1 ________________________________________________________________________ UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA Centro de Estudos de Geografia do Trabalho – CEGeT COOPERATIVISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: UM ESTUDO APLICADO NA COOPERATIVA RECICLA CONQUISTA EM VITÓRIA DA CONQUISTA – BA ADMA VIANA SANTOS Presidente Prudente/SP 2015 2 ADMA VIANA SANTOS COOPERATIVISMO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO: UM ESTUDO APLICADO NA COOPERATIVA RECICLA CONQUISTA EM VITÓRIA DA CONQUISTA – BA Orientador: Prof. Dr. Marcelo Dornelis Carvalhal Presidente Prudente/SP 2015 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’ – FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente, como requisito para obtenção do título de Mestre em Geografia. Área de Concentração: Produção do Espaço Geográfico. 3 FICHA CATALOGRÁFICA Santos, Adma Viana. S233c Cooperativismo e precarização do trabalho: um estudo aplicado na Cooperativa Recicla Conquista em Vitória da Conquista/BA / Adma Viana Santos. - Presidente Prudente: [s.n.], 2015 178 f. Orientador: Marcelo Dornelis Carvalhal Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Precarização do trabalho. 2. Cooperativismo. 3. Políticas públicas. I. Carvalhal, Marcelo Dornelis. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. 4 5 A minha mãe Miralva e aos meus avós Valdomiro (in memoriam) e Joana, pelo apoio incondicional, me ajudando e dando-me forças, carinho e coragem nos momentos em que mais precisei. OFEREÇO As minhas irmãs Suzy e Bruna, pois o apoio, carinho e amizade de vocês são imprescindíveis. AGRADEÇO Ao meu esposo Lucas pelo grande incentivo, companheirismo, amor e compreensão em todas as situações. Obrigada por acreditar sempre em mim. DEDICO 6 AGRADECIMENTOS O agradecimento primordial não poderia deixar de ser a Deus, Aquele que me permitiu sonhar de uma forma que alargasse meus horizontes, bem como a viver a concretização de mais este sonho. À Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT/UNESP) e ao Departamento de Geografia, pela oportunidade de realização do curso. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de estudo. Ao Professor Dr. Marcelo Dornelis Carvalhal, pelo norteamento de todo processo de elaboração da pesquisa em questão, dando-me as orientações necessárias, além de me auxiliar nas atividades e discussões sobre o andamento e a normalização desta dissertação de mestrado. Suas críticas, observações e sugestões foram de fato imprescindíveis na evolução desta pesquisa. Agradeço ainda a todos os demais professores do curso de mestrado em Geografia, pois os mesmos muito contribuíram para minha formação, principalmente aqueles cujo auxílio e dedicação permearam o bom desenrolar do curso concluído. Sou muito grata aos meus amigos e colegas de curso, pelo companheirismo, apoio e solidariedade; principalmente os colegas de turma, pelos momentos inesquecíveis e pela amizade que certamente perdurará. Aos companheiros do CEGeT, em especial ao Prof. Dr. Antônio Thomaz Júnior, ao Guilherme, João, Tássio e Fernando, pelas calorosas discussões em torno da Geografia do Trabalho. A minha amiga Lara e a toda a sua família (Regina, Hamilton e Helena), que tão afetuosamente me acolheram. Com vocês aprendi valores basilares para a vida. Ao meu companheiro Lucas pela contribuição na revisão da pesquisa, no tratamento dos dados e pelas muitas discussões teóricas. Por fim, não poderia deixar de agradecer afetuosamente aos cooperados da Cooperativa Recicla Conquista; sem a atenção e colaboração dos mesmos, essa pesquisa não teria sido possível. Minha admiração pela história de vida e de lutas de cada um deles. Enfim, aos que de alguma forma fizeram-se presentes nesta minha jornada, a todos vocês, minha gratidão! 7 “A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu, mas pensar o que ninguém ainda pensou sobre aquilo que todo mundo vê.” Arthur Schopenhauer 8 SANTOS, Adma Viana. Cooperativismo e precarização do trabalho: um estudo aplicado na Cooperativa Recicla Conquista em Vitória da Conquista – BA. Presidente Prudente: FCT, UNESP, 2015. 178 f. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, 2015. RESUMO De um modo geral, verifica-se que a dimensão real/concreta do processo de exploração do trabalho, se apresenta como um fenômeno central e bastante complexo na sociedade capitalista contemporânea, expressando-se por meio da atividade dos catadores de materiais recicláveis, por exemplo, na medida em que esses acabam por ser necessários para o processo de reprodução do capital, representando mão de obra barata e precária. Os mesmos vêm organizando-se em cooperativas/associações, considerando que essas podem significar, além da renda, um “lugar social” de menor degradação; porém, o cooperativismo apresenta suas contradições. Mediante o exposto, objetivou-se com esta pesquisa entender a organização e territorialização do trabalho precário realizado na catação de resíduos sólidos urbanos e sua condição estrutural para o circuito econômico da indústria recicladora, tendo como base empírica a Cooperativa Recicla Conquista, localizada na cidade de Vitória da Conquista/BA. Observou-se ainda os elementos constitutivos da trajetória profissional dos catadores, suas formas de resistência e organização coletiva materializada por esta cooperativa. Assim, numa perspectiva mais ampla, esta dissertação visou contribuir com o debate sobre a centralidade da categoria trabalho, a produção do circuito econômico da reciclagem, as formas de organização e reprodução dos trabalhadores catadores frente à crise do sistema capitalista, bem como a atuação do Poder Público sobre a atividade de catação. Para o desenvolvimento dos objetivos propostos e seguindo a orientação teórica, a pesquisa empírica foi desenvolvida com a realização de entrevistas e aplicação de questionários aos 54 cooperados e realização de entrevistas junto às lideranças da Recicla Conquista, aos representantes do poder público municipal, e aos principais compradores diretos (atravessadores) dos materiais dessa cooperativa, com um mapeamento das rotas e destino da produção e comercialização dos recicláveis. No caso específico da pesquisa, as categorias de análise foram território e trabalho, entendendo-se que um estudo mais profundo dessas categorias, foi necessário para uma maior compreensão da temática em questão. Além da importância do papel das Políticas Públicas para os empreendimentos econômicos solidários relacionados á atividade de catação, esta pesquisa mostrou o papel desses empreendimentos no contexto social e econômico atual, por meio da compreensão das condições/relações de trabalho presentes nos processos organizativos do trabalho nas cooperativas de catadores de resíduos sólidos, demonstrando a realidade vivenciada pelos catadores, na condição de trabalhadores precarizados e informais. Palavras-chave: Precarização; Territorialização; Cooperativas; Atividade de catação; Circuito econômico. 9 SANTOS, Adma Viana. Cooperative and work precarious: an applied study on the Cooperative Recicla Conquista in Vitória da Conquista - BA. Presidente Prudente: FCT, UNESP, 2015. 176 f. Dissertation (Master’s degree) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, 2015. ABSTRACT In general, it appears that the actual extent / Concrete labor exploitation process, presents itself as a central phenomenon and quite complex in contemporary capitalist society, expressing itself through the activity of collectors of recyclable materials, for example , insofar as these turn out to be necessary for the reproduction process of capital, representing cheap and poor hand piece. They have organized themselves into cooperatives / associations, considering that these may mean in addition to income, a "social place" minor degradation; however, the cooperative has its contradictions. Through the above, the aim of this research was to understand the organization and territorial precarious work in the grooming of municipal solid waste and its structural condition for economic circuit of the recycling industry, based empirically on the Cooperativa Recicla Conquista, located in Vitoria da Conquista / BA. There was also the evidence of the professional career of collectors, their forms of resistance and collective organization materialized by this cooperative. Thus, in a broader perspective, this work aimed to contribute to the debate on the centrality of class work, the production of the economic circuit recycling, forms of organization and playback of workers collectors front of the capitalist system crisis and the role of the Government on the scavenging activity. For the development of the proposed objectives and following the theoretical orientation, empirical research was conducted with interviews and questionnaires to 54 cooperative members and interviews next to the Recycle Conquest leaders, representatives of the municipal government, and the main direct buyers (middlemen) of this cooperative materials with a mapping of routes and destination of the production and marketing of recyclable. In the specific case of research, the analysis categories were territory and work, it being understood that a deeper study of these categories, it was necessary for a better understanding of the subject in question. In addition to the important role of public policy for solidarity economic enterprises related will scavenging activity, this research showed the role of these enterprises in the current social and economic context, through the understanding of the conditions / labor relations present in the organizational processes of work in solid waste recycling cooperatives, demonstrating the reality experienced by collectors, provided precarious and informal workers. Keywords: Precarization; Territorialization; Cooperatives; Scavenging activity; Economic circuit. 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Carrinho de mão utilizado na realização da coleta porta a porta – 2014 ............... 57 Figura 2 - Prensa hidráulica utilizada no Galpão 1 da C. Recicla Conquista – 2014 ............. 59 Figura 3 - Cooperados da Recicla Conquista sem o uso de equipamentos de proteção/ segurança – 2014 .................................................................................................. 60 Figura 4 - Cooperados em atividade de triagem na esteira – 2014 ........................................ 62 Figura 5 - Ponto de apoio da Recicla Conquista (Bairro Patagônia) – 2014 .......................... 63 Figura 6 - Sede administrativa da Cooperativa Recicla Conquista (Galpão 1) – 2014 .......... 79 Figura 7 - Cooperativa Recicla Conquista (Galpão 2) – 2014 ............................................... 79 Figura 8 - Despejamento do material trazido pela empresa Torre na esteira, para a realização da triagem no Galpão 2 da C. Recicla Conquista – 2014 ....................................... 80 Figura 9 - Materiais recicláveis doados à Cooperativa Recicla Conquista – 2014 ................ 83 Figura 10 - Fluxograma com rotas e destino da produção dos recicláveis da Cooperativa Recicla Conquista – 2015 ...................................................................................... 93 Figura 11 - Categorias dos Planos de Resíduos Sólidos Urbanos – 2012 .............................. 131 Figura 12 - ligações entre a Logística Reversa, a Responsabilidade Compartilhada e o Acordo Setorial - 2014....................................................................................................... 135 Figura 13 - Responsabilidade de gerenciamento dos resíduos sólidos, segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos – 2014 .................................................................. 141 Figura 14 - Responsabilidade pelo gerenciamento dos resíduos sólidos, na prática – 2014. . 142 Figura 15 - Pesagem do material coletado pelo caminhão da Torre, na balança rodoviária do aterro sanitário de Vitória da Conquista – 2014 ................................................... 144 Figura 16 - Deposição do lixo no aterro sanitário de Vitória da Conquista – 2014 ............... 144 Figura 17 - Drenos verticais com tambores para drenagem do gás metano – 2014 ............... 145 Figura 18 - Área da atual vala do aterro – 2014.Vista interna da área do aterro (A); Detalhe da rampa que dá acesso a valeta (B); Caminhão descarregando lixo (C) e Trator compactando o lixo depositado (D) ...................................................................... 146 Figura 19 - Estação de tratamento biológico – 2014 .............................................................. 148 Figura 20 - Estação citoquímica – 2014 ................................................................................. 149 11 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Trabalhadores da Cooperativa Recicla Conquista (origem) - 2014 .................... 51 Gráfico 2 - Trabalhadores da Cooperativa Recicla Conquista (faixa etária) - 2014 .............. 51 Gráfico 3 - Trabalhadores da Cooperativa Recicla Conquista (estado civil) -2014 ............... 52 Gráfico 4 - Trabalhadores da Cooperativa Recicla Conquista (grau de escolaridade) -2014 52 Gráfico 5 - Ocupação anterior ao trabalho na Cooperativa Recicla Conquista – 2014 .......... 54 Gráfico 6 - Tempo de permanência no trabalho dos trabalhadores da Cooperativa Recicla Conquista – 2014 ................................................................................................ 55 Gráfico 7 - Opinião dos cooperados concernente as principais vantagens na realização do trabalho de catação – 2014 ................................................................................. 56 Gráfico 8 - Distribuição dos cooperados nos Ecopontos e demais Pontos de apoio da Cooperativa Recicla Conquista – 2014 .............................................................. 66 Gráfico 9 - Brasil: reciclagem de papel, alumínio e plástico (PET) - 2007/2012 .................. 88 Gráfico 10 - Concepção dos trabalhadores cooperados com relação à gestão administrativa da Cooperativa Recicla Conquista – 2014 .............................................................. 120 12 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Locais de atuação dos cooperados dentro da organização do trabalho da Cooperativa Recicla Conquista – 2014 ................................................................................... 66 Quadro 2 - Distribuição dos cooperados nos Ecopontos da Cooperativa Recicla Conquista – 2014 ........................................................................................................................................ 82 Quadro 3 – Esquema de estratificação da Política Nacional de Resíduos Sólidos em 5 eixos – 2014 ........................................................................................................................................ 136 13 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Renda média mensal dos cooperados, 2014 ................................................... 68 Tabela 2 - Tabela comparativa referente a redução dos custos de produção, a partir da utilização do material reciclado .................................................................... 87 Tabela 3 - Demonstrativo de vendas da Cooperativa Recicla Conquista (Jan. 2014) ..... 94 Tabela 4 - Demonstrativo de vendas da Cooperativa Recicla Conquista (Jan. 2014) ..... 94 Tabela 5 - Demonstrativo de vendas da Cooperativa Recicla Conquista (Mar. 2014).... 95 Tabela 6 - Demonstrativo de vendas da Cooperativa Recicla Conquista (2005/2011) ... 96 Tabela 7 - Tabela comparativa dos preços praticados (janeiro a março, de 2014) .......... 99 Tabela 8 - Distribuição do cooperativismo no território nacional ................................... 110 Tabela 9 - Distribuição das sociedades cooperativas no território nacional .................... 110 14 LISTA DE MAPAS Mapa 1: Mapa de localização da cidade de Vitória da Conquista .......................................... 29 Mapa 2: Mapa de influencia de Vitória da Conquista ............................................................ 31 Mapa 3: Localização dos pontos de atuação da Cooperativa Recicla Conquista – 2014. ...... 84 Mapa 4: Fluxo externo dos recicláveis da Cooperativa Recicla Conquista – 2015. .............. 100 15 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ADTR - Agência Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Renda BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CCQ - Círculos de Controle de Qualidade CESOL - Centro de Economia Solidária CLT- Consolidação das Leis de Trabalho CNCOOP - Confederação Nacional das Cooperativas COAMARI - Cooperativa de Materiais Recicláveis de Itapeva COOCASSIS - Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis de Assis COOPCAR - Cooperativa dos Carroceiros de Vitória da Conquista COOPERITA - Cooperativa de Reciclagem de Itapetininga COOPERLIX - Cooperativa dos trabalhadores de Produtos Recicláveis de Presidente Prudente/SP EPIs - Equipamentos de Proteção Individual FRENCOOP - Frente Parlamentar do Cooperativismo FUNASA - Fundação Nacional de Saúde INSS - Instituto Nacional do Seguro Social MNCR - Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis OCB - Organização das Cooperativas Brasileiras OCEs - Organizações das Cooperativas Estaduais OSCIP – Organização da Sociedade Civil para Interesse Público PETROBRÁS - Petróleo Brasileiro S/A PMVC - Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista PNRS – Política Nacional dos Resíduos Sólidos SEMTRE - Secretária Municipal do Trabalho, Renda e Desenvolvimento Econômico SESCOOP - Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo SINIR – Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos SSP - Secretaria de Serviços Públicos UESB - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia1 UFBA - Universidade Federal da Bahia http://www.jusbrasil.com/legislacao/91896/consolida%C3%A7%C3%A3o-das-leis-do-trabalho-decreto-lei-5452-43 16 APRESENTAÇÃO Esta dissertação é a continuação de um conjunto de preocupações adquiridas durante a graduação, no desenvolvimento de uma pesquisa monográfica intitulada ‘Da informalidade a precarização: o trabalho na era do desemprego estrutural’¹, realizada sob a orientação do Prof. MSc. Sócrates Oliveira Menezes. No decurso da mesma, pudemos levantar questões emblemáticas referentes ao processo de precarização do trabalho a que se encontram submetidos os trabalhadores informais, na especificidade do comércio ambulante no centro comercial da cidade de Vitória da Conquista/BA. Pôde-se notar relação imbricável entre os processos de precarização do trabalho, da informalidade e do desemprego, conferindo aos mesmos certa complexidade, de modo a se pensar na necessidade da continuidade do estudo desses fenômenos que caracterizam a atual configuração do mundo do trabalho, no sentido de aprofundar sua compreensão. Assim, considerando-se os processos que marcam a reprodução social no capitalismo, na medida em que utiliza e explora o trabalho como fonte primária de sua acumulação, pensou-se na abordagem das relações supracitadas também no circuito da reciclagem, com a especificidade de que neste setor é explícita a presença do trabalho informal, desprovido das garantias trabalhistas, na medida em que os catadores são alvos da precariedade de suas formas e relações de trabalho. O ingresso no Programa de Pós Graduação em Geografia (PPGG/FCT/UNESP), como aluna do mestrado, coadunou com a ânsia de continuar a desvendar e analisar o assunto. Desse modo, encaramos a realização de tal pesquisa como uma ótima oportunidade de contribuir para a compreensão do processo de territorialização do trabalho precário realizado na catação, bem como das formas de organização/estruturação do circuito econômico da indústria da reciclagem e o caráter fundamental do trabalho precário para a continuidade da acumulação de capital no setor. Como corolário de nossas preocupações enseja-se a trajetória dos trabalhadores catadores, sobretudo pela experiência de organização na cooperativa Recicla Conquista. _________________________________ ¹ BEZERRA, A. V. Da informalidade a precarização: o trabalho na era do desemprego estrutural. 2010. 118 f. Trabalho de Conclusão do Curso (Graduação em Geografia) - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2010. 17 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 16 O tema da pesquisa: relevância e problematizações ............................................................ 19 Objetivos da pesquisa .......................................................................................................... 22 Objetivo geral ...................................................................................................................... 22 Objetivos específicos .......................................................................................................... 23 Metodologia ........................................................................................................................ 23 Caracterização do local de estudo: localização e organização espacial de Vitória da Conquista/BA ...................................................................................................................... 27 Cooperativa Recicla Conquista: aspectos gerais ................................................................. 30 OSCIP Pangea: breve descrição .......................................................................................... 31 1- CAPÍTULO I: CONTRADIÇÕES E PRECARIEDADE DO TRABALHO NA CATAÇÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS ............................................................................. 33 1.1- O trabalho enquanto categoria ontológica central ........................................................... 34 1.2- A precarização do trabalho: expressão da exploração intensa dos trabalhadores e da alienação dos mesmos ............................................................................................................ 40 1.3- A face perversa da reciclagem ........................................................................................ 47 2- CAPÍTULO II: RECICLA CONQUISTA - QUESTÕES, DESAFIOS E POSSIBILIDADES ................................................................................................................ 72 2.1- Trajetória histórica da Cooperativa Recicla Conquista ................................................... 73 2.2- Dinâmicas geográficas da organização do trabalho da Recicla Conquista ..................... 75 2.3- A reciclagem sob uma perspectiva econômica ............................................................... 83 2.4- A Cooperativa Recicla Conquista na cadeia produtiva da reciclagem ............................ 88 3- CAPÍTULO III: COOPERATIVISMO E ECONOMIA SOLIDÁRIA (FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO DE CATAÇÃO) ...................................................... 101 3.1- Histórico do movimento cooperativista no Brasil e no mundo ....................................... 102 3.2- Elementos de teorização acerca da economia solidária e da autogestão: apontamentos para uma análise crítica .......................................................................................................... 109 3.3- Aspectos legais das sociedades cooperativas no Brasil .................................................. 112 3.4- Cooperativas de trabalho: temas atuais e aspectos jurídicos ........................................... 121 4- CAPÍTULO IV: O PAPEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS .......................................................................................................... 127 4.1- A Política Nacional de Resíduos Sólidos ........................................................................ 128 4.2- Políticas Públicas estaduais e gestão de resíduos sólidos urbanos na Bahia ................... 138 4.3 - Gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos em Vitória da Conquista/BA .................. 139 5- CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 148 6- REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 152 APÊNDICES .......................................................................................................................... 163 18 INTRODUÇÃO De modo geral, considera-se que as formas de reprodução da classe trabalhadora estão condicionadas às suas inserções na dinâmica social. Isso implica considerar que o sujeito trabalhador deve ser entendido por meio de seu contexto social e histórico, bem como da sua dinâmica espacial. Acredita-se na necessidade dessa análise mais profunda, devido, sobretudo, às intensificações das transformações socioespaciais, econômicas e políticas que caracterizam a sociedade contemporânea e que repercutem profundamente na atual configuração do mundo do trabalho, por meio do agravamento dos processos de precarização, da informalidade e do desemprego nesse atual estágio de acumulação capitalista (MENEZES, 2007). Desse modo, verifica-se que a dimensão real/concreta do processo atual de exploração do trabalho se apresenta como um fenômeno central e bastante complexo na sociedade capitalista contemporânea. Entretanto, é importante que se compreenda o fato de que esse fenômeno expressa- se também por meio de formas atuais da informalidade, como a atividade dos catadores de material reciclável, por exemplo, na medida em que esses trabalhadores acabam por ser necessários para o processo de reprodução do capital. É interessante pensar que tais trabalhadores também são “atraídos” pela catação, devido à falta de alternativas, e que as cooperativas talvez sinalizem certa melhora, já que podem significar, além da renda, menor degradação nas condições de trabalho. Marcada pela informalidade, bem como pela precariedade das relações de trabalho, a atividade da catação apresenta-se como forma de organização do trabalho desenvolvido pelos sujeitos no intuito de superar as dificuldades de sobrevivência, ao mesmo tempo em que contribuem para a reprodução do capital, possibilitando a continuidade do ciclo acumulativo das relações capitalistas e isso em escala cada vez mais ampliada (PAZ, 2010). Assim, acredita-se ser de fundamental importância a busca pela compreensão dos processos de precarização e territorialização do trabalho de catação e sua condição estrutural para o circuito econômico da indústria recicladora, observando os elementos constitutivos da trajetória profissional dos catadores, suas formas de resistência e organização coletiva materializada pela cooperativa Recicla Conquista, localizada na cidade de Vitória da Conquista/BA. Para tanto, é necessário esclarecer que tal objetivo se desdobra em questões mais específicas, que seguem por três dimensões analíticas que se interrelacionam para uma melhor compreensão. 19 A primeira dimensão da análise diz respeito às questões objetivas que envolvem a atual configuração do mundo do trabalho. Isso significa considerar o processo da precarização, do desemprego e da informalidade como condição estrutural do capitalismo, revelando, assim, a incapacidade desse sistema de gerar emprego em número suficiente de modo a atender a demanda do mercado de trabalho (MENEZES, 2007). Significa contextualizar o momento histórico de crise do capitalismo que, de acordo com Mészáros (2002), trata-se de uma profunda crise com dimensões jamais constatadas até então, sendo, por isso, considerada como uma verdadeira crise estrutural. Segundo Durães (2007), foi somente com a reestruturação produtiva do capital que se verificou a ampliação do grau de precarização do mercado de trabalho brasileiro (a partir da década de 1990), com a intensificação da subcontratação e da terceirização da força de trabalho e da transferência de plantas e unidades produtivas. Pôde-se também observar, nesse período, o crescimento do desemprego estrutural e o aumento da informalidade, devido à escassez de empregos ditos regulares ou formais. A importância dessa observação, tanto histórica quanto teórica é tida como central na análise, podendo-se ainda observar que o subemprego, o trabalho precário e informal são maneiras encontradas por grande parte da classe trabalhadora para garantir a sua sobrevivência, num período marcado pelas inovações tecnológicas e de intensificação da circulação mundial do capital (GONÇALVES, 2001). Nessas circunstâncias, a intensificação desses processos que caracterizam a atual configuração do mundo do trabalho torna-se irreversível, em virtude do próprio caráter estrutural da crise capitalista atual, realidade essa que se historiciza na existência da superpopulação relativa, se espacializa como expressões geográficas da atual configuração do mundo do trabalho e se materializa, como no caso específico desta pesquisa, por meio da territorialização do trabalho precário realizado na catação de materiais recicláveis no espaço urbano de Vitória da Conquista/BA. Nesse sentido, é importante pesquisar as condições/relações de trabalho a que estão submetidos os trabalhadores catadores no atual estágio de acumulação capitalista, bem como a lógica de inserção dos mesmos no processo de realização do capital, buscando-se compreender a sua importância para a exploração capitalista na contemporaneidade. A segunda dimensão de análise destina-se a compreender o funcionamento do circuito econômico da indústria recicladora, através do trabalho realizado pela Cooperativa Recicla Conquista, buscando-se identificar a relação entre a atividade de catação e o processo de 20 acumulação de capital relacionado com o setor da reciclagem. Para tanto, é necessário analisar a produção desse circuito econômico, bem como a sua natureza referente à distribuição da renda entre os trabalhadores catadores e, principalmente, a forma como o sistema capitalista se apropria do trabalho desses, por meio da subordinação da atividade de catação ao capital. A outra dimensão de análise segue no sentido de compreender a participação do poder público na organização territorial do trabalho dos catadores. Foi ainda contemplado na análise o conjunto de políticas públicas voltadas à reciclagem, e que tem priorizado o trabalho nas cooperativas (vide Plano Nacional de Resíduos Sólidos). Tudo isso foi feito para entender a atuação do Estado enquanto agente regulador e, ao mesmo tempo, legitimador do trabalho informal, por meio de seus variados instrumentos de controle. Considera-se que a importância dessa análise justifica-se no fato do Estado ser um dos componentes básicos da sociedade capitalista, juntamente com o capital e o trabalho, mas, principalmente, porque o mesmo constitui-se em uma estrutura totalizadora de comando político, de modo a dar subsídio ao processo de acumulação e garantir a reprodução do capital (MÉSZÁROS, 2002). Assim sendo, com o intuito de facilitar o entendimento e as reflexões sobre tal temática, essa dissertação foi estruturada em quatro capítulos, além da introdução e das considerações finais. No capítulo I, abordamos os sentidos e significados do trabalho, enfatizando-se a análise sobre a categoria trabalho como base ontológica central para o homem em sociedade. Buscou-se ainda um maior entendimento dos processos que caracterizam a sua atual configuração (desemprego, precarização e informalidade), bem como a percepção da face perversa da reciclagem por meio da análise das contradições e precariedade do trabalho na catação de resíduos sólidos, através do trabalho realizado pela Cooperativa Recicla Conquista. No capítulo II foi abordada a cooperativa Recicla Conquista por meio do entendimento da sua infraestrutura, corpo administrativo, condições de funcionamento e, sobretudo, da realidade vivenciada pelos trabalhadores cooperados, na condição de trabalhadores precarizados e informais. No capítulo III, foram realizadas discussões voltadas para o cooperativismo e economia solidária, visando compreender as condições/relações de trabalho presentes nos processos organizativos do trabalho nas cooperativas de catadores de resíduos sólidos, bem como o papel desses empreendimentos no contexto social, político e econômico atual. O capítulo IV foi dedicado às Políticas Públicas em âmbito nacional e municipal, pensadas a partir dos princípios cooperativistas. Nesse capítulo, voltou-se também para a 21 questão do gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos, procurando evidenciar como esse ocorre na cidade de Vitória da Conquista/BA, base empírica da presente pesquisa. O TEMA DA PESQUISA: RELEVÂNCIA E PROBLEMATIZAÇÕES Temas tais como: precariedade das relações de trabalho, informalidade, desemprego, reciclagem, atividade de catação de resíduos sólidos, cooperativismo e economia solidária, são estudados por várias áreas das ciências sociais, comum a diversidade de abordagens metodológicas e conceituais para a sua compreensão. Contudo, na Geografia ainda é incipiente a abordagem de tais questões, voltadas para a compreensão e explicação desses processos. Desse modo, a importância da realização dessa pesquisa, justifica-se mediante a proposta de compreensão dos processos de precarização e territorialização do trabalho de catação de resíduos sólidos, e sua condição estrutural para o circuito econômico da indústria recicladora, no sentido de contribuir para o conjunto de pesquisas voltadas para a abordagem das relações supracitadas, também sob o viés da ciência geográfica. É preciso considerar que a reestruturação produtiva do capital, que afetou e ainda tem afetado qualitativa e quantitativamente a exploração do trabalho, acaba repercutindo nas formas de organização e expressão territorial do trabalho na sociedade capitalista. Assim, é possível afirmar que a precarização, a flexibilização e o crescente número de trabalhadores informais nas cidades, são fenômenos territoriais e expressões geográficas da dinâmica do trabalho sob o capital, cabendo, portanto, também ao geógrafo compreender essa configuração (CONCEIÇÃO, 2005). De modo geral, pode-se dizer que a reestruturação produtiva se caracteriza por um processo intenso de inovações tecnológicas e científicas utilizadas, sobretudo, para aumentar a produtividade e reduzir os gastos com força de trabalho, possibilitando, ainda, novos procedimentos de controle do trabalhador dentro e fora do local de trabalho. Para tanto, se pôs em prática novas formas de regulamento e flexibilização da legislação trabalhista: contratos de trabalho em tempo parcial, temporários (flexíveis), terceirização, etc., fato que contribuiu para acentuar o crescimento do desemprego de forma progressiva, denotando um aumento ainda maior dos mecanismos de extração do sobretrabalho. Pochmann (1999), salienta que toda essa flexibilização favorece a ampliação das formas de precarização e destruição dos direitos sociais que foram conquistados pela classe trabalhadora. 22 Assim, pode-se dizer que esse processo gerou impactos diretos na forma de utilização e exploração da mão de obra por parte dos capitalistas, em função, sobretudo, da exploração intensa dos trabalhadores e da alienação dos mesmos. Tudo isso ocorre principalmente através da intensificação dos ritmos de trabalho, da redução aos salários reais e do aumento da carga horária de trabalho, o que torna a situação desses trabalhadores ainda mais vulnerável. Verifica-se que os trabalhadores ficam a mercê do capital, aceitando qualquer forma de emprego, com pouca ou nenhuma proteção social, sem carteira assinada, sem garantias, entre outros prejuízos e, segundo Soares (2008), principalmente em virtude das necessidades desses trabalhadores (liberados, afastados do mercado de trabalho) que se veem submetidos a elevados níveis de exploração de sua força de trabalho. Em vários casos, essas ocupações exigem dedicação total do trabalhador para que possa conseguir atingir um ganho mínimo para o seu sustento e de seus familiares. Em outros casos, há realização de mais de uma atividade no dia pelo mesmo trabalhador para conseguir atingir ganho para sua manutenção (LESBAUPIN, 2002). Entretanto, nesta pesquisa a abordagem do processo de precarização das condições de trabalho, está voltada de forma mais específica para o trabalho dos catadores de resíduos sólidos. Verifica-se que o mesmo se realiza, de acordo com Paz (2010), geralmente à margem de regulamentações trabalhistas, sob condições precárias, resultando no máximo de trabalho possível (pois, em geral, a jornada dos catadores é longa e pesada) e com um acúmulo mínimo de renda mensal, dentro de uma jornada flexível não remunerada por salário. Contudo, cabe averiguar se a situação é relativizada ou não pela presença da cooperativa, mediante algumas garantias trabalhistas. Observa-se ainda que a realização desse tipo de atividade vem expandindo, acentuadamente, desde meados dos anos de 1990. Sicoli (2007) acredita que esse crescimento se dá em decorrência das mudanças recentes no mundo do trabalho, estando relacionado com os resultados perversos da reestruturação produtiva, da ampliação das formas de trabalho degradado e da expansão do mercado informal no estágio atual do capitalismo. Assim sendo, cabe então refletir se a atividade de catação de resíduos e o mercado informal constituem-se de fato em uma alternativa, que mesmo permeada pela precarização pode transformar-se num trabalho digno, ou ela só é possível pela falta de opções para os trabalhadores, que se submetem a tais condições? Atualmente, pode-se perceber ainda certa tendência à organização desses trabalhadores em cooperativas, associações, sendo, pois, incentivados a fazê-lo pelo poder 23 público, bem como por algumas empresas, como foi o caso da Cooperativa Recicla Conquista, no período de sua implantação em 2004. Do ponto de vista social da problemática do lixo, alguns teóricos chegam a afirmar que a organização de associações e cooperativas acaba por criar a possibilidade de trabalho e renda para os setores mais excluídos da sociedade (CARTA DE CAXIAS DO SUL, 2003). Como exemplos de estímulos à formalização, mediante campanhas/programas de incentivo às cooperativas de catadores de material reciclável, pode ser citada a Lei Ordinária 2913/2009 do município de Diadema – SP, e os Projetos de Lei n°. 0036/2011 da cidade de Fortaleza – CE, e o n° 1223/2007 do município do Rio de Janeiro – RJ. Todos eles visam promover a formação de cooperativas de trabalho, incitar a geração de emprego e renda, bem como o resgate da cidadania por meio do direito básico ao trabalho. Neste sentido a Política Nacional de Resíduos Sólidos também contribui bastante ao priorizar a formação de cooperativas/associações. Entretanto, resta saber se o fomento à formação de cooperativas condiz de fato com melhorias das condições de vida e de trabalho para os catadores, ou se tão somente se configuram na criação de novas formas de exploração do trabalho. Ao se organizarem sob a forma de cooperativas, o trabalhador pode ampliar a renda? Ou ainda continuarão na condição de trabalhadores instáveis, precarizados, estigmatizados, submetidos a um processo excludente, em meio a esta sociedade capitalista em qual se impera o preconceito, a discriminação, a desvalorização da atividade e, consequentemente, da remuneração pelo tipo de trabalho desempenhado? Outra questão que se pode aqui levantar com relação ao trabalho dos catadores é a percepção do mesmo como um trabalho por conta própria, autônomo, informal, não subordinado diretamente à empresa ou a um patrão. Algumas dessas abordagens quando lidam com o trabalho dos catadores organizados sob a forma de cooperativas, chegam a conceituá-lo como alternativo à economia de mercado e à lógica da produção capitalista, enxergando-o como uma nova expressão da resistência e da sobrevivência de uma numerosa população trabalhadora socialmente excluída e que vive na informalidade (RODRIGUEZ, 2002). No entanto, o que pode ser observado por trás do trabalho realizado pelos catadores, seja esse organizado sob a forma de cooperativas ou não, é a existência de uma engrenagem muito mais ampla e complexa que é a indústria da reciclagem. Essa organização é composta por uma série de outros participantes que desempenham atividades e papéis dos mais diferenciados, compondo o circuito espacial produtivo ligado à reciclagem, em que o catador 24 de material reciclável participa como elemento base, ocupando um lugar de relevante importância (LEAL et al, 2002 apud PAZ, 2010). Assim sendo, cabe então averiguar de que modo o trabalho realizado nas cooperativas de catadores se encontra subordinado à lógica de acumulação do sistema capitalista, pressupondo-se que se trata de um tipo de trabalho que gera mais-valia. Tal questionamento conduz, assim, a necessidade de um maior entendimento sobre o funcionamento do circuito econômico da indústria da reciclagem (através do trabalho realizado pela cooperativa Recicla Conquista), de modo a compreender qual a relação entre esse tipo de trabalho considerado informal e o processo de acumulação de capital associado com o setor de reciclagem. A proposta desta pesquisa justifica-se nos desdobramentos apresentados, considerando que a abrangência e complexidade da temática abordada, reforça a importância da percepção da realidade vivenciada pelos catadores de resíduos sólidos, bem como o papel dos mesmos diante da ordem social e econômica existente. OBJETIVOS DA PESQUISA - Objetivo geral Objetivou-se por meio desta pesquisa, analisar a territorialização do trabalho precário realizado na catação e sua condição estrutural para o circuito econômico da indústria recicladora, observando os elementos constitutivos da trajetória profissional dos catadores, suas formas de resistência e organização coletiva materializada pela cooperativa Recicla Conquista. - Objetivos específicos *Analisar as condições de trabalho dos catadores de material reciclável da cooperativa Recicla Conquista, considerando-se principalmente a jornada de trabalho, a remuneração e os agravos à saúde; *Traçar o perfil socioeconômico dos trabalhadores catadores de resíduos recicláveis, buscando identificar e problematizar as razões que definem o trabalho de catação como alternativa para os catadores (lógica de inserção no processo de realização do capital); 25 *Entender o funcionamento do circuito econômico da indústria recicladora, através do trabalho realizado pela cooperativa Recicla Conquista, de modo a identificar a relação entre a atividade de catação e o processo de acumulação de capital relacionado com o setor da reciclagem; *Compreender as principais formas de atuação do poder público sobre o trabalho dos catadores de recicláveis, em relação à organização administrativa e territorial do trabalho, inclusiva nas formas organizativas destes trabalhadores. METODOLOGIA Para o desenvolvimento da pesquisa, considerou-se de suma importância estabelecer e analisar a categoria que sustenta o entendimento do objeto de estudo proposto. No caso específico, as categorias de análise são território e trabalho, ressaltando a relação contraditória existente entre elas. Sabe-se que são diversas as formas de abordagem metodológica e conceitual para a compreensão do território, sendo, portanto, campo de amplos debates. Contudo, na presente pesquisa, a análise dessa categoria geográfica restringe-se às relações de poder entre capital e trabalho, que se estabelecem no território. Ainda que a precariedade e informalidade do trabalho não sejam condição exclusiva do espaço urbano conquistense, e ainda que a pesquisa em questão não tenha como objetivo analisar as condições de trabalho de todos os trabalhadores informais que se encontram nessa localidade, em virtude da ampla diversificação dessa esfera, entende-se que uma análise das categorias, território e trabalho, se faz necessária para um melhor entendimento da territorialização do trabalho precário realizado na catação, no caso, em Vitória da Conquista, e sua condição estrutural para o circuito econômico da indústria recicladora. Para a realização da presente pesquisa, considerou-se como sendo mais adequado o uso principalmente de procedimentos qualitativos, visando-se, também, enfatizar os significados e as qualidades dos processos que não podem ser mensurados em termos de quantidade, partindo-se do pressuposto de que a realidade é socialmente construída. Levou-se em conta, ainda, tanto as limitações situacionais que influenciam a investigação, bem como as relações entre o pesquisador e o objeto de estudo (DENZIN et al, 2006). Visando-se melhor entendimento das condições/relações de trabalho a que estão submetidos os catadores de resíduos sólidos recicláveis - entendidos como os principais 26 sujeitos sociais desta pesquisa - bem como o perfil socioeconômico dos mesmos, foram realizadas entrevistas e aplicados questionários aos 54 cooperados da Recicla Conquista, correspondendo a totalidade de trabalhadores da Cooperativa. Esses procedimentos foram realizados com o objetivo de identificar e problematizar as razões que definem a atividade de catação como alternativa para os catadores, verificando a lógica de inserção no processo de realização do capital e, ainda, os principais conflitos que permeiam esse tipo de atividade. Foram também realizadas entrevistas (voltadas para as questões organizacional e política) junto às lideranças e dirigentes da Cooperativa: o representante da Organização da Sociedade Civil para interesse Público (OSCIP) Pangea , coordenador geral responsável pela organização administrativa da Cooperativa (funcionário público municipal); a presidente; tesoureiro e secretário (integrantes do conselho administrativo); os representante dos Conselhos de Ética e Fiscal. Para o desenvolvimento dos objetivos propostos e seguindo a orientação teórica, a pesquisa empírica foi ainda estabelecida com a realização de entrevistas junto aos principais compradores diretos (atravessadores) dos materiais da cooperativa Recicla Conquista, com um mapeamento das rotas da geração e comercialização dos recicláveis, de modo a compreender a lógica mercantil desse tipo de atividade (a natureza do processo referente, sobretudo, a coleta, processamento e distribuição dos materiais recicláveis, bem como a distribuição da renda entre os trabalhadores). Foram realizadas ainda entrevistas junto aos representantes do poder público municipal, mais precisamente, com a coordenação da Secretaria de Serviços Públicos. Atendendo a orientação de Thompson (1998), entende-se que em casos específicos de entrevistas a pessoas públicas, geralmente manifesta uma maior rigidez no sentido da não abertura para maiores informações e questionamentos, de modo que o pesquisador deve apresentar certa habilidade em técnicas de entrevista para conseguir romper com tais barreiras estabelecidas. A escolha da entrevista como um dos instrumentos metodológicos propostos ajudou a elucidar questões, uma vez que com tal perspectiva não se objetivou apenas atingir uma amostra estatística significativa com base na coleta de dados, mas visou à produção e análise de informações (TURRA NETO, 2012a), considerando-se que “as informações sobre as quais se pauta são produzidas na interação entre sujeitos – pesquisador/a e informantes” (TURRA NETO, 2012b, p. 243). 27 Tendo como base a metodologia proposta por Colognese e Mélo (1998), as variações das entrevistas desta pesquisa foram classificadas sob quatro aspectos principais: referente à padronização, as mesmas foram semiestruturadas. Ao que diz respeito à natureza das informações, as entrevistas foram orais, de modo que os discursos foram registrados através da gravação do áudio, vindo a ser, posteriormente, transcritos. Foram ainda realizadas individualmente com cada informante, em horário e local previamente combinado. Quanto ao nível de controle, as entrevistas foram formais, visando-se testar as hipóteses formuladas. Ao que refere ao tratamento das entrevistas, estas foram submetidas a um processo de fragmentação por temas, utilizando-se das estratégias de codificação (lembrando que os códigos foram retirados das próprias entrevistas) e comparação (no sentido de se buscar evidências necessárias às interpretações). Outro instrumento metodológico foi o levantamento documental junto a órgãos públicos, tais como: Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista; Agência Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Renda (ADTR); Secretaria de Serviços Públicos (SSP); etc. Mais um procedimento metodológico utilizado, foi a observação não participante, pressupondo-se que a realidade possa ser refletida através desse instrumento de pesquisa, uma vez que considera que o conhecimento dos processos/relações sociais nem sempre deve fundamentar-se nas nossas proposições de lógica, mas sim na realização de investigações detalhadas e na experiência, por meio das quais podemos gerar nossos conhecimentos (MAY, 2004). Tal observação foi feita nos locais de atuação da cooperativa Recicla Conquista, levando-se, preliminarmente, em conta: a) forma de distribuição dos cooperados dentro da organização do trabalho da cooperativa; b) infraestrutura do local de trabalho; c) condições de trabalho na cooperativa; d) condições de trabalho nas ruas; e) relacionamento com colegas cooperados; f) relacionamento com catadores não cooperados e g) uso de equipamentos de proteção/segurança. Tais considerações foram anotadas em um diário de campo para a transcrição das observações, sendo esse considerado um instrumento importante para o registro de informações, uma vez que permite que as conclusões do trabalho sejam baseadas, sobretudo, em evidências, e não somente em impressões. Igualmente como nas entrevistas, as informações oriundas das observações foram codificadas de acordo com os temas que surgiram ao longo das transcrições que, por sua vez, foram realizadas de forma sistemática. 28 Concluído o processo de coleta de dados e informações, a pesquisa teve continuidade com o mapeamento das rotas dos recicláveis da cooperativa Recicla Conquista, dando-se ênfase à localização dos principais pontos de coleta de materiais recicláveis em Vitória da Conquista. A importância desse mapeamento se deve à necessidade de maior entendimento das formas de territorialização da atividade de catação nessa cidade. É interessante pensar que o conceito de territorialização possibilita entender o circuito econômico, em sentido restrito, combinado as articulações políticas, tanto na relação dos catadores versus poder público, quanto na relação catadores cooperados versus catadores individuais. Foram elaborados gráficos, tabelas, figuras e mapas, contendo informações extraídas por meio do levantamento/pesquisa documental junto a órgãos públicos, e as organizações políticas coletivas de trabalhadores, e também por meio da realização de entrevistas e/ou da aplicação de questionários aos cooperados da Recicla Conquista; às lideranças e dirigentes da Cooperativa; aos representantes do poder público municipal e aos principais compradores diretos dos materiais da cooperativa Recicla Conquista. Posteriormente, foram sintetizadas as principais formas de atuação/intervenção (direta ou indiretamente) do poder público sobre o mundo do trabalho, garantindo as condições gerais de extração do sobretrabalho excedente, de modo a permitir que o capital explore e continue a explorar a classe oprimida (HARVEY, 2005). Isso foi feito com o objetivo de entender como a cooperativa Recicla Conquista se estabelece na condição de atender às necessidades de expansão do capital no território. Esta pesquisa esteve amparada pelo movimento indissociável de observações em campo, análise dos dados obtidos, leituras e discussões, isso porque teoria e prática da pesquisa caminharam juntas no processo de construção desse estudo, tendo sempre como direcionamento o entendimento da totalidade das relações que determinam o problema. O método de investigação é o materialismo histórico e dialético, uma vez que a análise se estabeleceu pelo posicionamento crítico no levantamento das contradições do processo histórico de desenvolvimento da precarização das condições de trabalho, sua capacidade de resistência, do setor informal na cidade de Vitória da Conquista, bem como a sua intrínseca relação com o circuito econômico da indústria da reciclagem. 29 Caracterização do local de estudo: localização e organização espacial de Vitória da Conquista/BA O município de Vitória da Conquista (MAPA 1), está localizado em um planalto com uma altitude média entre 800m a 1000m, nas coordenadas de 14°52’ de latitude Sul e 40° 50' de longitude a Oeste. Está inserido na mesorregião Centro Sul Baiano e microrregião de Vitória da Conquista (MAIA, 2005). Mapa 1: Localização da cidade de Vitória da Conquista/BA. 30 Esse município encontra-se atualmente dividido em 12 distritos, tendo por sede a cidade de Vitória da Conquista. A mesma é constituída por vinte e três bairros, sendo eles: Lagoa das Flores, Distrito Industrial, Nossa Senhora Aparecida, Zabelê, São Pedro, Campinhos, Jatobá, Bateias, Brasil, Ibirapuera, Guarani, Jurema, Centro, Patagônia, Recreio, Alto Maron, Felícia, Primavera, Boa Vista, Espírito Santo, Cruzeiro, Candeias e Universidade. Salienta-se que nestes bairros estão inseridos loteamentos ou conjuntos habitacionais que são considerados bairros dentro do território de outro bairro, pois o processo de ocupação urbana no município em questão vem ocorrendo de forma tanto ordenada quanto desordenadamente (FERRAZ, 2001). É importante ainda ressaltar que Vitória da Conquista abrange uma área de 3.704,018 km2 com uma população estimada de 340.199 habitantes em 2014, sendo a terceira maior cidade do estado, atrás de Salvador e Feira de Santana, e a quarta do interior do Nordeste (IBGE, 2014). No período compreendido entre 2005 a 2014, o PIB de Vitória da Conquista cresceu vertiginosamente, mais de 340%, levando o municipio a tornar-se a sexta maior economia da Bahia, com participação de 2,29% no PIB do estado (LUZ, 2014). Vitória da Conquista se estabelece ainda como principal centro regional, polarizando mais de 40 municípios na Bahia e no norte do estado de Minas Gerais (MAPA 2). Acredita-se que isso decorre, principalmente, do grau de especialização de serviços e atividades produtivas concentradas em seu tecido urbano, tendo no setor de comércio e de serviços suas principais atividades econômicas, estando entre os 100 maiores centros urbanos do país (ABREU, 2011). Sua economia tem ainda uma significativa contribuição do segmento industrial, principalmente com a indústria de transformação e extração mineral (PMVC, 2012). Vitória da Conquista influencia, assim, uma população aproximada de 2 milhões de pessoas, representando 17% da população baiana (LUZ, 2014). Toda essa dinâmica econômica da cidade acaba repercutindo na grande geração de resíduos sólidos pela população, corresponde atualmente a uma média de 200 toneladas diárias, segundo informações do coordenador de limpeza pública da Secretaria de Serviços Públicos da cidade. Grande parte desses resíduos é encaminhada para o aterro sanitário municipal, porém, outra parte é destinada para a reciclagem através do trabalho realizado pelos catadores de resíduos sólidos, a exemplo dos cooperados da Recicla Conquista. http://pt.wikipedia.org/wiki/Salvador http://pt.wikipedia.org/wiki/Feira_de_Santana http://www.blogdorodrigoferraz.com.br/v1/2014/08/13/em-dez-anos-pib-de-conquista-cresceu-mais-de-340/ http://pt.wikipedia.org/wiki/Minas_Gerais 31 Mapa 2: Região de influencia de Vitória da Conquista/BA Fonte: IBGE, 2007. 32 Cooperativa Recicla Conquista: aspectos gerais Fundada em novembro de 2004, a Cooperativa Recicla Conquista foi fruto de um Projeto de intervenção da Organização da Sociedade Civil para o Interesse Público (OSCIP) Pangea, cuja equipe técnica desenvolveu uma série de ações com o objetivo de organizar, em uma cooperativa, dezenas de famílias que trabalhavam no antigo lixão da cidade de Vitória da Conquista. Com isso pretendia-se realizar a inclusão social e econômica desses catadores de materiais recicláveis, sendo uma alternativa de trabalho e geração de renda. Segundo o coordenador geral da cooperativa e representante da OSCIP Pangea, outro objetivo era o de implantar a coleta seletiva no espaço urbano conquistense, visando-se dar uma destinação adequada aos resíduos sólidos gerados no município. Durante o processo de sua implantação, a Recicla Conquista recebeu apoio da Fundação Banco do Brasil; do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista (PMVC); da OSCIP Pangea e da Petróleo Brasileiro S/A (Petrobrás), dispondo presentemente de um patrimônio estimado em R$ 4 milhões, de acordo com a atual presidente da Cooperativa. A Recicla Conquista possui 3 galpões, sendo que a quantidade mensal de resíduos que processa gira em torno de 640 toneladas - 10,6% do lixo total gerado mensalmente na cidade. Mas o trabalho desenvolvido não se restringe a esses espaços físicos, visto que há presença de cooperados em locais chamados de Ecopontos, que se configuram em pontos de entrega voluntária do material. Os cooperados dessas localidades realizam também o sistema de coleta denominado ‘porta a porta’, onde os trabalhadores percorrem diversas ruas e avenidas da cidade. Além de fazer a coleta nas residências, os cooperados também recolhem materiais recicláveis em empresas, além de espaços de festas e eventos da cidade, conforme declaração do coordenador geral, responsável pela organização administrativa da Cooperativa. Entretanto, além desses, ainda há a presença de outros pontos de apoio da Cooperativa, localizados no interior de grandes empresas presentes na cidade, as quais se encontram distribuídas em uma série de bairros conquistenses, onde são gerados um grande volume de resíduos. Na Cooperativa é realizada apenas a triagem, classificação e prensagem do material coletado, sendo em seguida encaminhados para os atravessadores que, por sua vez, os conduzirão para as indústrias. 33 No que diz respeito à forma organizacional e administrativa, verificou-se a existência de um Conselho Administrativo composto pela presidente, vice-presidente, tesoureiro e secretário, e do Conselho de Ética e Conselho Fiscal, segundo informações da atual presidente da Cooperativa. Com relação aos sujeitos sociais que a compõem, é válido ressaltar que, atualmente, trabalham na Recicla Conquista 54 pessoas que desempenham as atividades e processos de trabalho necessários ao funcionamento da Cooperativa. Esses cooperados afirmaram que o principal fator que os impulsionaram na realização desse tipo de atividade, bem como a manter-se ligado à atividade da catação, foi a condição de desemprego por longo tempo. OSCIP Pangea: breve descrição Dado a acentuada importância da Pangea na organização da Cooperativa Recicla Conquista, considera-se interessante fazer uma breve descrição da mesma de modo a melhor compreendê-la enquanto organização. A Pangea é uma Organização da Sociedade Civil para o Interesse Público (OSCIP), tratando-se de um centro de estudos socioambientais fundado em 1996 na cidade de Salvador/BA. Esta organização apresenta como proposta o desenvolvimento de programas de caráter socioambiental em áreas urbanas e rurais, podendo-se destacar em sua área de atuação os programas de economia solidária e cooperativismo; de conservação e desenvolvimento sustentável; de educação ambiental e desenvolvimento comunitário; de protagonismo juvenil e de turismo sustentável. No intuito de fortalecer e ampliar sua área de atuação, houve o estabelecimento de parcerias desta OSCIP por meio de convênios firmados com instituições de ensino e pesquisa (Universidade Federal da Bahia – UFBA, Universidade de Salvador - UNIFACS, entre outras); entidades nacionais e locais (UNIBANCO, Instituto CREDICARD, etc.); Entidades internacionais (ONG ambientalista Italiana LEGAMBIENTE; ONG da Cooperação italiana TERRA NUOVA) e com o Governo Federal, a exemplo da Agência de Desenvolvimento do Nordeste e da Secretaria municipal de Educação e Cultura de Salvador. Observa-se que esta se trata de uma organização de ampla abrangência e atuação, cujo apoio foi fundamental na constituição da Cooperativa Recicla Conquista, com intervenção direta na organização administrativa, financeira e de capacitação técnica do corpo de cooperados. O coordenador local do Pangea na cidade de Vitória da Conquista, declara que 34 alicerçar a cooperativa em princípios cooperativistas consiste no objetivo primordial da Pangea para a Recicla Conquista, de modo que seja conquistada pelos cooperados a autonomia, intrinsecamente associada a capacidade de autogestão dos mesmos. 35 CAPÍTULO I CONTRADIÇÕES E PRECARIEDADE DO TRABALHO NA CATAÇÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS 36 1.1 O trabalho enquanto categoria ontológica central Na busca do entendimento dos significados e sentidos do trabalho na sociedade capitalista atual, acredita-se ser necessário considerar que o mesmo resulta e constitui como parte das relações sociais em diferentes épocas históricas, tendo suas variações de significação marcadas pelo desenvolvimento histórico-cultural, por tradições, valores, disputas sociais e concepções ideológicas. Desse modo, verifica-se que o sentido do trabalho (expresso pelo pensamento e pela linguagem), só pode ser efetivamente real no campo contraditório da práxis, e isso em um dado contexto histórico (FRIGOTTO, G., 2009). Tendo como base tal pressuposto, na presente pesquisa serão evidenciadas algumas das principais abordagens/análises realizadas em torno do trabalho no decorrer do processo histórico de desenvolvimento humano. Segundo Dias (2007), o trabalho ao longo da história da humanidade, apresentou dois significados, sendo eles contraditórios e dominantes. De um lado, aparece como maldição, apresentando um sentido de penosidade, podendo-se observar que, na Antiguidade e Idade Média, era tido como atividade depreciada, não nobre, inferior, significando sujeição às necessidades de sobrevivência destinada às mulheres e aos escravos, que eram considerados como não cidadãos. É válido ressaltar o fato de que a cultura judaico-cristã acabou por trazer modificações nessa significação, uma vez que a mesma traz o entendimento de igualdade entre as pessoas, promove uma oposição entre o conceito de ociosidade (considerada como ‘inimiga’ da alma) e o de trabalho, valorizando, ainda, o trabalho como forma de servir a Deus. Assim, constata- se que “[...] a Reforma Protestante muda mais radicalmente esse significado, levando o trabalho a um pleno reconhecimento: ‘ora e trabalha’, dizia Lutero.” (DIAS, 2007, p. 39). Dias (2007) ainda chama atenção para outro sentido atribuído ao trabalho - pelo seu caráter de atividade criativa - que é o de satisfação, mesmo embora essa possa ser tida como alienada. Sob essa perspectiva, é visto como fator de identidade social, socialização, obrigação moral e vocação, capaz de dignificar o homem. Assim sendo, pode-se então verificar certa contradição na significação do trabalho, denotando uma ambivalência histórica do mesmo, que por um lado é indesejável pela sua penosidade e, por outro lado, é considerado necessário para a reprodução tanto social, quanto biológica do ser humano (MULLER, 2005). 37 Sob uma visão histórica mais geral, pode-se ainda verificar que a categoria trabalho assume uma significação de tripálio - sob o plano das relações sociais da sociedade tribal, antiga e feudal - de labor e de poiesis, no contexto da sociedade capitalista e da utopia socialista/comunista, respectivamente (NOSELLA, 1987). Assim, observa-se que no mundo antigo, onde imperaram relações escravocrata e servil (NOSELLA, 1987), o trabalho era tido como uma maldição, uma punição, baseando-se na exploração brutal dos escravos, necessários em vários ramos da produção, sendo em sua maioria utilizados como força muscular, principalmente em trabalhos físicos pesados. Nesse período histórico, a dedicação à ciência, à arte e a direção do Estado, cabiam somente aos representantes da classe dominante (SAVTCHENKO, 1987). Surge aí a oposição entre o trabalho intelectual e o manual, que veio a se agudizar com as contradições antagônicas inerentes à sociedade feudal, onde o caráter da exploração do trabalho era condicionado pela forma social de trabalho baseada na propriedade feudal sobre a terra e na dependência pessoal dos camponeses servos. Foi no seio desse sistema feudalista que posteriormente veio a surgir o modo de produção capitalista que, por sua vez, baseia-se na exploração do trabalho assalariado e na propriedade capitalista privada, conforme ressalta Nosella (1987). O operário surge nesse processo não exercendo controle sobre seu trabalho, e sim o capitalista, a quem pertence o produto do trabalho, bem como os meios de produção. Tudo isso era necessário uma vez que esse modo de produção necessita, no plano ideológico (com os ideários de igualdade, liberdade e fraternidade) e no plano das relações econômicas (compra de força de trabalho), de trabalhadores que não mais sejam propriedade de outrem (escravos) e que também não possuam propriedade, sendo por isso chamado por Nosella (1987), de trabalhadores duplamente “livres”. Já o caráter do trabalho no socialismo, propõe-se a ser livre de todas as formas de exploração, assentando-se nos princípios do coletivismo, da cooperação fraterna e ajuda mútua. O mesmo caracteriza-se ainda pela socialização e planificação no processo de produção à escala social, sendo que a propriedade socialista dos meios de produção se constitui na base econômica mais importante do caráter socialista do trabalho (SAVTCHENKO, 1987). Sobre o trabalho comunista, Lenin (1986), por sua vez, apresenta-o como um trabalho não remunerado em benefício da sociedade, fora das normas, voluntário, para o bem comum de todos, o qual não visa recompensas. 38 Mediante o exposto, observa-se que o trabalho fica subordinado a determinadas formas sociais historicamente limitadas e a correspondentes organizações técnicas, o que caracteriza o chamado modo de produção, de tal maneira que: [...] o escravismo, feudalismo e capitalismo são formas sociais em que se tecem as relações que dominam o processo de trabalho, a forma concreta do processo histórico sob determinadas condições que cria essas relações fundamentais. O processo histórico é compreendido, portanto, pela forma como os homens produzem os meios materiais, a riqueza (OLIVEIRA, C. R., 2001, p. 6). Desse modo, se constata a reafirmação da forte influência do contexto histórico, social, econômico e cultural sobre os sentidos e significados do trabalho. Contudo, enfatizou- se nesta pesquisa a dialética presente na categoria trabalho sob o viés marxista, de modo que foi colocada em evidência a explicitação das categorias de apreensão do real na perspectiva do método materialista histórico dialético. De um modo geral, verifica-se que, na concepção marxista, o trabalho é condição para a existência humana como ser social. Pode-se dizer que tanto Marx quanto Engels deram ao trabalho rigor científico com base no materialismo histórico e dialético e da concepção histórica da realidade social e isso mediante pesquisas meticulosas (FRIGOTTO, F., 2000). De acordo com Marx (1999), por trabalho se entende o intercâmbio orgânico do ser humano com a natureza e a atividade que transforma a matéria natural. Em continuidade a sua discussão, esse autor prossegue afirmando que o trabalho trata-se de: [...] um processo de que participam o homem e a natureza; processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza: Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo [...] a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (MARX, 1999, p. 211). Observa-se que Marx aponta o trabalho como sendo uma categoria que possibilita ao homem a transformação simultânea tanto do meio em que vive como também de si próprio. O trabalho ainda é tido como algo intrínseco ao homem, sendo esse capaz de realizá-lo independente de qualquer que seja o período histórico determinado ou o modo de produção vigente. É importante ainda enfatizar o fato de que Marx é considerado como sendo o 39 instituidor da análise sobre a categoria trabalho na condição de base ontológica central para o ser humano em sociedade (SOUZA, 2008). Assim sendo, tendo por base o aporte teórico de estudos desenvolvidos por Marx, considera-se que é por meio do trabalho que o ser humano torna-se capaz de desenvolver as suas formas de agir, pensar e sentir, consolidadas tanto na apropriação daquilo que foi culturalmente produzido ao longo da história da humanidade, bem como na exteriorização em sua produção (VALE et al., 2009). É preciso ainda que se compreenda que, para Marx (2004), é somente por meio do trabalho não alienado que o ser humano conquista a sua auto realização, ao expressar todo o seu potencial criativo. Contudo, o que se pode observar sob o modo de produção capitalista é a não exteriorização das potencialidades dos sujeitos, uma vez que os mesmos são privados dos frutos de seu trabalho (em função, sobretudo, da divisão do trabalho) como se lhes fosse algo alheio (VALE et al, 2009). Tudo isso acaba por caracterizar o trabalho alienado, entendendo que o mesmo: [...] corresponde ao trabalho explorado pelos detentores da riqueza socialmente produzida e dos meios de produção sobre os proprietários da força de trabalho. A partir do momento em que os trabalhadores não possuem controle do processo produtivo e do produto de seu trabalho, eles sofrem um processo de alienação. Assim, estudar o trabalho alienado é diferente de estudar o trabalho em sua forma mais pura e primária e, portanto, ontologicamente criador do homem como um ser em sociedade (SOUZA, 2008, p. 10). Verifica-se, assim, que essa se trata de uma questão contemporânea, relevante, visto que sob o modo de produção capitalista o trabalho constitui-se em um agente de alienação, na medida em que, sob a sociedade da propriedade privada, regida pela lei do mercado, os indivíduos se separam do trabalho (dos meios de produção social) e dos resultados dele. Tudo isso acaba por limitar a capacidade do ser humano de se reconhecer na atividade que realiza, não conseguindo refletir sobre aquilo que produz e muito menos sobre as conquistas feitas pela humanidade em sua totalidade (VALE et al., 2009). Associada à alienação, há ainda o processo de estranhamento do trabalhador no seu cotidiano que, segundo Ranieri (2001), possui principalmente quatro características: o estranhamento no interior da sua própria atividade; em relação ao produto do seu trabalho; com relação a si mesmo e no que diz respeito ao outro homem. Por essa razão, esse autor 40 acredita que por meio do processo do estranhamento seja negada ao trabalhador a essência humana. Thomaz Júnior (2012, p.16), por sua vez, considera que: Sob a vigência e mando do capital o trabalho estranhado é, por consequência, (des)efetivação, (des)indentidade, e (des)realização, especialmente nos últimos tempos com a crescente e intensa mobilidade de formas de expressão e da plasticidade do trabalho vivenciadas pelo trabalhador diante dos signos imperantes do século XXI. Assim, considera-se que a vigência do trabalho estranhado seja consequência da reafirmação e intensificação da lógica destrutiva do sistema produtor de mercadorias (ANTUNES, 2002). Thomaz Júnior (2012) acredita que seja preciso ainda compreender que o que assume um caráter estranhado sob o poder do capital, é o trabalho abstrato, de modo que é a crise deste que aparece como consequência da repercussão da forte crise que abate sobre o capital. Desse modo, ao se falar da crise da sociedade do trabalho, é preciso qualificar de que dimensão se está versando, se é uma crise da sociedade do trabalho abstrato ou se trata da crise do trabalho também em sua dimensão concreta (ANTUNES, 2002). É mediante esses processos de alienação e estranhamento que permeiam o mundo do trabalho, que se observa que sua abordagem como categoria ontológica vem sendo severamente questionada por autores, tais como Habermas (1987) e Offe (1989), entre outros, que acreditam que a chamada ‘sociedade do trabalho’ já não mais corresponda às novas dinâmicas sociais produzidas na atualidade. Filósofo identificado com a Escola de Frankfurt, Habermas (1987) questiona a concepção de Marx quanto à centralidade do trabalho, afirmando que o mesmo apresenta-se como sendo ineficaz, uma vez que não mais atende aos anseios da sociedade atual. Ele traz consigo uma nova discussão ao tentar substituir o trabalho pela esfera da comunicação, apontando ainda para o que se pode chamar de uma nova hegemonia cultural fundamentada na ação solidária e na cooperação, visando-se alcançar um consenso e um entendimento mútuo. Para esse autor, são referências como espaço vital, modo de vida e vida cotidiana que determinam a vida social e não mais a produção, de modo que os indivíduos, a sociedade e o Estado, já não teriam no trabalho a principal referência para a sua existência. Offe (1989), sociólogo alemão também vinculado à Escola de Frankfurt, igualmente proclama o fim da sociedade do trabalho, apontando para a necessidade do desenvolvimento de uma teoria sociológica que seja explicativa das mudanças sociais. Segundo o mesmo, é da 41 crise da sociedade do trabalho que deriva a perda de sua centralidade enquanto categoria explicativa da vida social, uma vez que as modificações ocorridas na sociedade trazem consigo o surgimento de uma heterogeneidade prática do trabalho, fato que acaba por ser um empecilho a uma homogeneização de seu conceito. Segundo esse autor, essas modificações expressam-se por meio dos novos e diferentes tipos de racionalidade do mundo do trabalho: diferenças de renda, de salário, de qualificação, de carreira, bem como as diferenças entre os trabalhos produtivos e de serviços. Vale enfatizar o fato de que é a teoria da ação comunicativa de Habermas que se constitui na nova base conceitual apontada por Offe, considerando-se que a mesma “[...] satisfaz a necessidade de buscar, além da esfera do trabalho, as categorias e os conceitos capazes de catalogar as esferas da realidade social, suas estruturas, campos de ação e relações de sentido.” (FRANCO; FRIGOTTO, 1993, p. 542). Contudo, ao analisar o discurso da não centralidade da categoria trabalho proclamado por Offe, Franco e Frigotto (1993) afirmam que as teorizações propostas na verdade encobrem a realidade concreta, na medida em que se situa tão somente no plano interpretativo de concepção da realidade histórica, o que contribui para o abandono das relações sociais de produção material da existência e, desse modo, o trabalho em sua dimensão ontológica. Em defesa do trabalho enquanto categoria ontológica central, Thomaz Junior (2012), por sua vez, considera equivocada a declaração de que o trabalho está diminuindo ou de que esteja caminhando para o seu fim, por meio de afirmações assemelhadas ao fim do proletariado e da centralidade do trabalho. Esse autor acredita que o que se apresenta é o emprego em estado moribundo, uma vez que se está em questão a precarização/eliminação das garantias dos postos de trabalho, colocando-se em risco o reconhecimento dos direitos sociais e trabalhistas, portador de seguridade previdenciária e social. Desse modo, pode-se inferir que o trabalho, em sua generalidade e essência – que se apresenta como uma relação filosófica do ser humano com a natureza, caracterizado como expressão da naturalização do ser humano, ao mesmo tempo em que também se constitui como um processo de humanização da natureza (NETO, 2009) – não se constitui em emprego, tido como sendo uma mera relação funcional na vida das pessoas e sob determinadas relações de dominação e de controle. Neto (2009) acredita que se possa, de certo modo, aceitar o questionamento em torno da centralidade do trabalho relativa ao cotidiano, ao ponto de vista sociológico ou ao próprio campo do trabalho assalariado, que se constituem em questionamentos em torno de outras 42 categorias, tais como do emprego, da profissão (que não mais necessariamente caracteriza o indivíduo), da perspectiva sociológica do trabalho ou mesmo da configuração de classe social. Mas, para esse autor, a condição do trabalho como elemento central na vida humana não deve de modo algum ser questionada, uma vez que se compreende que as transformações nele recorrentes só vem a reforçar a sua centralidade, entendendo-se que sem o mesmo não há humanização e nem riqueza – material e espiritual –, sendo a atividade emancipatória por excelência do ser genérico do homem (MARX, 2013). A compreensão é de que mesmo que a morfologia do trabalho tenha se alterado profundamente na sociedade contemporânea e se verifique que sob o modo de produção capitalista o mesmo se constitua em um agente de alienação e estranhamento, se entende que a abordagem da centralidade do trabalho para a explicação da sociedade contemporânea apresenta-se como pressuposto para a construção de uma sociedade anticapital, focando-se, assim, na potência emancipadora do trabalho enquanto ator-sujeito transformador. 1.2 A precarização do trabalho: expressão da exploração intensa e da alienação dos trabalhadores. Mediante um cenário de profundas transformações sociais, políticas e econômicas que caracterizam a sociedade atual, questões concernentes à precarização das condições de trabalho vem sendo amplamente abordadas por várias áreas das ciências sociais, entendendo-se que o estudo e a análise dessa problemática contribuem para ampliar a capacidade de compreensão da atual configuração do mundo do trabalho, por parte dos sujeitos na atualidade. Contudo, para uma melhor compreensão do processo de precarização das condições de trabalho, é necessário que se perceba que é sob o contexto do desemprego estrutural, bem como da reestruturação produtiva do capital, que esse processo se realiza de forma cada vez mais acentuada. De um modo geral, pode-se dizer que a reestruturação produtiva é caracterizada, entre outras coisas, por um forte processo de inovações tecnológicas e científicas (pela presença da automação, da microeletrônica, da robótica, entre outros) utilizadas principalmente para aumentar a produtividade e reduzir os gastos em força de trabalho. A mesma fora desencadeada, sobretudo, nos anos 1970 em um “[...] cenário de baixas taxas de crescimento econômico, com desregulada concorrência e profundas incertezas na economia mundial.” (POCHMANN, 1999, p. 47). 43 Durães (2007), por sua vez, afirma que a adesão a esse novo padrão de produção, o regime de acumulação flexível, foi uma resposta a uma série de crises presenciadas nos anos 1970, período que foi marcado por uma queda do ritmo de produção e de produtividade, pela crise inflacionária em alguns países, bem como pela crise do petróleo. Assim, observa-se que o sistema capitalista se reestrutura justamente para tentar recuperar e manter suas taxas de lucro, intensificando a produtividade e aumentando as formas precárias de exploração da força de trabalho. Todas essas inovações acabaram sendo absorvidas e utilizadas em praticamente todos os setores sociais, inclusive no universo das fábricas e de serviços, intensificando profundamente as formas de produção já existentes. Uma forte evidência desse fato revela-se por meio da gradativa substituição do padrão rotulado de Fordismo (caracterizado pela linha de montagem, pela produção em massa e produtos mais homogêneos) pelo Toyotismo (onde se produz o necessário, em menor tempo, em que o trabalhador opera com várias máquinas) exigindo-se, assim, um trabalhador cada vez mais polivalente, qualificado para atuar nesse novo cenário (ANTUNES, 2002). Assim, o que se observa são novas formas organizacionais de controle dos trabalhadores, introduzidas para atender a demanda de acumulação capitalista. No caso do Brasil, foi no contexto das décadas de 1980 e 1990 que ocorreram importantes mudanças produtivas. Para Busnello (2000), o processo de reestruturação produtiva no país teve origem, principalmente, nas reformas implantadas ao longo da década de 1990, que marcou a introdução de um projeto neoliberal no país, possibilitando as condições fundadas em uma política econômica de inserção subordinada à globalização: A maior exposição da economia à concorrência internacional induziu à reestruturação produtiva das empresas brasileiras, até então voltadas especialmente para o mercado local. Essa tendência, no entanto, só foi reforçada com o plano de estabilização dos preços adotado em 1994 (Plano Real), que ao valorizar a moeda nacional de frente às moedas dos nossos parceiros comerciais e ao manter elevadíssimas taxas de juros no mercado doméstico, reforçou as tendências de reestruturação produtiva. Como parte da nova política econômica, o governo Fernando Henrique Cardoso propôs mudança do sistema nacional de relações de trabalho, a fim de permitir maior liberdade e autonomia no estabelecimento das condições de trabalho. O conjunto das medidas adotadas e propostas contém uma alteração significativa dos direitos inscritos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e em outras leis trabalhistas, possibilitando assim que os mesmos sejam objeto de negociação entre as partes (os atores sociais) envolvidas (BUSNELLO, 2000, p. 25-26). 44 Busnello (2000) prossegue afirmando que, diante desse cenário, o Brasil passou a absorver o novo modelo produtivo caracterizado por novas formas organizacionais, pela acelerada incorporação de novos equipamentos informatizados e flexíveis ao processo produtivo, e pela subcontratação de produtos e serviços. Durães (2007), por sua vez, se direciona de forma mais enfática para a questão da intensificação da subcontratação e da terceirização da força de trabalho, bem como da transferência de plantas e unidades produtivas, nesse período. Segundo esse autor, tudo isso acabou por contribuir para a ampliação do grau de precarização do trabalho no Brasil, com o crescimento do desemprego estrutural e o aumento da informalidade, devido à escassez de empregos ditos regulares ou formais. Percebe-se que as transformações advindas desse estágio de desenvolvimento tecnológico e organizacional do modo de produção capitalista, levaram ainda a uma ampla remodelação da gestão do processo produtivo e das formas de emprego das técnicas, alterando imensamente a rotina das empresas, na medida em que foram sendo absorvidos novos métodos de organização e gestão das mesmas. Além disso, também contribuíram para um redimensionamento nas formas de exploração do trabalho, que passou a ser explorado qualitativamente de maneira mais intensa (GONÇALVES, 2001). Todas essas inovações tecnológicas significaram, sobretudo para as grandes empresas, possibilidades para expandir-se com uma maior intensidade para países e regiões onde possam encontrar condições mais favoráveis (salários baixos, mão de obra barata, etc.), podendo ser mencionadas ainda a questão da guerra fiscal e da migração do trabalho. Entretanto, essa possibilidade de transferência de operações ainda não é considerada suficiente para a redução de custos e, por isso, tais empresas procuram outras formas de contenção de gastos, inclusive com a redução do número de funcionários (mediante a demissão) como meio para se atingir tal propósito. Pode se mencionar, ainda, as propostas mudanças nos sistemas de gestão e controle do trabalho, por meio dos Círculos de Controle de Qualidade - CCQ (GOMES; PENEDO, 2008). Foi a inserção de novas tecnologias no processo produtivo (caracterizando uma fase de alta produtividade) que possibilitou uma maior acumulação de capital. A própria tendência histórica do capitalismo aponta para a acumulação, concentração e centralização do capital, (SOARES, 2008). Entretanto, toda tendência à inovação tecnológica, ao possibilitar redução de custos, bem como um aumento da produtividade do trabalho, acaba conduzindo a uma crescente 45 substituição de trabalho vivo por trabalho morto, ou seja, da força de trabalho por máquinas (THOMAZ JÚNIOR, 2005), tornando esse sistema cada vez mais intensivo em capital. Assim se observa a desvalorização que atinge inclusive a “mercadoria” força de trabalho, cuja expressão é o desemprego estrutural. É importante compreender que é através da apropriação da força de trabalho, que se extrai a mais-valia e, ao se elevar a composição orgânica do capital, o total de valor acrescentado à produção social (mais-valia) é, portanto, relativamente cada vez menor. Isso acaba por explicar a tendência, em última instância inevitável, da queda da taxa geral de lucros, revelando uma contradição estrutural e sistêmica. Assim, observa-se que esse desenvolvimento tecnológico e organizacional do modo de produção capitalista, além de contribuir para o redimensionamento nas formas de exploração do trabalho, que passou a ser explorado de maneira cada vez mais intensa, também conduziu a uma alteração na composição orgânica do capital, em função da diminuição relativa do capital variável (força de trabalho) em relação ao capital constante (meios de produção). Ramos e Souza (2006) declaram que essa maior exclusão do trabalho vivo no processo produtivo, contribuiu para que as taxas de desemprego se elevassem a altos níveis. É nesse sentido que se insere o trabalho informal, sob todo esse contexto de baixo desenvolvimento do capital orgânico, pouco investimento em capital constante e utilização maciça do trabalho tornado excedente na esfera desenvolvida da produção capitalista, como é o caso dos trabalhadores catadores. Notou-se ainda que a produtividade do trabalho não foi acompanhada pela redução da jornada de trabalho, nem pelo aumento real do salário e isso implicou, e ainda implica, numa redução relativa do consumo (SOARES, 2008). De um modo geral, todo esse cenário contraditório acabou resultando numa grande crise do sistema, sendo que são as próprias contradições internas do sistema capitalista (insanáveis e inerentes a esse modo de produção) que tendem a gerar crises de acumulação do capital. Essas crises, segundo Harvey (2005), são tipicamente registradas como excedentes de força de trabalho, que se dá lado a lado com excedentes de capital (em termos de mercadoria, moeda e capacidade produtiva) e isso sem que haja uma maneira de conjugá-los de maneira lucrativa a fim de realizar tarefas que sejam socialmente úteis. Esse excedente de trabalho retroalimenta a precarização, pois funciona como regulador do mercado de trabalho: com maior desemprego há uma tendência à diminuição dos salários; a pressão sobre os empregados aumenta, assim como as reivindicações tendem a diminuir. 46 Isso explica em parte a aparente contradição entre desemprego e aumento real da jornada de trabalho, seja através da ampliação da jornada ou por sua intensificação. Entretanto, nesse século XXI o capitalismo tem se revelado sob uma profunda crise com dimensões jamais constatadas até então, sendo, por isso, considerada por Mészáros (2002) como uma verdadeira crise estrutural. Tal condição histórica do capitalismo representa uma das evidências mais claras de que as contradições inerentes ao seu sistema acumulativo atingiram limites verdadeiramente históricos (MENEZES, 2007). Alguns elementos podem ser destacados como sendo caracterizadores dessa crise, tais como: [...] tendência histórica da queda das taxas de lucro e consumo do capitalismo; tendência à monopolização, financeirização e desvalorização do capital decorrente, contraditoriamente, do alto nível de concorrenciabilidade intercapitalista, que se estabelece num mercado cada vez mais “globalizado” e, sobretudo, as novas estratégias do capital de intensificar o processo de exploração do trabalho a partir da inserção da ciência e das novas tecnologias na produção (MENEZES, 2007, p. 25). Essa crise estrutural que o capitalismo atravessa veio a se tornar visível no começo da década de 1970, com a crise de superprodução de amplos segmentos industriais da economia capitalista mundial, com a pressão para a descida das taxas de lucro no setor industrial e com o aumento da composição orgânica do capital. Segundo Menezes (2007), todas essas alterações se processam num contexto em que os limites naturais se impõem e as contradições internas do sistema se agudizam. Podem ser citadas, como exemplos, as contradições existentes entre acumulação de capital e a diminuição tendencial das taxas de lucro; entre o desenvolvimento das forças produtivas e as condições limitadas em que se processa o crescimento do consumo, entre outras (CARVALHO, P., 2007). Diante de tal cenário, visando suster as dificuldades em manter as taxas de exploração e contrariar o crescimento da composição orgânica do capital e a resultante pressão para a descida das taxas de lucro, a ofensiva capitalista então procura aumentar a mais-valia absoluta. Essa, por sua vez, se dá principalmente pela intensificação dos ritmos de trabalho, pela redução aos salários reais e pelo aumento da carga horária de trabalho. Assim, o que se vê é uma intensificação da exploração do trabalho “[...] num contexto de subutilização da capacidade industrial instalada e de crescimento do exército de reserva de desempregados e os subempregados [...] na ânsia de intensificar a extração de mais-valia, relativas e absolutas.” (CARVALHO, P., 2007, p. 2). Ribeiro (2012) considera que o trabalho assalariado (embora seja a forma de organização hegemônica do trabalho, no capitalismo), não se constitui na única estratégia de 47 extração da mais-valia. Segundo essa autora, o trabalhador catador é um exemplo de uma forma de organização “autônoma” cuja subordinação, no circuito da comercialização aos ditames do capital, se revela através da baixa remuneração, insegurança social, jornadas extensas, e poucas perspectivas de melhoria. Essa autora destaca o trabalho de catação de resíduos sólidos - que vêm aumentando no Brasil de forma acentuada - como sendo uma das tendências assumidas pelo capital na realização da extração do valor excedente. Assim, entende-se que a realidade do trabalho de catação no sudoeste da Bahia, parte desse contexto organizacional do trabalho, não podendo desse modo ser compreendida fora das transformações históricas do capitalismo. Também há de se ressaltar que, variam as ocupações, mas o trabalho precário é uma constante no mercado de trabalho brasileiro. Uma análise de todo exposto conduz a percepção de que é nesse contexto do atual estágio de desenvolvimento tecnológico e organizacional do modo capitalista de produção, que prolifera o aumento da miséria da classe trabalhadora, bem como a intensificação do processo de precarização das condições de trabalho e o aumento das taxas de desemprego em praticamente todo o mundo. Isso se dá na medida em que: [...] cada vez mais homens e mulheres trabalhadores encontram menos trabalho [...] configurando uma crescente tendência de precarização do trabalho em escala global [...], sendo que a ampliação do desemprego estrutural é sua manifestação mais virulenta (ANTUNES, 2009, p.252). Esse cenário acaba por repercutir de forma significativa na própria estrutura do trabalho, de modo que a classe trabalhadora tem nos dias atuais uma conformação mais fragmentada, heterogênea e complexificada sendo, de acordo com Antunes (2005), cada vez menos composta por operários e proletários. Assim, esse autor pondera que a compreensão da classe trabalhadora contemporânea de modo mais ampliado, requer a busca do entendimento desse conjunto de seres sociais que vivem da venda de sua força de trabalho, sendo esses assalariados e desprovidos dos meios de produção (ANTUNES, 2005). Diante de toda essa realidade caracterizada pelo processo de precarização das condições de trabalho, bem como pelo desemprego, pode-se ainda perceber a difusão de uma forte ideologia da própria lógica do mercado, sob a qual é apregoada a riqueza e a pobreza como realidades independentes: o rico é rico porque ele é qualificado, enfim, competente; já o pobre é mal qualificado, pouco estudado e, enfim, incompetente, sendo 48 responsável pela sua situação de pobreza, de miséria; portanto, tudo se reduz ao indivíduo e a sua competência (LESBAUPIN, 2002). Do mesmo modo, os catadores (individuais e cooperados), por exemplo, são também responsabilizados pela sua situação econômica e, assim, pelas condições de vida e de trabalho, uma vez que os mesmos apresentam baixo nível de escolaridade e, consequentemente, baixa qualificação para o mercado de trabalho. Para o sistema capitalista, a força de trabalho nada mais é do que uma mercadoria indispensável, necessária para a produção. Dessa forma, a força de trabalho (que pertence ao trabalhador) é vendida como qualquer outra mercadoria aos donos dos meios de produção (o capitalista), deixando de ser propriedade do trabalhador, mesmo que seja temporariamente. Isso tudo ocorre sob “[...] a lógica de um sistema metabólico do capital que converte em descartável e destrói a força humana de trabalho, indicando o desemprego crônico.” (CONCEIÇÃO, 2005, p. 3). É justamente sob essa sociedade da propriedade privada, regida pela lei do mercado, que os indivíduos se separam do trabalho, dos meios de produção social, e dos resultados dele. Sob essa perspectiva, se pode então perceber um intenso processo de alienação, seja ele tanto de ordem material, quanto de ordem ideológica, já que o trabalhador, enquanto pessoa livre, “[...] dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele [...] não tem outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.” (MARX, 1983, p. 140). É na medida em que a concorrência se mundializa pelo mercado global, que se torna também mundial a forma desigual e contraditória com que os sujeitos são simplesmente dispensados novamente e tornados supérfluos: Assim, é a materialização mais desumana e perversa da inversão irracional do sistema: considerar ‘despesa’ e dispensar aquilo que é sua única fonte de lucro, o trabalho. Eis a contradição e a condição estrutural (MENEZES, 2008, p. 6). Diante do exposto, pode-se perceber que se trata de uma realidade um tanto complexa, na medida em que são verificadas condições de trabalho precarizadas de milhares de pessoas que encontraram na informalidade uma forma de garantir a sobrevivência. Contudo, a elas cabe lutar por perspectivas melhores sem perderem a esperança na possibilidade de significativas mudanças. 49 É importante enfatizar ainda que a precarização das relações de trabalho, que tem na informalidade uma de suas características mais marcantes, se apresenta social e territorialmente em várias cidades brasileiras nas mais diversas atividades, sendo uma delas a atividade dos trabalhadores catadores de resíduos recicláveis. De acordo com Ribeiro (2012) esses se apresentam como exemplo de uma parcela significativa da classe trabalhadora atingida por relações de trabalho perversas, pois, mesmo embora esses trabalhadores atuem sob a perspectiva do cooperativismo e da econo