ELÓI GOMES DA SILVA O Despojamento em São Bernardo de Claraval e São Francisco de Assis. (Séculos XII e XIII). Dissertação apresentada a Faculdade de Ciências e Letras de Assis -Unesp- para a obtenção do título de Mestre em História. (Área de Conhecimento: História e Sociedade.) Orientador: Ruy de Oliveira Andrade Filho. Assis, SP. 2005. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Silva, Elói Gomes da S586d O despojamento em São Bernardo de Claraval e São Fran- cisco de Assis (séculos XII e XIII) / Elói Gomes da Silva. Assis, 2005 2XX f. 224 : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. 1. Pobreza – Aspectos religiosos – Cristianismo. 2. Cister- cienses. 3. Franciscanos. 4. Espiritualidade. I. Título. CDD 271 Elói Gomes da Silva CURRICULUM VITAE BIRIGUI 2005 CURRICULUM VITAE Julho, 2005 1 DADOS PESSOAIS Nome: Elói Gomes da Silva Filiação: Romeu Gomes da Silva e Jacira Soares da Silva Nascimento: 13/08/1970, Tupã/SP - Brasil Carteira de identidade: 200951701 / SSP / SP / 26/11/1997 CPF: 11474824897 Função: Professor. Endereço residencial: Av. Cidade Jardim, 1436 - Cidade Jardim. 19202055 - BIRIGUI, SP – Brasil. Telefone: (18) 3644.5713 Celular: 018-9745.1442 E-mail: eloigomes@yahoo.com.br 2 FORMAÇÃO ACADÊMICA/TITULAÇÃO 1999 - 2002 Graduação em História Assis. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, São Paulo, Brasil. 2003- (Previsão Mestrado em História [Assis]. de término Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, São Paulo, Brasil. Agosto/2005) Título: O Despojamento em São Bernardo de Claraval e São Francisco de Assis. (Séculos XII e XIII). Orientador: Ruy de Oliveira Andrade Filho. Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil. 3.1 - Atuação Educacional. FATEB - FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA DE BIRIGUI. 2005 – Professor de História da Arte – Designer. UNIESP – COLÉGIO OBJETIVO (Birigui). 2005 – Professor – História – Ensino – Fundamental e Médio. E E Dr Clybas Pinto Ferraz - EECPF Vínculo institucional 2001 - 2003 Vínculo: Servidor público, Enquadramento funcional: Professor substituto, Carga horária: 33. Atividades 6/2001 - 12/2003 Ensino, Nível: Ensino médio. Disciplinas ministradas 1. História. 2. Geografia. 6/2001 - 12/2003 Ensino, Nível: Ensino fundamental. Disciplinas ministradas 1. História. 2. Geografia. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP Vínculo institucional 2001 - 2002 Vínculo: Professor Cursinho Primeira Opção. 2000 - 2001 Vínculo: Professor Cursinho. Outras informações Professor de Cursinho Primeira Opção: Geografia Geral; Geografia do Brasil e Geopolítica. Atividades – Coordenação de Cursinho. 3/2001 - 12/2001 Conselhos, Comissões e Consultoria, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Departamento de História. Cargos ou funções 1. Outro.- Coordenação Geral - Coordenação de Secretaria. Colégio Mais de Ensino. (Escola Mais de Ensino, Ensino Fundamental e Médio). 2002 1ª. Semestre – Professor de Sociologia. FATEB - FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA DE BIRIGUI. 2005 – Professor de História da Arte – Designer. 4 IDIOMAS Compreende: Espanhol (Bem), Francês (Bem), Italiano (Bem). Fala: Espanhol (Pouco), Francês (Bem), Italiano (Razoavelmente). Lê: Espanhol (Bem), Francês (Bem), Italiano (Bem). Escreve: Espanhol (Pouco), Francês (Bem), Italiano (Bem). 5 PRODUÇÃO CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA E ARTÍSTICA/CULTURAL 6 DADOS COMPLEMENTARES Curso Superior Incompleto de Ciências Contábeis – Faculdade Salesiana de Araçatuba. Período: 1991-1993. Curso de Filosofia e Teologia nos Frades Menores Capuchinhos de Piracicaba. Período: 1994-1995. Curso de Canto e Teatro: Seminário São Fidélis – Piracicaba/sp. 6.1 PARTICIPAÇÃO EM EVENTOS 2005 1. I Ciclo internacional de Estudos Antigos e medievais – VII Ciclo de Estudos Antigos e Medievais “Relações de Poder, Cultura e Educação”. 2005 – (Participação em eventos/Outra) 2004- 1999. 1 Le Moyen Âge vu d'ailleurs JJ. Historiographie et recherches actuelles. 2004. (Participações em eventos/Outra). 2 VI Ciclo de Estudos Antigos e Medievais Fontes:Problemas e Abordagens. 2004. (Participações em eventos/Simpósio). 3 FEVEST- Feira do Vestibular. 2003. (Participações em eventos/Outra). 4 V Ciclo de Estudos Antigo e Medievais Identidade, Poder e Religião. 2003. (Participações em eventos/Simpósio). 5 XXI Semana de História 40 anos do curso de História. 2003. (Participações em eventos/Congresso). 6 FEVEST- Feira do Vestibular. 2002. (Participações em eventos/Outra). 7 XVI Encontro Regional de História: Poderes e Representações. 2002. (Participações em eventos/Congresso). 8 XIX Semana de História: O olhar historiográfico dos anos 90. 2001. (Participações em eventos/Congresso). 9 II Simpósio nacional de História das Religioões, VI Ciclo de Estudos da Religião e I congresso da Associação Brasileira de História das Religiões. 2000. (Participações em eventos/Simpósio). 10 XLVIII Seminário do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo- Gel. 2000. (Participações em eventos/Outra). 11 XVII Semana de História O Campo Histórico Atual: Dinâmica e Interseções. 2000. (Participações em eventos/Seminário). 12 I Simpósio Sobre História das Religiões. 1999. (Participações em eventos/Simpósio). 13 I Simpósio Sobre História das Religiões. 1999. (Participações em eventos/Simpósio). 14 XVII Semana de História 1999: A História Explica?. 1999. (Participações em eventos/Congresso). 15 XVII Semana de História 1999: A História Explica?. 1999. (Participações em eventos/Congresso). Publicações outras: 1. Apresentação de Livro: Homenagem do NEAM ao Professor Dr. Daniel Valer Ribeiro: A história de um Paradidático. Livro: Relações de Poder, educação e cultura na Antiguidade e na Idade Média. Ed. Solis, 2005, p. 11-12. 2. Resumos. Seminário: O Golpe de 1964 e os Dilemas do Brasil Contemporâneo. Título: De Molesme a Cister: A análise na criação de duas novas ordens, segundo o modelo da Regra de São Bento no século XI. Seminário: 40 Anos do Curso de História. Título: O Despojamento em São Bernardo de Claraval e São Francisoc de Assis e o conceito de Ordem nos séculos XII e XIII. 1 SIGLAS E ABREVIATURAS UTILIZADAS BAC - Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid. Ep.F - Epístola de São Fulgêncio. Ep.B - Epístola de São Bernardo de Claraval 1Cel. - Primeiro Livro da Vida de Francisco de Assis, composta por Tomás de Celano. 2Cel.- Segundo Livro da Vida de Francisco de Assis, composta por Tomás de Celano. RB - Regra Bulada da Ordem dos Frades Menores. RNB - Regra Não Bulada da Ordem dos Frades Menores. TestP. - Testamento de São Francisco de Assis- ditado na Porciúncula. RSB - Regra de São Bento de Núrsia. 2 INTRODUÇÃO: As análises a que nos propusemos nesta pesquisa dizem respeito a inquietações que vivenciamos há alguns anos, quando fazíamos parte do grupo dos Frades Menores Capuchinhos em Piracicaba. É fruto do contato com fontes que dispúnhamos e que nos possibilitavam, naquele momento, indagar a respeito de algumas atitudes de Francisco de Assis (1181/1182-1226), bem como de sua Ordem e as transformações provocadas por esta, na sociedade do século XIII. Contudo, uma análise sobre a trajetória do Frade Menor levou-nos a verificar que as mudanças não eram fruto exclusivo de seu tempo. Aliás como veremos nos capítulos posteriores, não o serão de fato, pois há que se considerar as transformações propostas nos séculos X-XI pela Reforma Gregoriana (1075-1085), das modificações impostas pelas reformas monásticas nos séculos precedentes, das viragens sociais, para ficarmos em apenas algumas das transformações. Devemos ainda considerar a atuação daquele que é nosso objeto e que, saído desse meio, desenvolveu uma intensa participação na difusão do novo monaquismo: Bernardo de Claraval (1090-1153). Bernardo é, ao mesmo tempo, monástico e propagador fervoroso da vontade da Igreja. Sua conduta, seus escritos e sua trajetória nos mostram que, cinqüenta anos antes do Poverello, os homens da Eclésia tiveram um exemplo a ser seguido. Por suas Epístolas se “reconstrói sua biografia, sua espiritualidade, e a vida vulgar de cada dia com seus problemas e satisfações, com seus gozos e sofrimentos interiores”, conforme mencionam seus biógrafos. Pode-se ainda, por suas Epístolas, entender “as grandes dores e alegrias eclesiásticas, suas denúncias proféticas, sua obsessão pela pobreza e pelos pobres, 3 sua sensibilidade ante todo tipo de injustiça, sua paixão pela vida monástica ...1”. Bernardo provoca, age, exorta. Francisco reza, exemplifica, admoesta. Dois modelos, duas formas de estar na Igreja. Por fim, consideramos a aproximação entre dois modelos: o cisterciense e franciscano, tendo em vista a existência de diferentes formas de expressões religiosas nos séculos XI-XIII, e de como as ordens citadas se vêem sobre a condução da religio (religião). No seguimento desta, entramos na problemática de uma possível aproximação entre as duas propostas, sobretudo, quando se analisa por um único conceito: o despojamento. É sobre este víeis que procuramos verificar uma possível idéia defendida na ortodoxia de Bernardo e na fraternidade de Francisco, fatores que comentaremos mais a frente. DAS FONTES: Bernardo foi um monge cujo empenho ascético levou-o a se transformar num dos grandes reformadores2 do modelo monástico do século XII. Seu modo de vida e conduta advém de Cister, ordem recém fundada nos arredores da Borgonha, quando do nascimento de Bernardo, e que difundida da sua região, chegou a atuar em quase todas as regiões européias, bem como no Oriente.Bernardo será um dos grandes difusores de sua conduta, sendo a partir do claustro que ele escreve. 1 ARANGUREN, I. Introduccion: Formación del Epistolário. In: SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Obras Completas de San Bernardo. 8 Volumes. Edicion Bilingüe (Latim-Espanhol), Edicion Preparada por Los monjes cistercienses de España. Introducción por Iñaki Aranguren. Traducción por Iñaki Araguren y Mariano Ballano. Madrid: BAC. Tomo VII- Volume 1, 1990, p. 09. 2 A idéia da existência de outros reformadores será discutida mais a frente, no momento em que apresentamos as Ordens de Cister e Cluny. 4 Sua trajetória monástica centra-se na busca pela humildade, pela simplicidade e pelo despojamento, quer seja no exemplo para sua região, quer seja para as outras. É possível, ainda, ver pela compreensão por seus escritos a defesa e direcionamento da Igreja nos séculos XII, utilizando para este fim seus escritos, objetos de estudos desta pesquisa. Divididos pela grande quantidade da produção, nota-se que estes documentos compunham um corpus documental coeso na defesa de uma postura religiosa: a monástica. Sua obra é composta de 8 volumes, alguns constando com dois tomos. O primeiro e o segundo constam de uma introdução preparada por seus biógrafos e os Tratados; o terceiro e quarto tomo são os Sermões Litúrgicos. No quinto, encontram-se os Sermões sobre o Cântico dos Cânticos; o sexto contém os Sermões diversos; o sétimo, as Epístolas que se apresentam divididas em dois volumes. Por fim, a coleção se completa com o oitavo tomo que contém as Sentencias e as Parábolas. Dentro deste corpus documental, nossa escolha como fonte recaiu sobre dois modelos: algumas Epístolas e o Tratado “A Apologia à Guilherme”. Não trabalharemos com todas as Epístolas, mas com aquelas que apresentavam uma mescla de problemas religiosos com questões sociais, sem, contudo, desconsiderar as outras. Entretanto a escolha da documentação bernardina supracitada advém da publicação dos originais de Guilherme de Saint-Thierry, amigo, secretário e biógrafo de São Bernardo, que em 1153 escreve-lhe a primeira vida, além de organizar e datar-lhe os manuscritos latinos produzidos. Outro que traz a sua marca na produção de Bernardo é o monge de Claraval, Godofredo de Auxerre, que em 1145, sob a direção do Abade de Claraval, faz a compilação do corpus espistolarum de Bernardo no século XII. Sobretudo, trabalha este monge com as Epístolas de Bernardo, numerando-as de 1 a 310, numero então do momento. Logo depois deste, outros voltaram à mesma documentação ainda no século 5 XII-XIII. Documentação que fora compilada e organizada para a atualidade pelos Monges Cistercienses da Espanha, para publicação da Biblioteca de Autores Cristãos3. Para esta publicação, tiveram ainda os monges da Espanha, assim como nós, a preocupação na utilização da versão apresentada por Jean Leclerq, monge e historiador bernardino que, num levantamento das fontes, separou e catalogou os documentos do Abade, separando aqueles de sua origem daqueles que lhe foram atribuídos, trazendo uma numeração e datação que mantivemos neste trabalho. A produção do corpus bernardino exigiu do Abade eloqüência, tempo, meditação, conhecimento de Bíblia, tida como fonte4 e referência5. Mas teve também a colaboração de outros monges como secretários, sobretudo, porque diante da urgência com que era solicitado para resolver controvérsias no mundo secular, não dispunha Bernardo de tempo na elaboração de todos os seus documentos6. São monges como Guilherme de Saint- Thierry, Godofredo de Auxerrre, ou Nicolau de Claraval escolhidos entre os seus que prestavam assistência como secretários e que conheciam dos desejos de Bernardo. Um detalhe consta dessa assessoria que muito prejudicou o Abade, pois a confiança foi quebrada por alguns monges, como Nicolau que se aproveitava da confiança e amizade com Bernardo, produzindo e remetendo algumas Epístolas como sendo do Abade. Quando descoberto, o monge era afastado de suas funções e proibido de escrever novamente. No entanto, essas epistolas falsas circularam pela Europa e, por meio delas, podemos conhecer 3 SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Obras Completas de San Bernardo., op. cit.. Tomo VII-VIII (Epístolas) 2 Vol. 1990; _____________, Obras Completas de San Bernardo. Idem, Tomo VIII (tratados - Apologia), volume II, 1990. LECLERCQ, J. Saint Bernard et l´esprit cistercien. Paris, 1966, Tradução pro manuscripto disponível nos mosteiro cistercienses. 4 DUBY, G. São Bernardo e a Arte Cisterciense, Trad. Roberto Leal Ferreira. Rev. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 85. 5 LE GOFF. J. O Imaginário Medieval. Tradução: Manuel Ruas. 3ª ed. Lisboa: Estampa, 1994; dirá que a "Bíblia, porém, se não é a fonte de tudo é, pelo menos, a referência para tudo.", p. 51. 6 GILBERT, P., Introdução à Teologia Medieval. São Paulo: Edições Loyola,1999, p. 99. 6 muitas vezes a importância de Bernardo no século XII, visto a necessidade de se declarar como suas as Epístolas, bem como é possível acompanhar a trajetória abaciacal do Abade que, diante de vários afazeres fora do claustro, deixava a seus secretarios o cargo para envio das correspondências. Outro detalhe que podemos notar com estas Epístolas diz respeito a preocupação desenvolvida pelo Abade no que tange a circulação de suas correspondências, sobretudo porque se vivia um tempo de grandes transformações sociais: a “feudo clericalização7, o ressurgimento de cidades, a expansão e divulgação de idéias heréticas em várias regiões da Europa. Tais problemas, por si só, seriam motivos de preocupações para Bernardo, que via no retiro do claustro o único refugio. Ainda mais, quando da circulação e da existência de mais ou menos 38 Epístolas produzidas pelos monges sem o conhecimento do Abade de Claraval, exceptuando-se as mais de 500 produzidas por ele Bernardo. Para citarmos, sabemos que essas Epístolas falsas, assim classificadas, receberam de Guilherme de Saint- Thierry, os números 343, 344, 373, 386, 388, 456, 460, 461, 463, 464, 467 a 495 e que não constam da primeira compelação feita por Godofredo de Auxerre. No geral, são Ep. exortativas, com a finalidade de levar os homens do período a decidir sobre controvérsias doutrinárias, nas disputas entre Igreja e Império, nas questões administrativas do bens seculares quando da oposição entre dois senhores, e que seriam mais ou menos a posição do Abade de Claraval. Sabemos ainda que, pelas correspondências, as Ep. chegaram a atingir até o Papa, autoridade máxima para os cistercienses, fato que muito desagradou a Bernardo. 7 Termo utilizado por Hilário Franco Júnior, a partir da classificação apresentada por Georges Duby, no livro As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, na qual, conta a sociedade medieval dividida em três segmentos oratores, bellatores e laboratores. Diferenciando-se, Hilário Franco argumenta que o grupo dos oratores, além de homens da Igreja, eram também, senhores de Terra. Esse assunto é mais bem explicado nas notas 13 e 14 do capítulo II. 7 No entanto, não usamos nenhuma dessas Epístolas em nossa dissertação, por enterdermos ser necessário um maior conhecimento do seu produtor. Em nossas fontes bernardinas, optamos por trabalhar com algumas Epístolas e também com o Tratado A Apologia a Guilherme. Contudo, a escolha destes dois documentos não significou que excluímos outros; pois diante da grande quantidade de Epístolas, tivemos o cuidado de cotejar uma aqui outra acolá na sequência definida pela BAC, para melhor compreensão do pensamento, das atitudes, da personalidade, administração de Bernardo de Claraval, principalmente, porque, se utilizado indistintamente, um leque maior de Epístolas traz problema na comprensão do termo despojamento em Bernardo, tendo em vista a gama de assuntos que trata, além da disponibilidade de tempo, que ora temos e que não permite uma trabalho exaustivo. Nossa primeira compreensão advém com o Tratado a Apologia a Guilhere”, escrito provavelmente entre os anos de 1121 e 1122, a pedido do então Abade cluniacense de Saint-Thierry, Guilherme, amigo pessoal de Bernardo e para quem o Abade produz o Tratado. Atendendo ao pedido, Bernardo procura responder pela sua elaboração as constantes críticas feitas a ordem cluniacense8 provenientes dos monges de então, principalmente de monges cistercienses no que concerne à diferença no modo de vida existente entre as ordens9: Cluny e Cister. 8 A ordem de Cluny surgiu no século X, mais exatamente em 910, foi fundada pelo Abade Beron, proveniente das reformas impostas ao monasticismo alguns séculos antes pelo Papa Gregório I, que já utilizava nesta execução a Regra de São Bento. Contudo, com o passar dos anos a ordem de Cluny se diferenciará internamente da reforma proposta em relação a disposições da Regra de São Bento. Aumentará por sua conta e risco os salmos, a forma de trabalho, a liturgia. Cf. VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média Ocidental (Séculos VIII a XIII), Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 36. 9Cf. CLARAVAL, S.B. A Apologia a Guilherme, op. cit. Vol. II. 1990,. SANTOS, LUIS A. R. Pe. O.S.C., Um Monge que se impôs a seu tempo: pequena introdução com antologia à vida e obra de São Bernardo de Claraval. São Paulo: Musa Editora; Rio de Janeiro: Edições Lumen Christi do Mosteiro de São Bento, 2001, p. 52-53. 8 Sua confecção atende a uma lógica para os 13 capítulos: nos cinco primeiros, Bernardo aborda as críticas, refutando os monges de sua ordem ou de outra que se opõem a Cluny, admoestando-os a não se deixarem levar pela ira frente ao enriquecimento e à falta de obediência em Cluny, dizendo-lhes que um monge não deve-se irar e nem deve caluniar uma outra ordem da Igreja. Para o Abade, os monges deveriam viver a integralidade para o bem da Igreja. Já nos outros oito capítulos, Bernardo, trata da discussão interna na ordem cluniacense. Procura, pela indicação que teve e frente ao pedido de Guilherme, mencionar diretamente a falta de exercicios espirituais para a Alma, a valorização e pouco vigilia com o corpo, sobretudo, pela doação de prazeres ao corpo, como o prazer de se comer muito, de ter vários momentos de descanso e relaxamento, de esquecer as obrigaçãoes espirituais, como o jejum; outra critica diz respeito aos acréscimos dos salmos e à manutenção de uma liturgia pomposa. Para Bernardo todos esses acréscimos não fazem bem à ordem, e nem aos monges que deveriam viver o despojamento, segundo a Regra de São Bento. Sua resposta centra-se nas preocupações defendidas por uma parcela dos homens medievais, que questionavam esse enriquecimento e mesmo o modelo religioso dos cluniacenses que estava sendo difundido no Século. Pode-se dizer ainda que esses questionamentos no modo religioso, vivenciado pelos cistercienses nos século XII, foram feitos aos mesmos depois da morte de Bernardo de Claraval, quando estes começaram a ocupar-se mais da vida Secular do que das obrigações monásticas, como é o caso da administração em nome do Rei. No entanto, num primeiro momento, a crítica ou o diálogo de Bernardo com os cluniacenses ocorre a partir da utilização, por Bernardo, de sua experiência de vida em Cister, dos 9 parâmetros da Regra de São Bento, e da Bíblia10, acentuando-se muito na tradição dos Antigos Padres, como Santo Agostinho ou São Bento. Dos trabalhos mais comentados sobre a Apologia a Guilherme, mencionamos os de George Duby; Saint Bernard et L`art Cistercien (São Bernardo e a Arte Cisterciense), Paris: Flammarion, 1979. O trabalho é desenvolvido na compreensão da estrutura da ordem dos cistercienses, tendo como pano de fundo a construção de um modelo artístico que inverte as definições monásticas até então desenvolvidos na Idade Média. Um Segundo estudo que merece ser mencionado e consultado é a obra de Pierre Riché de 1989, com Petite Vie de Saint Bernard. Paris: Ed. Desclée de Brouwer, 1989, ao que parece, uma síntese de sua tese de doutorado de 1947. Neste trabalho, que em nossa lingua foi publicado em 1991, com a designação de Vida de São Bernardo, o autor trabalha com vários textos de Bernardo, descrevendo a vida, as controvérsias com Cluny, e também utiliza-se de várias Epístolas do Abade para narrar-lhe a vida e trajetória. Por fim, não menos importante, o trabalho recente do monge cisterciense Luis Alberto Ruas Santos, de 2001, sobretudo, pela quantidade de fontes citadas e da proximidade deste com os materias. Bernardo responde, como dissemos, às solicitações de seu tempo; no entanto, o faz, mas reclama. Na Apologia a Guilherme, diz. "Aceito com gosto escrever a obra que me ordenas para acabar com o escânda-lo no reino de Deus; porém não vejo com suficiente claridade como quer que o faça11”. Para em seguida mencionar em várias de suas Epístolas a intraquilidade que tem em escrever, sobretudo, na Epístola 84b de 1125, endereçada a 10 Segundo alguns especialistas bernardinos, o Abade de Claraval não utilizava uma seqüência lógica nas citações bíblicas, e mais, dizem ainda que as mesmas aparecem indistintamente em seus textos. Outros alegam que a sua pouca exegese bíblica era o que provocava esta confusão nas citações em seus textos. Fato é, não há uma seqüência lógica nas citações, muito menos uma coerência que se possa usar como referência nos escritos. Cf. RIBADENEIRA. P. Pe. Vida de San Bernardo. IN: SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, op. cit. Vol. I, 1990, p. 50-51. 11 SÃO BERNARDO, Apologia a Guilherme, op. cit. p. 825. 10 Guilherme, sobre o documento que este havia pedido, o Tratado. “Pois deve saber que esta classe de escrito me fere não pouco, porque me tira muito de minha vida interior, interrompe-me o cultivo da oração, sobretudo porque não tenho suficiente capacidade para ditar, nem tempo disponível12”. Se por um lado, na Apologia trata exclusivamente das controvérsias em torno da ordem de Cluny, as Epístolas, no geral, são mais abrangentes. Constam, segundo a compilação dos Monges Cistercienses da Espanha, num total de 500 Epístolas; segundo outros, há um total de 460 Epístolas autênticas13. Números a parte, sua confecção consta, como dissemos, da presença constante de um secretario para quem Bernardo ditava, e mais, se difere dos tratodos pela sua pouca elaboração teológica, sendo mais de caracter disciplinar. Em seu conteúdo, encontramos referencias aos problemas eclesiásticos, temporais, dogmáticos, de foro intimo e exortativos, com demonstração de uma espontaneidade do Abade. Sua distribuição, dentro destes tópicos acima, recaí sobre dois modelos fundamentais: o primeiro diz respeito a sua experiência como monge e faz as vezes nas discussões com outros monges; nas demais, o assunto centra-se na defesa da Igreja, e por esta Bernardo se indispõe com qualquer pessoa. No geral, a compilação e datação apresentada traz uma sequência no tempo do abaciado de Bernardo e podemos dividi-lo da seguinte maneira: As primeiras Ep. tratam de problemas nas ordens monacais. São as Epistolas que Bernardo produziu para tratar da mudanças de 12SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. EpB. 84b. op. cit. p. 319. Comentários que são encontrados também em outras Epístolas, nas quais descreve a intranqüilidade, mas não deixa de agir. Nossa documentação encontra-se em Latim-Espanhol, mas escolhemos para citá-las em nossa língua e não no original da fonte. Assim, todas as citações foram traduzidas por nós, para isso nos baseamos em dicionários medievais e de aproximações para que pudéssemos ficar o mais próximo possível das vertentes originais. Por isso, eventuais erros são de nossa própria responsabilidade, devendo desconsiderar falhas das fontes. 13 RIBADANEIRA, P. Vida de San Bernardo. In: SAÕ BERNARDO DE CLARAVAL, op. cit. p. 49. Para este autor ainda a superação é vista em poucos padres da antiguidade, sendo São Gregório Magno o possuidor de 800 Epístolas/cartas. 11 monges de um mosteiro para outro, ou para refletir com os monges a saída do claustro sem a aurotização dos superiores. No segundo grupo, é possível ver as discussões com prelados da Igreja, sobretudo, bispos e arcebispos, ligados à Cúria romana. Para estes, Bernardo os exorta a permanecerem fiéis a Igreja. Um terceiro grupo são as Epístolas que Bernardo escreve para tratar das disputam em torno da nomeação de Anacleto e Inocêncio II como papas (1130-1138). Convocado ao Concílio de Étempes, pelo rei da Gália Luis VII e, após participar das discussões, apoia a Inocêncio. Bernardo coloca em prática toda uma gama de exemplos e viagens pela europa, exortando os senhores locais, os prelados da Igreja, a apoiarem Inocêncio II que havia sido eleito pela parte boa dos cardeias. As Ep. eram destinadas para imperadores, reis, príncipes, duques,senhores feudatários no Ocidente, como reis e rainhas no Oriente. Bernardo cobrava mais daqueles senhores feudatários ou prelados que continuavam a apoiar a Anacleto II, bem como colocou-se contrário às cidades, sobretudo, as italianas que seguiam com Anacleto. Para estas, o Abade foi taxativo: classificou-as de heréticas. Afora estas, uma parcela considerada das Epístolas são direcionadas à solução de problemas de nomeação dentro da Igreja, das disputas travadas por prelados ávidos por poder, de controvérsias doutrinárias, como as Epístolas em que trata das controvérsias com Pedro Abelardo e Arnaldo de Bréscia. Escritas durante o período de seu abaciado em Claraval (1115 – 1153), sabe-se da sua compilação desde os tempos em que Bernardo estava vivo, pois o mesmo menciona tal fato na correspondência enviada ao cardeal Pedro de Santa Maria, em Via Lata, "umas poucas epístolas que ditei"14. 14 ARANGUEREN, I. Introduccion: Formación del epistolario. IN: SÃO BERNARDO DE CLARAVAL, op. cit. , p. 03. 12 Um dado relevante no material de Bernardo é aquele que diz respeito à utilização de outras fontes, para além da compilação dos Monges Espanhóis. Trata-se do material preparado por M. P. Migne em 1854, para a PL, constante do volume 182, e a de Jean Leclercq, “Saint Bernard et l’esprit cisterciens”, Paris. 1966, tradução pro manuscripto da classica obra, disponível nos mosteiros cistercienses, que, por sua vez, trabalharam com os originais de Bernardo de Claraval e, mais especificamente, de seus biográfos. Por seu turno, Francisco de Assis (1181-1226), foi um religioso do século XIII que, diferentemente de Bernardo de Claraval, quase nada escreveu, pelo menos é o que demonstram as pesquisas. Sua vinculação foi sobremaneira com sua cidade Assis, com os homens que a habitavam, sobretudo, os excluídos como os leprosos, os mendigos. Vê-se também uma ligação com os prelados da Igreja de Assis, o bispo e os padres que ai habitavam. Sua condição é a de um jovem proveniente do grupo de mercadores15 que sonha tornar-se cavaleiro, para elevar-se socialmente, frente à nobreza de sua região. Com Francisco, torna-se dificil datar os fatos, visto que o material existente não especifica-lhe a data, nem mesmo a do seu nascimento. Depois, há o problema de se delimitar a vertente religiosa franciscana, quando o documento é produzido por alguém da ordem, sobretudo, porque, logo depois da institucionalização e posteriormente próximo da morte de Francisco, surgem controvérsias entre os frades. São controvérsias de direcionamento, mas também de elaboração de textos que atendia ora o grupo dos 15 Sabemos que o enriquecimento e o aburguesamento dos mercadores era procurado por aqueles na sociedade medieval dos séculos XII-XIII. Para Paul Sabatier ainda, há uma busca acentuada por títulos que elevem socialmente o grupo e propiciem uma diferenciação com os outros homens. Cf. SABATIER, P. Vie de Saint François D’Assise. Baseado no original de 1898, compilado e revisado por; GOFFIN, A., dezembro de 1917, p. 05 13 Espirituais, ora o dos Conservadores. Problema que ficou conhecido na historiografia como “questão franciscana16”, devido a seu grande número de textos. Assim, nossa proposta recaiu sobre três obras que julgamos procedentes para se compreender as atitudes, a trajetória e mesmo a vocação religiosa de Francisco de Assis: o Testamento da Porciuncula, a Regra Bulada e a Primeira Vida de Tomás de Celano. No primeiro, o Testamento da Porciúncula, trata-se de um texto produzido no final da vida por Francisco em 1226, num momento em que se encontra convalescendo da enfermidade nos olhos, tendo pela frente a eminência da morte, e que já não mais conseguia seguir pregando aos frades, principalmente pelos constantes sofrimentos impostos ao corpo. Francisco, por este documento, abençoa os seus frades presentes e futuros, bem como exorta-os a continuarem respeitando à Regra, ao superior e mantendo um bom relacionamento entre os frades, exortando-os a se tratarem como uma mãe em relação ao seu filho. Sobre o gênero Testamento, vimos ainda que existem dois documentos. O Testamento de Sena (1226), feito no tempo em que tratava de sua doença, provavelmente depois da volta à consulta dos médicos do Cardeal Hugolino, entre abril/maio do referido ano, são conhecidos apenas alguns fragmentos, sobretudo, condições exortativas que Francisco endereça a seus frades. Francisco, com este pequeno texto que conhecemos, reforça sobremaneira sua vontade de se fazer ouvir pelos frades, pois sua doença o consumia. O outro é o documento a que referimos mais acima: O Testamento da Porciuncula e que ora completamos a discussão. É, segundo levantamentos feitos, o último escrito de Francisco, que morreu logo depois. Escrito em latim, traz um balanço da 16 IRIARTE, L. OFM.Cap. História Franciscana. Trad. Adelar Rigo, Marcelino C. Dezen. Petróplis/RJ: Vozes/CEFEPAL, 1985, p.22. Sobretudo, esta é uma discussão iniciada por Paul Sabatier, no levantamento 14 trajetória vocacional de Francisco, bem como da constituição da comunidade e posterior institucionalização, com a oficialização na designação de Ordem dos Frades Menores. Francisco também por esse documento relembra ao frades os preceitos que deveriam seguir/obedecer, indica-lhes a obediência, a humildade e a caridade como fundamento da ordem, expõe-lhes a não aceitarem igrejas, mantendo-se fiíes aos preceitos definidos pela Regra, sobretudo, no que concerne ao despojamento da vontade. Por esse texto ainda, podemos dizer, que se trata de uma demonstração da itineralidade do movimento franciscano iniciado por Francisco, bem como da religiosidade proposta por esse novo modelo. Sua elaboração é de forma cronologica, momento em que Francisco relembra os fatos de sua transformação interna e externa. Contudo, devemos ainda salientar que apesar das várias recomendações de Francisco de não se criar glosas do texto, o mesmo sofre várias interpretações dos frades, segundo o grupo que estava no poder. Assim, novas interpretações surgiram, bem como dúvidas. Teria Francisco ditado uma nova norma? Ou, estaria reclamando de sua Ordem que, neste momento (1226), passava por crises? Ou ainda, estaria Francisco pensando em recomeçar a pregação itinerante que tanto exortava seus frades menores? Ora, sabemos que estas divergências aconteceram pelas constantes disputas surgidas entre os grupos Espirituais e Conservadores que, numa disputa interna, buscavam trazer a imagem do fundador para o seu lado17. Divergências que não eram novas, pois, no tempo em que Francisco ainda era o responsável pela comunidade, os grupos já disputavam sua atenção, conforme vemos na elaboração da RB no capítulo de Pentecoste de 1223. que fez sobre os escritos de Francisco de Assis. 17 Segundo Paul Sabatier, o Testamento é um protesto de Francisco com relação aos desvios dentro da Ordem. SABATIER, P. Vie de Saint Francisc. op. cit. p. 218. 15 No entanto, ainda a discussão era como devia-se entender esse escrito; uma nova regra ou um lembrete aos frades? Indagações que contam com a intervenção da Cúria romana, através de Gregorio IX (1148-1241) na editação da Bula Quo eloganti de 28 de setembro 1230, na qual, esboça dois ideais para se interpretar o Testamento: O primeiro defenindo que os frades deveriam ver o Testamento como uma recordação de Francisco, e o segundo, que o documento citado não é uma Regra, mas serve como consulta nas decisões do modo de vida para os frades. conforme argumenta Lotário Hardick, os “irmãos só se obrigam aos conselhos evangélicos que a Regra definitiva especificou como preceitos (praeceptorie) ou como proibições (inhibitorie)18”. Nos dizeres de Jacques Le Goff19, este é o maior texto autobiográfico de Francisco. É nele que encontramos menção quanto a sua conversão, a troca de sabores, o encontro com o leproso, da busca pela humildade e pela simplicidade das pequeninas igrejas, da vinculação à pobreza, fonte de condução da ordem, entre outros pontos. Para a sua elaboração, Francisco contou, conforme o mesmo menciona, com um secretário: “e eu fiz escrever”, mostrando-nos que estes eram constantes nos momentos em que escrevia. Pode-se dizer que é um documento da ligação fraternal entre Francisco e seus frades, pois termina deixando-os a sua benção final, além de se ligar a Igreja Romana, mantendo com esta uma submissão irrestrita, assim, como também mantém a obediência interna da ordem ao seu superior imediato20. 18 HARDICK, L. DR. Ofm. A Regra da Ordem franciscana à luz das Declarações pontificais em vigor: A exclusão do Testamento. In: DIRETÓRIO DA REGRA DE SÃO FRANCISCO, 1954, Editado, como Manuscrito, pelos Franciscanos da Alemanha. Trad. P. Valdomiro P. Martins. Petrópolis/RJ: Vozes, 1958, p. 78. 19 LE GOFF, J. São Francisco de Assis, 1924, Trad. Marcos de Castro, São Paulo, Ed. Record, 2001, p. 48. 20 Devido ao crescimento da Ordem e da entrada de vários letrados, Francisco, entre os anos de 1217-1220, foi levado a renunciar a chefia da ordem, passando-a para Pedro Cattani, que a governou por pouco tempo. Logo depois, o Capítulo de Pentecostes oficializou a prática e Francisco não mais voltou à chefia, ficando somente como chefe espiritual da sua comunidade de irmãos. 16 Como segunda fonte, escolhemos a Regra Bulada (RB). Sua confecção provém de uma longa discussão na Fraternidade, da utilização de Regras anteriores que lhe serviram de base, bem como, da interferência externa à ordem. Sua oficialização por Honório III, em 1223, determina o começo júridico para a Ordem dos Frades Menores. No mais, é a sua divisão em capítulos, coisa incomum quando se analisam os outros escritos de Francisco que demonstram de imediato a intervenção da cúria e dos frades letrados nas decisões da ordem. Que Francisco teria escrito outras Regras, isso é concenso entre seus pesquisadores. Em 1209-1210, Francisco comparece diante de Inocêncio III com um modelo de vida religiosa. Como não resta nenhum modelo, nem mesmo da aprovação do Papa, dada oralmente, acredita-se que esta Regra contenha apenas expressões do Evangelho. Se levarmos em conta o que Francisco menciona em seu Testamento21, e Tomás de Celano22 na primeira biográfia, essa Regra serviu de base para as outras. A extruturalização acelerou- se com o advento da RB. É fruto do progresso e do aumento de número de seus membros, bem como da interferência destes na RB. Contudo, somente com a anuência de Hugolino é que conseguirão subjulgar a RB naquilo que Francisco desejava. Pelo que notamos com Tomás de Celano, Francisco já havia se preocupado com a inclusão de normas para além das citações evangélicas. De 1221 a 1223, sabe-se que Francisco entrega uma versão da Regra para Frei Elias, então superior da Ordem, e que, na realização do capítulo de Pentecoste de ano, Francisco expõe sua finalização, mas que, diante do radicalismo de alguns frades letrados, recua na sua idéia. É também o período da 21 SÃO FRANCISCO, TestP. IN: FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS. Apresentação Sergio M. Dal Moro. Trad. Celso Márcio Teixeira (et all). Petrópolis: Vozes/FFB. 2004, p. 189. 22 SÃO FRANCISCO, 1Cel, 24, op. cit. p. 218. 17 perda do original por Frei Elias23. Reações à parte, esta nova versão da Regra desagradou mais aos grupos de Frades do que lhes lembrou a obediência que deviam a Francisco. Para esta elaboração da Regra definitiva, contou Francisco24 com Frei Leão e Frei Bonício que, segundo dados, era conhecido como bom canonista25. Dois momentos ainda são fundamentais para a compreensão da RB. A sua composição menor frente às anteriores e a interferência de Hugolino, então cardeal protetor da ordem, conforme demonstramos acima. Para garantir a unidade, Francisco acaba por ceder às alterações propostas, como a supressão das frases líricas, das citações evangélicas. Segundo Jacques Le Goff26, é possível ainda observar alterações em relação ao trabalho, agora não mais uma questão social, mas de se evitar a ociosidade; o que o colocava próximo da vida monástica, a posse de dinheiro então, incisivo e absoluto, sendo abrandado para a criação de amigos especiais para cuidarem deste assunto, a proibição dos frades circularem montados a cavalo, o que muito desgostava a Francisco, pois poucos tinham esse privilégio, mantendo-o somente em caso de extrema necessidade do frade. No geral, a RB preservou o ideal de pobreza dos franciscanos, fator central na vida de Francisco e dos franciscanos27. Sua confirmação se dá com Honorio III, através da bula Solet Annuere em 122, por isso a designação de Regra Bulada ou Bulata, ou seja, aquela que conta com sanção papal. Definida e datada, a RB é o documento mais bem preservado entre os outros documentos de Francisco28. 23 Idem, 1Cel. 32. op. cit. p. 32. Segundo levantamento, São Francisco não se indispôs a Frei Elias, pelo contrário, devotou-lhe sua obediência até a morte. Quem assim apresenta a divergência é Frei Boaventura, futuro superior geral da Ordem e que critica Frei Elias em seus escritos pela perca da Regra de 1221. Cf. HARDICK, Dr. Lotário. Histórico da Regra e sua observância nos tempos primitivos: A regra não confirmada de 1221, IN: DIRETÓRIO DA REGRA DE SÃO FRANCISCO, op. cit. p. 45 ss 24 SÃO FRANCISCO DE ASSIS, 1 Cel. op. cit. p. 230-231. 25Para outras seria Frei Rufino e não Bonício. Idem, p. 48, Apud. Speculum 1; Uberlino de Casale, Arbor Vitae Crucifixae Jesu Christi, Venetiis 1485, lib 5, c. 5, 26 LE GOFF, J. SÃO FRANCISCO, op. cit. p. 86. 27 IRIARTE, L. História Franciscana, op. cit. p. 58 ss. 28 SÃO FRANCISCO DE ASSIS, 1 Cel, op. cit. p. 230-231. 18 No geral é uma Regra de caracter administrativo, de obrigatoriedade para os frades, de dotá-los de sentido júridico, que delimitava as normas da ordem e não permitia modificar, nem mesmo por Francisco, pois a regulamentação pontifical estabelecia o que fora escrito como norma. Assim, somente por decisões papais seria-lhe permitido mudar algo. Sem contar a menção do IV Concilio de Latrão, que proibia a existência de novas Ordens a partir de 121529. A RB permite-nos, neste caso, analisar que Francisco privou-se da vontade, elevou-se pela obediência e instruiu aos seus frades no despojamento do Pauperes Lazarus, a que faremos menção no capítulo I. Sua vontade traz ao seio da Igreja o pobre como membro e não mais aquele que deve ser atendido. Por fim, não menos importante, utilizamos como fonte a Primeira Vida de Francisco, composta por Tomás de Celano30, que daqui para frente será citado por 1Cel. O texto conhecido como a primeira biografia de Francisco de Assis decorre de uma exigência papal para a canonização de Francisco e consta de fatos narrados por frades que conviveram com Francisco, bem como de lembranças do próprio Tomás de Celano. Tomás, homem letrado, da cidade de Celano, na Italia central, entrou para a ordem por volta de 1215, tendo recebido das mãos de Francisco a consgração, conforme recorda na Primeira Vida, após o regresso de Francisco da Espanha: “Mas o bom Deus, a quem 29 A aprovação de Francisco de sua Regra e Ordem foi um fator importante, conseguido, segundo alguns cronistas, pela insistência de Francisco e também por contar com aprovação anterior ao decreto do Concílio Latrão de 1215. Cf. ESSE, K. Vocabulário de Teologia Bíblica. op. cit. p. 116. 30 Entre os escritos de Tomás de Celano, constam a l e 2 Vidas de São Francisco; o Tratado dos Milagres, no qual o autor relata os milagres realizados por Francisco; contudo, a leitura dos textos nos mostra que, de forma geral, ocorre uma complementaridade entre os textos. Enquanto o primeiro é relato dos fatos, os outros dois constam mais de detalhes místicos e eloqüentes, como forma de agradar a um determinado grupo de frades, do que se encontra na primeira versão. Sabe-se ainda que provavelmente Tomás de Celano seja o responsável pela confecção da biografia ou legenda de Santa Clara de Assis (1255-56), morta em 1253. Cf. SILVEIRA, I. OFM. Introdução. IN: SÃO FRANCISCO DE ASSIS: Escritos e biografia de São Francisco de Assis, Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 9ªed. Petrópolis: Vozes/FFB, 2000; OS 19 unicamente por begnidade aprouve recordar-se de mim e de muitos, depois que ele chegou à Espanha, opôs-se frontalmente a ele ...” para em seguida mencionar “voltando ele a Santa Maria da Porciúncula, não muito tempo depois, alguns homens letrados e alguns nobres se juntaram a ele com muita satisfação31”. É um texto que requer um certo cuidado, sobretudo tendo em vista que sua elaboração atende aos apelos de divulgação da Igreja Católica sobre um personagem santificado32, e mais, trazia um forte componente religiosos para a Igreja que no século XIII continua a enfrentar a concorrência dos movimentos heréticos. Além do que sua elaboração insere-se, nas perspectivas comuns do período medieval, referentes à sobreposição do carater religioso salvífico sobre a natureza humana, verificado em vários escritos de santos da Idade Média. É também uma vinculação à Igreja e à ordem na qual pertencera, bem como o modelo da cópia não o difere de outras hagiografias/biográfias33, compostas na Idade Média, nem mesmo de religiosos monásticos, como foi o caso de Bernardo de Claraval. Seu feitio, mesmo que incertamente, traz noções da vida comum a outros santo e segue uma linha cronólogica relativa à vida de Francisco. No entanto, a Primeira Vida também atende às ligações de Tomás de Celano com o Cardeal Hugolino, bem como com Frei Elias, superior da Ordem no momento em que ESCRITOS DE SANTA CLARA. Trad. Frei Geraldo Van Buul, Ofm, Frei Serafim Lunter, ofm. 2 ed. Petrópolis: Vozes/CEFEPAL, 1984, 11-13. 31 CELANO, T. 1Cel. 56-57,. IN: SÃO FRANCISCO, op. cit. p. 236 32 Conceito que requer um certo cuidado, uma vez que no período em que analisamos, o mesmo é atribuído àquele que, tendo renunciado ao mundo, vivia mais na imitação de Cristo, diferentemente do que ocorria nas antigas atribuições. Cf. VOUCHEZ, A. O Santo. IN: LE GOFF, J. et al. O Homem Medieval. Trad. Maria J. V. de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p.219-220. 33 Talvez o maior exemplo de valorização da vida de santos na Idade Média e de divulgação a um grande público seja a confecção do pregador dominicano Jacopo de Vorazze no século XIII, A Legenda Áurea. Segundo Sofia Boesch Gajano, a “história da santidade é sempre, ao mesmo tempo, uma história de inovações e tendências permanentes à conservação, como provam, por um lado, a duração dos cultos e da patronagem das igrejas, e, por outro lado, a presença persistente dos martírios e das vidas de santos antigos até em obras novas pela forma e pela finalidade.” Cf. GAJANO, S. B. Santidade. IN:LE GOFF, J. & SCHMITT, J C. 20 escreve a Primeira Vida. Para com Frei Elias, Tomás demonstra ter uma obediência irrestrita. Outro dado que eleva a valorização do trabalho de Celano é sua ligação com Santa Clara. Não há, em nenhum pesquisador que consultamos, nenhuma menção de que Tomás de Celano tenha recibido da parte daquela que era a pequena flor de Francisco alguma crítica sobre o que escreveu. Isto posto, perguntamos, teria sido Tomás de Celano, biógrafo ou mistificador de Francisco? Problemas que procuramos responder durante o desenvolvimento desta pesquisa. Porém, uma primeira menção é que os escritos de Tomás de Celano em relação a Francisco nos deixaram a possibilidade de acompanhar a transformação de um Francisco homem, num religioso, místico, eremita; num fraternal irmão menor, despojado, pobre, obediente e, sobretudo, num divulgador da humildada, da caridade para os homens. Se pouco “histórico” como mencionam as fontes franciscanas, o 1Cel é acima de tudo um relato primordial para qualquer historiador que deseja analisar a figura de Francisco.... Não menos importante, citamos aqui um texto que, segundo as fontes, foi a base de Francisco na produção da RB. Anterior, a Regra Não Bulada (RNB) centra-se numa posição mais livre de Francisco no tocante às interferencias verificadas na RB. Sua produção, conforme tratam os pesquisadores, revela um texto de grande elaboração e sobre o qual existem muitas controvérsias. Primeiro, porque a sua própria existência é discutida, uma vez que o original foi perdido pelo então geral da ordem, Frei Elias. Segundo, porque depois da aprovação oral dada por Inocêncio III (1161-1216) em 1209 ou 1210 da primitiva forma de vida dos franciscanos, houve a necessidade de ser acrescidas novas diretrizes Dicionário Temático do Ocidente Medieval. 1999, Trad. Eliana Magnani. Coordenação Trad. Hilário Franco Jr. 2 Vol. Bauru: Edusc; São Paulo: Imprensa oficial do Estado, 2002, vol 2, p.461. 21 religiosas, visto que o grupo estava aumentado consideravelmente34, e as antigas normas não mais atendiam os caminhos que percorriam os frades. Outro dado referente à existência da RNB é confirmado pela adaptação que Francisco fazia das discussões capítulares35 no período de Pentecostes. Por fim, um outro dado nos permite afirmar, como fizemos há pouco, sobre a existência desses fragmentos chamado RNB. Nestes casos é so recorrer aos escritos do período, como os de Jacques de Vitry, bispo de Acre e contemporâneo de Francisco, que, na eminência de rumar para as cruzadas no Oriente, assim se refere aos frades na carta que escreve em 1216 de Gênova ao prelados de então. “Uma vez por ano, os homens desta Ordem se encontram num lugar combinado para se alegrar no Senhor e comer juntos: [...] Valendo-se do auxílio de conselheiros corretos e virtuosos, redigem, promulgam e levam à aprovação do Senhor Papa santas intituições; [...]36”. Na mesma correspondência, refere-se mais uma vez à questão: "uma ou duas vezes por ano, e em lugar deteminiado reúnem-se para a celebração de seu capítulo geral [...]"37. Mas e o termo Regra Não-Bulada? Regra, porque se trata de uma norma, de uma constituição com regras estabelecidas, e não-bulada, porque não conta com a sanção papal. Documento que nos permitirá acompanhar tanto em Francisco como em seus seguidores o sentido de despojamento. Os capítulos internos constam da seguinte maneira. No primeiro, optamos por trabalhar a analise etimológica do termo despojamento, sobretudo as definições dos 34 DIRETÓRIO DA REGRA DE SÃO FRANCISCO. Editado, como manuscrito, pelos Franciscanos da Alemanha. Trad. Pe. Valdomiro Pires Martins. Petrópolis/RJ: Vozes, 1958, p. 36-37. 35 A informação aqui, diz respeito aos Capítulos Gerais realizados pelos frades no período de pentecostes. 36 VITRY, J. Testemunhos não-franciscanos do século XIII. IN: SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Trad. Orlando dos Reis. 9ª Ed. Petrópolis/RJ: Vozes/FFB. 2000, 1033. 37 Idem, ibidem, p. 1033. 22 dicionários que analisam verbetes medievais, procurando caracterizar as mudanças no período de Bernardo e Francisco. Nesta análise, o termo despojamento apresenta-se com acréscimos do período de Bernardo para o de Francisco. Em Bernardo, centra-se no despoliat-nudat, já com Francisco, agrega-se os pauperes-evangelici. Utilizamos, para este fim, as definições do conceito de despojamento apresentadas pelo Glossarium Mediae Et Infimae, de Domino Du Cange de 1678 que, conjuntamente com outros documentos e dicionários, possibilitou-nos a compreensão da aplicabilidade deste conceito no medievo. Nesse primeiro momento começamos analisando,com algumas limitações, quais seriam as aplicabilidades do conceito despojamento encontrados nos escritos de Bernardo e de Francisco. Referências ora num lugar, ora em outro, o conceito foi associado às suas variáveis como as menções na recusa das alegorias, dos enfeites, das posses materiais e espirituais, da vontade pessoal. Num segundo momento, optamos por analisar o despojamento corporal nos escritos e na vida dos dois religiosos. Tendo visto o termo, sua aplicabilidade, a problemática seguinte, do capítulo dois, diz respeito às diferenças espaço-temporal em que viveram Bernardo de Claraval e Francisco de Assis. É o período de suas escolhas e que dividimos em dois momentos. a) O primeiro diz respeito ao modo de vida: Bernardo, filho de um cavaleiro da Borgonha, pertencente ao grupo dos feudatários franceses, opta por fazer-se monge, escolhendo uma vida monástica despojada, destoante dos modelos de então. Sua escolha recai sobre Cister, mosteiro de vida beneditina, fundado nos arredores da Borgonha no século XI e da qual tornar-se-á um dos grandes propagadores. Francisco, por sua vez, era filho de um rico comerciante/mercador de tecidos da península itálica, que, num processo de conversão diferenciado para os modelos de seu período, opta por fazer-se menor, não se 23 encaixando nos modelos de vida religiosa até então constituídos, instituindo para si uma comunidade nova; a de irmãos despojados, pobres e sem moradia. b) O Segundo momento diz respeito à aplicação, nos escritos, do modo de vida que estabelecem Bernardo e Francisco, instaurando a sua diferenciação com os modelos religiosos, da interação destes com os homens e dos homens com a opção de vida religiosa de Bernardo e Francisco. Aqui há ainda o problema do despojamento corporal visto no outro, diferentemente do que fizemos no primeiro capítulo, pois agora o corpo não é mais o do monge ou do frade, mas do contato do religioso com o corpo do outro, sobretudo com o corpo da mulher. É o de se verificar a superação do desejo, da tentação, de despojar-se da vontade numa vertente religiosa e medieval dentro do contexto em que estão inseridos Bernardo e Francisco. No capítulo três, optamos por trabalhar a religiosidade nas regiões de Bernardo e Francisco e sua interferência no modo de vida e no desenvolvimento de suas respectivas comunidades. Será mostrado sobretudo que, na região da Borgonha, a vida religiosa era regida e seguia em torno dos mosteiros beneditinos, quer cluniacenses ou cistercienses, a interferência de Bernardo em 1115, e sua expansão posterior, para além da fronteira borgonhesa. Seu contraponto será a ordem surgida nos arredores de Assis, na península itálica, que não aceita mais o modelo monástico e que tem que trabalhar com o homem da cidade Trata-se da busca por uma religiosidade que não fosse a monástica, desgastada pelas ingerências cluniacenses e cistercienses depois da morte dos grandes e tinham que trabalhar com as cidades e as universidades que atraiam mais os jovens, e que começava a distanciar sua formação daquilo que definia a Igreja. É o momento das universidades de Bolonha (direito secular) versus Paris (teologia e direito canônico). 24 Francisco é um jovem que participa das divergências de seu tempo. A luta pelo poder entre o Papa e o Imperador, e sua tomada de posição com o primeiro, o leva a ficar prisioneiro em Perúgia. Vê-se com isto que vida religiosa seguia os destinos de Roma nesta região. Diante de sua opção, Francisco se modifica, se transforma e admoesta os homens, tendo ainda que se afastar das vozes discordantes que ressoavam alto e incomodavam a Igreja Romana, sobretudo, os heréticos catarenses. Seu modelo de vida religioso conta com a aceitação da Igreja. Pode-se dizer que Francisco busca a defesa do modelo cristão sobre os movimentos heréticos, que assolavam tanto a Europa, sem ser como foi a ordem de São Domingos (1170-1221) perseguidora de heréticos. No quarto capítulo, trabalharemos as implicações religiosas dos personagens frente às suas respectivas comunidades. Aqui, o problema com Bernardo, centra-se no monge que busca o claustro, e do monge que intervem na Ordem dos outros. No monge que se utiliza da ortodoxia, exortando os homens a tomarem o caminho do claustro para encontrarem a salvação. Já com Francisco é a discussão da constituição da ordem dos Frades Menores, observando a intenção versus a constituição, os problemas e controvérsias da criação da ordem e como Francisco lidou com essa realidade. Indicações à parte, nossa problemática seguiu sempre de perto a discussão do despojamento como problema que propusemos para Bernardo e Francisco. Assim, delimitamos o conceito, as análises e conclusões. No entanto, devemos ressaltar que deixamos de lado algumas possibilidades de trabalho com os escritos de Bernardo e Francisco. Possibilidades que se encontram mencionadas na conclusão deste trabalho e para as quais há sempre como se voltar numa nova pesquisa. Sobretudo, porque, para a sua análise se faz necessária uma maior disponibilidade de tempo e de amadurecimento, coisas que não possuímos no momento. 25 I-- CAPÍTULO: 1 - O Despojar-se: A Historicidade do Conceito. “Se não acudi, como me mandaste, não foi por preguiça, sim por causa de algo importante. Deixando de lado a reverência devida a vós e a toda pessoa honrada, me tenho proposto não sair jamais do monastério senão por razões muito precisas1”. “‘Bem-aventurado o servo’ que não se envaidece com o bem que o Senhor diz e opera por meio dele mais do que com o que o Senhor diz e opera por meio de outrem. Peca o homem que exige do seu semelhante mais do que ele mesmo diria de si ao Senhor seu Deus2”. Partimos, para nossa análise, de uma definição apresentada por Jacques Le Goff, na qual o sentido das palavras torna-se fundamental para se compreender as variações de uma sociedade, pois "a história das palavras pertence à história sem mais qualificativos. O desaparecimento e aparecimento de termos, a evolução e as transformações semânticas do vocabulário fazem parte do próprio movimento da história3”. Toda variação representa um dinamismo dentro de sua sociedade, seja esta de agregação, ou de limitação da própria palavra. Com o conceito despojamento, definido aqui como nosso objeto, as variações no decorrer dos séculos XII-XIII expressam agregações e novas interpretações, sobretudo nos movimentos religiosos a que pertenceram Bernardo de Claraval e Francisco de Assis. Variações que não se restringiram somente às questões religiosas, mas eram expressões 1 BERNARDO, C. EpB. 17, In: SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Obras Completas de San Bernardo. 8 Volumes. Edicion Bilingüe (Latim-Espanhol), Edicion Prepara por Los monjes cistercienses de España. Introducción por Iñaki Aranguren. Traducción por Iñaki Araguren y Mariano Ballano. Madrid: BAC. Tomo VII- Volume 1, 1990, p. 151 – Epístola direcionada a Pedro, Cardeal Diácono em resposta a solicitação deste para que Bernardo escrevesse novas correspondências e que estivesse presente nas várias localidades como representante da Igreja nas questões de fé. 2 SÃO FRANCISCO DE ASSIS, Admoestações 17. IN: SÃO FRANCISCO DE ASSIS SÃO FRANCISCO DE ASSIS. Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Seleção e Organização de Ildefonso Silveira e Orlando dos Reis. Tradução. Orlando Reis (et all) . 9ª Ed. Petrópolis/RJ: Vozes/FFB. 2000.p. 67. 3 LE GOFF, J. A História Nova. IN: LE GOFF, J.; CHARTIER, R; REVEL, J. A História Nova, 1978. Tradução Eduardo Brandão. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 25. 26 correntes na sociedade dos séculos XII e XIII, bem como dos posteriores. No entanto, devemos mencionar tratar-se de uma sociedade de homens que viviam sob a égide da Igreja, que os dividia em Ordens4, possuindo a ordem eclesiástica dos oratores a chefia da Igreja, contando em seu seio com a parcela mais abastada da sociedade, restando aos bellatores e laboratores a tarefa de lutar para conseguir a sua própria participação nos assuntos eclesiásticos e mesmo nos seculares. Assim, despojar-se nos séculos XII e XIII era muito mais do que se fazer pobre. Era, sobretudo, fazer-se obediente, humilde, fraterno, menor, e mesmo submisso. Como menciona Francisco de Assis aos seus seguidores no século XIII: “E éramos iletrados e submissos a todos [...] e embora eu seja simples [...]5”, fazia-se de menor diante dos outros, despojando-se de sua condição, para melhor glorificação de Deus. Nesta perspectiva, buscar na medievalidade o sentido da palavra despojamento, requer que a compreendamos nas definições gerais. Palavra derivada, conforme os dicionários especializados, do greco-latino definindo-se por: Despoliare, Despouiller, Spoliare, Despoliat, Despoliatio6. Dessa primeira grafia, para as evoluções semânticas das novas línguas, principalmente, as que surgiram do entrecruzamento da romana com as línguas bárbaras, o radical permanece o mesmo. No entanto, encontramos diferenças de grafia entre as de origem latina das que mesclam com a origem celta. Para as primeiras, 4 Segundo a definição de Georges Duby, a sociedade medieval nos tempos de Bernardo se dividia em oratores, bellatores e laboratores, cabendo aos primeiros a direção da sociedade. DUBY. G. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. 1978. Trad. Maria Helena Costa Dias. Edição Portuguesa 1982. Lisboa: Editorial Estampa. 1982. 5 SÃO FRANCISCO DE ASSIS, op., cit. , TestP., p. 189-190. 6 DU CANGE, DOMINO, Glossarium Mediae Et Infimae Latinitatis, Graz, Áustria: Akademischen Druck - u.Verlagsanstalt. Tomo II, Edição de 1678, republicada em 1954, p. 82; ENCLICLOPÉDIA UNIVERSAL ILUSTRADA-EUROPEO-AMERICANA, Etimologías- Sánscrito, Hebreo, Griego, Latín, Árabe, Lenguas Indígenas Americanas, etc. Madrid: Espasa-Calpe, Tomo XVIII - Primeira Parte, 1968, p. 612. Em outros dicionários, que trabalham com termos medievais por nós consultados, o sentido vem referido ao apresentado no Dicionário Du Cange, op. cit. . Assim, optamos por ficar com esta versão e, nas próximas citações, deveremos pautar-nos, salvo exceção, por este dicionário. 27 encontramos: Depouiller, Spolier, Spogliare, Despojar, Despullar, e nas segundas, a estrutura define-se por: to Spoil, to Despoil7. Se, nos primeiros tempos, tal termo possuía a sua aplicabilidade, este pouco sofreu no surgimento das línguas vernáculas. O radical semântico permaneceu inalterado. Na nossa verificação, o que altera é a aquisição de novos sentidos: espoliar, privar da posse, desapossar, privar, despir-se, ou, privar a alguém do que gosta e tem, despojar-se dele com violência, além de usurpação, pilhagem e roubo. Termos que apresentam diferentes aplicabilidades na sociedade dos séculos XII e XIII e que podemos analisar em dois sentidos diferentes. O primeiro no sentido jurídico (caso de despojar alguém de seus bens durante uma contenda, ou uma guerra) e o segundo, na Igreja, religioso e eclesial, na constituição de um "grau", ou no sentido de elevação espiritual. Na primeira referência, o termo despojamento surge com sentido de quitar juridicamente a possessão dos bens ou habitação que um tem, para dar ao seu legítimo dono, precedendo de uma sentença para isto. É possível vê-lo aplicado ainda como despojar os feridos, mortos e prisioneiros de uma guerra, ficando neste caso condicionado ao que estabelece o direito jurídico dos povos.8 Fatores que pouco nos interessam nesta pesquisa. No segundo caso, o eclesial, as primeiras referências foram empregadas à vida dos Santos9, definindo-se, nestes casos, pela valorização da experiência religiosa frente à 7ENCLICLOPÉDIA UNIVERSAL -EUROPEO-AMERICANA, Etimologías- Sánscrito, Hebreo, Griego, Latín, Árabe, Lenguas Indígenas Americanas, et op. cit. p. 612 . 8 Idem, p. 612-613. 9 Não estamos aqui ainda definindo Bernardo de Claraval e Francisco de Assis como santos. Estamos usando as denominações encontradas que demonstram que a utilização das palavras devem-se à valorização de homens que conseguiram elevar-se diante dos outros, chegando a constar como santos. Por enquanto, para Bernardo e Francisco, preferimos tratá-los como homens religiosos, pois trabalhamos com os escritos de 28 permanência de posses. É o caso das Vitas de S. Altamanni Episcopi Pataviensis, S. Gregorium VII, Gelasius I, para além desses, encontramos referências com relação à vida dos padres do deserto. No nosso caso, a expressão ocorre em Bernardo de Claraval (Bernardus de Claravalle) e, posteriormente, com acréscimos, em Francisco de Assis (Francisci di Assii), citados pelos dicionários. Na primeira referência, a questão material é refutada pela espiritual. Vemos assim dois momentos distintos para Bernardo de Claraval e Francisco de Assis. Bernardo, segundo os biógrafos, deixa a casa paterna e condiciona o seu irmão a administrar tudo pelo zelo do pai. É o aristocrata que, renunciando, deixa a sua família nuclear para estar com a família monástica. Já em Francisco de Assis, a renúncia segue de perto a família nuclear, mas não vem seguida por uma família monástica. Não diz que deve permanecer com eles, pelo contrário, propõe a divisão, escolhe ficar nú para seguir ao Cristo Nú. Estas características não eram exclusivas da Idade Média, ou dos homens de seu período. Eram, sobretudo, definição ou determinação bíblica. Faziam parte da opção dos homens que escolhiam a eclésia em vez da vida profana. Segundo os Evangelistas, Jesus Cristo, ao convidar os seus primeiros seguidores, indicou-lhes que deixassem todos os seus bens e O seguissem. Que se despojassem pelo outro. Citações verificadas em: Mt. 4,18-22; Mc. 1,16-20; Lc. 5,1-11; ou ainda em Lc. 10,25-37, ou ainda na parábola do Bom Samaritano, quando encontramos o conceito despojamento. “Um homem descia de Jerusalém a Jericó e caiu nas mãos de ladrões que o despojaram [...]”. Aqui o sentido, Bernardo e de Francisco, que foram alcançando a santidade aos poucos, que se despojaram de suas vertentes, recusaram as glorias terrenas e, em muitos casos, chegaram a estar entre os santos, ainda em vida. As obras sobre Francisco são discutíveis, pois as biografias que veremos mais à frente têm caráter de santidade, porém aquelas a ele atribuídas são um tanto quanto exortativas. 29 além de eclesial, é também jurídico, porque o homem perde pelo roubo e não há um despojar-se voluntário. Trata-se também do homem que é expropriado no seu direito. Contudo, o termo, ainda no contexto eclesiástico, não se restringe somente à utilização na Vida dos santos, engloba decisões administrativas, de fé, pois aparece nas definições canônicas e conciliares, cujo sentido permanece inalterado. São as denominações empregadas no primeiro sentido que nos interessam nesta pesquisa, sobretudo, porque serão estas conotações que encontramos em Bernardo de Claraval e Francisco de Assis. Mas, despojar-se, na compreensão dos homens religiosos dos séculos XII e XIII, ia além da questão material. Para os homens religiosos e seguidores do exemplo evangélico, despojar incluía, também, o despojar-se da carne, na esperança de uma compensação em algo transcendental, de estar espiritualmente em contanto com Deus. Mas o que é despojamento carnal e espiritual? O que difere Carne de Espírito? O despojamento carnal refere-se ao desprezo pelo corpo, pela família, pelas coisas materiais que os prendiam numa existência terrena, dificultando, segundo seus argumentos, de se unirem a Deus. Mas estes também, unem-se ao espiritual, o qual está na discussão entre união de carne e espírito10. Sobretudo, há uma preocupação em não se valorizar 10 “São Paulo (em Tes. 5,23; 1 Cor 15,24) compreende o homem integral dotado de três elementos: O Espírito-Penuma que é a parte reservada para a imortalidade; a Alma/Psykhe, que anima o corpo; O Corpo/Soma, a parte que desaparecerá. Já Isidoro de Sevilha, com base em Jo. 10,18, estabelece que o espírito é igual a Alma (XI, 1,19). A alma (pnuema/spiritus) é apenas o principio da geração para o conjunto dos seres animados; em seu principio espiritual, é o pensamento humano (XI, 1,11-12). O corpo liga-se a carne sem, contudo, confundir-se com ela, pois a carne ‘tem vida enquanto vive o corpo’ (XI, 1,17). Como mundo, a carne constitui-se pelos 4 elementos (...) O homem, enquanto humano, dota-se do dualismo corpo/carne, cognoscível, e alma/inteligência que o torna imago Dei. (...) É o que vemos, o que apalpamos, o que mais ou menos chegamos a conhecer, pelo que é rejeitado. E não apenas por isso, mas também por sua transitoriedade, por ser a parte que irá desaparecer. No conjunto corpo/alma, o elemento integrador são os sentidos, que servem para governar o corpo (XI, 1,19). Tais sentidos nada mais são do que projeção da alma, enganando-se quem ‘por princípio não lhes dá fé’ (De Civitate Dei XIX, 18). Desta forma, a imagem do mundo (céu e terra), o homem possui corpo e alma. Tal como as esferas do mundo (celeste, terrestre e infernal), são 3 esferas humanas: inteligência, corpo e carne. ANDRADE FILHO. R. O. A respeito dos homens e dos seres prodigiosos: Uma utopia do homem e de sua existência na obra de Santo Isidoro de Sevilha (Etimologias, Livro XI), IN: Revista de História USP. Dossiê Nova História. São Paulo: USP. ANO 23, 1994, p. 78. 30 demais o espírito, para que, assim, o homem religioso não perca de vista sua busca em Deus. Por outro lado, o despojar espiritual refere-se à ascese, que os transformam, porque o modelo é baseado na vida de Cristo. Modelo que os levava a aceitar de bom grado as privações (quer seja material, carnal ou espiritual) em nome de Deus. Eram homens que tudo faziam para agradar a Deus; portanto, cumpridores dos preceitos por Ele determinados, recusavam todas as vantagens adquiridas na existência terrena, preparando- se espiritualmente e vivendo uma nova experiência religiosa. Despojamento carnal, material e espiritual são os focos desta discussão.Contudo, num primeiro momento, analisemos a aplicabilidade do conceito despojamento. Em busca de melhor circunscrição medieval para o termo, o Glossarium Mediae Et Infimae, de Domino Du Cange, nos apresenta a seguinte definição em S. Fulgentius, Ep. 3,: "Virgo, quae ornatum corporeae vestis affectat, animam suam virtutum splendore Despoliat"11. (A virgem que ambiciona o enfeite dos trajes corporais priva12 sua alma das virtudes com esplendor). O contexto aqui é o da privação, despoliat - privar-se. A referência expressa algo exterior, mas no sentido literal expressa algo interior. É interior e exterior, ou seja, ornamentos para o corpo e virtudes para a alma. É o desprezo do mundano pelo espiritual. Nestes casos, pede-se a mortificação do corpo para numa gradação de mortificação, chegar à morada eterna. Mortificação que farão Bernardo de Claraval e 11 DU CANGE, , Glossarium Mediae Et Infimae Latinitatis, op. cit., p. 82. 12 Grifo Nosso. 31 Francisco de Assis. Para tanto, recusar-se-ão os enfeites, jejuaram para não dar ao corpo os prazeres carnais e desta forma não deixar perder a alma13. O corpo, neste caso, aparece como prisão para a alma. Há uma separação entre o corpo (matéria) da Alma (princípio da vida). Pela tradição Bíblica, o corpo recebe o Espírito no sopro da vida; “O senhor Deus formou o homem do pó da Terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo”. (Gn. 2,7). Por esta criação o homem recebe o Espírito e tem a mortalidade do corpo e não da alma. São Tomás de Aquino, chama em 1312 no Concílio de Viena a alma de “forma do corpo”; forma corporis humani per se et essentialiter”. Assim, a alma é imortal, ao contrário do corpo que é mortal14. Já Ferrater Mora, no Dicionário das Religiões, nos dirá que “a alma é o sopro divino que anima o corpo, a força propulsora de todas as atividades vitais, a sua saída do corpo resulta em morte”; e continua mais à frente: “A alma vem de Deus, não é uma emanação ou uma parte dele, é uma criação especial e única”. Argumentação que encontramos concluída da seguinte maneira: diferente do corpo padecível, a alma vive a esperança de uma transcendência até Deus. Feita por ele, pode também ser destruída; porém é preservada para a glória de seu criador15. Morada de Deus, mas também morada do demônio, o corpo era constituído, para a maioria dos homens místicos, tanto da Antigüidade, como na época de Bernardo e Francisco, com uma certa ambigüidade. Ser pecador era caracterizado como sendo demoníaco, sendo desprezado, impondo-se-lhe um constante sofrimento, através de ascese 13 SCHMITT, J. C. Corpo e Alma. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval. Trad. Capítulo de José Carlos Estevão. Coord. Trad. Hilário Franco Jr. Bauru/sp; São Paulo: Edusc; Imprensa Oficial. 2002, p 261. 14 SCHLESINGER, H & PORTO, H. Dicionário Enciclopédico das Religiões. Petrópolis: Vozes, Volume - I e II, 1995, p. 129. 15 MORA, J. F. Diccionario de Filosofia. Buenos Aires: Sudamericana, 1958, p. 57-60. 32 espiritual, jejum constante e vigília contra os maus pensamentos16. Desprezam-se os prazeres e as companhias, principalmente das mulheres, cujo corpo é visto com repulsa, abominação e “o lugar de eleição do Diabo17”. Mas, se morada de Deus, deve ser valorizado. Contudo, necessita ser justificado, para que não distraia o espírito na sua busca pela Parúsia. O corpo constituído pela matéria difere do espírito, pois este é aquele que, estando em contato com Deus, pode desprender-se do corpo, para, neste estado, elevar-se até Deus. 1.1- Do conceito para a práxis: O exemplo de Bernardo de Claraval. Gladius Petri defendat patrimonium Petri18. Nossa referência para o conceito de despojamento em Bernardo de Claraval advém da compreensão desenvolvida para o termo pelo dicionário de Domino Du Cange, sobretudo nos verbetes do período em que encontramos grafados como Despoliat, nudat. "Et observant quasi in simplicitate ambulantes, quem Dispolient". (E observam como na simplicidade dos ambulantes, a quem despojavam)19”. Agregação nova, o nudat, incorporado nos séculos centrais da Idade Média, traz a idéia do abandonar as coisas 16 Doreteo, um antigo padre do deserto, respondendo a um de seus discípulos sobre o constante jejum, diz sobre o seu corpo. "Ele me mata, e eu o mato". Ascetismo que é encontrado em vários padres do deserto e que encontramos também em Bernardo e Francisco. Cf. COLOMBAS, G. M. OSB. El Monacato Primitivo. La Espiritualidad. Madrid: La Editorial Catolica/ BAC, 1975, p. 175. 17 LE GOFF, J. O Imaginário Medieval. 1985. Tradução Portuguesa de Manuel Ruas. 2ª Ed.; Lisboa: Editoral Estampa, 1994, p. 146. 18 Que a espada de Pedro defenda o patrimônio de Pedro. Cf. BERNARDO DE CLARAVAL, EpB. 286, op., cit., p. 887. 19 DU CANGE,, Glossarium Mediae Et Infimae Latinitatis, op. cit. p. 82. 33 materiais, do desnudar-se, mas é, também, uma agregação que diferenciará o letrado que se faz submisso. Bernardo faz uso da terminologia despoliat, nudat, sobretudo na introdução de suas Epístolas, procurando transmitir uma mensagem de simplicidade, de fazer-se menor, servos dos outros, pecador, pouco que vale, um pecador que fala com seu senhor, pobres irmãos em Cristo, servo inútil dos servos de Deus. “O irmão Bernardo, servo inútil dos monges que estão em Claraval [...]20”; ainda “O irmão Bernardo, pecador, ao jovem de boas inclinações Fulco, [...]”. Nesta Epístola, a de número 02, Bernardo continua: “[...] que não chocasse este meu atrevimento para escrever, sendo um homem tão rústico e monge, a um como você, escolástico e da cidade. [...] Se despoja do homem velho e se reveste do novo, e já que só havia sido canônico de nome, agora, atesta-o com sua vida e costumes21”. Na Ep. 266 de 1150, escrita para Suger, Abade de São Dionísio, Bernardo dirá: “Homem de Deus, não temas despojar-te desse homem que tem sua origem na terra, que te inclina a terra e intenta sepultar-te nos infernos22”. Ora, neste pequeno trecho, vemos o abade discutir a questão da renúncia em prol do trabalho religioso, mas é, sobretudo, a visão de um eclesiástico que defende o abandono das coisas mundanas pelas coisas de Deus, respeitando os preceitos da Igreja. Nesta busca pelo abandono, Bernardo faz suas Epístolas circularem por vários lugares do Ocidente e do Oriente Próximo. Por isso, o sentido de despojamento, despoliat, nudat no abade, não pode se entendido somente no contexto monacal, daqueles que 20 Introdução feita por Bernardo na Apologia. Geralmente, era assim que o Abade iniciava as suas correspondências. Cf. BERNARDO, Apologia, op. cit. p. 825. 21 Veterem hominem exiutur et novum induitur, quodque solo nomine exstiterat, moribus, vita canonicum profitetur. Cf. BERNARDO, Ep.B. 02, op. cit. p. 65. Esta Epístola descreve a preocupação de Bernardo com a administração da Igreja de Langres. Igreja em que Fulco era o responsável, mas que a abandonou, conforme veremos no subitem mais à frente. 22 BERNARDO DE CLARAVAL. Ep.B. 266, op. cit. Vol 2, p. 849. 34 ficavam fechados em um claustro23. Aliás, Bernardo escreve vários de seus textos para os homens que estão fora do claustro. Na, Ep.B n. 354, direcionada a Rainha de Jerusalém, Melisandra, filha do rei Balduino II, e esposa de Fulco, rei a partir de 1143, Bernardo escreve como conselheiro político sobre a administração de um reino. É um escrito também de submissão da rainha ao reino. “Se considerar unicamente a ti a glória do teu reino, teu poder e tua nobre estirpe, me pareceria impróprio escrever a quem vive imersa nas múltiplas preocupações e assuntos da corte real. Isto é, o que parece aos olhos humanos, e aos que carecem deles, invejam aos que o têm e crêem felizes aos que o possuem. [...] São bens, mas efêmeros, instáveis, passageiros e caducos, porque são bens da carne. E da carne e de seus bens disse a Escritura: ‘toda carne é erva e sua beleza como flor campestre’ [...] Por isso não convém a que quem te escreve apreciar estes bens, cuja graça é enganosa e fugaz a formosura. [...] Depois de falecer teu marido, o rei e, enquanto o seu filho herdeiro não seja capaz de tomar em suas mãos os assuntos do reino e desempenhar as funções reais, os olhos de todos se voltam a ti e unicamente em ti repousa o peso íntegro do reino. É preciso que atue com valor e debaixo das aparências de mulher manifesta-te muito varonil, realizando tudo o que seja necessário com Espírito de sabedoria e fortaleza24”. Problemas além das fronteiras do Ocidente, a Epístola a Melisandra deixa clara a preocupação do Abade de Claraval com o despojamento em favor de algo “a administração de um reino”; mais ainda da boa condução, segundo os preceitos cristãos. Como prerrogativa da Epístola acima, Bernardo escreve-lhe outra. Na Ep. 355, age como autoridade e solicita a proteção da rainha para uns monges peregrinos premonstratenses que se aventuravam por terras desconhecidas. Nesta, indica a mesma que acolha esses monges, pois são “guerreiros de paz, mansos com os homens e terríveis para os demônios”. A luta travada por posição é aqui demonstrada na luta da carne, versus o 23 No sub-item religiosidade, procuraremos discutir o sentido de claustro para os monges do século XII, sobretudo porque esta compreensão define a vocação do monge, ou seja, aquele que se fecha para fora e se abre para Deus, circulado por um muro de pedras. 24 BERNARDO,. Ep.B 354, op. cit p. 1024/0125. 35 espírito maligno. O Diabo agia no meio dos homens e para eliminá-lo, o corpo, sua morada, deveria padecer. Percebe-se também que o Abade estava preocupado com os problemas políticos, sobretudo o enfrentamento dos cruzados. Sabemos que Bernardo apóia este tipo de procedimento, a luta pela espada, por ter sido ele (Bernardo) a pregar a Segunda Cruzada em nome da Igreja de Roma e, mais, a institucionalizar a Ordem monástica-militar dos Templários. Fatores que veremos mais à frente. Há no período de Bernardo um ritual de adubamento dos cavaleiros, instituindo assim a Ordo Militum25. Adubamento feito entre os homens, mas feito, sobretudo, com o aval e sob a tutela da Igreja. Portanto, o que institui Bernardo de Claraval não é mais do que uma regulamentação que já existia na Igreja. Para o Abade, os monges não desafiavam o poder, visto que, escreve: “Se hão portado as armas de Deus e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus, não para lutar contra os homens de carne e osso, sim contra as forças espirituais do mal26”; não era o poder instituído que estes combateriam, mas as possessões demoníacas. Voltando-nos para a idéia de despojamento no Abade de Claraval, encontramos a menção do “humilhar-se” pelo outro. No entanto, esse se humilhar é uma reconstrução do ideal evangélico proposto por Bernardo. Já na Epístola 01, utiliza-o, mas sua apropriação dar-se-á com o passar dos anos. Outro fator é que, para se humilhar, o Abade se recolhe em seu Claustro e, a partir deste, expande a sua influência. Contudo, não nos apressemos, pois mesmo a renúncia do Abade é um processo de construção, que vem regido por um rigor ascético e pela meditação das coisas celestes. O 25 FLORI, J. Le Chevalerie Chez Chrétien de Troyes. IN: ROMANIA: Revue Trimestrielle Des Langues et des Littératures Romanes. Paris: Scociete des Amis de La Romania. Tome 114, N. 455-456, 1996, p. 290-291. 26Idem, Ep.B. 355, p. 1025. 36 que nos leva a indagar: Há uma renúncia definitiva em Bernardo? Quais os momentos em que podemos dizer que o Abade realmente faz uma renúncia do século pelo Claustro? Podemos argumentar que a renúncia em Bernardo acontece no momento da ruptura familiar, ficando, assim, livre para a experiência religiosa. Bernardo traz uma renúncia definitiva, já no inicio, apesar de seus textos trazerem uma visível modificação do início de sua peregrinação religiosa para o fim. No início, é o jovem que, cheio de si como senhor da razão, coloca-se sobre os outros para, no final, diante da fragilidade corporal em que se encontra, pedir que o poupem e que rezem pela sua fraqueza (física). Seu trabalho apresenta uma evolução que podemos resumir na vigília da Igreja, na conduta dos homens e na defesa dos mais fracos. Sobre estes pontos é possível entender o despojamento do Abade. Se analisarmos pela Ep. 01, escrita provavelmente no ano de 1125, direcionada a Roberto de Castillione, seu parente carnal e que, após entrar no mosteiro dos cistercienses, trocou de Ordem, indo viver com aos monges cluniacenses, veremos o Abade exortar a este, a não trocar uma Ordem despojada e rústica pela exuberância da outra. A prerrogativa epistolar, proposta pelo Abade, também é a de escrever a um filho espiritual, que abandonou o mosteiro no qual fez os votos, contrariando os preceitos da Regra São Bento27. Regra da qual tanto os monges cistercienses como os cluniacenses faziam parte28. 27 A Regra de São Bento data do fim do século VI, sendo fruto da constituição por Bento de uma comunidade em Monte Cassino, região da península Itálica. Sua comunidade teria subsistido até a invasão bárbara, quando seus monges, fugindo da mesma, teriam levado-a para Roma. Ao chegar nesta região, teria sido compilada pelo papa Gregório I, servindo a partir de então como modelo para todas as Ordens. A regra beneditina não é a primeira regra existente, contudo é simples no modo de vida e seu mérito está no senso comum, privando os monges de acumular, coloca-os como um grupo, onde tudo seria partilhado. Cf. SAN BENITO DE NURSIA, Su Vida Y Su Regla Dir. Dom Garcia M. Colombas, Versiones. Dom Leon M. Sansegundo. Comentários y notas de Dom Odilon M. Cunill. Madrid: La Editorial Catolica/ BAC, 1954, p. 80-158. 28 Há na Regra de São Bento um capítulo, o de n. 61, que trata do recebimento de monges oriundos de outras localidades no mosteiro. Nos v. 13 e14, encontramos: V. 13 “Cuide, porém, o Abade que nunca receba, para ficar, monge de outro mosteiro conhecido, sem o consentimento do respectivo Abade ou carta de 37 Para tanto, Bernardo desfaz-se das prerrogativas de seu cargo e iguala-se ao monge, escreve-lhe: “Pois até agora, eu tenho me sentido frustrado em minha espera, não posso mais ocultar a minha dor, nem reprimir minha ansiedade, nem dissimular minha tristeza. Por isso, inclusive contra todo procedimento jurídico, minha ferida me induz a chamar ao que me tem ferido e a requerer desdenhado ao que me despreza, humilhando-me a satisfazer a ofensa de meu ofensor e a implorar também a quem deveria suplicar-me29”. Humilhar-se, injuriar-se, suplicar e, por fim, implorar são termos que o Abade cita para demonstrar a Roberto, de certa forma, a vinculação entre o sentir e o viver o despojamento no cotidiano do monge. Nestes casos, independe da ordem à qual esteja vinculado. Na seqüência, Bernardo argumenta qual a condição do monge nas duas ordens Cluny e Cister, dizendo-lhe porque deixar aquela que representa mais bem o sentido de “santidade” (Cister), por aquela que o levará à perdição30 (Cluny). No entanto, Bernardo ultrapassa e muito a sua condição de Abade. Aliás, conforme notam vários historiadores, entre os quais citamos Georges Duby, esta Epístola de Bernardo de Claraval chegou perto de criar uma das mais graves contendas envolvendo as Ordens de Recomendação” e no V. 14” porque está escrito: Aquilo que não queres que te seja feito, não o farás a outrem. BENTO DE NÚRSIA, op. cit., p. 295. 29 BERNARDO DE CLARAVAL, Ep.B. 01, op. cit p. 03. 30 Neste momento, existe entre cistercienses e cluniacenses uma disputa em relação ao modo de vida de cada Ordem. Disputa que ocorre muito além das questões morais, sendo também, de ordem universal, pois ultrapassa em muito os limites do claustro, irradiando para a sociedade. Nesta controvérsia, o Abade de Claraval escreverá o tratado denominado Apologia, e que serve de resposta às disputas travadas entre as duas ordens. Para os historiadores e, entre eles citamos o trabalho de David Knowles, podemos dividir a história do monacato ocidental da Idade Média Central em duas frentes: a primeira dos séculos X-XII, com os monges negros de Cluny, a segunda, dos séculos XII-XIII, com os monges brancos de Cister. Sobretudo, porque, ocorre uma separação, se não permanente, pelo menos no início do modo de vida dos cistercienses e dos cluniacenses. KNOWLES, D. El Monacato Cristiano. Madrid: Edições Guadarrrama, 1969, p. 37-81. Em outros trabalhos, vemos o ideal de monasticismo ganhando outras conotações neste período. É o caso do de Giovanni Micolli, com o sub-item “Os aurea saecula” em que o autor discute as transformações neste período; os de Thomas Merton, de igual modo. Cf. bibliografia. Sem contar que do século XII em diante há o surgimento de uma nova categoria de monges: a dos cavaleiros-monges. Nestes, a concepção monacal vai além do que determinavam as regras existentes e por isso o surgimento de uma regra especial, mais ou menos, a mistura da regra de São Bento com os juramentos da cavalaria, que regulamentasse a vida desta experiência. Para quem Bernardo de Claraval compôs um Tratado denominado: A Excelência da nova milícia e, mais tarde, participou da elaboração da Regra. 38 Cluny e Cister. Sobretudo, porque existe na Regra de São Bento, conforme mencionamos, um capítulo que proíbe, sem algumas pré-condições, o recebimento de um monge oriundo de outro mosteiro conhecido. Há, ainda, a proibição da circulação de correspondências entre os mosteiros, com a intenção de exigir, convidar ou mesmo influenciar um monge a deixar a sua casa, para dirigir-se à outra, sem que, para isto, o monge conte com o aval de seu Abade31. No caso específico de Roberto, Bernardo alega que, primeiramente, este fora seu monge e, somente, depois é que se dirigiu para Cluny. “Não me pergunto porque tenhas ido; o que me dói é que não voltas”. Segundo, sua saída é mais pela culpa do pai (o Abade) do que propriamente dos convites feitos pelos monges cluniacenses. “Pois, como disse, vamos reconhecer que a culpa de sua partida é minha. Não nos entretemos em discutir quem perpetrou o delito, porque assim, retardaríamos a emenda. Apesar disso, se não perdoas o arrependimento, se não foras indulgente com o confesso, começaria a recair sobre ti a culpa32”. Se continuarmos por este víeis, encontraremos Bernardo mencionar que, na volta de Roberto, não mais encontraria o antigo Abade de feições ranzinza, controlador e ascético, mas encontraria um novo pai espiritual, mais amoroso e afetuoso para com seus filhos espirituais. Termina o Abade por argumentar que ele, Bernardo, está em um processo de transformação e que, provavelmente, o mesmo estaria também sucedendo com Roberto. Transformação que, ao nosso ver, constrói-se no amadurecimento espiritual por que passou o Abade nas diferentes investidas espirituais a que se expunha. 31Conforme se encontra na Regra de São Bento, o capítulo 54 traz a menção do Abade de Nursia com a troca de correspondências ou de outro contado mantido pelos monges. Para São Bento, estes deveriam ser evitados, ficando a cargo do superior autorizar ou não a entrada de materiais estranhos no mosteiro. Intitulado “se o monge deve receber cartas ou qualquer outra coisa”, o capítulo não apresenta liberdade de decisão nas mãos do monge, mas de seu superior. A partir de seu ingresso na ordem, o monge deveria morrer para o mundo e renascer para Deus. BENTO DE NÚRSIA, A Regra de São Bento., op. cit., p. 259-261. 32 BERNARDO DE CLARAVAL. EpB. 01, op. cit., p. 43. 39 Voltando-nos novamente para a discussão do despojamento na Epístola 01 e a fuga de Roberto para Cluny, o problema acontece, segundo o escrito de Bernardo, pela insistência dos monges cluniacenses em convidar Roberto para que trocasse de ordem. Para Bernardo, o argumento utilizado pelos cluniacenses residia numa antiga promessa feita pelos pais de Roberto, na época em que era menino, destinando-o para o mosteiro cluniacense. Doação esta que deveria ser cumprida na idade ideal, ou seja, quando Roberto tivesse na idade do discernimento ou da adolescência33. Desta forma, segundo eles, Roberto não poderia pertencer aos cistercienses, visto que a doação dos pais antecipava em muito a sua entrada em Cister, sem considerar que os monges cluniacenses contavam com o aval de Roma.Bernardo mesmo diz a Roberto em sua Epístola. “Além do que, intercedem por eles em Roma. Reclamam a autoridade apostólica, e para que o Papa ceda, alegam que de menino foi oferecido ao mosteiro. Não houve quem os desmentisse, porque não se espera a impugnação, e o juízo foi parcial, com manifestado atropelo dos ausentes. [...] A sentença exclusivamente absoluta fica confirmada por um privilégio cruel, que, uma vez conseguido, consolida ao que oscilava [...] No conteúdo dos documentos, a sentença do juiz, a determinação de todo o processo decide que podem retê-lo os que o levaram, devendo calar os que ficaram sem ele e, em conseqüência, se perderá uma alma pelas que morreu Cristo; simplesmente, porque assim anseiam os cluniacenses34”. 33 Havia por parte dos monges cluniacenses a permissão para se receber crianças no mosteiro como forma de torná-los monges. Esta permissão era consentida pela Regra de São Bento, cujo capítulo 37 trata deste assunto: Dos Velhos e das Crianças”, p. 195; e que era apresentado logo depois à comunidade. Para esta, compõe o Abade de Núrsia, dois Capítulos: o 58 da Maneira de preceder a recepção dos irmãos, no qual o abade define o modo como os monges deveriam se portar frente a um noviço e o capítulo 59. É sobre este que acentua a argumentação do Abade de Claraval, pois diz respeito diretamente ao problema tratado por Bernardo, e que diz em seu prólogo: Dos filhos dos nobres ou dos pobres que são oferecidos. Neste capítulo, define-se a doação ao mosteiro, tanto do filho como de bens materiais. E é a esses bens materiais que se apegavam os monges negros. Cf. BENTO NÚRSIA, op. cit., p.273-285. A grande incidência entre os nobres também é apresentado por Lester K. Little como característica dos cluniacenses. Segundo este autor, esse modelo foi durante algum tempo motivo de vangloria entre estes monges. LITTLE, K. L. Monges e Religiosos. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C., op. cit. p. 233; Sabe-se que a força de Cluny no século XI advém pelo recrutamento de jovens nos inícios deste século. Ao descrever o embate entre os cluniacenses e a igrejas Episcopais, George Duby nos diz que esta ordem, frente à derrocada do bispo Adalberão, “atrai os jovens cavaleiros, educa-os, para fazer deles anjos combatentes, lutando contra o diabo, com tanto ardor, quanto os monges, seus irmãos [...} e aos nobres que a ordem Cluniacensis não agarrou bastante jovens na sua rede, atrai-os in extremis no momento do passamento; no leito de morte todos aprendem a desejar vestir o hábito de São Bento. A aristocracia laica precipita-se para Cluny, quer através das crianças, quer oferece oblatos”. DUBY, G. As Três ordens ou imaginário do Feudalismo. op. cit. p. 200. 34 BERNARDO DE CLARAVAL, EpB. 01, op. cit., p. 49. 40 Bernardo discorda desta alegação, pois, para o ele, o que estava em questão não era a escolha de Roberto, mas sim a promessa de doação em espécie, "terras", feitas pelos pais daquele e que o acompanhavam na entrada no mosteiro35. Sua alegação é que este tipo de doação "privou" a Roberto de uma escolha livre, deixando-o preso, não a sua vontade, mas a de seus pais. Para solucionar este tipo de impasse, os monges cistercienses proíbem a entrada de crianças em seus mosteiros. Assim, chegam a recusar doações em espécie feitas por pais que, por ventura, teriam a intenção de doar seus filhos. Instituem a escolha livre pela vida monacal. As argumentações de Bernardo não são somente de caráter diminutivo, ou de subjugado; muito pelo contrário, Bernardo diz lhe que se ele voltar “não o acusaria de desobediência, não o tacharia de apóstata, porque mudou a túnica pela película, os legumes por outros manjares mais suculentos e a pobreza pela riqueza”, e continua o Abade: “Pois eu conheço teu modo de ser, mais propenso a dobrar-se ante o amor que se deixar levar pela coação do temor36”. Para Bernardo, o prior que fora enviado para convencê-lo possuía “características aparentes de ovelha, mas era na realidade um lobo feroz”. Se isto era pouco para trazer Roberto de volta, diz-lhe ainda Bernardo: “Que mais”? diz o Abade “Eles (os monges cluniacenses) o atraem para si; o acariciam, o adulam e, pregando um novo Evangelho, recomendam-o à embriaguez, condenando-no a sobriedade, fazem ver que a 35 O próprio Abade escreve: “Ostenditur deinde terra, quae cum illo et pro illo dicitur” e pergunta o Abade: Sed si cum terra eum receperunt, cur nom et cum terra eum retineurunt? Na forte requrebant magis datum quam fructum, et pluris aestimata est terra quam anima? Alioquin oblatus monastério, qui quaerrebat in saeculo? Nutriendus Deo, cur expositus erat diabolo? Ovis Christi cur patere inventa est morsibus lupi? De saeculo quipped, nom de Cluniaco, te teste Roberto, venisti Cistercium”. Traduzindo, “Referem-se também às terras que, segundo eles, entregaram com ele em seu favor. Mas, se o receberam com as terras, por que não o retiveram com elas? Ou é que valorizavam mais as terras que sua alma? Estava sendo oferecido ao mosteiro, o que buscava no mundo? Por que deixou à disposição do diabo o que devia ser educado para Deus? Por que apareceu a ovelha de Cristo exposta à dentada do lobo? Por que tu eras testemunha, Roberto, que chegaste a Cister não procedente de Cluny, se não do mundo”. cf. BERNARDO DE CLARAVAL, Ep.B;.01. op. cit., p. 50-51 36 Idem. p. 45. 41 pobreza voluntária é uma vida miserável, chamam de loucura o jejum, as vigílias, o silêncio e o trabalho manual”. Para o Abade, os cistercienses se encontravam completamente despojados de todos os luxos, vivendo, deste modo, justamente o oposto dos cluniacenses. Estes demonstravam serem ricos no vestir, utilizando os melhores panos; na comida, contavam com pratos suculentos; dormiam em demasia e, naquilo que deveria representar o despojamento dos monges frente aos homens do século, Bernardo argumenta que se apresenta justamente o oposto, do afastar-se do mundo.(era usado mais como forma de poder do que de submissão). Esquecia-se o Claustro, as funções dos monges, que consistiam em rezar e contemplar a Deus, para atuarem mais como assessores de bispos, papas, reis e imperadores viajando, desta forma, por vários lugares, interferindo na vida secular37. Nestes casos, podemos dizer que: a posição ocupada pelos cluniacenses no momento em que Bernardo escreve é fruto de uma evolução, ou seja, a Ordem de Cluny já estava completamente imbricada na sociedade e, seus Abades, representantes de um grupo, ocupavam as pos