Kátia Murray Hernandes, Marcelo de Souza Bruniera & Cristina Amelia Luzio Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 89 Oficina na Atenção Psicossocial: Experimentações com a palavra Kátia Murray Hernandes Marcelo de Souza Bruniera Cristina Amelia Luzio CRAS de César de Souza, Mogi das Cruzes/SP Associação Cornélia M.E.V.H. Vlieg de Campinas/SP Faculdade de Ciências e Letras de Assis - UNESP Resumo: A Oficina da Palavra foi criada em 2004, como atividade do estágio curricular em “Atenção Psicossocial na Saúde Coletiva” do curso de Psicologia da UNESP/Assis com o objetivo geral de estimular a circulação da palavra, através da discussão de contos, histórias, “causos”, piadas, poesias e produções jornalísticas. De início, considera-se que Oficina da Palavra pode contribuir substancialmente ao garantir um espaço para a manifestação e socialização dos mais diversos saberes e, em potência, criar condições para que determinados sentidos existenciais se bifurquem. Tal espaço-dispositivo possibilita ao usuário da saúde mental falar da vida e dos interesses, para além de queixas e sintomas, metaforizando-os, através de experimentações inéditas da linguagem e de novos regimes de sensibilidade. Aportando-se teoricamente em Enrique Pichon- Rivière e Paulo Freire, elaborou-se uma análise crítica desta experiência singular que, na tentativa de promover bons encontros, concebe a palavra como agente de conscientização e transformação social. A partir desta primeira leitura teórica-crítica, vislumbra-se uma possível incursão no cenário das oficinas na Atenção Psicossocial de cuidado, atentando-se para as potencialidades e perigos desta prática já instituída. Palavras-chave: Psicologia; Reforma Psiquiátrica; Oficina; Saúde Mental. Oficina na Atenção Psicossocial: Experimentações com a palavra Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 90 Introdução Como pensar a complexidade e a diversidade do atual contexto de práticas “oficineiras” em Saúde Mental? Enquanto ações instituídas, é possível potencializá-las como espaços-dispositivos singulares de criação? A partir do relato sobre a Oficina da Palavra, realizada no Centro de Atenção Psicossocial de Cândido Mota (CAPS), interior do estado de São Paulo, propõe-se um esboço reflexivo sobre as práticas no atual cenário de cuidado em Saúde Mental. Para tal, sustentaremos nossa incursão em um tripé norteador: Movimento de Reforma Psiquiátrica, e conseqüente proposição da Atenção Psicossocial, contexto de determinadas ações inovadoras em Saúde Mental; Oficinas em Saúde Mental, enquanto prática instituída nos serviços substitutivos; e a Palavra, enquanto potência e protagonista da experiência a ser relatada. Seria absolutamente inviável pensar estes eixos discursivos-operatórios de forma isolada, pois implicaria refletir sobre esta experiência de maneira fragmentada e parcial. O presente trabalho não objetiva discorrer especificamente sobre este tripé norteador, mas entende a contextualização como necessidade básica para se pensar determinada atividade grupal (QUIROGA, 1985a). Nesse sentido, faz-se necessário destacar que no Brasil o modelo da Atenção Psicossocial, originário do Movimento da Reforma Psiquiátrica, aspira um processo de transição paradigmático em que ocorrem, a um só tempo e articuladamente, transformações em quatro campos: teórico-conceitual; técnico-assistencial; político- jurídico; e, sociocultural (Costa-Rosa, 2000; Amarante, 2007). Como atividade curricular do curso de Psicologia da UNESP- Assis foi criada, em 2004, a Oficina da Palavra. Ao longo dos anos, a temática e a estrutura do trabalho metamorfosearam-se permanentemente, o que, de alguma forma, faz com que o trabalho, sob o viés de produzir “bons encontros”, ainda hoje, seja capaz de produzir múltiplas trocas e de criar novos enlaces subjetivos. A partir destas criações-aventuras pela palavra, vislumbrou-se um possível escopo teórico sustentado em Enrique Pichon- Rivière e Paulo Freire. Consideram-se particularmente interessante as interlocuções possíveis entre estas distintas produções, entendendo que alguns conceitos-chave contribuem substancialmente para a teorização desta experiência prática. A Oficina da Palavra: Fragmentos de uma história A Oficina da Palavra, iniciada há cinco anos, no ambulatório de Saúde Mental de Cândido Mota, propunha a utilização da palavra como dispositivo. Com a circulação da palavra, através de contos, causos, crônicas, piadas, poesias e produções jornalísticas, buscava-se a legitimação de um coletivo concreto, destinado à circulação da fala e da escuta, da experiência, da expressão e de produção de vida entre os usuários, para “além da queixa”. Historicamente, pensa-se a doença mental como uma condição humana destituída de sentidos e possibilidades de produção de vida. A Psiquiatria construiu tal visão ao Kátia Murray Hernandes, Marcelo de Souza Bruniera & Cristina Amelia Luzio Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 91 lançar seus olhares apenas para aquilo que é sintoma, orientando uma escuta que se restringe à queixa, ao mal estar, à doença. Esta concepção foi internalizada por muitos atores envolvidos com os serviços de saúde mental. Com freqüência observamos profissionais organizarem atividades grupais, utilizando como único critério para a inserção, o diagnóstico dos participantes. Completando este quadro, nos deparamos com usuários que trazem como temas para as atividades grupais, que possibilitam a expressão por meio da palavra, só aquilo que de mais enraizado têm na sua identidade: o diagnóstico, seguido do sintoma. : Toda a história de vida do sujeito é esquecida, fica entre parêntesis e aparece destacado na pauta: a doença de nome complicado que nunca ninguém explicou o que significa e que não deixa de ser um critério de inclusão. A proposta de uma oficina fundamentada na possibilidade do usuário de saúde mental falar da vida, dos interesses, sonhos e projetos, para além de queixas e sintomas, busca romper com o regime de “tutela especializada” no qual o usuário ocupa o lugar de incapaz, ainda presente mesmo nos modelos que se pretendem alternativos ao paradigma manicomial (Guerra, 2004; Yasui, 2006). Este rompimento propõe, através da criação de espaços de convivência, a existência de lugares a serem transitados por diferentes repertórios dos sujeitos, muitas vezes esquecidos, em face da desvalorização do saber popular, principalmente quando o porta-voz deste saber, carrega consigo o estigma da loucura. A utilização efetiva destes espaços pressupõe mudanças nas relações com o sofrimento, o conhecimento e com a cidadania, além de potencializar a cultura da participação, que é o fundamento da democracia. É possível que a complexidade destes elementos constitua a melhor explicação para o fato de que, no primeiro ano de realização, a oficina da palavra insistia em virar um grupo terapêutico, afinal, colocar outros papéis em situação de exercitar algum grau de coeficiente de poder contratual exige a desafiadora vivência de saberes que são capazes de gerar transformação. Exige ainda o abandono paulatino da conexão automática identidade- doença, que é ao mesmo tempo geradora de sofrimento, dado o estigma que a ela se associa e fonte de segurança, quando simplifica e tipifica a caótica força do insconsciente. Considerando a riqueza de elementos que ainda norteiam a oficina da palavra, a sua função política ao fazer-se instância de participação e as vivências experimentadas por meio de textos e contextos, seria possível discorrer e, quem sabe, poetizar, sobre vários encontros marcantes ao longo desta breve história. Todavia, escolhemos alguns poucos que, em sua intensidade, elucidam a potencialidade da palavra, do “fazer texto” no cuidado em um serviço de alta complexidade em Saúde Mental. Em 2005, uma sexta-feira em especial chamou a atenção pela efetiva circulação da palavra. Naquele trabalho foi discutido o conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa. Sete participantes estavam presentes e todos foram mobilizados, “afetados” pela “canoa que apoitou o meio do rio” (utilizo aqui uma expressão de um usuário). Através das falas, novos regimes de sensibilidade e experimentações inéditas da linguagem foram sendo criados. Cada usuário metaforizava sua história através da vivência do rio, da margem, da canoa... Não era mais aquela terceira margem que outrora habitava nossas mentes. Não era mais suficiente a obviedade das críticas literárias. Os usuários do CAPS do município de Cândido Mota, em plena Oficina da Palavra, decidiram por construir uma canoa, que, embora não fosse substrato de planejamento estratégico, pôde nascer da trama das Oficina na Atenção Psicossocial: Experimentações com a palavra Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 92 palavras em circulação. Estava lá também Guimarães Rosa, com sua ciranda multívoca, lançando águas no que outrora era uma sala para fins definidos e, se nas mãos não trouxera as páginas da lei e da ordem, ao menos deixara sobre a mesa suas Primeiras Histórias. Outra situação bastante ímpar desta trajetória ocorreu já em 2008, em um encontro que contou com a presença de seis usuários. A leitura, e conseqüente discussão e reflexão, da letra de música “Tocando em frente”, de Renato Teixeira e Almir Sater. Esta composição popular versa sobre a sutileza encontrada pelos autores para “continuar tocando a vida em frente”, apesar de todos os empecilhos. Suscitou-se, primeiramente, o relato de uma usuária que, certo dia, ao caminhar, andou “tão em frente” que quase foi parar em Sussuí, pequeno distrito perto de Cândido Mota. A partir de então, encantadoramente, conversações diversas passaram a ocupar um cenário multitemático de produção coletiva que, em sua errância, articulava as singularidades desejantes ali presentes. A discussão entrelaçava situações e temas diversos. Uns relatavam como era passear. Outros como era passear especificamente em Cândido Mota. Em outros momentos, ainda, conversaram sobre a Oficina de Passeio do CAPS em Cândido Mota. Preconceitos e estigmas em relação aos usuários, preconceitos em relação à raça, gênero e condição social foram tematizados e a discussão ganhou um colorido especial com a intensidade produzida ali. Em última instância criou-se, no espaço-tempo daquela oficina, um amplo debate reflexivo sobre a vida, o sofrimento e a possibilidade de transformação sócio-cultural daquela realidade. Muitos outros momentos desta trajetória certamente mereciam um espaço de maior destaque neste relato. Algumas situações foram enfatizadas neste texto, mas, de forma alguma, evidenciam o rebaixamento de outras à categoria de coadjuvante. Um pequeno esforço de memória é capaz de trazer à mente a riqueza da temática e da subseqüente discussão vivenciadas em outras oficinas. Trabalhos disparados pela leitura das Margens da Alegria, também de João Guimarães Rosa, do jornal do CAPS de Assis, de reportagens diversas que relatavam a diversidade cultural de terras distantes, como a China e muitos outros faziam com que a palavra ali produzida e inventada ganhasse asas. As conexões grupais entre a tarefa, ou texto trabalhado, e as histórias singulares faziam com que os participantes, cada qual à sua maneira, desbravassem caminhos que iam da exótica culinária chinesa à fabulação absolutamente singular de Guimarães Rosa. As poesias são, enquanto ferramentas, também responsáveis por bons momentos vivenciados na oficina. Em algumas situações, inclusive, foram escritas pelos participantes algumas poesias coletivas, como uma intitulada “Lembranças”, no final de 2007. Nestes momentos, quase sempre nos últimos instantes de uma oficina, os participantes recheavam uma folha em branco com suas palavras, frustrações e anseios. Certa vez, os usuários propuseram a leitura do poema Belo belo, de Manoel Bandeira, que versa, basicamente, sobre ter aquilo que não se quer e desejar algo que parece tão distante, como “a rosa que floresceu sobre a escarpa inacessível”(Bandeira, 2001, p.93). A fluidez talvez tenha sido uma característica fundamental dos diálogos naquela manhã. Os participantes, a maioria já velhos conhecidos, harmônica e intensamente debatiam temas como doença, sofrimento, calvice, obesidade, preconceitos, drogas e, em contrapartida, sonhos, esperanças, paz, dinheiro... Manoel Bandeira, ao escolher suas palavras, possibilitou a rotatividade multitemática dos discursos naquela manhã de terça-feira. Na semana seguinte, um Kátia Murray Hernandes, Marcelo de Souza Bruniera & Cristina Amelia Luzio Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 93 usuário, em particular, dizia estar profundamente afetado pelo poema, o que lhe gerou, inclusive, algumas noites de insônia. Longe de ensejar ser um “disparador de crise”, a Oficina da Palavra entende que a relação do homem com a linguagem pode ser revolucionária e, assim, novos arranjos entre o sujeito e o mundo podem, então, ser criados. Cecília Meireles, em um poema não trabalhado na oficina, constata algo que pode ser considerado fundamental para esta atividade ao dizer: “(...) Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada” (Meireles, 2001, p.99). Pichon-Rivière e Paulo Freire: a transformação social pela construção do saber As produções teóricas destes dois autores apresentam muitos pontos em comum e, certamente, são complementares em vários aspectos. Alguns de seus conceitos parecem ser centrais para pensar essa “experiência oficineira”. Na realidade, essa leitura a posteriori segundo o recorte teórico destes autores evidenciou pontos de convergência entre o que vinha sendo feito em Cândido Mota e determinadas conceituações propostas por ambos. Enquanto norte, uma reflexão sobre a palavra e o que os autores, principalmente Freire, pensam sobre ela, sustentará subseqüentes articulações conceituais que objetivam dar um contorno mais nítido à apropriação teórica da experiência relatada. Em sua Pedagogia do Oprimido, Freire (1987) atenta-se para a visceral correlação ação- reflexão para conceber a palavra enquanto dispositivo para o diálogo e, mais amplamente, como potencialidade de transformação e libertação social. Segundo o autor: A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar (Freire, 1987, p.78). A pronúncia do mundo a que se refere Paulo Freire é resultado de uma produção coletiva, do encontro dos homens, não estando evidenciada nos enunciados da “pedagogia bancária”. Portas se abrem quando os jogos de poder e seus discursos verticais são revelados e, ainda mais, quando novas perspectivas e possibilidades de encontro passam a habitar um horizonte enquanto utopia ativa. Nesta mesma direção, pode-se focar na oposição pensar crítico e pensar ingênuo. A prática, sustentada em um pensar ingênuo, busca acomodar-se, “(...) agarrar-se a este espaço garantido, ajustando- se a ele e, negando a temporalidade, negar-se a si mesmo” (Freire, 1987, p.83). Já o pensar crítico tem como meta maior a transformação concreta e permanente da realidade, construindo ou resgatando aquilo que existe de humano no homem. “Um pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade, (...) que percebe a realidade como processo, que a capta em constante devenir e não como algo estático” (Freire, 1987, p.82). Absolutamente imprescindível, então, pensar que a palavra em uma oficina na Atenção Psicossocial tem que ocupar um lugar de combatente, de agente da travessia e Oficina na Atenção Psicossocial: Experimentações com a palavra Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 94 do movimento, de transformação e ruptura. Em um serviço que se propõe substitutivo e alternativo ao manicômio e à clausura, o “pronunciado do mundo” produzido e a ser produzido não mais é reservado ao saber técnico, instituído e burocrático, que disseca o desejo em minúcias de enfermidade e eleva a doença à categoria de protagonista nas práticas de saúde. O direito à palavra e ao falar a que se referiu Freire (1897) serve de retaguarda para se pensar a vida “para além do sintoma” e, ainda, como perspectiva que garante ao sujeito, em sua articulação dialógica, social e coletiva, a possibilidade de suspender laudos e prescrições que, como grades, aprisionam o sujeito e sua dimensão desejante. Nesta mesma perspectiva, Pichon-Rivière associa o coletivo à produção de saúde ao considerar que a tarefa a que o grupo operativo se propõe (implícita ou explicitamente), deve estar centrada na saúde e não na doença mental, vislumbrando a reconstrução das redes de comunicação, a reconstrução dos vínculos e a reestruturação do interjogo de papéis. O vínculo, conceito central nos trabalhos de Pichón, é por ele entendido como uma estrutura complexa de interação em forma de espiral, que funciona de modo que a cada giro, ocorre a realimentação do ego e o esclarecimento do mundo. Neste movimento, cada participante ocupa potencialmente o papel de agente social, de líder da mudança, de conscientização e transformação dialética de si e do grupo (Barreto, 1985). O grupo operativo proposto por Pichon-Rivière sustenta a coexistência de comunicação, aprendizagem e operatividade. Esta configuração exige que o coordenador do grupo exercite uma comunicação ativa e criadora. Em outras palavras, o coordenador tem a função de “estabelecer o diálogo entre os componentes do grupo e não encampar tudo nem centrar tudo em si” (Bleger, 1998, p.95),. Paulo Freire, por sua vez, (1897, p. 83-84) se aproxima destas definições ao discorrer sobre as funções do educador-educando. Segundo ele, com o diálogo e a partir de um conteúdo programático das atividades construído no coletivo, o educador-educando seria responsável pela “devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada”. É possível notar uma evidente afinidade entre o papel de coordenador proposto por Bleger (1998), a postura do “educador libertário” de Freire (1987) e a proposta de coordenação da oficina da palavra. Na oficina em questão, o coordenador almeja tornar possível o diálogo, criando condições para a produção discursiva, a circulação da palavra e a socialização e construção de conhecimento. Paulo Freire, em sua militância pela transformação social, propõe a integração entre a política e a educação. Entende, genericamente, que a educação só faz sentido como possibilidade de produção e reinvenção social, de transformação dialética da sociedade (Freire, 1987). Sob este mesmo viés, Pichón-Rivieire concebe toda aprendizagem como aprendizagem social. Processo educacional e processo terapêutico se aproximam muito quando concebidos como ferramentas de libertação e de transformação da realidade. Em um serviço psicossocial de cuidado, enquanto alternância radical ao paradigma asilar, as práticas terapêuticas se configuram necessariamente como ações políticas. Ao se conceber a implicação subjetiva como elemento central de um projeto terapêutico, clínica e educação, tendo as ações políticas como mediadoras, passam a andar de braços dados na Saúde Mental e, mais amplamente, na Saúde Coletiva (Costa-Rosa, 2000). Kátia Murray Hernandes, Marcelo de Souza Bruniera & Cristina Amelia Luzio Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 95 De maneira até mesmo superficial, pode-se dizer que esta aproximação condiz com a idéia de que ambos os processos têm como meta maior o restabelecimento da relação dialética entre o sujeito e a realidade. Em uma oficina localizada em um serviço de saúde, que ambiciona a produção de saber e conhecimento através da circulação da palavra, esta correlação ganha ainda mais destaque. Não no sentido de reduzir um projeto terapêutico a uma pedagogia qualquer nem, ao contrário, limitar a produção de saber pelo homem a ações terapêuticas diversas e tão em voga em um contemporâneo que se auto-denomina doente. Pode-se, em contrapartida, pensar ambos os processos como possibilidades reais e concretas de retificação subjetiva de padrões e vínculos de convivência esteriotipados (Bleger, 1998). Pichon-Rivière e Freire são convergentes ao pensar os grupos como possibilidades reais de mudança e desvio frente à paralisia, ao inerte que engessa o cotidiano e destitui o homem de sua humanidade. Tanto o pensamento de um quanto o de outro parece ser “uma reivindicação para que as formas de encontro entre sujeito e realidade sejam mais livres, mais abertas, mais criativas e para que nos assumamos - com todas as nossas possibilidades - como sujeitos cognoscentes” (Quiroga, 1985b, p.45). Em um grupo que preconiza tais valores, qualquer participante pode encampar a função de agente social, de líder de mudança, não sendo esta mais uma possibilidade exclusiva do coordenador- técnico. O usuário-participante, então, deixa de ser um observador passivo e passa a compor o quadro de atores sociais responsáveis pela produção dialética de determinadas vidas e contextos. A ênfase na pergunta ao invés das certezas massificantes e alienantes, a configuração de um grupo operativo e seus esquemas referenciais, como destaca Bleger (1998), e alguns outros pontos em comum parecem iluminar um pouco mais o caminho percorrido nesses anos todos de trabalho na oficina e, principalmente, tornar possível que se vislumbre um cenário de novos acontecimentos e mudanças. O “fazer oficineiro”: Potencialidade criativa e risco do inerte. Ao propor uma reflexão crítica acerca das oficinas em Saúde Mental. Guerra (2000) faz um resgate histórico da multifacetada relação trabalho e loucura desde o advento do campo da Saúde Mental. A autora aponta que nos dias atuais, no cenário das reformas psiquiátricas do século XX, a atividade, representada principalmente pelas oficinas, tornou-se “índice de reabilitação e reinserção social, na busca pelo resgate da cidadania” (p.26). Ela também explicita que, desde a criação dos grandes asilos, antes até da instalação da psiquiatria no campo médico, a utilização de atividades laborais e manuais como tratamento da loucura tinha funcionalidade explícita de auxiliar na manutenção da ordem social. Nas práticas cotidianas dos oficineiros novas questões são levantadas, exigindo, por parte dos trabalhadores e teóricos da Saúde Mental, problematizações e revisões constantes das ações de cuidado. Guerra (2000), neste sentido, salienta a inserção do elemento político-social como sendo crucial na configuração destas novas práticas. A autora aponta os riscos, as potencialidades e as perspectivas deste fazer ao afirmar que: Oficina na Atenção Psicossocial: Experimentações com a palavra Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 96 As oficinas são tomadas como um mero recurso pedagógico e educativo em um modelo clássico, ou mesmo, de ocupação do tempo institucional ocioso por um lado, acreditando-se, por outro, que por trás de sua utilização, seria o sujeito em sua loucura que poderia estar sendo tocado, criando novas relações com o circuito social, restabelecidas pela via do resgate de sua linguagem ou de sua cidadania. Essas diferentes perspectivas são pressupostos essenciais para delimitarmos em que tem consistido hoje a prática das oficinas com a loucura no campo da saúde mental no Brasil (Guerra, 2004, p.38). A proposta de mudança e transformação do cenário da Reforma Psiquiátrica faz com que a prática clínica e o agir político estejam amalgamados de maneira nunca antes vista. Um ato terapêutico, em sua excelência, ganha conotação de ato político, de resistência e libertação. Política aqui referida segundo a leitura de Yasui (2006) das idéias de Hannah Arendt. O autor afirma que: (...) o sentido da política é a liberdade, pois se baseia na pluralidade dos homens, na convivência entre os diferentes. A autora postula que a política não surge no homem, mas sim entre os homens. Desta forma, a liberdade e a espontaneidade dos diferentes homens soa pressupostos necessários para o surgimento do espaço, onde só então se torna possível a política (Yasui, 2006, p.22). Preconizar a articulação de subjetividades singulares e suas diferenças radicais, que rejeitam qualquer tentativa de enquadre em rótulo, é essencial para a atualização do pressuposto de trabalho coletivo que fundamenta qualquer trabalho em oficinas na Atenção Psicossocial. O trabalho com oficinas, necessariamente, deve se centrar na articulação trabalho, arte e produção desejante, no sentido de criar novos “mundos” e territórios existenciais (Rauter, 2000). Em Saúde Mental, as práticas, embora com características absolutamente singulares, como a relação loucura e arte, devem desaguar nos mesmos mares turbulentos e inovadores da criação, conforme proposição da referida autora. Rauter (2000), afirma que uma oficina só se caracterizará como terapêutica caso estabeleça conexões e elos distintos dos já existentes entre a produção desejante e a produção da vida material. Na especificidade dos usuários dos serviços de Saúde Mental, como o CAPS, considera-se particularmente relevante a possibilidade de reinvenção da vida em seu aspecto cotidiano, no dia-a-dia das ações e das relações. Infindáveis questionamentos vêm sendo feitos por inúmeros autores, que problematizam, dentre outros aspectos, o fato de que as oficinas, enquanto propostas de criação e inserção social são, em muitos momentos, meros dispositivos de normatização e adaptação. As oficinas sempre correm os riscos de ser apenas uma maneira de enfrentamento e combate ao ócio, ocupando grande parte do tempo de trabalho de equipe, desgastando o serviço e atrofiando a possibilidade de construção de outras estratégias assistenciais (Cedraz & Dimenstein, 2005). As referidas autoras nos fazem um alerta ao dizer que: É imprescindível fazer das oficinas espaços de discussão e descontrução dos valores que fundamentam nossa práticas, abrindo possibilidades para que cada um possa estabelecer novas conexões, criar territórios existenciais atravessados por outros valores que não sejam somente os que aprisionam numa vida aparentemente sem riscos (Cedraz & Dimenstein, p.323, 2005). Kátia Murray Hernandes, Marcelo de Souza Bruniera & Cristina Amelia Luzio Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 97 A vida estagnada que nos aprisiona, sem riscos segundo as autoras, corresponde à paralisia manicomial do cativeiro que nos cerca mesmo a céu aberto. A desospitalização gradual é um registro importantíssimo e absolutamente necessário do processo histórico de transição paradigmática que estamos vivendo. Nos dias de hoje, entretanto, é necessário ir além, correr riscos diversos, dissolvendo paliativamente a inércia impregnada em boa parte dos serviços públicos de saúde. Arriscar-se, como o usuário ao se aventurar pelo texto de Manoel Bandeira e ficar algumas noites sem dormir, passa, então, a ser essencial. Com a institucionalização e a obrigatoriedade destas práticas enquanto políticas oficiais de cuidado na Atenção Psicossocial, evidentemente, qualquer oficina que tenha como maior compromisso a criação e o engajamento desejante de seus participantes estará sempre problematizando a mesmice e a inércia que eventualmente possam acometê-la. Longe de uma resposta ou saída definitiva, as produções subjetivas através da palavra, no sentido de um resgate do valor de uso do dizer para além da queixa, realizadas no CAPS de Cândido Mota, dão-nos um alento, um sopro de vida que, no sentido de uma “utopia ativa”, evidenciando a possibilidade de continuar produzindo texto e contexto. Hernandes, K. M., Bruniera, M. S., Luzio, C. A. (2010) Workshop on Psychosocial Care: Trials with the word. Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 89-99. Abstract: The Word Workshop was created in 2004, as an activity of the training period in Psychosocial Care in the Collective Health, a discipline that is part of the curriculum of the Psychology course offered by the State of São Paulo’s University “Júlio de Mesquita Filho”/UNESP, campus of Assis. Initially, it is possible to affirm that the Word Workshop contributes to stimulate the flow of the words through the discussion of tales, short stories, poetry, jokes and news. The Word Workshop is considered an effort towards the guarantee of a space where the users of the mental health care service can share varied experiences and it is also thought as an attempt that can, potentially, bring up the conditions through which some existential meanings may possibly be forked. Such a space-instrument allows the mental health care users to speak about life and their interests rather than to keep focused in symptoms and complains. These ones, by their turn, are expressed through metaphors, unprecedented speech experiences and new sensitivity regimes. The critical analysis of the singular experience of the Word Workshop, that understands the words as agents of social transformation, was conceived with the support of Enrique Pichon-Rivière’s and Paulo Freire’s theories. From this first theoretical reading, it is possible to make an incursion through the scenery of the Psychosocial Care Workshops, paying special attention to their potential and to the risks related to crystallized practices. Keywords: Psychology; Psychiatric Reform; workshops; mental health. Oficina na Atenção Psicossocial: Experimentações com a palavra Revista de Psicologia da UNESP 10(1), 2011. 98 Referências Bibliográficas Amarante, P. (2007). Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. Bandeira, M. (2001). Belo-belo. In: Moriconi, I. (Org). Os cem melhores poemas brasileiros do século (pp. 93-94). Rio de Janeiro: Objetiva. 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