CONSTRUÇÕES PASSIVA E IMPESSOAL: DISTINÇÕES FUNCIONAIS1 Roberto Gomes CAMACHO2 • RESUMO: A caracterização tipológica da passiva, necessariamente escalar e não discreta, envolve, segundo Givón (1981), três domínios funcionais: atribui­ ção de um tópico, impessoalização e detransitivização. O principal interesse deste trabalho é fornecer uma caracterização funcional à diferença morfossin- tática entre as construções passiva e impessoal do português falado. • PALAVRAS-CHAVE: Voz passiva; voz impessoal; topicalização. Introdução De um ponto de vista funcional, as construções de voz exercem uma diversidade de valores semântico-oracionais e pragmático-discursivos, codificados na sintaxe por diferentes tipos de configurações estruturais. Em razão dessa complexidade gramatical, a literatura funcional tem pre­ ferido definir voz como um domínio multifatorial, tendo por base alguma caracterização prototípica a partir da qual outros tipos de construção ganham contorno próprio. A adoção do princípio de que estruturas lin­ güísticas não são isoladas, mas tendem a apresentar similaridades par- 1 Este artigo é uma versão parcial do trabalho Construções de voz, apresentado no X Seminário do Projeto de Gramática do Português Falado, Campos de Jordão, SP, de 8 a 13.2.1998. a ser publicado no volume XIII da Gramática do português falado, em preparação. Como uma forma de homena­ gem, dedico-o ao Prof. Borba, que faz linguistica com engenho e arte, e seriedade, mas sem perder jamais o humor e a camaradagem. 2 Pesquisador do CNPq (Proc. n° 301185/92-1) - Departamento de Teoria Linguistica e Literária - Ins­ tituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - UNESP -15054-000 - São José do Rio Preto - SP - Brasil - camacho8tll.ibilce.unesp.br. Alfa, São Paulo, 44:215-233, 2000 215 http://camacho8tll.ibilce.unesp.br ciais entre si, tem levado lingüistas de diversas tendências a adotar uma visão escalar e não-discreta da linguagem (cf. Hopper & Thomp­ son, 1980; Shibatani, 1985), ponto de vista que também se aplica a este trabalho. Ser um conceito multifatorial significa que a voz verbal representa um grande número de valores e de possibilidades correspondentes de expressão que, segundo Givón (1981, 1994), envolvem três domínios funcionais: a) topicalidade: atribui-se a função de Tópico a um argu­ mento não-Agente; esse comportamento é oposto ao da sentença ativa correspondente, em que o Tópico é comumente o Sujeito/Agente; b) im­ pessoalidade: suprime-se a identidade/presença do argumento Agente, geralmente o Sujeito expresso da sentença ativa; c) detransitividade: a construção de voz é semanticamente menos "ativa", menos transitiva, mais estativa que a construção "ativa" correspondente. Givón (1994) considera centrais três dimensões semânticas para a compreensão dos conceitos de transitividade/detransitividade, que de­ finem o que ele denomina "evento transitivo prototípico" e, por exten­ são, a base da voz ativo-transitiva: a) a oração transitiva prototípica envolve um Agente ativamente iniciador, controlador, volicional, que é responsável pelo evento, portanto, sua causa saliente; b) envolve tam­ bém um Paciente não-controlador, inativo, não-volicional, que registra uma mudança de estado, portanto, seu efeito saliente; c) o verbo codifi­ ca um evento compacto, limitado, e real. Como se nota, esse protótipo se deriva do estudo sobre transitividade de Hopper & Thompson (1980), porém a formulação de Givón identifica o essencial nos dez fatores ar­ rolados por aqueles autores para identificar a transitividade mais em termos semânticos que morfossintáticos. Ao examinar as construções passivas em ute, Givón (1981) observa dois fatos morfossintáticos: o Agente é necessariamente ausente e to­ dos os demais participantes (inclusive o novo Tópico) mantêm o mesmo estatuto da ativa. A passiva, que é, ela própria, marcada com um sufixo verbal, mantém a marca de número do argumento não-expresso, o Agente. Isso significa que o Sujeito/Agente mantém controle sobre a categoria de número e não o cede ao argumento topicalizado da senten­ ça passiva. Além disso, a atribuição da função de Tópico não sofre res­ trição selecionai: argumentos geralmente baixos na Hierarquia de Funções Semânticas (Dik, 1989), como Tempo e Locativo, podem rece­ ber a função tópica. A passiva de línguas, como o inglês, mostra comportamento oposto ao mencionado: além de não preservar sua marca original de caso, o ar- 216 Alfa, São Paulo, 44: 215-233,2000 gumento não-Sujeito, não-Agente não é necessariamente suprimido; a categoria de número é controlada pelo novo Tópico; há restrições às funções semânticas dos participantes da ativa correspondente para que possam ser promovidos a Sujeito/Tópico da passiva. Em conseqüência desses traços diferenciadores, o inglês e o ute constituem, para Givón, dois pólos de um continuum em cujos intervalos se enquadram outras construções. Os parâmetros que fornecem as bases para a construção dessa escala resultam de categorizações e generalizações (cf. Givón, 1981, p.168) dos seguintes traços morfossintáticos: (a) O grau em que as propriedades de marcação de caso presentes no Sujeito/Agente da ativa se aplicam também ao Tópico não-agentivo da passiva (baixo no ute, que se comprova na conservação de marcação de caso; alto na passiva do inglês, em que o Sujeito/Tópico se torna o SN nominativo). (b) O grau em que a identidade do Sujeito/Agente da ativa está au­ sente na passiva (completamente ausente no ute e facultativa no inglês). (c) O grau em que a sentença passiva conserva as propriedades se­ mânticas e sintáticas de atividade e transitividade (baixo em inglês, alto em ute, em que se conserva a marcação de caso: o Agente ausente mantém controle de número e se preserva, semanticamente, o caráter ativo do evento). (d) O grau em que é possível atribuir a função de Sujeito/Tópico a argumentos com diferentes funções semânticas (alto em ute, em que não ocorrem quaisquer restrições; baixo no inglês, em que somente o Paciente é promovido). Essas dimensões escalares tipológicas interagem sobre um sistema de interdependências que atua, assim, como uma escala abrangente para a representação integral das dimensões gramaticais da passiva. As correlações estão baseadas na relação do primeiro parâmetro (atri­ buição de Tópico) com os demais (cf. Givón, 1981, p.169). Assim, quanto menos uma língua atribuir marcação de Agente/Sujeito a Tópico na passiva, tanto mais as sentenças passivas: (i) tenderão a suprimir o Agente da ativa (a-b); (ii) manterão traços transitivos e ativos (a-c); (iii) aceitarão argumentos não-Sujeito não-Agente como seu Tópico (a-d). Objetivos e pressupostos metodológicos Em sentido amplo, reconhece-se a existência de duas construções principais de voz em português: voz passiva e voz impessoal. A passiva, Alfa, São Paulo, 44:215-233, 2000 217 também chamada analítica, é constituída por auxiliar, em qualquer um de seus tempos verbais, e um particípio passado, seguido ou não de um SP agentivo. A impessoal,3 também chamada passiva sintética, é constituída pela fórmula verbo na 3 a pessoa da forma ativa combinada com o prono­ me se, na chamada função de apassivador, que é como tradicionalmen­ te se qualifica o clítico, quando se reporta a um sujeito de 3 a pessoa que, na representação lingüística, não figura como Sujeito ativo. Nessa construção de voz, o clítico se não apresenta relação anafóri­ ca, e, por conseguinte, também não correferencial com o SN Sujeito, es­ tando antes em seu lugar; sendo assim, pode ser encarado como um morfema sinalizador de passiva, que a denominação pronome apassiva­ dor, cunhada pela gramática tradicional, traduz aproximadamente. O efeito semântico mais característico desse tipo de formulação é um ca­ ráter desindividualizante ou impessoalizador, com a indeterminação da entidade prototipicamente agentiva. O objetivo deste trabalho é mostrar que as construções passiva e impessoal correspondem, na gramática do português falado, aos dois extremos da escala, embora sejam regidas pelas mesmas restrições se­ mânticas em relação ao tipo de predicado subjacente envolvido. Para examinar as duas construções de voz de uma perspectiva pragmática, tomar-se-á por parâmetro que o principal componente desse fenômeno é a relativa topicalidade do Agente e do Paciente no evento semantica­ mente transitivo, tal como proposto por Givón (1981). A descrição das gramáticas tradicionais sustenta que construções impessoais são passivas reais em razão de ser o argumento único o Su­ jeito formal: embora posposto, controla a concordância número-pessoal com o verbo. Entretanto, nem todas as construções desse tipo se fazem marcar por se, eliminação que, de resto, acompanha a perda de clíticos já atestada no português (cf. Kato & Tarallo, 1986). Além disso, nem sempre, como se sabe, o argumento único do predicado na construção impessoal se comporta como Sujeito real: além de ocupar uma posição destinada ao Objeto, nem sempre se mantém a codificação morfossin- 3 Câmara Júnior (1972, p.185) se refere ao surgimento, no domínio indo-europeu, de uma voz passiva de forma reflexivo-pronominal que as línguas românicas tornaram impessoal com a integração do sujeito no predicado: "Em português, como em italiano, isso se exprime pela falta de concordância entre o nome e o verbo, que fica invariável no singular". Em razão da tendência semanticamente impessoalizadora das construções médias, reserva-se a esse tipo de construção de voz, neste tra­ balho, o rótulo "impessoal", também adotado alhures na literatura funcionalista (cf. Noonan, 1994; Arce-Arenales et al., 1994; Givón, 1994, entre outros). 218 Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 tática que regula o comportamento nominativo desses SNs. Cria-se, as­ sim, uma espécie de voz ativa impessoal indeterminadora, em que o argumento Paciente não recebe função de Sujeito, cuja posição fica marcada formalmente pela presença do clítico se. A impessoalidade inerente a esses casos, em que o evento é proto- tipicamente transitivo, se estende a construções com verbos intransiti- vos em que nem há argumento paciente para se promover a Sujeito, como em vive-se bem aqui. Interessa a este trabalho verificar essa ten­ dência estrutural das construções impessoais, ligando-a a correlações funcionais de ordem semântico-pragmática. O roteiro de trabalho é empreender uma discussão qualitativa das duas construções de voz, empregando, sempre que possível, dados ex­ traídos do corpus compartilhado do Projeto de Gramática do Português Falado, que consiste numa amostragem do material coletado pelo Proje­ to da Norma Urbana Culta (Nurc)/Brasil, gravado com informantes cul­ tos procedentes de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.4 Predominará, neste trabalho, uma discussão qualitativa de ca­ sos explícitos, iluminada por um conjunto de operações quantitativas implícitas que, apesar de poderem reforçar decisivamente a argumen­ tação, terão de ser omitidas, por absoluta falta de espaço. Inicialmente, faz-se uma análise das condições semânticas que permitem codificar sintaticamente um estado de coisas nas constru­ ções passiva e impessoal. Passa-se, em seguida, ao exame, no âmbito das determinações pragmáticas, às diferenças funcionais que as duas configurações estruturais de voz projetam no uso. Distinções semânticas A grande maioria das construções passivas e impessoais ocorre com verbos de ação, em cujo esquema de predicado, o argumento A 2 corres­ ponde a um papel de paciente (Meta e Meta-Experienciador), representa­ do por uma entidade afetada ou efetuada, e o argumento A 1 corresponde a uma entidade agentiva que envolve também os traços humano e con- 4 Tal amostragem, que já vem sendo exaustivamente descrita, é composta pelos seguintes inquéri­ tos: Porto Alegre: EF 278, DID 045, D2 291; Rio de Janeiro: E F 379, DID 328, D2 355; São Paulo: E F 337, DID 131, D2 360: Recife: E F 337, DID 131, D2 005; Salvador: E F 049. DID 231, D2 098. Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 219 trolador. Os exemplos (la-c) abaixo ilustram esse tipo de esquema de pre­ dicado: (1) a. todo seu material bélico foi arrasado? (EF-RJ-379) b. compra-se mais um título... (D2-RJ-355:30) c. faz esse refogado e põe tomate, um ou dois tomates (D2-POA- 291:129) A passiva manifesta-se também com predicados de Posição, que são semanticamente marcados pelo traço [-(-controlei. Posição, na visão teórica de Dik (1989), aqui adotada, inclui os verbos de percepção, ou posição mental, como considerar e seus similares com verbo-suporte, como levar em conta, contido em (3-a); e verbos que pressupõem posi­ cionamento físico de um ser controlador, como considerar, manter, con­ servar, conforme se observa em (2b-d). (2) a. aumentos... salariais... que anualmente são levados em conta (DID- RE-131) b. os sindicatos são realmente entidades... que têm... determinados elementos que são considerados como postos...(...) quer dizer que são considerados como elementos chaves (DID-RE-131: 70-1) c. o período presidencial... é mantido... durante três anos... (DID-RÈ 131:225) d. outros tipos de alimento que podem ser conservados (DID-POA-044) O que parece mais intrigante e estranhável é haver incidência de predicados de Processo, em que a entidade envolvida não exerce qual­ quer controle, sendo, antes, afetada. Processos implicam, por definição, a atuação involuntária dos participantes, afastando-se, portanto, do evento transitivo prototípico. Em razão dessas propriedades, é raro ob­ ter-se uma construção passiva, que, no corpus considerado, restringe-se a predicados como lembrar, entender, perceber, ver, este com várias re­ petições, e perder, conforme se observa em (3a-d). (3) a. a relação salário aluguel... já que o assunto foi lembrado aqui... (D2- RJ-355:213) b. a imagem não foi feita para decorar a caverna ou para ser vista por outras pessoas... certo? (EF-SP-405: 254) c. bom... ocorre a guerra e... nada nessa história acontece por acaso... né?se... realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo... é que as condições... sociológicas... econômicas epolíticas etc. etc. fizeram com que fosse perdida a guerra... (EF-RJ-379) d. agora o dinheiro no Brasil nunca foi tão difícil de ser entendido... (D2- RJ-355) 220 Alia, São Paulo, 44: 215-233, 2000 Todos os predicados envolvidos são processivos com um sujeito Ex- perienciador. A experiência por que se passa pode ser física, como ocor­ re com ver e perdei, ou mental, como ocorre com entender, perceber, lembrar. Sobre essas construções, o que se pode dizer é que se desviam do evento transitivo prototípico. Certamente o envolvimento num esta­ do de coisas processivo não acarreta qualquer ato voluntário e intencio­ nal da entidade experienciadora. Na construção impessoal, a incidência de outros tipos semânticos de predicados é pouco significativa, mas permite observar um dado re­ levante: aplicam-se a ela as mesmas condições semânticas que se apli­ cam à passiva. Acompanha essa correlação o fato de terem os dados do corpus manifestado inclusive ocorrências de predicados de Processo, também com papel semântico de Experienciador e de Posição, que pressupõem entidades controladoras, comuns às construções passivas. As sentenças incluídas em (4a-c) são exemplos representativos de pre­ dicação de Posição, e as de (4d-e), de Processo. (4) a. somente levando em consideração a realidade social... em adequa­ ção à lei por exemplo (EF-RE-337:224) b. porque tem que manter um certo padrão:: e não dá (D2-SP-360:686) c. alimentos assim que não se pode guarda(r) por muito tempo, não é? (DID-POA-044: 207) d. e como se vê fogueira o olindense faz fogueira (D2-RE-05:290) e. se encontra por exemplo hoje... no Japão... quer dizer uma situação DIFERENTE daquele Japão pós-guerra (EF-RJ-379:340). Observe-se, de passagem, que a construção impessoal pode incluir predicações de Estado que não teriam formulação correspondente na pas­ siva, como é o caso de construções com verbo-suporte, que se vê em (5). (5) tinha-se esperanças... em que dona Ana Cândida tendo assumido a procuradoria geral do Estado... em ela sendo mulher... que ela defen­ desse um pouco mais a classe não? (D2-SP-360) Não é estranhável que ocorram construções como essa. A sintaxe verüo + se serve à função de expressar a propriedade que assume um predicado de não se referir ao Sujeito, seja ele explícito ou implícito. Como um domínio funcional amplo, inclui diferentes configurações va- lenciais, o que permite incluir predicados monoargumentais, como em riu-se muito durante a festa, vive-se bem no interior etc, categorias que podem incluir verbos-suporte, como ter esperança. Em termos estritamente semânticos, há uma correlação significativa entre as construções de voz passiva e impessoal: ambas estão fortemente Alfa, São Paulo, 44:215-233, 2000 221 condicionadas pela presença de um verbo de Ação, em detrimento de predicados de Processo, Posição e Estado. Se isso é verdadeiro, o que de­ termina a escolha de uma das estruturas alternativas? Um aspecto semântico importante que deve determinar essa sele­ ção está justamente no domínio funcional da transitividade. A natureza ativo-transitiva do predicado, que se mantém na construção impessoal, alivia a restrição motivada pela necessidade de distinção entre os par­ ticipantes, própria da passiva. Assim, bloqueiam a construção passiva predicados de Ação em que o Objeto afetado é parte inalienável da en­ tidade agentiva: (6) a. João lavou-se. b? João foi lavado por si. (7) a. João levantou o braço. b. ?0 braço foi levantado por João. (8) a. João tomou banho. b. IBanho foi tomado por João. O traço caracterizador de um esquema de predicado bivalencial, que constitui o evento transitivo prototípico, representa-se, por defini­ ção, na distinção entre dois participantes exercendo papéis semânticos igualmente distintos, que é como se identifica uma relação tipicamente assimétrica (Kemmer, 1994). O evento reflexivo de (6a) evoca dois pa­ péis semânticos separados, mas que convergem para uma única enti­ dade referencial. Já o Agente e a entidade afetada de (7a) representam uma única entidade, uma vez que jbraço representa uma parte inaliená­ vel de João. Assim, (6a-b) e (7a-b) constituem subconjuntos do mesmo fenômeno semântico, isto é, os argumentos representam entidades com grau baixo ou nulo de distintividade. A conseqüência mais evidente dessa propriedade semântica para a organização sintática é o bloqueio da construção passiva (8b), que não se aplica, no entanto, à construção impessoal: (9) a. levantou-se muito o braço na assembléia para votar tantas propostas. b. tomou-se banho só de rio durante a pescaria. Em termos estritamente semânticos, a possibilidade de se construí­ rem passivas e impessoais no português está associada às mesmas restri­ ções de seleção, mas uma sentença passiva é prototipicamente sensível à promoção de entidades afetadas à posição de Sujeito/Tópico e à de- transitividade do predicado verbal, e não necessariamente à impessoa­ lidade do Agente; nesse aspecto, as impessoais são absolutas: não 222 Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 autorizam a manifestação formal de um SN agentivo. Observem-se as sentenças contidas em (10a-c): (10) a. João quebrou o vidro da janela. b. O vidro da janela foi quebrado (por João). c. O vidro da janela (se) quebrou (?por João). A prerrogativa especial da passiva de ser capaz de manter o SN agentivo pode ser observada em (10a) e (10b), construções que manifes­ tam explicitamente SNs lexicais que representam uma entidade agen- tiva, controladora, individuada: (10) a. então lá fui recebido pela empregada (D2-RJ-355) b. onde ele estabelece índices salariais... baseados em cálculos que são feitos... se não me engano pela Fundação Getúlio Vargas... (DID- RE-131) Também os casos de anáfora zero são SNs individuados, claramen­ te identificados no contexto discursivo: (11) então a minha de onze anos... ela supervisiona o trabalho dos cinco... então ela vê se as gavetas estão em orde/... em ordem setr: material escolar já foi re/arrumado [entenda-se pelos cinco] para o dia seguinte (D2-SP-360) Nessa ocorrência, o Tópico discursivo são os cinco filhos da infor­ mante, que passa a enfocar um deles, ou seja, a menina de onze anos. A situação textual deixa claro que o SN agentivo eliptico de arrumar se identifica por relação anafórica e correferencial com o SN os cinco. Em outro tipo de construção, a referência ao nominal está bem mais próxima: (12) se... realmente a guerra foi perdida pelos países do eixo... é gue as condições... sociológicas... e econômicas e políticas etc. etc. fizeram com que fosse perdida a guerra... [entenda-se pelos países do eixo] (EF-RJ-79) A demoção sintática do SP agentivo, embora facultativa, é estatis­ ticamente preferida. Há casos de passivas que manifestam entidades genéricas, (13a) ou, se individuadas, desconhecidas do emissor, e se co­ nhecidas, propositadamente não enunciadas por ele (13b). (13) a. a ciranda é cantada durante o verão em Olinda b. se a gente lembrar que aquele prédio foi feito para conter (D2-RJ- 355) Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 223 As ocorrências de SNs lexicais plenos representam geralmente en­ tidades genéricas, não-individuadas: (14) a. seus representantes que são por sua vez ou devem ser eleitos dire­ tamente pelo povo (DID-RE-131) b. toda parte jurídica do Estado é feita por procuradores do Estado (D2-SP-360) c. a imagem não foi feita para decorar a caverna... ou para ser vista por outras pessoas (EF-SP-405) Em alguns casos, o SN agentivo não-demovido é definido e aparen­ temente individuado, mas tem uma referência genérica, já que o assun­ to de que se trata é a constituição jurídica de sindicatos em geral: (15) a. reajuste esse que é... debatido... entre os associados através das chamadas assembléias... que são convocadas pelo seu presidente (DID-RE-131) b. são entidades sem fins lucrativos... portanto são/têm por obrigação PRESTAR... toda assistência devida... aos seus sindicalizados... rece­ bendo todas aquelas importâncias... que são pagas pelos seus associa­ dos e revertendo-as... integralmente em benefício... dos mesmos (DID- RE-131) A forma de manifestação dos SNs sintática e pragmaticamente não- demovidos é lexical, zero anafórico e pronome anafórico e, como se espe­ rava, referem-se a entidades humanas. Embora não se tenham conside­ rado os SNs demovidos, uma rápida inspeção nas ocorrências permite logo observar que consistiriam também em alguma entidade humana. Observe-se (16a), cuja ativa correspondente poderia ser (16b) com um sujeito animado: (16) a. naquelas mensalidades... que são pagas... ao órgão (DID-RE-131) b. alguém (as pessoas) pagam as mensalidades ao órgão. Distinções pragmático-discursivas Para avaliar, agora, o efeito da acessibilidade anafórica que carac­ teriza a natureza tópica do Sujeito da passiva, observem-se a seguir, em (17a) e (17-b), dois casos típicos de SNs na função de Sujeito/Tópico sob a forma de pronome anafórico e zero anafórico, respectivamente. 224 Alfa, São Paulo, 44: 215-233,2000 (17) a. a Arquitetura quando foi prá lá estava do primeiro ao oitavo andar mobiliado... com mobiliário melhor possível... então... o que acontece... quando ela foi sendo comprimida... ela não foi deixando os móveis (D2- RJ-355) b. a criança vai ao maternal somente pra brincar... ser educada ser al­ fabetizada (DID-SA-231) É óbvio dizer que zeros costumam desempenhar o papel de ponto terminal de uma cadeia anafórica, que, muitas vezes, começou com um SN lexical pleno. Observem-se alguns exemplos: (18) a. esse nódulo terá que ser... examinado..0. terá que ser retirado... 0 terá que ser.mandado para a... anatopatologista... para eh::eh::/ para então... ele dizer... se há malignidade ou nao nesse nódulo (EF-SA-049) b. ele é responsável pela chefia lá e:: 0não foi preenchida (D2-SP-360) Há, no entanto, casos de sintaxe VS. Em dois deles, o papel da po­ sição pós-verbal é esclarecer a referência de uma entidade que o locutor presume não ter ficado explícita para o interlocutor, o que acontece nos casos de antitópico: (19) a. foram dimensionadas as estradas (D2-SA-98) Alguns casos de SNs representados por entidades definidas e refe­ renciais acham-se pospostos em virtude do caráter focal de um outro SN, que é estrategicamente enunciado na primeira posição da predica­ ção, como se observa em (20a-d). (20) a. nós vamos localizar onde foram encontrados esses vestígios (EF-SP- 405) b. como pode ser percebida a vocação de uma pessoa? (DID-POA-044) c. porque a este setor é confiado todo o levantamento (DID-RE-131) d. aos sindicatos não é permitido o chamado lucro (DID-RE-131) Há casos de construção passiva em que se manifesta uma preferên­ cia pela posição pós-verbal para o argumento único do predicado, como se observa em (21). (21) enquanto não for estruturado esse projeto não há possibili/ não pode ser feito concurso (D2-SP-360 Não se trata de informação nova em (21), já que o SN mantém rela­ ção anafórica com algum outro que o antecede, particularmente marca­ da no determinante do SN grifado da primeira oração. Sendo assim, a Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 225 preferência pela posposição do sujeito se justifica no fato de a informa­ ção focal incidir sobre o próprio predicado e não em seu argumento. Nas estruturas impessoais, reinam absolutas as entidades inanima­ das na posição argumentai única. Um bom indício para verificar o esta­ tuto dado/novo desses referentes é seu grau de acessibilidade anafórica. A grande maioria dos SNs das construções clíticas e não-clíticas apre­ senta ligação anafórica com algum constituinte no texto antecedente, comportamento que caracteriza as entidades representadas por esses SNs como discursivamente dadas. Essa alta incidência de referentes anaforicamente acessíveis nas construções de voz impessoal se justificaria se pudessem ser subcate- gorizados como Tópicos; nesse caso, o argumento afetado seria promo­ vido, de um ponto de vista pragmático, para a função de Tópico e, de um ponto de vista sintático, para a posição de Sujeito, como, aliás, é co­ mum ocorrer com a passiva. Entretanto, dificilmente se poderia atribuir aos casos de voz impessoal do corpus exemplos claros e inequívocos de construção promotora de entidades Processadas à posição de Sujeito, já que a maioria absoluta delas tem seu argumento único inequivocamen­ te flexionado no singular. Para reforçar esse argumento, verifiquemos como se comportam as construções impessoais, cujos argumentos únicos exigiriam, caso fos­ sem interpretados como Sujeito, a aplicação de concordância no verbo, o que, de fato ocorre com apenas um caso, o de (22) (22) quer dizer além de chegar ao plano muscular... se retiram os elementos musculares... ou sejam... os peitorais... grandes e pequenos. (EF-SA- 049) Observe-se o cuidado especial do informante com a concordância verbal que o leva a produzir um caso típico de hipercorreção mais adian­ te, quando usa a locução ou seja como se fosse um verbo no plural. Isso pode indicar que somente em situações muito tensas um falante com es­ colaridade de nível superior, que é como se caracterizam os informantes do Nurc, produziria esse tipo de construção em que o argumento único é codificado como Sujeito em função de marca de concordância número- pessoal. Os demais casos representam todos indícios claros de que o falante não trata o argumento posposto ao verbo como o Sujeito legítimo da sentença. É verdade que alguns deles são construções impessoais não- clíticas, em que a ausência de marca explícita de voz torna mais rara a concordância. As sentenças (23a-c) ilustram alguns desses casos. 226 Alfa, São Paulo, 44: 215-233,2000 (23) a. e mistura então os frutos do mar gue vêm é polvo, mariscos, as mais variadas espécies (D2-POA-291) b. então, naquele arroz mexe, quebra dois ovos aí e, e depois então comprime esse arroz num pirex (D2-POA-291) c. quando aquele queijo fica todo derretido, envolvendo o camarão, aí retira os dois e serve-se (D2-POA-291) Já em outros casos, como os de (24a-c), a construção impessoal é inequivocamente assinalada com o marcador clítico. A despeito disso e da relativa formalidade da situação interacional, o SN pluralizado não aciona a concordância. (24) a. não se pode criar assim profissões ou citar(r) profissões gue se;'am mais importantes ou mais necessárias entende? (DID-POA-044) b. também se faz a aquelas compras pequenas que... alimentos assim que não se pode guarda(r) por muito tempo, né?{...] só outros tipos de alimentos que podem ser conservados (DID-POA-044) c. é o mesmo caso das estradas brasileiras... dimensionou-se... foram dimensionadas as estradas para um tráfego mais leve do que elas es­ tão suportando (EFI-SA-98) É interessante observar que, em (24b), o locutor usa a alternativa impessoal com um SN no plural que, mesmo assim, não acarreta a con­ cordância de número no predicado. Na seqüência, apesar de alimentos aparecer em posição pré-verbal controlando a ligação anafórica com o pronome relativo na posição de Sujeito, esse SN não é capaz de acionar a regra de concordância com o auxiliar modal poder. Na mudança de Subtópico que faz em seguida, referindo-se a outros tipos de alimentos, o locutor alterna para a construção passiva numa oração relativa, cujo correferente é de fato um nome no plural. Diferentemente do que ocorre na construção impessoal que acabou de ser enunciada, nesta se aplica rigorosamente a concordância. Já o enunciador da sentença (24c) introduz um Subtópico, as estra­ das brasileiras, faz uma pausa e constrói uma predicação só com o ver­ bo dimensionar. O fato de estar o SN que representa o argumento único do predicado sob a forma de um zero anafórico o conduz à não-aplica- ção de concordância; em seguida, ele emprega a construção passiva, mas dessa vez, como o locutor de (24b), parece corrigir-se aplicando concordância, a despeito mesmo da posposição do SN, aqui entendido como o Sujeito legitimo do verbo. Outro casos acham-se identificados a seguir em (25a-c). Alfa, São Paulo, 44:215-233, 2000 227 (25) a. o que é interessante que até bom que se discuta um pouquinho é a sign, os acessórios secundários, o principal, etcétera alguma dúvida? (EF-POA-278) b. ainda se usa até hoje em dia... um ou dois... dois tostões... (D2-RJ- 355:95) c. gue são as três moedas que se consegue realmente trocar com mui­ ta facilidade... (D2-RJ-355:195. Em (25a), a ausência de concordância é ambígua, uma vez que pode ter havido uma motivação cognitiva para emitir um SN singular, depois truncado, momento em que o locutor faz uma reparação para manifestar um SN no plural. Presume-se, todavia, que à reparação de um termo do SN poderia seguir-se também a reparação do verbo, caso o informante estivesse plenamente seguro de que se trataria ali de um SN Sujeito e que, como tal, deveria acionar a concordância verbal. A construção (25b) é similar: o SN sofre uma correção que não se aplica simultaneamente ao verbo. Já (25c) é um caso especial, similar à seqüência de (24b) já aponta­ da. O SN pluralizado é anaforicamente retomado por um pronome relati­ vo. A posição pré-verbal deveria detonar automaticamente a marcação de pluralidade no verbo, caso o informante introjetasse a idéia de que o argumento único do predicado fosse de fato o Sujeito. As construções impessoais ainda representam casos de ambigüida­ de estrutural no português falado culto em razão de um mínimo de cons­ truções no plural, certamente motivadas pela tradição normativa que rege a modalidade escrita. Esses poucos casos podem ser identificados como construções que promovem sintaticamente o SN semanticamente afetado à posição de Sujeito. Todavia, a preferência estatística por cons­ truções impessoais no singular é certamente um indício claro de que se acha subjacente algum tipo de interpretação sintática relevante. A esse propósito, Nunes (1991, p.34) atribui duas diferentes configu­ rações estruturais, nos quadros da Gramática Gerativa, para constru­ ções como (22) e como (24b), denominadas respectivamente "construção com se apassivador" e "construção com se indeterminador", conforme se observa em (26a-b): (26) a (expl) retiram-se ^ elementos musculares e i 5 b. pro 9g faz-se QQ aquelas compras QJ 5 Em sua análise 9e, 9i e 60 representam papel temático respectivamente reservado ao argumento externo, ao argumento interno e ausência de absorção de papel temático. 228 Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 Em (26a), o clítico se absorve o papel temático do argumento exter­ no e caso acusativo; o SN elementos musculares, detentor do papel te­ mático do argumento interno, recebe caso nominativo em cadeia com o expletivo que ocupa a posição de sujeito. Em (26b), ocupa a posição de sujeito um pronome nulo referencial, que é indeterminado pelo clítico se; ao SN aquelas compras, que preserva o papel temático do argumen­ to interno, é atribuído caso acusativo.6 Em que pese a diferença de tra­ tamento, os resultados finais parecem equivaler-se. Retornando ao paradigma funcional, é possível acrescentar que a pre­ ferência pela construção passiva é motivada pela determinação pragmáti­ ca de constituir um Tópico, o que não se aplica à impessoal, em que o processo é apresentado em si mesmo, independentemente de uma entida­ de que lhe sirva de referência, a mesma motivação que dá lugar às frases sem sujeito. A própria configuração sintática da construção impessoal, ar­ gumento único em posição pós-verbal, é um resultado explícito dessa mo­ tivação pragmática; além disso, ela preserva a estrutura predicacional ativo-transitiva. Configurando-se a necessidade de se manifestarem SNs Tópicos, é necessário optar por uma estrutura em que o argumento princi­ pal seja sintaticamente promovido a Sujeito e pragmaticamente a Tópico, o que define a construção passiva. Nesse caso, o estatuto semântico de- transitivo resultante é secundário em razão da determinação pragmática de atribuição tópica, hierarquicamente dominante. Considerações finais O principal interesse deste trabalho foi estabelecer uma caracteri­ zação semântica e pragmática à diversidade morfossintática das cons­ truções passiva e impessoal, mediante a combinação dos fatores de- transitividade, impessoalidade e topicalidade. O principal domínio funcional enfocado, o pragmático, permitiu comparar as construções de voz, entendendo-se por "pragmático" a re­ lativa topicalidade do paciente no evento semanticamente transitivo, 6 A passiva impessoal, que Nunes denomina "construção com se indeterminador", é resultado da re­ análise de três aspectos: i) o se apassivador passa de elemento identificador da estrutura do predi­ cado a participante da relação anafórico-pronominal que se estabelece com o pronome nulo da posição de sujeito; ii) o argumento interno passa de sujeito a objeto do verbo; iii) o expletivo que ocupa a posição de sujeito passa à condição de pronome nulo referencial (cf. Nunes, 1991, p.37). Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 229 no sentido de Cooreman (1985, 1987, apud Givon, 1994). A definição pragmática das construções de voz aqui focalizadas é a seguinte: Construções de Voz Topicalidade Relativa Ativa AGT > PAC Passiva AGT < PAC Impessoal AGT « PAC A ativa define-se pragmaticamente como a construção de voz em que o Agente é mais tópico que o Paciente, que, todavia, ainda retém considerável topicalidade (AGT > PAC). Relativamente a essa norma não-marcada, os dois tipos de construções de voz aqui enfocados po­ dem ser então definidas como: a) passiva: o Paciente é mais tópico que o Agente, embora este re­ tenha considerável topicalidade, sendo, por isso, facultativo, na medida em que pode ser mantido ou suprimido/demovido (AGT < PAC); b) impessoal (clítica e não-clitica): o Agente é extremamente não- Tópico, sendo por isso suprimido, mas o Paciente, embora mais Tópico que o Agente, pode ou não adquirir as características de subjetividade (AGT « PAC). Assim, das duas construções, apenas a passiva promove explicita­ mente a Sujeito/Tópico o participante afetado e permite reter a entida­ de agentiva, que se manifesta no interior de um SP. Mesmo que o Agente nem sempre se manifeste, enunciá-lo depende unicamente do ponto de vista do falante em relação ao evento e não de alguma restri­ ção sintático-semântica. Nesse aspecto, a construção passiva contrasta com a voz impessoal em que o Agente é semanticamente suprimido. Tendo mostrado a importância da atribuição tópica para a configu­ ração formal dos dois tipos de construção, resta-nos discutir, finalmen­ te, como os três domínios funcionais convergem para produzi-los. A construção impessoal está deixando progressivamente de ser se­ manticamente detransitiva e o domínio funcional predominante é o da impessoalidade, que, nesse caso, supera a atuação da detransitividade semântica. Ao menos como tendência estatística, a passiva também é, como vimos, marcada pela impessoalidade, cujo indício mais evidente é a impossibilidade de se recuperar a identidade referencial do SN agentivo não manifesto formalmente. De qualquer modo, essa condição não é obrigatória, ficando ao arbítrio do enunciador selecionar a cons­ trução com ou sem SN agentivo, conforme as exigências discursivas. 230 Alfa, São Paulo, 44: 215-233, 2000 Quanto à detransitividade, a passiva é uma construção semantica­ mente estativo-processiva, se comparada ao alto grau de transitividade do predicado da ativa correspondente. A passiva se submete a uma clara tendência pela topicalidade da entidade Paciente promovida a Sujeito, o que se verifica na alta incidência de anteposição de SNs nominativos; al­ guns casos de posposição são também pragmaticamente motivados. De um ponto de vista sintático, as propriedades de marcação de ca­ so, presentes no Sujeito/Agente da ativa, são automaticamente trans­ postas para o Tópico não-agentivo da passiva. Como a identidade do Sujeito/Agente pode não estar totalmente suprimida, a modalidade de voz passiva que se pratica no português aproxima-se tipologicamente da do inglês e não da do ute, considerando os dois extremos do conti- nuum da hipótese explicativa avançada por Givón (1981,1994). De fato, não é obrigatória a supressão da identidade do Agente, o predicado não mantém traços de transitividade e não é admissível que qualquer argu­ mento não-Sujeito da ativa venha a se constituir como Sujeito/Tópico da passiva. Na construção impessoal, mais bem caracterizada como não-pro- motora, as propriedades de marcação de caso, presentes no Sujeito/ Agente da ativa, não são transpostas para o Tópico não-ágentivo. É em razão disso que essa estrutura mantém o traço ativo-transitivo, o que significa aplicar-se a correlação entre os parâmetros (a-c): quanto me­ nos uma língua atribuir marcação de Sujeito/Agente a Tópico, tanto mais a construção de voz mantém traços transitivos e ativos e tende a suprimir o agente da ativa (correlação a-b). Essas propriedades permi­ tem alinhar a impessoal com as construções situadas no extremo da es­ cala que caracteriza a passiva do ute. As construções passiva e impessoal apresentam-se, assim, em dis­ tribuição complementar em relação aos traços semânticos e pragmáti­ cos envolvidos, o que significa também diferentes graus de restrições para a formulação de cada tipo. Para construir um exemplar de voz im­ pessoal, basta indeterminar a entidade controladora do evento, que exerce a função de Sujeito no esquema de predicado subjacente, pre- servando-se as características ativo-transitivas do verbo. Isso explica a expansão cada vez mais acentuada dessa construção de voz para outros tipos semânticos de verbos, como os estativos. Já a passiva necessita de restrições mais graves: sua detransitivização, em comparação com uma construção ativa, só é possível mediante o recurso a procedimen­ tos morfossintáticos, inserção de auxiliar e predicado participial que a tornam uma construção estativo-processiva. Alfa, São Paulo, 44:215-233, 2000 231 CAMACHO, R. G. Passive and impersonal constructions: functional distinc­ tions. Alfa (São Paulo), v.44, p.215-233, 2000. • ABSTRACT: According to Givón (1981), the typological characterization of passive, which is necessarily scalar and non-discrete, includes three func­ tional domains: clausal topic assignment, impersonalization and de-transi- tivization. This paper's main objective is to give a functional characterization to the morphosyntactic difference between passive and impersonal con­ structions of spoken Portuguese. • KEYWORDS: Passive voice: impersonal voice: topicalization. Referências bibliográficas ARCE-ARENALES, M. et al. Active voice and middle diathesis: a cross-linguis­ tic perspective. In: FOX, B., HOPPER, P. J. Voice: form and function. Am­ sterdam, Philadelphia: John Benjamins, 1994. p. 1-22. BACELAR DO NASCIMENTO, M. F, MARTINS, A. M. Construções verbais portuguesas em -se médio observadas em textos medievais e em textos contemporâneos. Texto inédito não publicado, s. d. CAMACHO, R. G. O papel da estrutura argumentai na variação de perspectiva. In: KOCH, I. G. V. (Org.) Gramática do português falado: desenvolvimentos. Campinas: Ed. Unicamp, Fapesp, 1996, v.I. CÂMARA Júnior, J. M. Princípios de lingüística geral. 4.ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1972. DIK, S. C. The theory of functional grammar. 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