Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP Instituto de Artes - IA Programa de Pós-graduação em Artes - PPGARTES Lucas de Carvalho Larcher Pinto DO LIVRO À CENA: (Trans)Criações Visuais no Teatro Infantojuvenil São Paulo - SP 2022 Lucas de Carvalho Larcher Pinto DO LIVRO À CENA: (Trans)Criações Visuais no Teatro Infantojuvenil Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) do Instituto de Artes (IA) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Artes. Área de Concentração: Artes Cênicas Linha de Pesquisa: Estética e Poéticas Cênicas Orientador: Prof. Dr. Wagner Francisco Araújo Cintra São Paulo - SP 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. P659l Pinto, Lucas de Carvalho Larcher, 1990- Do livro à cena : (trans) criações visuais no teatro infantojuvenil / Lucas de Carvalho Larcher Pinto. - São Paulo, 2022. 295 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Wagner Francisco Araújo Cintra Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Teatro infantojuvenil. 2. Teatro e crianças. 3. Livros ilustrados para crianças. 4. Teatro (Literatura) Técnica. 5. Criação (Literária, artística, etc.). I. Cintra, Wagner Francisco Araújo. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792.0226 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 Lucas de Carvalho Larcher Pinto DO LIVRO À CENA: (Trans)Criações Visuais no Teatro Infantojuvenil Esta tese foi julgada adequada à obtenção do título de Doutor em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES) do Instituto de Artes (IA) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Defendida e aprovada em 04 de Abril de 2022. Banca examinadora: ______________________________________________________ Prof. Dr. Wagner Francisco Araújo Cintra (Orientador) Universidade Estadual Paulista (UNESP) ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Amábilis de Jesus da Silva Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Elizabeth da Penha Cardoso Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia de Souza Barros Pupo Universidade de São Paulo (USP) ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Vilma Campos dos Santos Leite Universidade Federal de Uberlândia (UFU) À minha mãe e à minha irmã, por aquilo que não sei expressar com palavras . AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. À Universidade Federal de Uberlândia (UFU), responsável por grande parte de minha formação acadêmica, além de ter sido a casa que me acolheu como docente substituto ainda no início do doutorado, permitindo-me experimentar muitas das ideias que fomentaram este processo investigativo. À Paulina Caon e à Rose Gonçalves, coordenadoras da graduação em Teatro da UFU no tempo em que ali trabalhei. Seus olhares sensíveis foram fundamentais no apontamento de potências que, até então, eu negligenciava em mim mesmo e, consequentemente, em minhas atividades artísticas, de docência e de pesquisa. À Daniele Pimenta, ao Edu Silva e à Maria Marques, muito mais do que colegas de trabalho na UFU, verdadeiros entusiastas e incentivadores durante o processo seletivo do doutorado, não medindo esforços para me ajudar no que fosse preciso. Aos estudantes da graduação em Teatro da UFU, por terem me provocado e me ensinado muito no exercício da docência. Em especial, ao elenco de O dia de Alan , montagem cujas apresentações se estenderam aos anos do doutorado e que, mesmo não sendo abordada nesta tese, aqui se reverbera. À Universidade Estadual Paulista (UNESP), instituição de ensino pública, gratuita e de qualidade, que me permitiu cursar o doutorado, com suporte humano sempre disposto e afetuoso, além de uma estrutura física robusta e acolhedora. À Luiza Christov e ao João Cardoso Palma Filho, professores queridos do curso de doutorado, que, durante suas aulas, não apenas compartilharam seus vastos saberes, mas estimularam a emergência de inquietações e de possíveis caminhos investigativos. Aos colegas de turma do doutorado, sempre dispostos ao diálogo, mesmo com pesquisas em campos e/ou temas tão diversos e distantes. Em especial, à Marilyn Nunes, companheira para além das salas de aula. Ao grupo de pesquisa Poéticas cênicas: visuais e performativas , principalmente à Bia Mendes, à Haylla Rissi, ao Osvaldo Anzolin e ao Michel Farah, parceiros de orientação que acompanharam mais de perto as dores e as delícias da construção desta tese, transformando, muitas vezes, trocas acadêmicas em amizades. Aos estudantes das disciplinas que ministrei na UNESP ao longo de 2019 e de 2020, artistas-docentes-pesquisadores inquietos e que fazem acreditar em dias melhores. À Universidade de São Paulo (USP), onde estive como aluno especial e conheci pessoas incríveis em 2018. Em especial à professora Sumaya Mattar, tão sensível, quanto estimulante em suas aulas, em suas propostas e nos encontros que promove. À Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), por me proporcionar um ambiente de trabalho favorável ao desenvolvimento profissional e, consequentemente, à realização de minha pesquisa desde 2019. Aos colegas da Secretaria de Cultura da UFES (SECULTT-UFES), que tantas vezes escutaram sobre minha tese, impulsionando-me a seguir em frente. Meu muito obrigado, principalmente, à Ana Paula Fantino, à Eliza Gobira e ao Darkio Lourenço, pelos olhos, pelos ouvidos e pelos corações atentos e generosos. Aos participantes do projeto de extensão Cia de Teatro da UFES, persistentes companheiros de paixão e de luta pelas Artes Cênicas, que, sem titubeios, mergulharam em minhas proposições acerca dos livros e dos espetáculos voltados para as jovens gerações. Ao Vinicius Pereira Coelho e ao Fábio Medeiros, artistas-docentes-pesquisadores que compartilharam comigo importantes materiais bibliográficos de cunho internacional, aos quais eu não teria acesso facilmente sem suas ajudas. Aos amigos de sempre. À Hanna Perez, por me acolher em São Paulo inúmeras vezes, fazendo de sua casa a minha também. Ao Gui Conrado, primeiro leitor desta tese, além de interlocutor constante ao longo dos anos de pesquisa. À Gabi Ananda, companhia em passeios, almoços, compras etc… lembrando-me da vida para além das páginas que se seguem. Ao Sebastian Granja, por ter sido calmaria e escuta, mesmo não compreendendo, por vezes, nada do que eu dizia. Ao Victor Fava, questionador nato de minhas verdades, atentando-me para outros pontos de vista. À Janilza Solange, que, mesmo distante, fez-se presente sempre e de modo lúcido. À minha família - porto seguro eterno - encorajadora de ideias e transformadora de sonhos em realidade. Em especial à minha mãe Graça, à minha irmã Thaís, ao meu primo Fernando, às minhas tias Carminha, Júlia e Regina - Didi. Essas duas últimas financiadoras dos muitos deslocamentos entre Uberlândia e São Paulo no começo do doutorado. A Deus, em todas as suas maneiras de manifestação. E, finalmente… Ao Wagner Cintra, por orientar-me nesse processo, acolhendo meu desejo de investigação, promovendo minha autonomia como pesquisador e expandindo meus horizontes sobre teatro inúmeras vezes nos últimos anos. Além disso, agradeço por, despropositadamente, ter me ensinado muito acerca do universo acadêmico, assim como sobre as relações humanas e os afetos que vamos construindo nesse contexto. À Vilma Campos e à Amabilis de Jesus pelas leituras atentas e os apontamentos precisos no Exame de Qualificação, aceitando participar da defesa final desta tese. Muito do que aqui figura tem a contribuição destas duas grandes artistas-docentes-pesquisadoras, que tanto admiro. À Elizabeth Cardoso e à Maria Lúcia Pupo, artistas-docentes-pesquisadoras igualmente admiradas, que se dispuseram a estar na banca de defesa final da tese, enriquecendo-a. Ao Mario Piragibe e à Flávia D'Ávila, gentis suplentes no Exame de Qualificação e na defesa final desta tese. À Rossana Della Costa, que me apresentou as palavras de Mário Quintana, tão importantes para o desfecho desta tese, e aceitou ser suplente na banca de defesa final. Aos autores Michele Iacocca, Davide Cali e Serge Bloch, por compartilharem com o mundo seus poéticos As aventuras de Bambolina e O inimigo , respectivamente, desencadeando os espetáculos aqui em foco e esta pesquisa. De modo especial, agradeço ao Iacocca por ter presenteado-me com suas sensíveis palavras em forma de entrevista. Aos grupos Pia Fraus, Maracujá Laboratório de Artes e Cia. de Feitos, que me permitiram contar um pouco de suas histórias e sem os quais esta tese não existiria desta maneira. Em especial aos artistas entrevistados durante esta pesquisa: Beto Andretta , Sidnei Caria , Camila Ivo - minha fada madrinha - , Josafá Alves, Carlos Canhameiro , Paula Mirhan, Rui Barossi, Artur Kon, Carla Massa, Paula Serra e Giscard Luccas. Meu muito obrigado! [...] e ele navegou noite e dia, semana vem semana vai [...], para onde vivem os monstros… Maurice Sendak RESUMO Este estudo aborda o Teatro Infantojuvenil brasileiro atual, com foco em produções paulistanas das duas primeiras décadas do século XXI que se originaram de livros destinados a crianças e jovens, em especial os ilustrados e os livros-imagem. Amparado por uma perspectiva histórica e conceitual, analiso a passagem dos livros para as cenas, no que concerne ao âmbito visual destas, em dois estudos de caso: os espetáculos As aventuras de Bambolina (2008) - Cia. Pia Fraus e Maracujá Laboratório de Artes - e Inimigos (2017) - Cia. de Feitos -, baseados nas publicações As aventuras de Bambolina (2006), de Michele Iacocca, e O inimigo (2008), de Davide Cali e Serge Bloch, respectivamente. Para isso, utilizo-me de procedimentos metodológicos e de fontes de natureza heterogênea que possibilitaram a construção de um ensaio textual de inspiração a/r/tográfica, no qual os códigos comunicativos de enunciação - palavras e imagens - estão em diálogo com a natureza e a especificidade da pesquisa. A tese aqui apresentada é que as peças em destaque - As aventuras de Bambolina e Inimigos - possibilitam ampliar a (trans)criação teatral para o campo visual, uma vez que, além de se originarem de estímulos não-verbais e/ou não exclusivamente verbais, explicitam as visualidades como as responsáveis e/ou as co-responsáveis pelas construções narrativas e/ou dramatúrgicas das cenas. Palavras-chave: Teatro Infantojuvenil; Livro Ilustrado; Livro-Imagem; Visualidades da Cena; Narrativa e/ou Dramaturgia da Cena; (Trans)Criação Visual. RESUMEN Este estudio aborda el Teatro para Niños y Jóvenes actual del Brasil, centrándose en las producciones paulistanas de las dos primeras décadas del siglo XXI, que se originaron a partir de libros destinados a jóvenes y niños, especialmente los álbuns. Apoyado en una perspectiva histórica y conceptual, analizo el paso de los libros a las escenas, en cuanto a su alcance visual, en dos estudios de caso: las muestras As Aventuras de Bambolina (2008) - Cia. Pia Fraus y Maracujá Laboratório de Artes - y Inimigos (2017) - Cia. de Feitos -, basada en las publicaciones As Aventuras de Bambolina (2006), de Michele Iacocca, y O Inimigo (2008), de Davide Cali y Serge Bloch, respectivamente. Para esto, utilizo procedimientos metodológicos y fuentes de naturaleza heterogénea que permitieron la construcción de un ensayo textual inspirado en la a/r/tografia, en el que los códigos comunicativos de enunciación - palabras e imágenes - dialogan con la naturaleza y la especificidad de la investigación. La tesis aquí presentada es que las obras destacadas - As Aventuras de Bambolina e Inimigos - hace posible ampliar la (trans)creación teatral al campo visual, ya que, además de partir de estímulos no verbales y/o no exclusivamente verbales, explica las visualidades como responsables y/o corresponsables de las construcciones narrativas y/o dramatúrgicas de las escenas. Palabras clave: Teatro para Niños y Jóvenes; Álbun; Visualidades de la Escena; Narrativa y/o Dramaturgia de la Escena; (Trans)Creación Visual. ABSTRACT This study addresses the current Brazilian Theater for Child and Youth, focusing on São Paulo productions from the first two decades of the 21st century that originated from books intended for children and young people, especially picturebooks and wordless picturebooks . Supported by a historical and conceptual perspective, I analyze the passage from books to scenes, with regard to their visual scope, in two case studies: the shows As Aventuras de Bambolina (2008) - Cia. Pia Fraus and Maracujá Laboratório de Artes - and Inimigos (2017) - Cia. de Feitos -, based on the publications As Aventuras de Bambolina (2006), by Michele Iacocca, and O Inimigo (2008), by Davide Cali and Serge Bloch, respectively. For this, I use methodological procedures and sources of a heterogeneous nature that allowed the construction of a textual essay inspired by a/r/tography, in which the communicative codes of enunciation - words and images - are in dialogue with nature and the specificity of the research. The thesis presented here is that the theatrical plays highlighted - As Aventuras de Bambolina e Inimigos - make it possible to expand the theatrical (trans)creation to the visual field, since, in addition to originating from non-verbal and/or non-exclusively verbal stimuli, explain the visualities as those responsible and/or co-responsible for the narrative and/or dramaturgical constructions of the scenes. Keywords: Theater for Child and Youth; Picturebook; Wordless Picturebook; Visuality of the Scene; Narrative and/or Dramaturgy of the Scene; Visual (Trans) Creation. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 TEATRO INFANTOJUVENIL 27 2.1 Contexto 29 2.1.1 Origens, deslocamentos e tradições 29 2.1.2 Inovações no meio paulistano 43 2.1.2.1 Temas tabus 48 2.1.2.2 Intercâmbios de linguagens artísticas 55 2.1.2.3 Processos coletivos 60 2.1.2.4 Diferentes estímulos e/ou disparadores 65 2.2 Guias desta pesquisa 71 2.2.1 Pia Fraus 71 2.2.2 Maracujá Laboratório de Artes 79 2.2.3 Cia. de Feitos 89 3 OS LIVROS 100 3.1 Aspectos gerais e específicos 102 3.1.1 Objetos multifacetados 102 3.1.2 Livros ilustrados e livros-imagem 113 3.1.2.1 Tópicos de design 117 3.1.2.2 Questões literárias e/ou narrativas 124 3.1.2.3 Aproximações com o teatro 132 3. 2 Publicações disparadoras 137 3.2.1 As aventuras de Bambolina 137 3.2.2 O inimigo 151 4 AS CENAS 171 4.1 Configurações 173 4.1.1 Linguagem e domínios 173 4.1.2 Visualidades da cena 186 4.1.2.1 Componentes visuais 193 4.1.2.2 Dramaturgia da visualidade 206 4. 2 Peças em destaque 212 4.2.1 As aventuras de Bambolina 212 4.2.2 Inimigos 233 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 259 REFERÊNCIAS 267 APÊNDICE 286 1 INTRODUÇÃO Eu, antes de iniciar a viagem [...], consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas quando estou no mar grosso, sempre sopra um vento forte que me desvia da rota preestabelecida [...]. (CAMARGO, 2009, p. 29) A estória que escolhi aqui contar não começa agora. Ela nasce em meio a outra história, como fração de uma narrativa maior, e ramifica-se, unindo-se a mais algumas histórias, numa profusa trama inacabada. Nesta, passado, presente e futuro se interligam em fluxos contextualistas, descritivos, interpretativos, reflexivos e críticos - e por que não imaginativos? - de uma aventura que convido você, leitor, a acompanhar nas páginas que se seguem. Era o ano de 2015, e eu me preparava para ministrar uma oficina para estudantes ingressantes no curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), compartilhando, então, as pesquisas que vinha desenvolvendo. Nesta época, eu era mestrando no programa de pós-graduação em Artes daquela instituição, na qual havia concluído, pouco tempo antes, a 1 graduação em Teatro . 2 Durante a organização das propostas a serem trabalhadas naquela atividade, buscava incessantemente um material que pudesse servir como deflagrador para a criação de cenas e, posteriormente, para debates acerca dos trabalhos voltados ao público infantojuvenil. Na minha estante estava a possibilidade que acabei usando: alguns livros para as jovens gerações que eu 2 No decorrer da graduação em Teatro, realizei a pesquisa de iniciação científica intitulada A narrativa no Teatro Infantojuvenil: teoria, análise e prática , que se desdobrou em meu trabalho de conclusão de curso. A versão preliminar deste estudo pode ser consultada no artigo A narrativa no Teatro Infantojuvenil: teoria, análise e prática (2013) e a versão final na monografia ...Teatro Infantojuvenil: o narrador como eixo de uma possível linguagem ( 2014), ambos indicados nas referências desta tese. 1 A dissertação apresentada para a finalização deste curso se intitula Inventariando O Mensageiro do Rei – reflexões e discussões acerca do Teatro Infantojuvenil (2016), disponível para acesso gratuito no repositório institucional da UFU. 12 começara a colecionar durante a realização do estágio de docência do mestrado , movido pelo 3 fato desses objetos serem suportes que contêm narrativas verbais, possibilidade de texto teatral, conforme havia pesquisado nos idos da graduação. Passada a oficina e, consequentemente, aquela experimentação, meu interesse pelos livros - como propulsores para criações cênicas - só aumentava, e o número de aquisições dos mesmos também. Contudo, envolvo em minha pesquisa de mestrado, cujo foco estava na análise de um espetáculo infantojuvenil elaborado a partir de um texto originalmente escrito para teatro, procurei deixar em repouso, pelo menos por um tempo, meu fascínio por aqueles materiais. Já em 2016, após a conclusão do mestrado, retomei os livros de minha coleção, no intuito de debruçar-me naqueles objetos que vinham me chamando atenção desde outrora. Em pouco tempo, percebi que não eram apenas as narrativas verbais contidas naqueles livros que me seduziam. O que vinha atraindo meu interesse estava relacionado à dimensão não-verbal dos livros e, por vezes, às temáticas e ao modo como estas eram tratadas, que fugiam de clichês constantemente observados nesta espécie de produtos artísticos e culturais. Ainda no mesmo ano, iniciei minha vida docente para além dos estágios acadêmicos. Primeiro, por poucos meses, como instrutor de Artes-Teatro para idosas na Prefeitura Municipal de Uberlândia (PMU), e, depois, por dois anos, como professor substituto do curso de Teatro da UFU. Nestas duas vivências, passei a enxergar meu trabalho como um possível e instigante espaço de experimentação, no qual podia me dedicar a estudar o Teatro Infantojuvenil da atualidade, explorando os primeiros passos no uso da dimensão não-verbal dos livros infantojuvenis como mote de criações cênicas. Naquele momento, outra experiência que colaborou com minha, até então, incipiente investigação foi a decisão de me aprofundar em questões que articulam Arte e Educação, uma decorrência da minha atuação profissional na UFU nas disciplinas ligadas à Pedagogia do Teatro. Sendo bacharel na área, vislumbrei na licenciatura um possível caminho. Mas, como era docente daquela modalidade, vi-me impossibilitado de cursá-la, optando, então, pela graduação em Artes Visuais, ofertada pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (CEUCLAR) . 4 4 O trabalho de conclusão deste curso se intitula O diário de bordo e suas potencialidades pedagógicas (2017) e foi publicado na forma de artigo na revista OuvirOUver da UFU. 3 Nesta experiência realizada no segundo semestre de 2014, assumi o papel de professor da disciplina optativa Tópicos Especiais em Teatro Infantojuvenil, também na graduação em Teatro da UFU. 13 Surpreendentemente, durante esse curso, para além do aprofundamento em questões pedagógicas relacionadas à área de Artes e em aspectos próprios do desenho, da pintura e da escultura - que muito contribuíram em meu trabalho nas disciplinas de Visualidades da Cena, também ministradas na UFU -, fascinei-me ainda mais pelas ricas possibilidades de design e das ilustrações - conceitos abordados ao longo da tese - presentes nos livros que vinha colecionando e usando em algumas das minhas atividades artístico-pedagógicas . 5 Além disso, simultaneamente, tomei ciência, por meio das escritas críticas - e virtuais - de Dib Carneiro Neto , de um número significativo de produções teatrais paulistanas que vinham se 6 destacando ao usarem livros infantojuvenis como indutores para criações, influenciando-se pela aparência dos mesmos. Ao ler sobre espetáculos da capital paulista, prontamente, comecei a elencar aqueles em cartaz e passei a ser espectador assíduo dessas produções a cada ida a São Paulo. Se, de modo geral, durante a graduação em Teatro, havia pesquisado a utilização da narrativa verbal como texto teatral e, no curso de mestrado, a formulação de um espetáculo criado a partir de um texto escrito originalmente para teatro, naquele momento começava a me interessar, mais e mais, por criações que partiam de livros infantojuvenis, muitas vezes com a dimensão verbal reduzida ou sem esta. O que provocou em mim um desejo de desenvolver a investigação formal acerca das produções teatrais que se originaram de livros infantojuvenis deste modo, aproximando minhas atividades artístico-pedagógicas e acadêmico-artística no traçado de 7 uma poética profissional . 8 Em pouco tempo, a recomendação dos membros que compuseram a banca de minha defesa de mestrado efetivou-se quanto à continuidade de minhas investigações acadêmicas sobre o Teatro Infantojuvenil. Naquela ocasião, tinha dúvidas se haveria um desdobramento de meu tema de pesquisa. Todavia, minha atividade profissional se encarregou de confirmar que muita 8 Marca, assinatura e/ou conjunto de singularidades que, elencadas ao longo de um percurso profissional, permitem o reconhecimento das proposições e/ou do trabalho de um sujeito, mesmo que este e, consequentemente, aquele se encontrem em constantes devires. 7 Nomenclatura que se refere às minhas atividades de caráter artístico desenvolvidas em contextos universitários de ensino, pesquisa e/ou extensão. 6 Crítico de Teatro Infantojuvenil paulistano, Carneiro Neto reuniu diversos dos seus escritos das últimas décadas, principalmente os publicados na revista Crescer, nos livros de sua autoria, como também no site www.pecinhaeavovozinha.com.br , ambos utilizados como fontes neste trabalho. 5 Terminologia que congrega a dimensão artística e a educacional em minhas atividades profissionais, articulando-as de modo indissociável. 14 http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/ coisa ainda estava por vir. A pesquisa sobre Teatro Infantojuvenil não havia finalizado com a defesa do mestrado; ela estava se (re)iniciando. Seu ponto final nada mais era que trecho de uma estória. Uma estória - como disse no começo deste texto - que se iniciava em meio a outra história em curso. Ao preâmbulo desta estória - o excerto de caráter pessoal contido nas páginas iniciais desta introdução - dei o nome de bússola poética, uma vez que ele não me serviu apenas como rememoração da trajetória profissional percorrida antes do Doutorado, mas, também, como indicação ou norte dos passos dados em minha caminhada durante este curso. Impelindo-me ao deslocamento, esta bússola interior me provocou a (re)inventar a investigação proposta continuamente, principalmente quando um forte vento - do qual fala Camargo na epígrafe deste texto - desviava-me do rumo preestabelecido. Como enunciei há pouco, o tema para o qual venho direcionando meu olhar nos últimos dez anos, e, consequentemente, neste trabalho, é o Teatro Infantojuvenil. A fim de introduzir o leitor menos familiarizado no universo da temática aqui abordada, inicialmente esclareço o conceito trazido por aquele binômio, que tantas vezes aparece neste texto. Isto porque muitas são as possibilidades de termos utilizados como espécies de sinônimos daquele - teatro infantil, teatro para as jovens gerações, teatro para crianças e jovens, teatro para a infância e a juventude, dentre outros -, com multiplicidade semântica atribuídas a estes ao longo dos tempos e em espaços 9 diversos. Tendo em vista minha trajetória de pesquisa, considero o Teatro Infantojuvenil como um vasto “conjunto de manifestações espetaculares, ou práticas teatrais, concebidas, em maior ou menor escala, para o público infantojuvenil” (LARCHER, 2014, p.18) e/ou que, por suas características, foram sendo entendidas também como direcionadas a crianças e jovens. Em outras palavras, um agrupamento de criações cênicas mutável, que se adequa aos diversos paradigmas tempo-espaciais – como os conceitos de infâncias e de juventudes – com os quais se 10 relacionam e que serão melhor abordados ao longo da tese. Rememorando meus escritos de mestrado, digo que: 10 Embora frequentemente infância e juventude sejam palavras grafadas no singular, há alguns anos, utilizo em meus estudos as mesmas no plural. Primeiramente, de modo facultativo: infância(s) e juventude(s), e agora, radicalmente, por compreender estas categorias sociais como múltiplas, como será melhor desenvolvido no primeiro capítulo da tese. 9 Expressão proposta por Luvel Garcia Leyva em sua dissertação de mestrado A cruzada das crianças: sinais históricos nas performances e no teatro cubano (2015), defendida na Universidade de São Paulo (USP), em que o autor aborda de modo detalhado e aprofundado os vários significados atribuídos ao termo teatro infantil. 15 [...] para se falar de Teatro Infantojuvenil é preciso ter clareza de que existe uma certa multiplicidade de gêneros e estéticas que caracterizam as diferentes produções teatrais voltadas para este público e que imprime uma identidade híbrida a esta categoria de espetáculos. Assim, não é possível falar ou tratar de apenas um Teatro Infantojuvenil, mas, na verdade, de variadas e diferentes práticas teatrais voltadas para a(s) infância(s) e/ou a(s) juventude(s), produzidos em diversos contextos por (e/ou para) crianças e/ou jovens diferentes. (LARCHER, 2016, p.28) Esta formulação está em consonância com ideias apresentadas por Manon van de Water, um dos mais importantes nomes da pesquisa de teatro voltado para as jovens gerações no contexto internacional. Para ela, no artigo Teatro para jóvenes en el siglo XXI: ¿Qué es? ¿Cómo es? ¿Para quién es? La meta-pergunta (2017), "após uma década e meia do século XXI, fica claro que o panora ma do teatro para crianças e jovens mudou no mundo" (WATER, 2017, p. 25 - tradução nossa), "em parte porque o tempo mudou e também a juventude" (WATER, 2017, p. 25 - tradução nossa), e por não ser mais possível o entendimento do teatro apenas como era, geralmente, concebido no início do século XX: um produto orientado por um texto escrito, que ganha sentido pelas mãos de um diretor, e forma durante o processo de ensaio. Sendo, posteriormente, apresentado ao público, que lhe confere alguma significação. Parto do pressuposto que o Teatro infantojuvenil é composto hoje por diferentes práticas ou manifestações cênicas que têm como elemento ou componente central - público alvo - as crianças e os jovens. Teatro com crianças e jovens, o Teatro Infantojuvenil é aqui considerado como uma categoria expandida, dilatada, que acolhe e abrange as relações entre crianças, jovens e teatro, entendendo que ambas são múltiplas, conforme atenta Marina Marcondes Machado, em seus diversos escritos sobre o tema. A referida autora, no texto Teatro e infância, possíveis mundos de vida (e morte) (2014, p.3), convida-nos - leitores - "a ampliar os significados dados à categoria ‘teatro infantojuvenil’ por meio das lentes do ‘teatro para todas as idades’, bem como por meio do ‘teatro feito com crianças’" e jovens. Propondo uma arte não pautada em endereçamentos exclusivos, mas sim como relacional, Machado, ajuda-me a compreender o Teatro Infantojuvenil do tempo presente como um grupo que, entre tantas possibilidades, pode conter espetáculos que "tiram a criança, o jovem e qualquer outro público, do simples lugar de espectador, deslocando-o para a categoria de co-criador do que se desenrola em cena" (LARCHER, 2016, p. 28). 16 Nesta seara, - como comentado - meu foco são as peças infantojuvenis elaboradas, principalmente, a partir da linguagem não-verbal presente em certas obras literárias - os livros ilustrados e os livros-imagem, abordados ao longo desta tese - para este mesmo público. Já o contexto escolhido foi a cidade de São Paulo das últimas duas décadas, pois, em meio ao perfil grandioso e múltiplo de sua produção teatral, esse grupo de montagens vem ganhando notoriedade. Tomando como critérios de seleção os espetáculos documentados nos textos de Carneiro Neto e, consequentemente, o reconhecimento pela crítica especializada, assim como a pesquisa dos grupos em relação ao Teatro Infantojuvenil, a continuidade de seus trabalhos ao longo de alguns anos e o fato de tê-los visto pessoalmente, as peças escolhidas para estudos de caso nesta tese foram: As aventuras de Bambolina (2008) e Inimigos (2017). Sendo a primeira um espetáculo fruto de uma parceria entre a companhia Pia Fraus e o Maracujá Laboratório de Artes, inspirado no livro homônimo de Michele Iacocca, datado de 2006, e a segunda uma produção da Cia. de Feitos, tendo como ponto de partida o livro de Davide Cali e Serge Bloch, de 2008. Obras de um passado recente que permitem frequente acesso à efemeridade da atividade teatral para a realização da análise contida nesta tese. Com o propósito de nomear e de compreender a natureza dos processos criativos de tais espetáculos, inicialmente, busquei conhecer teorias e/ou nomenclaturas que pudessem ser utilizadas nos casos selecionados. Dentre elas, considerei como a mais pertinente a transcriação: constructo formulado por Haroldo de Campos para tratar da tradução criativa de um texto original em outro, de idioma diferente. Segundo este autor, em linhas gerais, no exercício da passagem de uma obra escrita para outra língua, a derivada acaba se transformando em uma criação autônoma, ao mesmo tempo, similar e distinta da primeira. Mas, ao me debruçar nos escritos de Linei Hirsh sobre a proposição de Campos no 11 ramo teatral, depreendi uma certa limitação no uso daquele termo para designar a elaboração de espetáculos que partem de livros ilustrados e de livros-imagem, especialmente As aventuras de Bambolina e Inimigos . Mesmo aquela autora ressaltando, em Transcriação teatral: da narrativa literária ao palco (2000, p. 153), "que é comum a transcriação teatral de determinados elementos da obra de base se realizar através da encenação", tal noção ainda se mostrava presa a estímulos 11 Nesta pesquisa, utilizo-me de Hirsh como referencial, pelo pioneirismo na pesquisa teatral brasileira. Contudo, outros autores nacionais também tratam deste mesmo termo e/ou assunto. 17 exclusivamente verbais e às cenas em que as palavras são hegemônicas no traçado das narrativas 12 e/ou dramaturgias - ideia aprofundada ao longo do texto. No delineamento desta investigação, ocorreu-me que As aventuras de Bambolina e Inimigos , como frutos dos processos de passagem dos livros para as cenas, não deixavam de se enquadrar na ideia de (trans)criação teatral, muito embora expandissem a proposição de Hirsch para o 13 14 visual. Ao originarem-se de estímulos não-verbais e/ou não exclusivamente verbais, essas peças pareciam explorar as visualidades como as responsáveis e/ou as co-responsáveis pelas 15 construções narrativas e/ou dramatúrgicas das cenas. Enunciado que, com ajustes, converti em suposição de pesquisa e que busquei investigar como realmente plausível, ao longo dos anos. Como já não era mais possível recuperar os processos de elaboração dos espetáculos supracitados em sua complexibilidade, meu intuito neste trabalho tornou-se compreender a passagem dos livros para as cenas - o que chamo, no fim da tese, de (trans)criações visuais - a partir da comparação entre os pontos de partida - os livros - e os de chegada - as próprias cenas, no âmbito visual. Ou seja, estudar como As aventuras de Bambolina e Inimigos possibilitam expandir a noção de (trans)criação teatral, no que se refere às visualidades da cena como construtoras narratológicas e/ou dramatúrgicas, na tentativa de confirmar a suposição apresentada. Para alcançar este propósito, formulei uma sequência de indagações que serviram como condutoras do processo de investigação. Foram elas: Em que contexto os livros infantojuvenis, como objetos multifacetados, passaram a ser estímulos e/ou disparadores recorrentes no Teatro Infantojuvenil da atualidade, principalmente o paulistano? Quais as trajetórias dos grupos que guiam esta pesquisa? Quais os aspectos gerais dos livros infantojuvenis e as especificidades dos livros ilustrados e dos livros-imagem? De que modo e o que contam as publicações utilizadas pelos grupos com disparadoras de seus trabalhos? Como se configuram as cenas quando compreendidas em seus âmbitos e/ou domínios visuais? E, finalmente: Nas peças em destaque, 15 Refiro-me ao domínio visual da cena, conceituação explicada mais à frente neste trabalho. 14 Essa expansão poderia me direcionar ao conceito de tradução intersemiótica e, consequentemente, às obras de Roman Jakobson e de Julio Plaza. Todavia, entre outras coisas, ao escolher esta fundamentação teórica, filiaria a pesquisa aqui apresentada exclusivamente à semiótica - abordada ao longo do texto. Como este não era meu desejo, optei por cunhar a expressão neológica (trans)criação visual nesta tese. 13 Ao longo desta tese, optei por grafar o termo com parênteses no intuito de evidenciar a natureza inventiva, e não de cópia, das produções teatrais em destaque. 12 Ao me referir à cena, tomo por base a definição de Pavis, em O teatro no cruzamento de culturas (2015). Para ele, a cena seria a "relação, num espaço e tempo determinados, [de] materiais os mais diversos (sistemas significantes) em função de um público" (PAVIS, 2015, p. 21). 18 como os âmbitos visuais das cenas se relacionam com seus estímulos no que tange às construções narrativas e/ou dramatúrgicas? Sob o ponto de vista temático, esta pesquisa se torna significativa, então, pela necessidade de elaborar-se um panorama das produções teatrais infantojuvenis dos últimos anos, assim como de seus desdobramentos. Sendo ainda pouco explorado no meio acadêmico, o teatro voltados às jovens gerações é constantemente abordado em sua demanda educacional, mesmo quando algumas questões intrínsecas às suas estéticas e às suas poéticas são problematizadas mais verticalmente nas análises de textos e/ou de encenações de grupos e/ou artistas específicos. Nesta tese, a dimensão educacional do Teatro Infantojuvenil não é negada, mas não se configura como o cerne da pesquisa. A partir de um estudo focado em duas montagens atuais endereçadas às crianças e aos jovens, concentro-me nos elementos visuais da cena em suas funções narrativas e/ou dramatúrgicas. Trata-se de uma contribuição a partir da investigação de tópicos teatrais em evidência desde o começo do século XX, mas que parecem, por vezes, ser negligenciados quando se trata da pesquisa acadêmica do universo teatral infantojuvenil. Comparando a poética da pesquisa como viagem de formação, digo que o itinerário desta investigação foi traçado ainda em seu início e, ainda que tenha me deparado com percalços no caminho, aquele em pouco se alterou até aqui. Contudo, seria ilusório concebê-lo como uma linha reta. Pelo contrário! Ao deslocar-me, segui circularidades e espiralidades, deixei-me encantar por pistas - ou assuntos não centrais da tese - que desviavam a atenção, e, ocasionalmente, até mesmo saí da rota fixada - como é normal acontecer em processos como este -, sendo necessário retomar às perguntas há pouco mencionadas para me realinhar aos objetivos da pesquisa. O fato é que observar um determinado contexto e estudá-lo não é fácil. Ainda mais em aproximações como as vividas durante esta investigação. Primeiro me deslocando, semanalmente, de Uberlândia até São Paulo ou de Vitória - onde resido atualmente - até São Paulo. E, depois, isolado socialmente por conta da pandemia COVID-19 . Uma aventura na qual apreciei a 16 megalópole em sua imensidão - das janelas dos aviões -, embrenhei-me pela cidade para assistir a espetáculos, e vi-me obrigado a conversar com os artistas pelo meio virtual. 16 Disseminação mundial da doença infecciosa COVID-19, causada pelo recém-descoberto coronavírus (SARS-CoV-2). Por não existirem, em 2020, vacinas e medicamentos que atuassem, respectivamente, na prevenção e no tratamento da patologia, o isolamento e o distanciamento social foram tomados como medidas para desacelerar a transmissão do vírus em todo o globo terrestre, estendendo-se, por vezes, pelos anos de 2021 e 2022. 19 Assim, a pesquisa aqui documentada se configura como uma investigação sobre e em Arte, num ato de fazer-pensar/pensar-fazer crítico. Enquanto sujeito em travessia - ou investigador - vivenciei uma reflexão-em-ação, inserida em um paradigma pós-positivista ou 17 qualitativo, que objetiva ampliar as investigações sobre o Teatro Infantojuvenil da atualidade, tantas vezes ainda visto como categoria de espetáculos em amadurecimento ou de menor qualidade. Se no mestrado acabei me apoiando na metáfora de um inventário para configurar a dissertação/autoetnografia apresentada, agora, no doutorado, exploro a ideia de viagem ou 18 jornada, aproximando a presente tese da perspectiva a/r/tográfica. Ou seja, na elaboração deste trabalho, inspiro-me na modalidade de Pesquisa (Educacional) baseada em Arte originada nos 19 Estados Unidos, na Stanford University por Elliot Eisner, entre os anos de 1970 e 1980, e desenvolvida posteriormente no Canadá, na University of British Columbia , que dialoga com a natureza e a especificidade deste estudo proposto: a a/r/tografia. Conforme elucida Belidson Dias na apresentação do livro Pesquisa Educacional baseada em Arte: a/r/tografia (2013): A a/r/tografia é uma forma de representação que privilegia tanto o texto (escrito) quanto a imagem (visual) quando eles se encontram em momentos de mestiçagem ou hibridização. A/R/T é uma metáfora para: Artist (artista), Researcher (pesquisador), Teacher (professor) e graph (grafia: escrita/representação). Na a/r/tografia saber, fazer e realizar se fundem. Elas se fundem e se dispersam criando uma linguagem mestiça, híbrida. Linguagem das fronteiras da auto e etnografia e de gêneros. O A/r/tógrafo, o praticante da a/r/tografia, integra estes múltiplos e flexíveis papéis na sua vida profissional. Não está interessado em identidade, só papéis temporais. (DIAS, 2013, p. 25) 19 Segundo Dias e Irwin, para além das nomenclaturas Pesquisa Educacional Baseada em Arte (PEBA) e Pesquisa Baseada em Arte (PBA), "é importante notar que, no Brasil, também se utilizam as seguintes terminologias: Investigação Baseada nas Artes (IBA) e a Investigação Educacional Baseada nas Artes (IEBA)” (DIAS; IRWIN, 2013, p. 23). Ambas, em suas especificidades, propõem o exercício da investigação acadêmica a partir das linguagens artísticas. 18 De modo sintético, a autoetnografia é descrita por Carolyn Ellis e Tony Adams, no artigo The purposes practices and principles of autoethnographic research (2014), como uma espécie de estudo no qual um membro de uma determinada cultura fornece seus próprios relatos sobre esta, constituindo-se, então, como “pesquisa, escrita, histórias, e métodos que conectam o autobiográfico e o pessoal ao cultural, social e político”(ELLIS; ADAMS, 2014, p. 254 - tradução nossa). 17 Para Sylvie Fortin e Pierre Gosselin, no artigo Considerações metodológicas para a pesquisa em arte no meio acadêmico (2014, p. 3), "o paradigma pós-positivista /qualitativo postula a existência de múltiplas construções da realidade segundo os pontos de vista dos pesquisadores. Ele difere do paradigma positivista quanto à crença de que o conhecimento não pode ser separado do investigador. Partindo do pressuposto de que a realidade é uma construção social e cultural, os indivíduos só podem compreender e representar realidades através de símbolos". 20 Tomando como ponto de partida o fato de que “novas formas de expressão acadêmica surgiram da inadequação dos discursos acadêmicos correntes em alcançar as especificidades na pesquisa em Artes” (DIAS, 2013, p. 23), o autor qualifica a a/r/tografia como uma linha metodológica não convencional, que se opõe criticamente aos modelos tradicionais de pesquisa, estabelecendo novas maneiras de promover investigações e construções de conhecimentos em Artes. Isto é feito "ao aceitar e ressaltar categorias como incerteza, imaginação, ilusão, introspecção, visualização e dinamismo" (DIAS, 2013, p. 23), e do reconhecimento das múltiplas abordagens possíveis na pesquisa acadêmica. Aproximando-me da figura do a/r/tógrafo - o praticante da a/r/tografia -, busco articular e sintetizar as facetas - artista-docente-pesquisador - que venho assumindo ao longo 20 dos anos que incluem esta pesquisa, principalmente durante meu trabalho na UFU e, posteriormente, na Universidade Estadual Paulista (UNESP) , em que pude garatujar uma 21 poética profissional. Nestas vivências, percebi que minha atividade como ator (manipulador) - explorada no trabalho de mestrado - vinha sendo deixada em segundo plano, uma vez que, ao atuar como diretor e maquiador cênico, realizava-me plenamente como profissional, em conjunto com a pesquisa e a docência. Aspectos esses que se unem em meu atual trabalho na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), instituição na qual, a partir de 2019, assumi a vaga efetiva de Diretor de Artes Cênicas. Nesta tese, embora não tenha como foco o compartilhamento de uma prática artístico-pedagógica específica, documento uma travessia calcada em tudo que vem me atravessando, que vem me tocando e para o qual atribuo sentido como artista-docente-pesquisador. Ou, como nos diz o espanhol Jorge Larrosa em suas célebres Notas sobre a experiência e o saber de experiência (2002), uma experiência - já que, para ele, este vocábulo e/ou conceito remete àquilo que transforma fundamentalmente o sujeito - a partir de sua interação com algo que se experimenta e/ou se prova. Convertido em saber da experiência, o conhecimento construído pelos sentidos e gerado como espectador das peças aqui examinadas é 21 Nesta instituição, atuei como professor colaborador, ministrando aulas para a graduação em Arte-Teatro no segundo semestre de 2019 e no semestre especial remoto de 2020. 20 Livre tradução proposta por mim para o termo artist/researcher/teacher . Embora, originalmente, a terminologia seja composta por barras, atribuindo às diferentes funções do sujeito característica disjuntiva, opto pelo uso do hífen como mecanismo de adição, unindo às diferentes facetas dos profissionais em que as atividade artísticas, pedagógicas e investigativas não se dissociam. 21 "um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. [...] um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto que encarna." (LARROSA, 2002, p. 27). Os procedimentos metodológicos e os materiais acessados durante a pesquisa são de natureza heterogênea. Inicialmente, apoiei-me em minha memória - e em registros realizados por mim, ao longo de minha trajetória como artista-docente-pesquisador, materializando-a - para identificar a gênese da investigação realizada e aqui documentada. Além disso, a memória serviu-me como guia no acesso às lembranças acerca de minhas experiências artístico-pedagógicas - presentes nas entrelinhas deste texto -, e dos espetáculos a que havia assistido e que selecionei para serem examinados nesta tese. Em um segundo momento, utilizei-me de publicações - livros, teses, dissertações, e artigos - célebres e mais recentes sobre o Teatro Infantojuvenil, no intuito de contextualizar de modo atualizado o tema desta investigação. Esta espécie de revisão bibliográfica também foi feita, posteriormente, com outras referências para compreender os aspectos dos livros infantojuvenis - principalmente em suas categorias de livros ilustrados e livros-imagem -, e a ideia de cena teatral e seus desdobramentos visuais, entre outras questões que emergem neste trabalho. Em um terceiro momento, debrucei-me nas redes sociais e nos sites dos grupos que produziram As aventuras de Bambolina e Inimigos , procurando traçar um panorama sobre suas trajetórias e suas produções, principalmente, por meio de materiais de divulgação e de textos críticos publicados por especialistas acerca de seus trabalhos. A esta ação acrescentei a realização de entrevistas semi-estruturadas com os diretores dos coletivos estudados, nas quais me detive e - à moda do que proponho nos processos analisados neste trabalho - (trans)criei alguns trechos em forma de escrita verbal ao longo deste texto. Concomitantemente a esses procedimentos, destrinchei os livros infantojuvenis que 22 geraram as peças supracitadas em suas múltiplas facetas - dimensões de design , literária e/ou narrativa e de teatralidade, abordadas durante a tese -, relacionando-as. E, na tentativa de enriquecer o exame feito no caso de As aventuras de Bambolina , lancei mão da estratégia de entrevistar o autor, utilizando algumas das palavras de Iacocca em meu texto. 22 Essa observação foi livremente fundamentada em diversas abordagens de compreensão estética e/ou leitura de imagens. Dentre elas, destaco as propostas por Edmund Feldman e por Robert William Ott, que mais contribuíram com minha pesquisa. 22 Objetivando, em seguida, compreender alguns aspectos das cenas de As aventuras de Bambolina e Inimigos , examinei os seus domínios visuais, por meio de imagens dinâmicas e 23 estáticas - filmagens e fotografias. Como Milton Guran aborda em seu artigo A “fotografia eficiente” e as Ciências Sociais (1998), a contribuição das fotografias “reside na capacidade de efetuar uma seleção de aspectos relevantes e de momentos significativos da realidade estudada, que possam pôr em evidência informações que não poderiam ser obtidas por outros meios” (GURAN, 1998, p. 89) . Por fim, realizei entrevistas coletivas com as equipes de criação dos espetáculos selecionados. Rememorando pormenores das produções, os profissionais colaboraram com esclarecimentos sobre como as visualidades das cenas, em seus aspectos narrativos e/ou dramatúrgicos, relacionam-se com os elementos constituintes dos livros. Buscando compartilhar e registrar as experiências vividas, - como proposto pela a/r/tografia -, nesta tese, utilizo-me de dois sistemas de representação e/ou grafia - não hierarquicamente categorizados. O primeiro é a escrita verbal, expressa por meio de palavras e aqui estruturada na forma de ensaio: uma prosa híbrida que não tem a pretensão de esgotar o tema tratado, mas sim descortina-lo à medida que promove a dissolução "entre escrita (se podemos dizer assim) pensante ou cognoscitiva e entre imaginativa ou poética" (LAROSSA, 2003, p. 103), como lembra-me, mais uma vez, Larrosa em O ensaio e a escrita acadêmica . Trata-se de uma escrita que procura não se distanciar do poético e/ou artístico, mas sim incorporá-lo em sua dinâmica. Não há uma ortodoxia, uma fuga das imagens - criadas pelo pensamento e/ou pela imaginação - e/ou das comparações poéticas - e dos múltiplos sentidos trazidos por estas - quando empregadas com rigor e responsabilidade. Encarando a escrita como exercício de inventividade, utilizo-me das palavras como os poetas que "classificam as palavras pela alma porque gostam de brincar com elas e para brincar com elas é preciso ter intimidade primeiro", segundo alerta Adriana Falcão em seu Pequeno dicionário de palavras ao vento (2013, p. 71). Unindo subjetividade e (uma tentativa de) objetividade, esta escrita busca ser expressão da experiência: aquela que deixa ver ou transparecer quem a enuncia com ampliação de perspectivas e exploração delas, sem neutralidade de uma terceira pessoa - sujeito indeterminado - e/ou a pretensa objetividade totalizante das afirmações feitas. Ao escrever, (re)invento minha experiência e o saber desta experiência. Crio-me e me (re)crio como autor e artista-docente-pesquisador, 23 Nessa operação de natureza empírica, centrei-me na descrição e/ou na interpretação das imagens cênicas - conceito abordado no terceiro capítulo da tese -, traçando relações intertextuais entre as peças em foco e os livros das quais se originaram. 23 tornando-me um ser ficcional embrenhado na estória aqui compartilhada, tal como aponta a portuguesa Teresa Torres Eça em seu elucidativo texto Perguntas no ar sobre metodologias de pesquisa em arte e educação (2013): O pesquisador ou pesquisadora não se limita a recolher histórias, é alguém que se expõe tanto como os outros sujeitos da investigação, que sofre a erosão da investigação, uma personagem vulnerável em um processo de crises e rupturas provocadas pelo impacto da realidade que se está a tentar compreender. Dentro desta perspectiva, o que o investigador(a) e o investigado(a) criam é um relato que alguém vai ler e a investigação só poderá estar terminada depois dessa leitura externa. Aí se situa o propósito e utilidade da pesquisa: contar uma história que permita aos outros contar a sua história. Não se trata de capturar uma realidade única sobre a qual se escreve [...], mas sim de promover o desencadear de novos relatos. [...] Sendo assim, a representatividade da investigação está não na generalização de uma história, mas na capacidade que essa história tem de criar outras histórias [...]. (EÇA, 2013, p. 74) Concordando com as ideias expressas por Eça, compreendo a dimensão escrita desta tese como uma produção que não se encerra em minhas proposições. Ela pretende ser uma provocadora que só se completa no contato com os leitores, reverberando nestes e nas estórias - formulação de saberes - elaboradas a partir de então. Assim, a tese passa a ser “um ato de partilha e de emancipação na medida em que se relocalizam histórias, se reinventam os outros e nos reinventamos a nós próprios” (EÇA, 2013, p. 75). O segundo sistema de grafia utilizado na tese é o das imagens, aqui entendidas como representações visuais elaboradas pela expressão humana e materializadas de várias formas, que não (exclusivamente) a escrita verbal, e que possuem maior ou menor semelhança com aquilo que espelham. Tendo naturezas estáticas e/ou dinâmicas, as imagens aparecem nesta tese como fontes ou materiais acessados, como assunto e como recurso de representação e/ou código 24 comunicativo de enunciação. O desafio deste trabalho é a utilização das imagens na acepção supracitada, em que se configuram como unidades autônomas de sentidos hierarquicamente iguais à escrita verbal. Neste contexto, elas deixam de ser concebidas apenas como decoração e/ou anexo da escrita verbal, tal qual, convencionalmente e costumeiramente, vêm sendo empregadas em muitos 24 Nesta modalidade, as imagens são ampliadas para outros territórios que não apenas o das representações visuais, como melhor explicado no terceiro capítulo da tese. 24 trabalhos acadêmicos, confirmando, exemplificando e/ou corroborando com aquilo já apresentado pelas palavras, numa espécie de duplicação de informações. Nesta tese, algumas vezes, as imagens se tornam provocadoras e propulsoras da construção de saberes. Apoiando-me na comparação poética e clarividente retirada da obra de Gianni Rodari, Gramática da fantasia (1982), digo que as imagens provocam no cérebro humano algo semelhante ao que ocorre quando uma pedra é arremessada no pântano: a ativação de muitas superfícies e de diferentes níveis de profundidade de emoções, de sensações e de conhecimentos. Diferentemente do que acontecera em meus trabalhos acadêmicos anteriores - que me provocava grande incômodo -, nesta tese, ponho-me à prova ao lidar com as índoles polissêmica e subjetiva presentes nas imagens - que, aliás, também se aplicam à verbalidade -, compreendendo "a arbitrariedade dos processos semânticos e retóricos que presidem à fabricação dos enunciados científicos " (CAMPOS, 2013, p. 32). O que permite e/ou revela meu ponto de vista sobre o 25 tema, o foco e os interesses tratados, sem excluir outros possíveis e plausíveis olhares para aqueles. Este aspecto configura o trabalho como criação em consonância com as materialidades dos livros e das peças teatrais abordados nele, nos quais imagens e palavras podem estar em diálogo ou as imagens podem ser as únicas responsáveis pela construção das narrativas - e/ou das dramaturgias -, lembrando-nos que são várias maneiras de descrever o mundo e provocar reflexões sobre ele. Sustentando-me na noção de pesquisa como viagem formativa, - como já dito - , optei por organizar esta tese como o relato da jornada vivida. Desta maneira, o presente trabalho foi ordenado levando em conta não necessariamente a sequência em que os fatos se deram na investigação, mas sim a maneira que considerei mais pertinente no traçado de uma narrativa a ser compartilhada, estando dividido em cinco partes: introdução, primeiro, segundo e terceiro capítulos e palavras finais; seguidas de bibliografia e de um apêndice. Como acredito que tenha ficado claro, nesta introdução, apresento as origens e as motivações da pesquisa, sua temática - principalmente a perspectiva da qual parto quando utilizo as nomenclaturas Teatro Infantojuvenil e (trans)criações teatrais, seu recorte, os objetivos 25 Embora, neste texto, opte em utilizar o termo acadêmico no lugar de científico, evitando um entendimento do último em sua acepção positivista, reproduzi, nesta citação, integralmente a fala de Ricardo Campos no artigo Imagens e tecnologias visuais em pesquisa social: tendências e desafios (2013). 25 propostos, a metodologia empregada e suas decorrências, as fontes utilizadas, além da organização da tese e, consequentemente, de maneira concisa, os assuntos abordados em cada um dos capítulos que compõem a análise aqui realizada. No primeiro capítulo, contextualizo e verso sobre o Teatro Infantojuvenil, tratando de maneira panorâmica sua história no Brasil, e de forma mais detalhada as atuais tendências e/ou inovações de criação de espetáculos para as jovens gerações, em especial na cidade de São Paulo, incluindo o uso de livros infantojuvenis como estímulos e/ou disparadores. Nesta perspectiva, apresento as trajetórias dos dois grupos que criaram os espetáculos estudados na pesquisa, esmiuçando alguns aspectos de suas produções. No segundo capítulo, abordo os aspectos gerais dos livros infantojuvenis, com destaque para seu status de objeto multifacetado, a partir de meados do século XX, evidenciando as tipologias ilustrados e livros-imagem em suas particularidades de design , de literatura e/ou narrativa e de aproximação com o teatro. Ainda neste capítulo, pormenorizo os dois livros que deram origem aos espetáculos em destaque em minha investigação, apontando características singulares, em comum ou não, daquelas publicações. Por sua vez, no terceiro capítulo, trato das cenas teatrais dos últimos séculos propriamente ditas, resgatando suas configurações híbridas - formadas por uma linguagem de diferentes domínios - e destacando o âmbito das visualidades, com seus componentes e possíveis narrativas e/ou dramaturgias emergentes. Partindo destas ideias, narro as gêneses de As aventuras de Bambolina e Inimigos e busco elucidar, no que concerne às visualidades, as construções narrativas e/ou dramatúrgicas das cenas elaboradas a partir dos livros. Finalmente, nas considerações finais, faço um apanhado da pesquisa, retornando à motivação e às perguntas que guiaram este percurso investigativo e buscando transformar a suposição proposta - acerca das (trans)criações visuais - efetivamente em tese. A isto se seguem as referências utilizadas no trabalho e um apêndice, em que procurei elaborar cronologicamente uma lista de publicações - livros e trabalhos acadêmicos - sobre Teatro Infantojuvenil no Brasil, no intuito de possibilitar uma visualização do estado da arte sobre o tema, e de colaborar com futuros pesquisadores. 26 2 TEATRO INFANTOJUVENIL Antes, se fazia teatrinho e pecinha bonitinha para agradar e ensinar a criancinha. [...] Hoje, finalmente, se compreendeu que se faz teatro infantil como arte (e não como aula) para a criança se conhecer, se perceber, perceber o outro e perceber o mundo, a diversidade do mundo. (CARNEIRO NETO, 2014, p.16) Inicialmente, não pretendia retomar aspectos históricos do Teatro Infantojuvenil brasileiro neste trabalho, uma vez que já havia me dedicado a esta tarefa em estudos anteriores . 26 Contudo, ao arquitetar a escrita desta tese, dei-me conta de que a ausência de algumas informações acerca do passado resultava para o leitor, inevitavelmente, em uma possível incompreensão do tempo presente, por desconhecimento de suas origens e/ou de seus antecedentes. Nesse sentido, senti-me impelido a revisitar meus próprios escritos e os de autores com os quais tinha tomado contato ao longo dos anos de pesquisa sobre o teatro para crianças e jovens. Ao reler meus textos e os de outros pesquisadores, percebi que minha trajetória de investigação sobre o teatro para as jovens gerações permitia-me, além de recontar os caminhos deste conjunto de manifestações teatrais a partir de um mosaico de referências, realizar um mapeamento de uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento. Como 27 este trabalho ainda não havia sido elaborado de modo sistemático - salvo engano - propus-me a fazê-lo com dois intuitos que se imbricam. O primeiro, de contribuir para o desenvolvimento de pesquisas futuras, reconhecendo trabalhos seminais na pesquisa sobre Teatro Infantojuvenil. O 27 Este mapeamento se configura como Apêndice, no final da presente tese. 26 Respectivamente, minhas pesquisas de iniciação científica, trabalho de conclusão de curso - em Teatro - e mestrado, já abordadas na introdução desta tese. Uma síntese da história do Teatro Infantojuvenil, elaborada por mim, pode ser conferida no artigo De Versalhes a Krugli: Um Breve Panorama do Teatro Infantojuvenil (2014). 27 segundo, de evidenciar aspectos e dimensões que vêm sendo destacados e privilegiados no campo, compreendendo o lugar que esta tese ocupa neste quadro de produções acadêmicas. Assim, neste primeiro capítulo do trabalho, escolhi recorrer a estudos clássicos e aos mais recentes sobre Teatro Infantojuvenil, construindo uma espécie de contextualização atualizada das produções cênicas voltadas para crianças e jovens no Brasil. Apoiando-me, principalmente, em artigos, dissertações, teses e livros, reconto uma história a partir de grupos, de artistas e de suas obras que, ao se tornaram largamente reconhecíveis, possibilitaram o estabelecimento de marcos consensuais no que diz respeito aos caminhos percorridos pelo Teatro Infantojuvenil brasileiro e, em particular, o paulistano. Sei do perigo de histórias totalizantes ou hegemônicas, sobretudo quando elejo o eixo Rio de Janeiro - São Paulo como foco de minha narrativa. Entretanto, não encontrei outra tática satisfatória para conseguir abordar de modo panorâmico a temática deste trabalho e, consequentemente, circunstanciar o Teatro Infantojuvenil brasileiro da atualidade. Além disso, como esta pesquisa trata de produções teatrais paulistanas das últimas décadas, reconheço que este recorte é extremamente necessário para situar os trabalhos observados na conjuntura em que foram originados e nas quais se inserem. Em prol do objetivo supracitado, também recorri a materiais de divulgação, a escritos críticos e a outros textos sobre os grupos que guiam esta investigação, na tentativa de elencar aspectos que caracterizam suas montagens, e, em especial, as peças em destaque nesta tese. Finalmente, para uma melhor compreensão dos fatos, utilizei-me das primeiras entrevistas realizadas para a pesquisa, nas quais os diretores assumem a condição de porta-vozes dos grupos, contribuindo para uma abordagem sincera e detalhada de seus trabalhos. 28 2.1 Contexto 2.1.1 Origens, deslocamentos e tradições A historiografia do teatro revela que a presença das jovens gerações - embora nem sempre nomeadas assim - em manifestações espetaculares não é algo recente. Alguns registros que indiciam esta constatação referem-se à Idade Antiga, e civilizações como a Egípcia, a Grega e a Romana aparecem como expoentes das possíveis relações entre o teatro, as crianças e/ou os jovens. Segundo Lúcia Benedetti, em sua obra Aspectos do Teatro Infantil (1969), "um teatro para crianças ou cenas em que crianças intervinham, (sic) existia já em épocas muito remotas. Nas criptas e sepulturas de crianças egípcias, gregas e romanas foram encontrados bonecos articulados muito semelhantes aos nossos atuais marionetes" (BENEDETTI, 1969, p. 13). De acordo com Fernando Lomardo em O que é teatro infantil? (1994), as jovens gerações eram assíduas nas práticas teatrais asiáticas que “se referem à China, no século III a.C., onde bonequeiros mambembes apresentavam espetáculos domiciliares para crianças e mulheres de classe social elevada.” (LOMARDO, 1994, p. 11). Nestas apresentações, tal como ocorrera no Egito, na Grécia e em Roma, as formas animadas - melhor abordadas no terceiro capítulo da tese -, em especial as sombras chinesas, e a figura do contador de histórias eram constantes, divertindo a população abastada daquele país. Contudo, as situações descritas não se circunscrevem apenas em tempos anteriores à queda do Império Romano do Ocidente. Seguindo os estudos dos autores supracitados, há sinais de que crianças e/ou jovens estavam presentes no teatro litúrgico, em apresentações de caráter mambembe e popular da transição da Idade Média para a Moderna - em especial, entre os séculos XV e XVII, a Commedia dell’arte -, assim como nos corrales espanhóis do Século de Ouro, no Teatro elizabetano etc., seja como atuantes e/ou espectadores, não havendo uma diferenciação de plateias, formadas por pessoas de todas faixas etárias. A situação referenciada só se altera entre os séculos XVI e XVIII, quando se constrói aquilo que Philippe Ariès, no emblemático livro História social da criança e da família (2015), chama 29 de sentimento de infância . Ou seja, o reconhecimento e a compreensão da particularidade 28 infantil, que distingue crianças de adultos. Naquele contexto, a infância passa a ser entendida como etapa da vida e como categoria social a partir de um paradigma no qual a noção de criança como adulto em miniatura - própria da Idade Média - é substituída, gradativamente, pela de individualização do ser, com particularidades do ponto de vista biológico e social. Para Ariès, o sentimento de infância pode ser categorizado em dois: O primeiro sentimento de infância - caracterizado pela "paparicação" - surgiu no meio familiar, na companhia das criancinhas pequenas. O segundo, ao contrário, proveio de uma fonte exterior à família; dos eclesiásticos ou dos homens da lei, raros até o século XVI, e de um maior número de moralistas do século XVII, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes. Esses moralistas haviam-se tornado sensíveis ao fenômeno outrora negligenciado da infância, mas recusavam-se a considerar as crianças como brinquedos encantadores, pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento, por sua vez, passou para a vida familiar. (ARIÈS, 2015, p. 105) Como pode-se depreender do trecho supracitado, na Modernidade, junto ao sentimento de infância, desenvolvem-se também as ideias de família nuclear e a de escola de massas, que contribuem para a constituição de um conjunto de saberes acerca das crianças, de um código de conduta e/ou comportamental social da infância e de procedimentos configuradores de uma administração simbólica e/ou de uma especialização desta categoria social. O que inclui uma produção cultural para as jovens gerações - diferenciada da destinada aos adultos. Essa tinha como objetivo, concomitantemente, preparar as crianças para agir no mundo ao qual estavam inseridas e as manter protegidas no seio da família. Para Maria Lúcia Pupo, em Tatiana Belinky: Uma janela para o mundo (2012), sobre o Teatro Infantojuvenil: Assim como as demais produções culturais dirigidas às crianças, esse teatro está diretamente vinculado à emergência da noção de infância, conceito que está longe de ser marcado pela estabilidade. Tributária da organização social e do tempo histórico, a ideia de infância pode ser examinada mediante a análise da produção cultural e artística a ela destinada. Se a literatura tida como infantil começa a se consolidar na Europa ao longo do século XVIII, o teatro assim adjetivado fez sua aparição bem mais recentemente, na virada dos séculos XIX e XX, data que coincide aproximadamente com seu surgimento também entre nós. (PUPO, 2012, p. 9) 28 Aqui, deve-se atentar também para o uso do termo infância no singular, diferindo-se de outros trechos da tese. Isso se deve ao fato de que as especificidades trazidas pela obra de Ariès se referem à classe social em questão em sua multiplicidade, como ocorrerá nos escritos de autores citados na continuidade do trabalho. 30 Embora no trecho acima reproduzido Pupo se refira à popularização do teatro Infantojuvenil, a historiografia teatral atribui ao Spectacle des Enfants , do sombrista Dominique Serafim, apresentado no Palais Royal de Versalhes, em 1781, o título de marco pioneiro no surgimento do teatro destinado às jovens gerações. Este, diferentemente dos antecedentes do Teatro Infantojuvenil aqui já elencados, foi o primeiro espetáculo teatral formalmente dirigido a crianças e jovens, que entusiasmou a corte e permaneceu em Versalhes até 1784, partindo, posteriormente, para Paris. Momento que coincide com o “‘desaparecimento’ da Commedia dell’arte , sendo seus personagens e enredos absorvidos pelos tradicionais teatrinhos de bonecos que começavam a se proliferar na Europa” (LARCHER, 2014, p. 36) do século XIX, com as apresentações realizadas nas feiras e ruas das cidades, principalmente no verão. A absorção mais contundente, neste contexto, foi a de Polichinelo, máscara da Commedia dell’arte , que, de acordo com Lomardo (1994, p.12), captou "as peculiaridades culturais de cada região ou país onde surgissem teatro de bonecos, ao mesmo tempo que preservava algumas de suas características originais". Assim, passou a ser chamado de Guignol na França, Pulcinella na Itália, João redondo ou João Minhoca no Brasil e Puch na Inglaterra. Neste país, o boneco ganhou uma esposa - Judy -, um filho e um cachorro. E, esse quarteto torna-se um dos espetáculos clássicos apresentados nas escolas até o início do século XX: Punch & Judy . Aproximando-se e/ou se associando do/ao universo infantojuvenil - já que os bonecos estão inseridos no cotidiano de crianças e jovens desde tempos remotos -, o teatro de bonecos contribuiu para que o teatro para as jovens gerações pudesse florescer como atividade autônoma, inclusive com diferenciação de públicos e abordagens. A partir do surgimento das salas fechadas de espetáculos no continente europeu, houve uma segregação de camadas sociais nas apresentações de acordo com suas naturezas. Enquanto crianças e jovens menos favorecidos economicamente permaneciam nos ambientes abertos, assistindo ao teatro de cunho popular - com a presença de bonecos - e sem distinção de faixas etária, crianças e jovens abastados se envolviam com a atividade teatral dirigida especificamente para este público, em residências familiares. Um exemplo explícito das atividades teatrais domiciliares é o chamado Teatro de Papel, modalidade em que pequenos teatros de brinquedo tentavam reproduzir o “verdadeiro” teatro de sala, tanto em sua cenografia e decoração, quanto em seu repertório, promovendo o divertimento em dias festivos, assim como a integração do ambiente familiar. Fruto do 31 Romantismo, o Teatro de Papel foi uma criação burguesa que, posteriormente, foi difundida entre as famílias de classe média, permitindo o acesso das jovens gerações às produções célebres, frequentemente, representadas por atores apenas para o público adulto. Segundo Cláudia de Arruda Campos, no livro Maria Clara Machado (1998), a gênese do teatro para crianças e jovens como categoria específica ocorreu, simultaneamente, " no começo do século [XX], em vários países europeus e nos Estados Unidos" (CAMPOS, 1998, p. 49) , através de ações isoladas, como apresentações em datas natalícias e a criação de companhias de teatro voltadas para o público infantojuvenil. Isso se deu nos períodos pós-guerras, na tentativa de oferecer às jovens gerações uma espécie de válvula de escape, após terem vivenciado os horrores dos conflitos armados, e decorrente da compreensão, por grande parte dos educadores, da função instrumental ou contextualista de arte nos processos formativos. 29 Como grande exemplo, tem-se o Teatro da Criança - inaugurado em 1918, na União Soviética - que pode ser considerada como a primeira companhia moderna profissional de teatro para crianças e jovens, com intérpretes adultos representando, diretamente, para o público infantojuvenil, sem a intermediação de bonecos. Capitaneado pela diretora Natalia Satz, o Teatro da Criança "contava com a supervisão de um comitê de educadores, artistas e até mesmo burocratas" (LARCHER, 2013, p. 9). Neste projeto, destacavam-se importantes aspectos da moderna pedagogia proposta por Maria Montessori, como, por exemplo, a redução das dimensões do prédio onde funcionava o Teatro e dos objetos contidos nele, tornando-se ergonômicos às crianças. E, ainda, o direcionamento das peças de acordo com as faixas etárias do público. Contudo, nunca é demais relembrar que, para o governo socialista, o Teatro da Criança era um meio do Estado ditatorial catalogar o comportamento e o cotidiano das famílias por meio do “instrumento educativo” proporcionado às crianças e jovens. Se, na Europa antes do século XVIII, algumas manifestações espetaculares compunham os antecedentes da cena infantojuvenil, no Brasil, desde a invasão dos portugueses às terras tupiniquins, em 1500, também já havia registros de formas de teatro vinculadas a crianças e jovens. Dudu Sandroni, em Maturando: aspectos do desenvolvimento do teatro infantil no Brasil (1995), destaca algumas destas modalidades que se configuram como ancestrais do Teatro Infantojuvenil 29 Vertente que considera a arte como uma ferramenta para a aquisição de diferentes competências e/ou para se alcançar diversos fins em processos de ensino-aprendizagem, encarando-a como contributo e subordinada a outras áreas do conhecimento humano. 32 brasileiro, e que, em grande escala, eram realizadas por crianças, com caráter didático e moralizante. A primeira delas é o teatro jesuítico, utilizado por nomes como José de Anchieta para catequizar os indígenas, com cunho moral e religioso. A ela se seguem o teatro de marionetes apresentados nas ruas do império no século XVIII, as companhias infantis do século XIX - nas quais as crianças eram atores de espetáculos para adultos -, e as experiências didático-pedagógicas, chamadas de teatro escolar. Como modalidade teatral, o teatro escolar era constituído de representações realizadas em escolas, principalmente em comemorações cívicas e religiosas. E, pode ser dividida em três fases: a das traduções, com obras de Figueiredo Pimentel e Arlindo Leal, a nacionalista com escritos de Carlos Góis, Coelho Netto e Olavo Bilac, e a “teatral”, em que Joracy Camargo, Henrique Pongetti e Felix Carvalho são os expoentes. Há também, nesta modalidade teatral, as publicações de Eustóquio Vanderley, em revistas e suplementos. Somente em 1944, é lançado o Teatro do Gibi, projeto do embaixador Paschoal Carlos Magno, que, baseado nas experiências narradas acima, consistia em uma companhia de teatro de bonecos itinerante com apresentações em escolas, orfanatos, hospitais e praças, sob responsabilidade de Iolanda Fagundes. Sobre o Teatro do Gibi, Sandroni afirma representar “a primeira proposta concreta para transformar o teatro que se fazia até então: o teatro infantil começa a ser feito por adultos, atores profissionais e amadores” (1995, p. 73). Foi no final da década de 40, mais especificamente em 1948, que o teatro brasileiro viu nascer aquilo que se convencionou chamar de Teatro Infantojuvenil de cunho artístico, com a encenação da peça O Casaco Encantado (1948), de autoria de Lúcia Benedetti. Nas páginas finais de seu livro já citado, a autora compartilha com os leitores detalhes acerca da origem de seu texto: No verão de 1948 apareceu no Rio de Janeiro uma companhia austríaca fazendo teatro para crianças. A peça chama-se “Juca e Chico” e causou grande curiosidade. Um velho empresário carioca, Francisco Pepe foi ver o espetáculo e sentiu desejos de fazer também ele, um espetáculo para crianças. Pelo telefone, convocou uma escritora para lhe dar o texto dentro de trinta dias. A escritora é a mesma que aqui está batendo essas linhas. Sua experiência de teatro é imensa, porém como espectadora. De teatro infantil tinha sido intérprete de Carlos Góis, nos velhos tempos de escola. Nada mais. O velho e lírico empresário achou que aquilo era mais que suficiente. Vá ver “Juca e Chico”, a peça que está em cartaz e me faça uma coisa naquele gênero”. Fui ver “Juca e Chico”. [...] No fim de quinze dias, mais de menos, telefonei ao empresário. “Já?” – Indagou ele admirado. “Já?”. Como se chama? “O Casaco Encantado”. “Gosto do nome. Depois me entendo com você”. O tempo passou e nunca mais o empresário me procurou. Havia desistido da empresa e não se interessava mais pela peça. Um dia, arrumando 33 uma gaveta, dei com meu trabalho ali. Que fazer? Ninguém fazia teatro para crianças; eu não conhecia empresário algum pessoalmente, não saberia como explicar meu projeto. Em suma, eu era a pessoa menos indicada no mundo para tratar do caso. Mas acontece que meu amigo Paschoal Carlos Magno estava ao alcance da mão. Entreguei-lhe a bomba. Em menos de vinte e quatro horas Paschoal tinha arrumado empresário, descoberto diretor, inventado tudo (BENEDETTI 1969, p. 103-104). Como atestam os registros históricos, a estreia da peça obteve grande sucesso, tendo a autora angariado alguns prêmios pelo texto que, aliás, ganhou tradução para o inglês, o espanhol e o francês, também sendo montado em alguns países da América Latina. Após uma temporada de êxito no Rio de Janeiro, a montagem de O Casaco Encantado pelo grupo Artistas Unidos viajou por diversos estados do Brasil. O diferencial desta peça em relação às experiências nacionais anteriores estava no uso de uma linguagem que não estigmatizava seu público alvo - crianças e jovens -, "misturando elementos de contos de fadas com algumas pinceladas de Punch and Judy " (LOMARDO, 1994, p. 39), ainda que constem certas lições de moral em trechos da obra. 30 Para Campos (1998, p. 67), "o teatro infantil brasileiro nasce junto com o moderno teatro brasileiro", uma vez que a montagem do texto de Benedetti significa uma metamorfose no modo de se conceber e elaborar teatro para crianças e jovens, tal como ocorrera em 1943 com a encenação de Vestido de Noiva , pela companhia Os Comediantes. Como marco da instauração e da renovação do Teatro Infantojuvenil, O casaco encantado em muito se assemelhou à experiência de Os Comediantes, ao lançar mão de um entrosamento entre os diferentes elementos da cena na montagem, articulados pela figura de um encenador - Graça Mello - , já que, para a concretização do projeto, Henriette Morineau, fundadora e atriz do grupo, inspirava-se no profissionalismo e nas encenações do mestre Louis Jouvet, com quem trabalhara. No ano seguinte, outros grupos da então capital do país já se aventuravam no ramo do Teatro Infantojuvenil, como, por exemplo: o Teatro da Carochinha com a peça O Pica Pau Amarelo e A revolta dos brinquedos , o Teatro dos Novos com O príncipe lenhador , e o Teatro dos Doze com Simbita e o dragão . Já em 1952, o Centro do Brasil do Instituto Internacional do Teatro realizou no país a Primeira Conferência Nacional sobre o Teatro e a Juventude, para divulgar as ideias tratadas no Congresso Internacional sobre Teatro e Juventude, ocorrido no mesmo ano, em Paris. Reunindo representantes de diferentes entidades, no auditório do Serviço Nacional de Teatro (SNT), entre outros assuntos, a nomenclatura teatro infantil foi debatida, uma vez que, até 30 O termo lição de moral se refere, no contexto deste trabalho, à "construção de um discurso textual doutrinário"(LARCHER, 2016, p. 43), que veicula exemplos valorativos de condutas individuais e/ou sociais. 34 então, esta estava vinculada ao teatro escolar. Para diferenciá-los, optou-se pelo uso dos termos Jogo dramático e Arte dramática indicando, respectivamente, o teatro feito por crianças e jovens e o teatro feito para crianças e jovens. Na ocasião, foram propostos também os termos: teatro infantil, para designar o teatro feito para crianças fora do ambiente escolar, teatro escolar, para referenciar o teatro para crianças ou jovens realizado no ambiente escolar com objetivos didáticos, pedagógicos ou artísticos, e teatro da mocidade, para o que fora da escola se destinava à mocidade e/ou juventude. Todavia, esta diferenciação não se consolidou e, hoje, é vista como rasa, tendo suas fronteiras pouco demarcadas, já que as demais considerações apresentadas no evento evidenciam que o teatro para crianças e jovens ainda era visto como uma extensão da sala de aula, com temas que muito se aproximavam e/ou se confundiam com conteúdos escolares, em todos os contextos. Além disso, a proposição apresentada torna-se pouco viável, visto que perdura, até os dias de hoje, uma imprecisão na definição de juventude e, consequentemente, no uso desta terminologia quando adjetiva algo. Ao longo dos tempos, enquanto a infância se consolidou como uma uma etapa biológica e uma categoria social com contornos mais bem definidos, a juventude acabou se tornando uma ideia ambígua, podendo ser encarada como sinônimo daquilo que hoje conhecemos como adolescência - período de trânsito entre a infância e a idade adulta, caracterizado pela imaturidade sexual - e/ou como agrupamento que engloba a infância, a adolescência e os primeiros anos da idade adulta . 31 Os fatos narrados acima - desde a fundação do Teatro do Gibi até a realização da Primeira Conferência Nacional sobre o Teatro e a Juventude - evidenciam e são importantes para se compreender aquilo que Sidmar Silveira Gomes, em sua tese de Doutorado Do encontro entre as práticas teatrais e a educação: uma releitura da constituição do teatro infantil brasileiro (2018) , observa como um primeiro deslocamento na organização do teatro para as jovens gerações no Brasil, revelado pelos trabalhos que se debruçam sobre o tema. Como diz Gomes, este primeiro movimento: [...] diz respeito à mudança de paradigma do que seria o teatro infantil, operado por meio da transição de um teatro feito por crianças para crianças para um teatro feito por adultos para crianças e adultos, cujo pioneirismo é atribuído a Lúcia Benedetti e ao grupo Artistas Unidos por ocasião da montagem do espetáculo O casaco encantado , em 1948. As justificativas para tal deslocamento indicam-se pautadas em motivos como os 31 Nesta tese, ao compreender o Teatro Infantojuvenil como um teatro para todas as idades, utilizo-me do termo juventude em sua acepção mais abrangente, que abarca não apenas adolescentes, mas também a infância e os adultos mais novos em sua constituição, por mais redundante que possa parecer. 35 presentes na tese de Júlio Gouveia (2012) , a qual versa que compete aos adultos 32 realizar o teatro infantil, posto que só atores adultos e amadurecidos teriam a capacidade de apresentar espetáculos de boa qualidade artística e educacional, uma vez que, competentes e experientes, estabeleceriam as necessárias relações entre palco e plateia, orientando e controlando as reações do público infantil. (GOMES, 2018, p. 156) Em grande parte, as proposições da década 50 se inserem no movimento supracitado. Entre elas, destaca-se O Tablado, grupo teatral e teatro-escola carioca liderado pela figura de Maria Clara Machado , considerada a primeira dama do Teatro Infantojuvenil brasileiro, dadas as 33 proporções de alcance que sua dramaturgia obteve - por meio das publicações em formato de livros -, e pelo reconhecimento da crítica especializada por seu trabalho como diretora de espetáculos do gênero. Tendo estudado teatro nos Estados Unidos e na França, Machado reivindicou a qualidade que os espetáculos para as jovens gerações brasileiras deveriam alcançar, articulando à sua prática reflexões acerca das características próprias do Teatro Infantojuvenil. Para isso, atuou à frente d'O Tablado de três formas que se complementam: oferecendo cursos práticos na escola, elaborando espetáculos, em sua maioria, infantojuvenis, e editando a revista Cadernos de Teatro , criada em 1956, e responsável pela difusão de muitos textos teóricos e teatrais pelo país. O teatro de Machado contribuiu para a nova perspectiva de se escrever e se encenar para as jovens gerações brasileiras. Em sua extensa dramaturgia, levadas à cena pelos mais diversos grupos nacionais e internacionais - com nomes que vão desde O Rapto das Cebolinhas (1954), Pluft, o fantasminha (1955), A Bruxinha Que Era Boa (1958), O Cavalinho Azul (1960) a Aprendiz de Feiticeiro (19 85) -, embora um caráter maniqueísta possa ser observado, não há a presença de lições de moral ou os pretensiosos “ensinamentos”, como pincelados na obra de Benedetti. Em suas encenações, o Teatro Infantojuvenil é compreendido como “atividade artística específica e profissional, realizada em local específico, ou seja, em teatros, pretendendo constituir um circuito em tudo semelhante ao do teatro para adultos” (CAMPOS, 1998, p. 72). 33 Tendo clareza que os limites desta tese não permitem maior aprofundamento na obra de Machado, indico o livro Maria Clara Machado (1998), de Cláudia de Arruda Campos, como um bom exemplo de pesquisa sobre o tema. 32 Texto de nome O teatro para crianças e adolescentes: bases psicológicas, pedagógicas, técnicas e estéticas para sua realização (1951) , apresentado pelo autor na ocasião do Primeiro Congresso Brasileiro de Teatro. Nele, Gouveia discorre, entre outros aspectos, sobre a diferenciação de um teatro para adultos e um teatro voltado para crianças e jovens que, em sua visão, deveria ser educativo. O curioso neste texto é que a ampla abordagem feita pelo autor para o termo educativo poderia ser facilmente aplicada ao teatro adulto, não se aproximando do sentido didático. 36 Além de O Tablado e Machado, durante a década de 50, outros dois grupos e seus fundadores contribuíram para a expansão do Teatro Infantojuvenil brasileiro. São eles: o Teatro Escola de São Paulo (TESP), na capital paulista, e o T eatro Infantil Permanente do Instituto de Educação (Típie), em Porto Alegre. O primeiro foi instituído por Júlio Gouveia e sua esposa Tatiana Belinky , a partir da estréia da peça Peter Pan , ainda em 1948, e responsável pela 34 35 primeira versão televisionada da obra infantil de Monteiro Lobato, em 1951. Belinky também editou, desde 1965, a revista Teatro da Juventude . O segundo, por sua vez, foi criado por Olga Reverbel , em 1956, com um grupo de normalistas, no intuito de apresentar regularmente 36 espetáculos teatrais infantojuvenis à comunidade, a partir da motivação e do apoio de Maria Clara Machado. O clima de florescimento do Teatro Infantojuvenil nacional permitiu, ainda, que surgissem outros autores e textos do ramo nos anos 50 e 60, como, por exemplo, Zuleika Mello, Stella Leonardos, Walmir Ayala, Oscar Von Pfuhl, Jurandyr Pereira, Pasqual Lourenço, Ivo Bender e Maria Helena Kuhner. Entretanto, grande parte da produção dessa época apresentava problemas quanto às especificidades da escrita para teatro, menos por serem adaptações e/ou reescritas de contos tradicionais e/ou da cultura popular, e mais por um desconhecimento e/ou falta de manejo por parte dos autores de elementos da cena, apostando em didatismos e lições de moral, por exemplo. Afinal, muitas das proposições de Machado e de Belinky bebiam na fonte da literatura popular, com a estrutura da narrativa clássica e explorando elementos de comicidade, e mesmo assim possuíam desenvoltura ao serem levadas à cena, sem teor moralizante. Lomardo destaca que, com o advento do Golpe de 1964 e a instauração da ditadura civil-militar no Brasil, surgiram dois grupos de espetáculos infantojuvenis no país. São eles: os de cunho patriótico, ou propagandísticos do regime; e os diversificados, com variedade temática, 36 Embora não seja o foco deste trabalho, é necessário indicar que a obra de Reverbel extrapola os limites do Teatro Infantojuvenil, configurando-se como pioneira no campo da Pedagogia do Teatro no Brasil. A tese Olga Reverbel e a constituição do campo do ensino do teatro no Brasil na segunda metade do século XX (2017), defendida por Simone Varela na Universidade Tiradentes (UNIT) é um bom exemplo de estudo sobre Reverbel e sua obra. 35 Aqui, torna-se interessante salientar uma curiosidade: essa montagem contou com a participação do então jovem ator Clóvis Garcia. Anos mais tarde, Garcia torna-se crítico de espetáculos infantojuvenis e, já como professor da Universidade de São Paulo (USP), Garcia será o responsável pela disciplina Teatro Infantil, além de orientar alguns dos trabalhos acadêmicos pioneiros na área no Brasil, como o de Maria Lúcia Pupo, o de Ilíada Silva Alves de Castro e o de Fátima Maria Alves Neto. 34 Maiores detalhes sobre a trajetória da autora no Teatro Infantojuvenil podem ser consultados na dissertação Tatiana Belinky: a história de uma contadora de histórias (2008), defendida por Karin Dormien Mellone na Universidade de São Paulo (USP). 37 podendo, inclusive, trazer debates, reflexões e, até mesmo, os de mobilização política. Isso foi um verdadeiro “boom” na produção infantojuvenil, decorrente de uma conjuntura internacional e