capaz de instaurar novos mundos possíveis. A “terra” da obra, portanto, não é simplesmente a matéria em si, mas deve ser entendida como presença ou manifestação que poderá inferir a criação e percepção de outros mundos. Este fato deve ser considerado, pois, a partir da obra pode-se coligir a visualização do que sempre foi silenciado, e assim, “põe em movimento as estruturas tendencialmente imóveis dos mundos histórico-sociais” (Ibidem, p.53). Por fim, o que deve ser compreendido é que a “superação” significa um reconhecimento de vínculo (com a modernidade e com a metafísica, pois ambas são inescapáveis). Contudo, cria-se a possibilidade de um novo modo do homem enxergar sua relação com o mundo. Este é o sentido que o pensamento pós-moderno vem esclarecer. Assim como Saramago, que deseja, antes de tudo, propor um reconhecimento de vínculo do homem cego com seu próprio mundo. Porém, com possibilidade de assumir uma responsabilidade perante esta condição. 1.1. Saramago: evolução ou paradoxo? A minha arte consiste em tentar mostrar que não existe diferença entre o imaginário e o vivido. O vivido podia ser imaginado e vice-versa. [JOSÉ SARAMAGO. As palavras de Saramago.] José Saramago sempre esteve ligado e, de certa maneira, engajado nas “histórias da História” (SARAMAGO, 1999, p. 153) para a construção de seus romances. A sua fortuna crítica é praticamente unânime em apontar este caminho de diálogo entre a ficção e a história (CERDEIRA, 2000; GOBBI, 2012; SEIXO, 2001, 2010; PERRONE- MOISÉS, 1999; SILVA, 1989). Nomes reconhecidos pelo discurso histórico, tais como D. João V e D. Maria Josefa da Áustria (de Memorial do Convento); Luís de Camões, Vasco da Gama e Damião de Góis (de Que farei com este livro?); Fernando Pessoa (de 27 O ano da morte de Ricardo Reis); Jesus, Maria e José (de O evangelho segundo Jesus Cristo); além de todo um elenco que corrobora a sua revisitação intertextual; e espaços determinados e nomeados como Alentejo, Lisboa, Mafra, Belém e Nazaré são marcas frequentes em suas obras que abarcam um acontecimento contextualizado, recontado pelo viés do discurso ficcional. O passado é questionado por Saramago e, através da ficção, novos sentidos são criados para a História no sentido “de confrontar os paradoxos da representação fictícia/histórica, do particular/geral e presente/passado” (HUTCHEON, 1991, p.141). Carlos Reis, por exemplo, defende tal perspectiva na ficção de José Saramago, ao afirmar que o olhar interrogador do romancista português sobre o passado revela que, [...] em Levantado do chão (1980), em Memorial do convento (1982), em O ano da morte de Ricardo Reis (1984) e em História do cerco de Lisboa (1989), a presença de cenários históricos bem caracterizados decorre de uma dupla “emergência”: por um lado, a que consiste na manifestação de eventos, personagens e lugares históricos que sobem à superfície da ficção com inesperada naturalidade; por ouro lado, a “emergência” que leva a repensar esses eventos, figuras e lugares à luz de uma nova realidade histórica, sem negar um certo legado ideológico, provindo de uma matriz cultural marxista (2004, p. 37). Desde Levantado do Chão (1980) e Memorial do Convento (1982), esta perspectiva de reelaboração da matéria histórica foi um dado marcante para Saramago. A mesma tese também é defendida por Maria Alzira Seixo, para quem, na efabulação ficcional saramaguiana, a história deixou de ser um “fresco epocal”, já que, através daquela, esta pode ser constantemente alterada. Isto significa dizer que “o ficcional e o verídico se mesclam numa tendência de índole pós-moderna” (SEIXO, 2001, p.38). Também Teresa Cristina Cerdeira da Silva, no seu incontornável ensaio sobre a obra de José Saramago, argumenta que, no gesto de “duvidar dos monumentos tradicionalmente aceites e de ir buscar outras marcas deixadas pelo homem na sua caminhada” (1989, p. 32), o autor de Histórica do cerco de Lisboa soube recuperar e revisitar o discurso histórico de forma singular, de modo que o passado, [...] porque relido, recordado e rememorizado por um narrador do nosso tempo, é também de hoje que se trata, e da visão do homem presente, que aprendeu a reler criticamente o seu passado, não para nele encontrar modelos utópicos de perfeição saudosista, mas para exercitar a sua capacidade de reflectir, analisar e colocar questões. [...] A ficção, ao envolver a história, 28 permite redizê-la não como um cadáver sem voz, mas veiculando-lhe a seiva nova do domínio do literário, sem pretender, por isso, roubar-lhe a força de documento (Ibidem, p. 36 e 52). Permeando de forma muito sutil o discurso nietzschiano de que os fatos são interpretações, Saramago também compreende que a História é parcial, isto é, a verdade histórica absoluta não existe, ou melhor, para o escritor, a História só pode ser compreendida no campo do discurso textual e, consequentemente, da ficção: Embora soe algo paradoxal, diria que entre história e ficção a diferença não é grande demais. Ao escrever uma história ― porque disso se trata ―, o historiador faz um pouco o que faz o romancista: escolhe os fatos e os concatena, vale dizer, encontra relações entre eles em função de conseguir um discurso coerente. O mesmo se exige de um romance. Pode ser mágico, fantástico ou qualquer coisa, mas até fantasia e a imaginação mais disparatadas precisam de uma coerência. Um livro de História apresenta algo predeterminado. Os fatos estão ali, e um fato traz como consequência outro, e outro, e outro. Há uma espécie de fatalidade histórica que faz que as coisas sejam como são e não de outra maneira. Então, ao dirigir os fatos, ao organizá-los, eu diria que o historiador se comporta como um romancista e o romancista como historiador (SARAMAGO apud AGUILERA, 2010, p.257). Este espírito de reedificação crítica foi sempre determinante para Saramago. Se, em Memorial do Convento, O ano da morte de Ricardo Reis e História do cerco de Lisboa, por exemplo, tal investidura aparece de forma latente, a partir do seu romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, nas considerações de Agripina Carriço Vieira, a obra romanesca saramaguiana sofre uma espécie de transição, em que uma nova visão começa a determinar um afastamento da matéria histórica da narrativa: Esta afirmação, nomeadamente no que se refere ao abandono da temática histórica, constitui por si só matéria de reflexão [...]. A construção dos romances de José Saramago é semelhante à de um conjunto de dominós cuja estabilidade depende de cada uma das peças. O que inevitavelmente me leva a formular uma questão central: que transformações ocorrerão na construção do texto direta ou indiretamente causados pelo afastamento da temática histórica? (VIEIRA, 1999, p.380; grifos meus). Ora, em Ensaio sobre a cegueira, este fato leva à compreensão de que Saramago volta, agora, sua atenção para certas reflexões significativas no mundo contemporâneo, 29 ou seja, é o presente que será perspectivado sob uma nova luz, uma vez que se percebe, em alguns de seus títulos mais recentes, um gradativo distanciamento (e não um abandono total) dos laços, como romancista, com as histórias da História. Desta forma, ao contrário da ensaísta portuguesa, preferimos observar a perspectiva de afastamento, e não de abandono ou rompimento, em virtude do escritor português não deixar de lado tal preocupação. Ainda que a problematização do presente seja uma ênfase perceptível em romances como As intermitências da morte e Ensaio sobre a cegueira, por exemplo, a sua reflexão em torno dos caminhos dialogantes com a História voltará em romances como A viagem do elefante (2008) e Caim (2009). Uma constatação importante deste fato é que, no lugar de uma obsessiva desestabilização do passado, começa a aparecer uma desestabilização do presente, conforme explicita Carlos Reis: “A condição humana – com suas fragilidades, com as suas duplicidades, com os seus egoísmos e com suas crueldades – é agora um dos grandes sentidos visados por Saramago, em conjunção com a preocupação ética, mais do que ideológica, que o escritor projeta em sua ficção” (2004, p.38). Por este viés, a ficção saramaguiana compreende o ensejo para libertação de uma época que consegue, em parte, evidenciar instituições criadas pelos homens que ainda praticam a opressão. Logo, a arte quer, cada vez mais, ressaltar o ocultamento ideológico das edificações e das relações sociais, evidenciando, assim, sua inerente fragilidade. O ocultamento da realidade social é o que chamamos de ideologia. De acordo com Marilena Chauí (2003), o real é o movimento incessante pelo qual os homens, em condições que nem sempre lhes foram escolhidas, instauram um modo de sociabilidade fixado em instituições determinadas (família, condições de trabalho, relações políticas, religião, educação, formas de arte, transmissão de costumes, língua, etc.). Assim, além de fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações na tentativa de explicar suas relações tradicionais. Porém, em sociedades divididas em classes (como a nossa, em que uma das classes explora e domina a outra), essas representações serão produzidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por esse motivo, essas ideias ou representações tenderão a esconder o modo real como essas relações foram produzidas, bem como as origens das formas sociais de exploração. A desestabilização do presente significa, antes de tudo, assumir que existe uma postura dogmática que se desdobra ainda em vários aspectos em relação à época contemporânea. Primeiro, ao entendimento do que é este ente a que chamamos homem, e 30 segundo, ao entendimento de sua própria existência mergulhada no tempo. Afinal, Saramago nunca negou que é sobre os homens que o seu pensamento se debruça, porque são eles, de fato, que compõem a verdadeira matéria do tempo, sem esconder que são “a paciente coragem” e “a longa espera”, bem como “o esforço sem limites, a dor aceite e recusada” (SARAMAGO, 1996, p.188). Esta parece ser uma diversificação contundente dos registros ficcionais de José Saramago. Entretanto, como afirma Maria Alzira Seixo sobre os escritores do final do século XX português, tal diversificação continua a servir de modo obsessivo a uma das mais coerentes e definidas carreiras dos romancistas dessa época, “a mesma problemática inicial do excesso do sentir-se existir e o mesmo tipo de situações-limite que fazem reverter tal excesso a uma consciência da problemática relação de si com os outros” (SEIXO, 2001 p.26). Esta nova consciência relacional com o mundo torna-se, portanto, de fundamental importância para a leitura da obra saramaguiana, conforme veremos a seguir. 1.2.“O lado de dentro da pedra” Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? [CLARICE LISPECTOR. A hora da estrela] Em Ensaio sobre a cegueira, José Saramago estabelece, a partir de um afastamento dos laços com as histórias da História, um caminho ficcional voltado para a apreensão do contemporâneo, analisado sob um viés crítico que propõe um novo sentido entre realidade e ficção, corroborado, inclusive, por romances posteriores, tais como A caverna (2000) e As intermitências da morte (2005). Sua elaboração artística é voltada, neste sentido, para a relação do homem com o mundo, porém, a pergunta primeira e essencial a ser elaborada é: quem somos nós, como seres humanos? Desta forma, em depoimento à Revista Bravo, declara o autor português: O que digo é que, até o Evangelho, foi como se eu estivesse, em todos esses livros estado a descrever uma estátua. Portanto a estátua é a superfície da pedra. Quando olhamos para uma estátua, não estamos a pensar na pedra que está por detrás da superfície. Então é como se eu a partir de Ensaio sobre a Cegueira, estivesse a fazer um esforço para passar para o lado de dentro da pedra. Isso significa que não é que eu esteja a desconsiderar aquilo que 31 escrevi até o Evangelho, mas é como se eu me apercebesse, a partir do Ensaio, que as minhas preocupações passaram a ser outras. Não penso que estou a escrever livros melhores que antes. Não tem a ver com qualidade, mas com intenção. É como se eu quisesse passar para o lado de dentro da pedra (SARAMAGO, 1999, p.63). Saramago passa, então, como ele mesmo diz, para “o lado de dentro da pedra” e, a partir desta metáfora, torna-se possível aproximar as suas preocupações com as reflexões propostas pelo pensamento de Martin Heidegger. Em Ser e Tempo, depreendemos que “ser” é o conceito mais universal e mais vazio, contudo não pode significar que o seu conceito esteja determinado e que não necessite de qualquer discussão. De acordo com o filósofo alemão, “elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – o que questiona em seu ser (...). Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pre-sença” (HEIDEGGER, 2002, p.33). O cerne da filosofia de Heidegger centra-se no sentido do ser e, para isso, torna- se necessário pensar uma conceituação própria para nos distanciarmos de uma compreensão obscura e mediana deste mesmo conceito, pois, como alerta o filósofo, “a colocação explícita e transparente da questão sobre o sentido do ser requer uma explicação prévia e adequada de um ente (pre-sença) no tocante a seu ser”. (Ibidem, p.33). O desejo de Saramago de passar para este “lado de dentro da pedra” não deixa de sustentar a preocupação sobre o sentido do ser, e o entendimento do único que pode levantar essa mesma questão: o homem. Ora, se “na questão sobre o sentido do ser, o primeiro a ser interrogado é o ente que tem o caráter da presença” (Ibidem, p.75), então, em Ensaio sobre a cegueira, acreditamos que José Saramago propõe um novo conceito que investe sobre esta preocupação com o ser do homem: a cegueira branca. Tal abertura, portanto, possibilita-nos investigar os possíveis significados desta “cegueira”, posta em evidencia por Saramago, redimensionando-a a partir do pensamento de Heidegger. Uma busca pelo sentido da condição de cegueira pode determinar a elaboração da questão do próprio ser e suas disposições para a existência do homem. No romance, sem citações explícitas de tempo e nomeações de espaço, o leitor se depara com uma desconcertante e imprevisível epidemia de “cegueira branca” instaurada em uma cidade anônima, partilhando, quase que da mesma forma, o efeito experimentado pelos recém atingidos, “numa espécie de estranha dimensão, sem 32 direcções nem referências, sem norte nem sul, sem baixo nem alto” (SARAMAGO, 1995, p. 15). Ainda assim, é inegável a percepção de algumas marcas contemporâneas que evidenciam um mundo semelhante e muito próximo ao que o leitor conhece, regido, desde sempre, pela trivialidade do cotidiano, tais como: a) automóveis e motoristas impacientes, Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente. (Ibidem, p.11). b) edifícios e construções luxuosas, A caminhada continuou, a casa do velho da venda preta já ficou para trás, agora seguem por uma extensa avenida, com altos e luxuosos edifícios de um lado e do outro. Os automóveis, aqui, são de preço, amplos e cómodos, por isso se vêem tanto cegos a dormir dentro deles, e a julgar pela aparência, uma enorme limusina foi mesmo transformada em residência permanente, provavelmente por ser mais fácil regressar a um carro do que a uma casa, os ocupantes deste devem de fazer como se fazia lá na quarentena para encontrar a cama, ir apalpando e contando os automóveis a partir da esquina, vinte e sete, lado direito, já estou em casa. O edifício à porta do qual a limusina se encontra é um banco. (Ibidem, p. 252). c) sinais de trânsito e a movimentação turbulenta dos carros e dos pedestres, O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. (Ibidem, p. 11). d) profissões e condições sociais dos personagens ligadas a personagens sem nome: O mal da rapariga dos óculos escuros não era de gravidade, tinha apenas uma conjuntivite das mais simples, que o tópico ligeiramente receitado pelo médico iria resolver em poucos dias, Já sabe, durante esse tempo só tira os óculos para dormir, dissera-lhe. (Ibidem, p. 30). Ao ladrão do automóvel levou-o um polícia a casa. (Ibidem, p. 35). 33 Com o tempo e a intimidade, as mulheres dos médicos acabam também por entender algo de medicina, e esta, em tudo tão próxima do marido, aprendera o bastante para saber que a cegueira não se propaga por contágio, como uma epidemia, a cegueira não se pega só por olhar um cego alguém que o não é, a cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu. Em todo o caso, um médico tem a obrigação de saber o que diz (Ibidem, p. 38). O condutor cegou quando o presidente ia a entrar no edifício, pela porta principal, como gostava, ainda deu um grito, estamos a falar do condutor, mas ele, estamos a falar do presidente, já não o ouviu. (Ibidem, p. 252). A partir de tais constatações e da forma como o autor debruça-se sobre uma realidade vigente, não será de todo impróprio sublinhar que se trata, realmente, na pontual expressão de Maria Alzira Seixo, de um romance que “ensaia a condição de cegueira, ou talvez mais corretamente, que reflete sobre a imagem visível (e por isso passível de ser descrita) da cegueira” (1999, p.109). Esta imagem visível, paradoxalmente, compreende, em primeiro lugar, uma experiência dogmática do ser humano com relação a si mesmo e ao modo como se comporta. Aliás, o próprio Saramago, em uma de suas entrevistas, chega a afirmar que o importante, em Ensaio sobre a cegueira, é “a interrogação sobre como é que nos comportamos, que uso fazemos de nossa razão e que cegueira é essa que não é dos olhos, mas do espírito; que relações humanas são essas a que chamamos humanas e que de humanas tem de tão pouco” (SARAMAGO, 1998, p.36). Neste mesmo sentido de interrogação, em Ser e Tempo, Heidegger faz uma distinção entre interrogado, questionado e perguntado. Interrogado é o próprio ente, isto é, “chamamos de ente muitas coisas e em sentidos diversos, ente é tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira” (2002, p.32). O ser é o questionado, o que determina o ente como ente, naquilo que é e como é na realidade. Continua o filósofo a sua conceituação: “Enquanto questionado, o ser exige, portanto, um modo próprio de de-monstração que se distingue essencialmente da descoberta de um ente. Em consonância, o perguntado, o sentido do ser, requer também uma conceituação própria” (Ibidem). Ora, de forma semelhante, Saramago também não deixa de propor o seu modo de “de-monstração” em busca da condição do homem, e tal acessibilidade se dá somente através de uma segunda cegueira – o choque no qual ocorre o acesso do homem a si mesmo: 34 No patamar exterior a luz do dia estonteou a mulher, e não porque fosse demasiado intensa, no céu estavam passando nuvens escuras, talvez estivesse para chover, Em tão pouco tempo perdi o costume da claridade, pensou. No mesmo instante um soldado gritava-lhes do portão, Alto, voltem já para trás, tenho ordens para disparar, e logo, no mesmo tom, apontando a arma, Nosso sargento, estão aqui uns gajos que querem sair, Não queremos sair, negou o médico, O meu conselho é que realmente não queiram, disse o sargento enquanto se aproximava, e, assomando por trás das grades do portão, perguntou, Que se passa, Uma pessoa que se feriu numa perna apresenta uma infecção declarada, necessitamos imediatamente antibióticos e outros medicamentos, As ordens que tenho são muito claras, sair, não sai ninguém, entrar, só comida, Se a infecção se agravar, que será o mais certo, o caso pode rapidamente tornar-se fatal, Isso não é comigo, Então comunique com os seus superiores, Olhe lá, ó ceguinho, quem lhe vai comunicar uma coisa a si sou eu, ou você e essa voltam agora mesmo para donde vieram, ou levam um tiro, Vamos, disse a mulher, não há nada a fazer, eles nem têm culpa, estão cheios de medo e obedecem a ordens, Não quero acreditar que isto esteja a acontecer, é contra todas as regras de humanidade, É melhor que acredites, porque nunca te encontraste diante de uma verdade tão evidente, [...] (SARAMAGO, 1995, p. 69). Diante da constatação da cegueira e das consequências que esta impunha sobre os membros do manicômio, a reação do médico diante da insensibilidade do soldado, movido unicamente pelo cumprimento de ordens recebidas, evidencia não só o choque da personagem diante da sua própria condição, mas também reitera a forma violenta com que tal revelação se dá. Ao perceber a insensibilidade e a intolerância do outro, é o choque da percepção de uma “verdade tão evidente”, como dirá a mulher do médico, que acaba por contrariar “todas as regras da humanidade”. Não deixa Saramago de tocar, nesta perspectiva, num ponto crucial sobre o questionamento e a compreensão do sentido do ser. Sobre isto, Heidegger afirma que há uma repercussão prévia do questionado (o ser) sobre o próprio questionar, enquanto modo de ser de um ente determinado. Logo, “ser atingido essencialmente pelo questionado pertence ao sentido mais autêntico da questão do ser” (HEIDEGGER, 2002, p.34). Como pudermos constatar, esta afirmação é de essencial relevância para a leitura de Ensaio sobre a cegueira, posto que a interrogação sobre a natureza de ser cego é um constante e reiterado leitmotiv na obra de Saramago, que repercute pelos diálogos ao longo do romance e que também encerra a própria trama, num dos momentos mais lúcidos entre o casal de protagonistas: “Porque foi que cegamos, Não sei talvez um dia chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” 35 (SARAMAGO, 1995, p.310). Da mesma forma, na reflexão heideggeriana, o mote recorrente é o de que não é possível continuar numa época caracterizada pelo esquecimento do ser, já que o questionamento e a procura são de extrema importância para a tentativa de compreensão deste mesmo ser: “Questionar é procurar cientemente o ente naquilo que é e como ele é: A procura ciente pode transformar em investigação se o questionado for determinado de maneira libertadora” (HEIDEGGER, 2002, p.30). Aproximando tal linha de reflexão filosófica à do ficcionista português, é possível observar que o ponto de partida de Saramago pode ser detectado na busca da compreensão da existência dogmática do homem e seu ponto de chegada é a busca da essência do homem a partir da segunda cegueira, o mal branco, que possibilita a pergunta pelo sentido do ser. Como pontua Heidegger, será muito ingênuo se as “investigações sobre o ser dos entes deixarem sem discussão o sentido do ser em geral” (Ibidem, p. 37). Esta discussão, pontuada na trama de Saramago em diálogo com as ideias heideggerianas, portanto, não só possibilita novos caminhos de pesquisa para a questão do ser, como também possibilita um novo olhar de investigação sobre a época contemporânea. 1.3. Estilhaços pós-modernos Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro Ó Portugal, hoje és nevoeiro... [FERNANDO PESSOA. “Nevoeiro”]. Uma característica marcante de José Saramago, em seus romances, tem sido a possibilidade de sensibilizar o leitor por uma espécie de espelhamento. Se voltarmos os olhos para a época contemporânea, o reflexo mais nítido que se tem é a capacidade de sensibilização diante de uma condição: a incerteza. Juntamente com ela, surgem algumas bifurcações cruciais, como a dúvida de saber quem somos e saber que sociedade é esta em que estamos inseridos. Jean-François Lyotard afirma, por exemplo, que não se pode entender o estado atual do saber se não se compreende a sociedade em que este se insere, pois “conhecer qualquer coisa daquela é primeiro escolher a maneira de interrogá-la, que é a maneira pela qual ela pode fornecer respostas” (1979, p.23). Daí que, diante da vitrine do 36 contemporâneo, encontramos um fenômeno cultural complexo: a pós-modernidade. É complexo, porque os temas do pós-modernismo abarcam a questão maior do seu contexto epocal que, de acordo com Terry Eagleton, “alude a um período histórico específico” (1998, p.7). O consenso mais evidente, entre os seus críticos, é o de que tenha começado depois da Segunda Guerra mundial. Desta forma: O conceito de “pós-moderno” só faz sentido como utopia negativa, isto é, se o seu prefixo for entendido não como superação dos males da modernidade (a despeito do sentido positivo que o conceito de “moderno” também carrega), mas como superação negativa do sentido negativo do fenômeno observado à luz da teoria crítica. Nossa época seria pós moderna se isso implicasse no reconhecimento de que sua brutalidade e sua impiedade superaram a impiedade e a brutalidade da época moderna. A época “pós- moderna” teria sido então, efetivamente inaugurada em 1945, com a revelação mundial dos campos de extermínio nazistas e a explosão da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Ocorridos quase simultaneamente, esses eventos abismais modificaram todo o pensamento e todo o imaginário processados até então (NAZARIO, 2005 p.25). Diante da perplexidade frente a tais acontecimentos, a essência do homem parece estar em ruínas, e um quadro de incertezas se instaura, podendo ser contemplado até hoje. A definição de pós-moderno constitui-se de forma oscilante, mas, de modo geral, seus aspectos fundamentais são “heterogeneidade, diferença, fragmentação, indeterminação, relativismo, desconfiança dos discursos universais, dos metarrelatos totalizantes (identificados como totalitários), abandono das utopias artísticas e políticas” (PERRONE MOISÉS, 1998, p.183). Assim, como pensa Terry Eagleton, o pós- modernismo “reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentralizada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura „elitista‟ e a cultura „popular‟” (1998, p.7). Todavia, devemos pensar até que ponto o pós-modernismo se configura como arte superficial. Existe superficialidade na arte? O mundo das artes sente a necessidade de compreender a perplexidade da nova realidade apresentada, mas isto não quer dizer necessariamente que ela se afirme a partir de formas superficiais. Antes, parece haver, sim, uma ressignificação, pois, “o pós-modernismo traz à baila a saída útil embutida na nova visão pragmática: tudo é permitido, inclusive negar as origens, desde que um objetivo supostamente válido seja instaurado” (GUINSBURG e FERNANDES, 2005, p.14). 37 José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, cria um espelho do contemporâneo com vistas a questionar o homem e sua sociedade atual, redimensionando uma postura pós-moderna que tende a sugerir “um novo tipo de acomodação entre arte e sociedade” (ANDERSON, 1999, p.26). O reflexo que se tem, logo, contempla a vida social, mas, sobretudo aleta para todas as convenções estabelecidas. Abre-se, assim, através desta articulação com os pressupostos do pós-modernismo, um caminho para que o entendimento da época seja recuperado e transformado. Não obstante, Anderson afirma que, desde os anos 70, a idéia de vanguarda passou a ser suspeita e movimentos combativos de inovação são cada vez mais raros. Surge a adequação a um contemporâneo, onde o “manifesto é algo ultrapassado, uma relíquia do purismo afirmativo em contradição com o espírito da época” (Ibidem, p.110). Desta forma, não existe manifesto, mas isto não significa dizer que não exista mais nenhum pensamento crítico. Também vale lembrar que o universo pós-moderno não é de delimitação, mas de mistura e de celebração do híbrido. Assim, “o pós-modernismo, como o modernismo, é um campo de tensões” (Ibidem, p.152). Caminhando por este viés, José Saramago joga, assim, uma pedra desconstrutora no espelho do contemporâneo7 para mostrar os seus reconstrutores estilhaços pós- modernos. Na dinâmica das duas tendências, o escritor português parece mostrar que nunca, em nenhuma civilização anterior, as questões fundamentais do ser e do significado da vida pareceram tão absolutamente remotas e sem sentido. Conhecedor desta realidade, Saramago instaura a preocupação com o sentido do ser, de maneira paradoxal, levantando a questão como forma artística imanente ao tempo presente, tendo em vista propor uma redescoberta do conceito de ser humano, ou seja, uma espécie de jogo8 (pós-moderno) de revisitação da idéia de ser (“Retorno” é uma palavra chave ao pós-moderno, pois está em oposição e problematiza o pensamento do progresso). Uma 7 O que deve ficar claro é que nem toda arte e pensamento contemporâneos são pós-modernos. Concordamos, pois, com Linda Hutcheon quando adverte que o pós-modernismo não pode ser utilizado como sinônimo de contemporâneo. O pós-modernismo é um fenômeno cultural que possui suas especificidades, logo, segundo a autora, ele deve ser pensado como “um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios conceitos que desafia – seja na arquitetura, na literatura, na escultura, no cinema, no vídeo, na dança, na televisão, na música, na filosofia, na teoria estética, na psicanálise, na linguística, ou na historiografia” (1991, p. 19-20). Ele também não pode ser tomado como um fenômeno universal, já que é basicamente europeu e (norte e sul) americano. 8 Com relação à questão entre jogo e ser e o pensamento heideggeriano, Benedito Nunes esclarece que “o Dasein é o ente que compreende o ser, o que significa compreendê-lo em sua existência e entender a existência como possibilidade sua, de ser ou de não ser si próprio, com a qual está concernido. Se o Dasein é um ente, é um ente que põe em jogo o seu próprio ser. Assim, o que se visa em Ser e Tempo – elaborar a questão do ser – é esse mesmo jogo da questão, da pergunta sobre o sentido do ser” (NUNES, 2004, p.12). 38 das preocupações desta leitura é a de perceber e evidenciar, como se verá doravante que, na senda dos pressupostos do pós-modernismo, a trama saramaguiana propõe múltiplos caminhos para problematizar os modos de ser do homem e sua relação com a sociedade. Perry Anderson afirma, por exemplo, que a história da idéia de pós-moderno “começa bem antes do advento de qualquer coisa que pudesse prontamente ser identificada como uma forma do pós-modernismo atual. Nem a ordem de sua teorização corresponde a seu aparecimento como fenômeno” (1999, p.110). Logo, o pós- modernismo torna-se capaz de suportar novos conceitos, de possibilitar uma renovação a partir de rotações sobre seu próprio eixo, gerando novas formas de interpretar a sociedade. Neste sentido, adverte Steven Connor que: Notável é precisamente o grau de consenso no discurso pós-moderno quanto ao fato de já não haver possibilidade de consenso, os anúncios peremptórios de desaparecimento da autoridade final e a promoção e recirculação de uma condição cultural em que a totalidade não pode ser pensada. Se a teoria pós-moderna insiste na irredutibilidade da diferença entre áreas distintas de prática cultural e crítica, é, por ironia, a linguagem conceitual da teoria pós-moderna, que penetra nas trincheiras, se torna sólida o bastante para suportar o peso de um aparato conceitual inteiramente novo de estudo comparativo (1993, p.17). Como existem dificuldades de apreensão do contemporâneo, surge a idéia geral e contraditória de que só se pode aproveitar o conhecimento sobre coisas de alguma forma encerradas. Então, como compreender o fenômeno pós-moderno, se sua época ainda não se fechou? A resposta pode ser buscada no sentido de que, na tentativa de entender nossos “eus” contemporâneos, “não há postos de observação seguramente afastados, nem na ciência, nem na religião, nem mesmo na história” (CONNOR, 1993, p.13). Ou seja, pertencemos ao momento que tentamos analisar e às estruturas que empregamos para analisá-lo. (Ibidem). Esta afirmação torna-se relevante no universo de Saramago para a construção de Ensaio sobre a cegueira, pois uma crítica ao pós-modernismo não se tornaria, necessariamente, uma recusa ideológica dele9. Desta forma, investimos no estudo da existência de traços que encaminham a obra Ensaio sobre a cegueira para uma abordagem pós-moderna, posto que a resistência à incerteza do presente só poderia começar encarando esta ordem tal como ela é. De acordo com Steven Connor: 9 De acordo com Huyssens, em seu ensaio “Mapeando o pós-moderno”, o pós-modernismo deve ser discutido como condição histórica e não como simples estilo, e assim, torna-se possível descobrir seu potencial crítico: “O que não adianta mais é louvar ou ridicularizar o pós-modernismo em seu conjunto. O pós-modernismo deve ser salvo de seus defensores e de seus detratores” (HUYSSEN, 1991, p.22). 39 A condição pós-moderna é cega a sua própria situação e condicionamento porque, qua pós-moderna está comprometida com uma doutrina da parcialidade e fluxo para a qual mesmo coisas como a nossa própria situação são tão instáveis, tão sem identidade que não podem servir de objetos de reflexão sustentada (1993, p.25). Entretanto, como alerta Andreas Huyssen, “a tarefa que nos espera é a de redefinir as possibilidades da crítica em termos pós-modernos e não de relegá-la ao esquecimento” (1991, p.22). Logo, o espelhamento proposto por José Saramago constitui uma espécie de acomodação da arte-sociedade, compreendida numa conjuntura pós- moderna. Como afirma Anderson, o pós-modernismo surgiu da “combinação de uma ordem dominante desclassificada, uma tecnologia mediatizada e uma política sem nuances” (1999, p.108). Nesta ambiência, dá-se o espelhamento e o questionamento do homem cego. Contudo, o espelho pode ser quebrado, ou ainda, nem mesmo existir, nos termos de um Baudrillard, por exemplo, para quem a referência desaparece, “já não existe o espelho do ser e das aparências, do real e do seu conceito” (1991, p.8). Saramago, ironicamente, instaura a busca de um sentido para a verdade num mundo em que a própria verdade se encontra desestabilizada. A desestabilização criada tem seu centro na própria incerteza das coisas. A angústia gerada pela incerteza, por sua vez, é fundamental para a consciência da ignorância, assim para a compreensão do “eu” contemporâneo. Tal é o que ocorre na cena em que os cegos, reunidos, passam a relatar a última cena que contemplaram, antes de serem atingidos pela cegueira: O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. Ninguém lhe soube responder. A rapariga dos óculos escuros pediu-lhe que ligasse o rádio, talvez dessem notícias. Deram-se mais tarde, entretanto estiveram a ouvir um pouco de música. Em certa altura apareceram à porta da camarata uns quantos cegos, um deles disse, Que pena não ter trazido a guitarra. As notícias não foram animadoras, corria o rumor de estar para breve a formação de um governo de unidade e salvação nacional (SARAMAGO, 1995, p. 131). O que se depreende deste diálogo é a constatação do medo como elemento reiterador da condição de cegueira a que os sujeitos já se encontravam expostos. Somente, portanto, na época da desestabilização o homem poderia ser guiado ao grau 40 máximo da cegueira, que abre caminho para compreender o que ainda não compreendia. A maneira de desvencilhar-se deste lastro de ignorância, Saramago propõe a criação da segunda cegueira (a cegueira branca), que atinge os habitantes desta cidade, independentemente de idade, cor, sexo ou condição social. Ou seja, a época da desestabilização gera a incerteza neste contexto, sinônimo do mal-branco, que propicia novas descobertas correlacionadas à compreensão do ser. O mal branco (pós-moderno) constitui a incerteza em si. Esta acaba por gerar o embate com as crenças estabelecidas que já não fornecem uma explicação para a nova realidade. Diante deste fato, abre-se um novo horizonte que propicia desencadear uma ação no homem. Este novo horizonte, neste sentido, está sendo construído por Saramago e abarca uma busca do sentido do ser, que corresponde ao cerne da filosofia heideggeriana. A compreensão pós-moderna de Saramago é complexa, no sentido em que resulta no julgamento de nós mesmos, indo ao encontro daquilo que afirma Steven Connor: A questão é que nos encontramos a tal ponto no âmbito da cultura do pós-modernismo que o seu repúdio fácil é tão impossível quanto qualquer celebração igualmente fácil dela é complacente e corrupta. O julgamento ideológico do pós-modernismo implica necessariamente, pensaríamos, um julgamento sobre nós mesmos bem como sobre os artefatos em questão (1993 p.47). A ficção pós-moderna de José Saramago, agora repensada, através da linha de questionamento do ser, continua a deter características marcantes de algumas de suas obras anteriores, tais como “a questão da representação artística e do posicionamento e responsabilidade do sujeito que a empreende” (REIS, 2004 p.37), assim como “a secular luta do homem contra a opressão” (Ibidem). Desta forma, o homem cego de agora vislumbra um homem oprimido em seu tempo presente, porém, em atitude dogmática. É interessante relembrar, neste sentido, que a tentativa de reescrever a História do ponto de vista dos oprimidos é também uma característica pós-moderna. Porém, o que Saramago propõe reescrever, agora, compete modificar a desordem das aparências, com base na realidade do mundo atual. Esta inserção pós-moderna continua a vislumbrar um engajamento no mundo, ainda que, muitas vezes, este mesmo engajamento passe por “uma visão cética e mesmo pessimista da relação do homem com o „outro‟ e da organização do mundo - mundo tentacular, absurdo e desequilibrado” (REIS, 2004 p.38). 41 Assim, novamente encontramos um ponto de contato com a perspectiva pós-moderna, posto que: É este o propósito da auto-reflexividade formal na escrita pós-moderna, não como no modernismo, visando promover e afirmar a integridade do suporte artístico. [...] O vínculo entre texto e mundo é remoldado no pós- modernismo não pelo desaparecimento do texto no interesse de um retorno ao real, mas de uma intensificação da textualidade que a torna coextensiva com o real, uma vez que o real se transformou em discurso, já não há separação entre texto e mundo a ser transposta (CONNOR, 1993, p.107). A chave primordial é entendermos, como propõe Isabel Pires de Lima, que Ensaio sobre a cegueira “confirma-se então como um romance meta pós-moderno, isto é, um romance que pensa a condição pós-moderna recorrendo a estratégias pós- modernas, mas que lê e rejeita o discurso pós-moderno como alegoria da nossa cegueira” (LIMA, 2000, p.28). Todavia, a delimitação de um novo termo torna-se desnecessária ou redundante, já que o pós-modernismo em si sempre possuiu este propósito. Parece ser, pois, na aposta de representação ontológica de um universo marcado pela “cegueira branca” que Saramago constrói a sua alegoria contemporânea finessecular novecentista, onde os próprios gêneros se correspondem, numa espécie de “teoria implícita que se ilustra pela narração” (CERDEIRA, 2000, p.254), em que a permuta salutar de categorias genológicas em trânsito no texto se realiza de maneira convincentemente estruturada. Neste sentido, o ensaio, enunciado no título, permite o leitor pensar, como bem sublinhou Maria Alzira Seixo, não num “romance-ensaio” ou num “ensaio de romance” (1999, p 108), mas num romance que reflete e ensaia sobre as situações geradas pela cegueira. Constitui-se, portanto, naquele exercício “performativo acutilante” (Ibidem) em que Saramago: [...] não narra uma alegoria onde implicitamente sugira o que está mal, e a forma como esse mal se torna em bem; diferentemente Saramago alerta para um perigo (o perigo de não se ver, de não se reparar) que, uma vez descrito ficcionalmente, não pode deixar de manter tudo na mesma, apenas acrescentado das marcas da deteriorização resultante (Ibidem). É indispensável, neste ponto, salientar o caráter alegórico do romance, no sentido para o qual alerta Isabel Pires de Lima, de que se tem assistido a um ressurgimento da 42 alegoria no romance pós-moderno, o que é compreensível se atentarmos para o caráter dual da alegoria. Ou seja, quando falamos de uma coisa, falamos de outra ou dito de outro modo, daí a possibilidade de se concluir que “é, portanto fácil aproximá-la e pô-la ao serviço da poética pós-moderna” (LIMA, 2000, p.24). Percebemos que o espaço concentracionário dos cegos, o manicômio onde estão encerrados, se revela como um microcosmo do mundo real, como bem pontuará a mulher do médico: “O mundo está todo aqui dentro” (SARAMAGO, 1995, p.102). O espelhamento do manicômio compreende, portanto, um pedaço do real intensificado ao extremo, e este simulacro impressiona o leitor através de um hiper-realismo que não pretende representar-se em um sentido realista, mas apresentar a vida e, ao mesmo tempo, questioná-la. Neste sentido, o papel do narrador torna-se fundamental nesta condução reflexiva, sobretudo, nos momentos que antecedem uma violência flagrante, como a cometida sobre as mulheres: A aplicação do método rotativo, palavra mais do que justa, apresenta todas as vantagens e nenhum inconveniente, em primeiro lugar, porque permitirá saber, em qualquer momento, o que foi feito e o que está por fazer, é como olhar um relógio e dizer do dia que passa, Vivi desde aqui até aqui, falta-me tanto ou tão pouco, em segundo lugar, porque quando a volta das camaratas estiver concluída, o regresso ao princípio trará uma indiscutível aragem de novidade, sobretudo para os de memória sensorial mais curta. Folguem portanto as mulheres das camaratas da ala direita, com o mal das minhas vizinhas posso eu bem, palavras que nenhuma disse, mas que todas pensaram, na verdade ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra. Há que dizer, ainda, que duplamente estão estas mulheres folgando, assim são os mistérios da alma humana, pois a ameaça, de todos os modos próxima, da humilhação a que irão ser sujeitas, acordou e exacerbou, dentro de cada camarata, apetites sensuais que a continuação da convivência havia debilitado, era como se os homens estivessem pondo nas mulheres desesperadamente a sua marca antes que lhas levassem, era como se as mulheres quisessem encher a memória de sensações experimentadas voluntariamente para melhor se poderem defender da agressão daquelas que, podendo ser, recusariam (Ibidem, p. 169). Os fragmentos do real atinentes ao mundo exterior, como observado no trecho anterior, por exemplo, em que se percebem a violência, o roubo, o apego aos bens materiais, o abuso contra a mulher, o egoísmo e a fome serão transportados para o manicômio-mundo. Seria bastante inútil nos perguntarmos sobre os limites do mundo e do manicômio, onde começa um e termina o outro, sobretudo, se pensarmos nas ideias de Baudrillard, por exemplo, para quem o território já não precede o mapa; é agora o 43 mapa que precede o território com a chamada “precessão dos simulacros” (1991, p.8). Todavia, em Saramago, é importante ter em conta, como bem pontuou Ana Paula Arnault (2002), que as formas de representação desviantes não poderão nunca refutar de forma total e absoluta o índice de referencialidade necessário à ancoragem do real circundante. Da mesma forma, qualquer representação não poderá ser interpretada em sentido único de degradação ou desejo de nada. No romance de José Saramago, um mundo “possível”, como o ambiente concentracionário dos cegos, em conexão com o “impossível” da cegueira branca, é revelado de maneira pungente para o questionamento das leis que regem o mundo atual, que pode ser considerado também “um mundo vazio de sentido, um mundo auto-rasurado, branco” (LIMA, 2000, p.25). Neste caso, a cegueira poderia ser vista como uma espécie de alegoria da própria condição pós- moderna que, na falta de relatos legitimadores universais, vê os valores esvairem-se e, assim, muitas vezes a porta que se abre é a do niilismo. Ora, se levarmos em conta que, quando se opera uma leitura alegórica da própria alegoria, é possível chegar também “a um novo desabrochar de significados” (KOTHE, 1986, p.21), como propôs Flávio Kothe, então, tal aproveitamento também poderá ser aplicado para se refletir sobre o niilismo encontrado na efabulação saramaguiana. Heidegger, ao dialogar sobre a questão do niilismo, em sua obra Sobre o problema do ser (1969), tomando como ponto de partida a análise de Ernest Junger, diz que somente o niilismo “poderia ajudar a abrir e preparar um âmbito livre, no qual pudesse ser experimentado o que o senhor [Junger] chama uma nova volta do ser” (HEIDEGGER, 1969, p.38). Existe, portanto, a possibilidade de pensar o caráter niilista e sua conseqüente superação a partir da problemática do esquecimento do ser. A zona da linha crítica, ou seja, o lugar da essência do niilismo deve ser procurado onde a essência da metafísica se desenvolve, já que, aqui, “a recuperação da metafísica é a recuperação do esquecimento do ser” (Ibidem, p.51). De forma consonante com o discurso heideggeriano, o niilismo de Saramago não deve ser pensado como um sentido paralisante em sua essência, mas como inerente a uma nova apreensão do tempo, indicando caminhos de superação para a compreensão do homem. Isto significa, desde sempre, reconhecimento de vínculo, posto que o homem “não é apenas atingido pelo niilismo, mas dele se torna essencialmente participante. [...] A própria essência do homem pertence à essência do niilismo e desta maneira à fase de sua perfeição” (Ibidem p.46). 44 Assim, a relação do homem com o niilismo deve ser pensada a partir de um paradoxal regresso, ou seja, voltar para onde não se havia pensado, o lugar do esquecimento do ser que “esconde tesouros inexplorados e permanece a promessa de um achado que apenas espera por uma procura adequada” (Ibidem p.51). Saramago parece refletir exatamente este paradoxo, que compreende um sujeito pós-moderno indeterminado e que deve buscar uma liberdade para compreender sua própria condição de cegueira, fazendo coro também com as idéias de Terry Eagleton, já que, para este, [...] um pouco tarde demais, esbarramos com um sujeito pós-moderno, cuja “liberdade” consiste num tipo de arremedo de fato de que já não existem mais alicerce alguns, que, portanto, está livre para transitar, seja com preocupação ou êxtase, por um universo por si só arbitrário, contingente, aleatório. O mundo, por assim dizer, fundamenta esse sujeito na sua própria ausência de fundamento, permite sua liberdade de ação pela sua própria natureza gratuita. A liberdade desse sujeito não decorre de sua indeterminação, mas precisamente porque ele se define por um processo de indeterminação. (1998, p.49). Deste modo, podemos inferir que não existem alicerces totalmente seguros na cultura pós-moderna. Entretanto, isto não significa que a verdade não deva e não possa ser buscada nesta mesma cultura, pois o pós-modernismo constitui uma tendência artística e cultural que compreende e investe nas relações sociais, embora a verdade dessas relações se apresente, por vezes, cega e sem autenticidade. Mais