UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Linha: Linguagem-Experiência-Memória-Formação A PROPOSTA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES CONTIDA NOS PROJETOS POLÍTICOS-PEDAGÓGICOS DOS CURSOS DE LICENCIATURA: UM ESTUDO SOBRE CURRÍCULO PÂMELA CHRISTINA GONÇALVES DE MORAIS Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. Rio Claro - Agosto 2018 A PROPOSTA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES CONTIDA NOS PROJETOS POLÍTICOS-PEDAGÓGICOS DOS CURSOS DE LICENCIATURA: UM ESTUDO SOBRE CURRÍCULO PÂMELA CHRISTINA GONÇALVES DE MORAIS Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Antonia Ramos de Azevedo Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação. Rio Claro 2018 Morais, Pâmela Christina Gonçalves de A proposta de formação de professores contida nos projetos políticos-pedagógicos dos cursos de licenciatura: um estudo sobre currículo / Pâmela Christina Gonçalves de Morais. - Rio Claro, 2018 129 f. : il., figs., tabs., quadros Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro Orientadora: Maria Antonia Ramos de Azevedo 1. Professores – Formação. 2. Currículo. 3. Projeto político-pedagógico. 4. Pedagogia universitária. 5. Docência. I. Título. 370.71 M827p Ficha Catalográfica elaborada pela STATI - Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP - Adriana Ap. Puerta Buzzá / CRB 8/7987 AGRADECIMENTOS Que não me escape o clichê de externar ao mundo toda a gratidão que sinto na finalização desta etapa: Ao meus pais, por tamanha paciência, apoio e amor todos esses anos – por todos os detalhes ínfimos com os quais se preocupam sempre e pelas mãos e pés que me estenderam mesmo sem que eu pedisse. Mãe, agradeço o colo, as broncas, os incentivos e as revisões de texto: o caminho que trilhei começou com os seus passos. Pai, obrigada por estar disposto a me levar para todos os lados. A Prof.ª Dr.ª Maria Antonia, minha orientadora, por, além de ser pilar da realização desta pesquisa, olhar para mim como o ser humano que sou: falha. Obrigada por todo o companheirismo, sugestões, conselhos e incentivo para que eu prossiga na carreira acadêmica. Te admiro com todo o meu coração e sou grata por nossos caminhos terem se cruzado. Ao Marcelo, pela parceria e por quem você é comigo desde que nos conhecemos. Forrest Gump, os caminhos são difíceis, mas quando corremos juntos, passamos por eles com mais facilidade. Sabemos o que é o amor, mesmo que, por muitas vezes, não saibamos agir com esperteza. A Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Rio Claro, pelo espaço acadêmico e afetivo que me proporciona desde a graduação. Em especial, agradeço ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) pela disposição em me auxiliar na realização desta pesquisa. A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram comigo e fizeram parte desta jornada. A mim, por ser. E, por fim, ao meu avô João (in memoriam), que acreditava na educação como herança mais preciosa. Sigo acreditando. Quando era rapazito, ia ao São Carlos – não porque eu tivesse dinheiro para pagar o bilhete: o meu pai, que era polícia de segurança pública, conhecia os porteiros. E eu ia lá para cima, para o galinheiro. Houve aí uma alegoria que me ficou para toda a vida. Para quem estava nos camarotes, era uma coroa o que estava sobre a tribuna real. Mas nós, sentados por trás dela, víamos outras coisas: primeiro, que a coroa não estava completa. Segundo, que tinha poeira e teias de aranha dentro e uma ponta de cigarro republicana, posta ali para protestar. Aquilo ficou-me para sempre, o outro lado das coisas. O outro lado da palavra, de tudo o que nos conduz numa determinada direção, e que é preciso iluminar para, se não podemos resistir, pelo menos termos consciência. Que não nos levem a engano, que é uma expressão muito portuguesa. (SARAMAGO, 2010, p. 60. “Memória de Elefante”, Visão, Lisboa, 6 de novembro de 2008, entrevista a Sílvia Souto Cunha, grifo nosso) RESUMO O presente estudo teve por objetivo buscar nos Projetos Políticos-Pedagógicos de Licenciatura do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Rio Claro/SP as singularidades e sincronicidades entre os cursos em relação às propostas formativas que vêm sendo priorizadas, bem como as concepções de currículo e de formação de professores e de que forma estas podem reverberar na conceituação de projetos pedagógicos e na formação docente. Embora se tratem de termos usuais no meio educacional, os termos Projeto Político-Pedagógico (PPP) e Currículo são frequentemente associados a uma visão burocrática, regulatória e puramente disciplinar; no entanto, o estudo aprofundado acerca do tema nos aponta que a questão curricular envolve tudo aquilo que ocupa o tempo escolar e que o PPP constitui-se, para além de um documento norte das intenções formativas de cada curso e instituição, de um documento materializador do currículo e de aspectos das políticas curriculares vigentes (como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores). Assim, estudar a forma como os projetos pedagógicos têm sido estruturados, sua relação estreita com o currículo e com a formação constitui uma demanda urgente, principalmente no campo da Pedagogia Universitária. A complexidade da docência e do ensino em nível superior é, ainda hoje, subestimada em relação às atividades de pesquisa e das áreas específicas de conhecimento, limitando a construção do Projeto Político-Pedagógico a um espaço burocrático e esvaziado de sentido para a formação e apropriação docente na prática pedagógica. Por esta razão, voltamos nosso olhar para os projetos pedagógicos dos cursos que oferecem a modalidade Licenciatura no IGCE/UNESP/RC. Isto posto, a metodologia desta pesquisa ocorreu em uma abordagem qualitativa, através da pesquisa documental e da Análise de Conteúdo segundo Bardin (2011), onde analisamos os cursos de Física, Geografia e Matemática do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE). O aporte teórico conceitual utilizado tem sua base em Veiga (2003;2004), Sacristán (2000; 2013), Pimenta (2002), Anastasiou (1998; 2003), Vasconcellos (2011) e Tadeu (2011). Os resultados das análises apontaram que as propostas explicitadas pelos documentos, embora interessantes em teoria, se apresentam em desenhos curriculares contraditórios e em uma estrutura de Projeto Político-Pedagógico que pode inviabilizar a concretização das propostas realizadas pelos cursos. É possível observar na redação dos documentos esforços para a construção e implementação dos projetos pedagógicos, já que estes se utilizam de conceituações inovadoras e possíveis; mas, para além das potencialidades, discutimos neste estudo as fragilidades explicitadas sobre a questão curricular e pedagógica em relação à formação de professores, visando contribuições positivas para a prática pedagógica na universidade. Palavras-chave: Projeto Político-Pedagógico. Currículo. Formação de Professores. Pedagogia Universitária. Docência. ABSTRACT The objective of this study was to search for the singularities and synchronicities between the Political-Pedagogical Projects of the courses of Institute of Geosciences and Exact Sciences (IGCE) of the Paulista State University "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), Campus of Rio Claro in relation to the training proposals that have been prioritized, as well as the conceptions of curriculum and teacher training and how these can reverberate in the conceptualization of pedagogical projects and teacher training. Although they are common terms in the educational environment, the terms Political- Pedagogical Project (PPP) and Curriculum are often associated with a bureaucratic, regulatory and purely disciplinary vision; however, the in-depth study on the subject points us to the fact that the curricular question involves everything that occupies the school time and that the PPP constitutes, besides a document north of the formative intentions of each course and institution, it is about a curriculum document and current curriculum policies (such as the National Curriculum Guidelines for Teacher Education). That way, studying how pedagogical projects have been structured, their close relationship with curriculum and training is an urgent demand, especially in the field of University Pedagogy. The complexity of teaching and teaching at the higher level is still underestimated in relation to research activities and specific areas of knowledge, limiting the construction of the Political-Pedagogical Project to a bureaucratic space and emptied of meaning for the formation and appropriation teacher in pedagogical practice. For this reason, we turn our attention to the pedagogical projects of the courses that offer the modality teacher Degree in the IGCE/UNESP/RC. According to Bardin (2011), the methodology of this research was based on a qualitative approach, based on documentary research and content analysis, where we analyze the Physics, Geography and Mathematics courses of the Institute of Geosciences and Exact Sciences (IGCE). The results of the analyzes pointed to training proposals that, while interesting in theory, are presented in contradictory curricular designs and in a Political-Pedagogical Project structure that may make it impossible to materialize the proposals made by the courses. It is possible to observe through the writing of the documents efforts for the construction and implementation of pedagogical projects, but there are still fragilities that must be discussed, aiming at positive contributions to the pedagogical practice in the university. The theoretical conceptual contribution used is based on Veiga (2003, 2004), Sacristán (2000; 2013), Pimenta (2002), Anastasiou (1998; 2003), Vasconcellos (2011) and Tadeu (2011). Key words: Political-Pedagogical Project. Curriculum. Teacher training. University Pedagogy. Teaching. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - As concepções de currículo ao longo dos anos conforme Silva (2011). . 25 Quadro 2 - Teorias do currículo e suas ênfases. ...................................................... 30 Quadro 3 - As concepções de educação e as ênfases preconizadas pelo Currículo 31 Quadro 4 - Grupo de Significados que englobam a concepção de Currículo; Rule apud Sacristán (2000). ...................................................................................................... 32 Quadro 5 - Relação de documentos selecionados para análise ............................... 66 Quadro 6 - As fases de análise ................................................................................ 67 Quadro 7 - As categorias de análise e suas respectivas dimensões. ....................... 70 Quadro 8 - Conceituação das dimensões de análise ............................................... 70 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Número de Ingressos na Educação Superior de acordo com o Censo 2014 ................................................................................................................................. 23 Figura 2 - Número de Matrículas da Educação Superior de acordo com o censo 2014 ................................................................................................................................. 23 Figura 3 - Distribuição de Atribuições Curriculares ................................................... 46 Figura 4- Componentes do Planejamento Universitário ........................................... 57 Figura 5 - Pré-Análise. ............................................................................................. 69 Figura 6 - Formação do Licenciando em Física........................................................ 84 Figura 7 - Formação do Bacharel em Física ............................................................ 85 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Número de alunos matriculados nos últimos nove anos no IGCE ........... 77 Tabela 2 - Número de Alunos Certificados/Egressos do Curso de Física da UNESP/RC – IGCE no período de dez anos (2007-2016). .......................................................... 81 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11 1 UNIVERSIDADE EM CONTEXTO: um breve histórico sobre o ensino superior e a formação de professores ......................................................................................... 14 2 CURRÍCULO ......................................................................................................... 24 2.1 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores e o Conselho Estadual de Educação de São Paulo ....................................................... 38 3 PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO .................................................................. 48 3.1 Apontamentos sobre um Projeto Político-Pedagógico-Curricular: caminhos e possibilidades .......................................................................................................... 58 4 ENCAMINHAMENTOS METODOLÓGICOS: ou sobre os caminhos que se fizeram durante a caminhada ............................................................................................... 62 4.1 Sobre o início da jornada ................................................................................... 62 4.2 Sobre os caminhos e a escolha do itinerário ...................................................... 64 4.2.1. A pesquisa bibliográfica ................................................................................. 64 4.2.2. A pesquisa documental .................................................................................. 65 4.2.3 A análise de conteúdo ..................................................................................... 66 4.3 Os companheiros de viagem .............................................................................. 73 4.3.1 A Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Campus de Rio Claro. ............................................................................................................ 73 5 OS PROJETOS POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS (IGCE) – Física, Geografia e Matemática ............................. 76 5.1 FÍSICA – Licenciatura e Bacharelado................................................................. 77 5.2 GEOGRAFIA – Licenciatura e Bacharelado ....................................................... 89 5.3 MATEMÁTICA – Licenciatura e Bacharelado ..................................................... 98 6 Sobre o corvo, a escrivaninha e Projeto Político-Pedagógico: algumas considerações ........................................................................................................ 108 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 115 APÊNDICE A ......................................................................................................... 121 APÊNDICE B ......................................................................................................... 123 11 INTRODUÇÃO Das bonitezas do que é escrito ou sobre a lacuna na apreensão da docência Minha trajetória pessoal permitiu que eu trilhasse e escolhesse o caminho da docência carregando muitas inquietações. O desassossego de professorar chegou muito antes que eu assumisse o posto em sala de aula, em parte pela convivência com professores dentro do meu universo familiar e, também, por todos os anos em que estive sentada nos bancos escolares. Ainda que eu não soubesse nomeá-los com exatidão, minhas indagações concerniam ao que hoje chamo de Projeto Político Pedagógico e Currículo. A curiosidade pairava principalmente sobre os conteúdos, as metodologias e avaliações utilizados na escola – seus fins, meios e começos: assim mesmo, de trás para frente. Quem determinava “o que é importante saber”? Uma vez decidida a carreira de professorar, o ingresso na universidade e o contato cada vez mais estreito com a docência, essas questões se aproximaram de mim com maior profundidade e importância, se tornando mais abrangentes e envolvendo, além do ensino básico, o ensino superior. Descobri a existência das leis que regiam o ensino, o Projeto Político Pedagógico e um significado para currículo que excedia o lattes. Minha curiosidade agora se voltava com especificidade para a formação do professor, para a formação de um bom professor – com uma prática pedagógica contextualizada e coerente à faixa etária a qual se dirigiria. Então: quais critérios utilizar para preparar a minha aula? O que deve ser priorizado? Até onde vai a autonomia docente? Ao entrar na escola, constituindo-me professora, deparei-me novamente com essas questões de forma latente. Não encontrei na prática o PPP da forma que havia estudado na universidade; me deparei com uma série de conhecimentos descontextualizados e, somando a isso uma variedade de abismos estruturais e pessoais, acabei me graduando inconsciente do potencial formativo do Projeto Político Pedagógico e de sua importância para minha constituição enquanto docente. Chegar a essa conclusão determinou a escolha do PPP como objeto de pesquisa e estudo, reconhecendo-o como documento formativo e essencial a todos os níveis escolares, justamente pela influência direta que exerce na prática pedagógica. 12 Consoante com Veiga (2003), destaco a importância de discutir o potencial formador do PPP e suscito a discussão acerca de inovações pedagógicas e do olhar para o Projeto Político Pedagógico através de uma ação emancipatória (ou edificante), e não mais regulatória (técnica), de forma a pensar o documento em seu conteúdo e forma em um movimento constante em seus momentos de construção, implementação e avaliação. A manutenção de um viés regulatório acerca do projeto pedagógico associa-se também a visão limitada de um currículo disciplinar organizado em grades curriculares engessadas; por este motivo, este trabalho também contemplará as concepções curriculares apresentadas nos Projetos Políticos Pedagógicos estudados. Partindo da premissa de que currículo excede disciplinas ou “grades” curriculares, assim como a ideia de que ele antecede a construção do Projeto Político Pedagógico já que possuímos, nacionalmente, políticas curriculares muito fortes que influenciam diretamente o conteúdo a ser colocado no PPP, estudar estes dois documentos de forma associada se torna primordial para entendermos, de fato, o que está contido nas propostas políticas-pedagógicas que serão analisadas. Debruço-me sobre o PPP no âmbito universitário pois há uma enorme variedade de trabalhos no que concerne à educação básica, mas em relação ao ensino superior, a temática ainda é incipiente. Houveram mudanças substanciais nas formas de existência da universidade ao longo dos anos (CUNHA, 2007; SANTOS, 2003; SGUISSARDI, 2005, 2006, 2008) e pensar Projeto Político Pedagógico, formação e currículo na universidade constituem-se demandas urgentes. Conforme apontado por Rios (2009), a docência no ensino superior é constantemente colocada em segundo plano; o velho costume de acreditar que saber fazer significa saber ensinar perpetua na universidade velhos paradigmas que já não correspondem a universidade atual e aos sujeitos que a frequentam. Seguimos subestimando a complexidade da docência e do ensino em nível superior e, consequentemente, subestimando a importância da construção e uso do Projeto Político Pedagógico como espaço de resistência e apropriação docente. Para além dele, quase fechamos os olhos para o(s) currículo(s) e para as políticas (ou políticas curriculares, talvez?) que se fazem presentes nas concepções de formação que encabeçam o ensino universitário e que são determinantes no momento de elaboração de um PPP. Conforme apontado por Veiga (2003), a preocupação fundamental enfrentada pelo sistema educativo é melhorar a qualidade da educação pública ofertada, objetivando que todos aprendam mais e com qualidade – para isso, olhar para a 13 formação docente é tão importante e essencial quanto olhar para os Projetos Políticos Pedagógicos e para o currículo de forma menos simplista e burocratizada. Por estas razões, esta pesquisa direciona seu olhar para os Projetos Políticos Pedagógicos de cursos de licenciatura, buscando apreender as concepções de formação, docência, ensino e currículo que os norteiam, especificamente os cursos de licenciatura oferecidos pela Universidade Estadual ‘Júlio de Mesquita Filho’, campus de Rio Claro – SP, no Instituto de Geociências e Ciências Exatas, que são: Física, Geografia e Matemática. Os capítulos deste estudo serão organizados da seguinte maneira: 1 Universidade em contexto: um breve histórico sobre o ensino superior e a formação de professores; 2 Sobre Currículo, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica e o Conselho Estadual da Educação de São Paulo; 3 Projeto Político Pedagógico; 4 Encaminhamentos metodológicos; 5 Análise dos Projetos Políticos Pedagógicos da UNESP/RC/IGCE. A partir do exposto, buscamos compreender quais são as singularidades e sincronicidades existentes entre os PPP’s dos cursos de Licenciatura do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE), alicerçados principalmente na análise das concepções de currículo, de formação de professores e da estrutura pela qual esses documentos se organizam, considerando igualmente as dimensões que as compõem, como: formação de professores; docência; ensino-aprendizagem; currículo; metodologia; avaliação; Projeto Político-Pedagógico e desenho de um Projeto Político-Pedagógico inovador. 14 1 UNIVERSIDADE EM CONTEXTO: um breve histórico sobre o ensino superior e a formação de professores “Tomas levantou os ombros e disse: ''Es muss sein. Es muss sein.'' Era uma alusão. O último movimento do último quarteto de Beethoven é composto sobre estes dois motivos: Muss es sein? (Tem que ser assim?) Es muss sein! Es muss sein! (Tem que ser assim!) (Tem que ser assim!) [...]. Com um sorriso sereno, disse suavemente, imitando o som da melodia de Beethoven: Muss es sein? Tem que ser assim?” (KUNDERA, 2017, p. 40-41) Antes da realização de quaisquer análises acerca de cursos hoje ofertados pelas universidades e dos documentos que os estruturam, percebemos a necessidade de retomar brevemente o percurso histórico trilhado pelo ensino superior em nosso país. Inicialmente fundada especificamente para a produção sistemática de conhecimento científico, a universidade sempre foi por excelência uma instituição criadora de conhecimento e idealizada para, enquanto espaço de pesquisa e de produção cultural e artística, pudesse contribuir para o conjunto da sociedade (CUNHA, 1991). No entanto, deste início para o momento em que nos encontramos, no século XXI, houveram transformações substanciais que trouxeram às universidades novas incumbências e significados que hoje influenciam diretamente na formação dos novos professores-profissionais. O conhecimento do contexto histórico possibilita um entendimento mais próximo do global até dos impedimentos (institucionais e pessoais) a uma ação docente mais atualizada. Daí a importância de questionar-se a atual estrutura do ensino superior e propor-se formas de atuação, em relação aos elementos constitutivos da ação docente no ensino de terceiro grau. (ANASTASIOU, 1998, p. 209) Em meados de 1808, o Ensino Superior começou a desenvolver-se no Brasil já guarnecido de contradições referentes ao papel da universidade, principalmente porque as escolas de ensino superior vinham sendo criadas de forma isolada umas das outras. Em virtude disto, o ensino superior brasileiro veio, desde então, dividindo-se em três modelos principais de ensino universitário: o modelo jesuítico, o modelo humboldtiano e o modelo napoleônico, conforme apresentado por Anastasiou (1998; 2015). O modelo jesuítico preconizava um ensino pautado no protagonismo docente 15 em todos as etapas do processo educativo, pautado em um ensino essencialmente conteudista e organizado em competências. O modelo humboldtiano trazia um modelo de ensino fundamentado sobretudo na ciência e na produção de saber, constituindo- se como referência de ensino voltado para a pesquisa e produção acadêmica, dialogando com a função inicial atribuída à universidade e ao ensino universitário. Por fim, o modelo de ensino napoleônico voltava-se a um sistema utilitarista de educação profissional, limitado à formação profissional para ingresso no mercado de trabalho (ANASTASIOU, 1998). É possível perceber, então, que desde o início da criação das universidades brasileiras havia uma fragmentação, dividindo-as entre a cobrança de competências, a produção do saber (pesquisa) e a formação estritamente profissional (CUNHA, 2007; ANASTASIOU, 1998). Concomitantemente, ocorre que falar da universidade e do ensino superior público no Brasil em muito se relaciona com a discussão sobre a gratuidade do ensino universitário, principalmente porque acreditamos que essa discussão acrescenta e dialoga diretamente com a trajetória da questão curricular. Conforme dito por Cunha (1991) o ensino superior brasileiro foi pago desde o início e isso não era problema para um país escravagista, produtor de mercadorias para os centros do capitalismo e onde a educação (e principalmente a educação superior) ocupava um lugar de privilégio. A universidade, a entendemos como Gramsci, aparelho de hegemonia, que tem sua especificidade na formação de intelectuais orgânicos da burguesia. Como aparelho de hegemonia, a universidade encontra-se ela própria a uma luta hegemônica que se desenvolve no seu próprio seio, o que explica muitas das crises de identidade desse aparelho. Ao contrário de outros aparelhos de hegemonia, a universidade encontra-se, no Brasil, no cruzamento da Sociedade Política com a Sociedade Civil, combinando de modo próprio a coerção com a hegemonia. (CUNHA, 2007, p. 14) A Constituição Federal (CF) em 1946 ainda só garantia a gratuidade do ensino público em grau primário, enquanto o ensino médio e superior seria disponibilizado apenas aos alunos que provassem a insuficiência de recursos; não obstante, ultrapassando a CF, a Constituição Paulista promulgada em 1947 previa um ensino majoritariamente ofertado pelo Estado, cabendo amparar instituições privadas apenas quando estas visassem o ensino de classes menos favorecidas. Por emenda, “incluíram em sua Constituição um dispositivo pelo qual o ensino superior seria gratuito, inclusive no grau superior” (CUNHA, 1991, p. 35). 16 Neste momento, o Brasil passava pelo período compreendido como república populista (1945-1964), momento de efervescência e contradição para o ensino superior brasileiro: ao mesmo tempo em que se tornou responsável pela formação de profissionais, e, o mais importante, profissionais certificados cujos diplomas tornaram- se os “produtos” da universidade mais valorizados pela sociedade, não havia maneira de suprir toda a demanda dos egressos da universidade. Compreendendo a década de 40 como a responsável pelas raízes dos processos de modernização do ensino superior brasileiro, foi esta situação que, progressivamente, desencadeou o processo de reforma do ensino superior que se iniciou na década de 60 e que era entendido como um processo de reforma do conjunto da sociedade. Com o aumento do ritmo da inviabilização dos pequenos negócios, correlativo ao da intensificação do crescimento dos monopólios industriais, comerciais e financeiros, as camadas médias deram forma ainda mais nítida a uma ideia que já se desenvolvia desde algumas décadas atrás: o futuro dos filhos passaria pela diplomação em grau superior. O resultado foi o crescimento ainda mais acelerado da procura de ensino superior, enquanto a oferta de vagas não correspondia a esse movimento. As camadas médias foram entendendo que o governo que ajudaram a instalar – a quem era dirigida essa procura, pois as escolas públicas superiores eram gratuitas – não visava à satisfação de suas demandas. (CUNHA, 2007, p. 32) Imersa nas contradições que a permeavam enquanto ao seu papel e ao problema da oferta de vagas e da gratuidade como direito nas instituições públicas, a universidade era pressionada a assumir uma posição crítica (CUNHA, 2007), admitir a crise de identidade e reconhecer a necessidade de reforma do ensino superior – e é neste momento que o modelo norte-americano começa a ser notado como alternativa para o alcance da modernização do ensino universitário brasileiro, bem como a aceitação do capitalismo como meta a ser alcançada por todos os países. Acreditamos que foram esses os principais acontecimentos que marcam o início de um processo que até hoje não encontrou um caminho suficientemente satisfatório, compondo-se de fragilidades que afetam diretamente a formação de profissionais e, principalmente, a formação de professores, sejam eles docentes do ensino básico ou docentes universitários. De acordo com Cunha (2007), o período de 1964-68 foi o grande responsável pelo amadurecimento da universidade brasileira, tanto no que diz respeito a pensar o ensino superior criticamente como tópico de importância nacional, quanto nos 17 esforços para sua reformulação e adaptação aos moldes norte-americanos. Foi neste período em que se consagrou o princípio da indissociabilidade entre ensino e pesquisa, em que houve a implantação do regime departamental nas universidades e foi também o período responsável por impulsionar o desenvolvimento da carreira docente no Ensino Superior. Em consonância com Cunha (2007, p. 14), o binômio modernização-imperialismo é a chave para entender as transformações sofridas pelo Ensino Superior brasileiro. Sendo a universidade norte-americana a mais avançada segundo a perspectiva capitalista e o contexto da situação política e econômica brasileira neste período, não é errado supor que a universidade brasileira, então, amadureceu subordinada em um cenário mercadológico e utilitarista. [...] foi só na década de 1960 que uma doutrina sistemática sobre a reforma universitária tomou forma no Brasil [...] Essa doutrina teve suporte institucional no Conselho Federal de Educação e suporte político no regime autoritário resultante do golpe de Estado de 1964. [...] Não se tratava de fazer uma tabula rasa do ensino superior existente no Brasil, mas de promover sua modernização na direção do modelo norte-americano (CUNHA, 2007, p. 20) Nesta época, o conhecimento a ser ensinado pela universidade já se fragmentava em pequenas unidades que foram chamadas de disciplinas, que, descoladas das matérias chamadas “cátedras”, deram origem a composição da universidade pelo regime de departamentos e, para os alunos, um “currículo a ser composto mediante um sistema peculiar de contabilidade – o crédito” (CUNHA, 2007, p. 21, grifo nosso). Em março de 1964 desembarcaram no Brasil um grupo de quatro norte- americanos, representantes da USAID (United States Agency for Internacional Development) cujo objetivos consistiam na adequação da assistência ao ensino superior e ao seu desenvolvimento. “A Usaid encarava o ensino superior como elemento de formação de recursos humanos e estes como meios para o aumento da produção industrial e da produção agrícola” (CUNHA, 2007, p. 156) e o diagnóstico realizado pelos norte-americanos acusaram um ensino superior inadequado “em termos quantitativos e qualitativos” (CUNHA, 2007, p. 156). As instituições de ensino superior existentes estariam, com poucas exceções, dessintonizadas com a moderna sociedade brasileira. [...] Os currículos eram rígidos, a maioria dos professores só dedicava umas poucas horas por semana à universidade, [...] a grande maioria do estudantes só frequentava a universidade uma parte do dia [...]. Por outro lado, o Brasil precisaria ter 540 mil estudantes universitários (e não os 100 mil existentes) para alcançar os padrões da Argentina e do 18 Uruguai. O efetivo discente do ensino superior brasileiro foi considerado irrisório, pois só na cidade de Nova York havia mais estudantes nesse grau do que em todo o Brasil. (CUNHA, 2007, p. 157, grifos nossos) A esta altura, a proposta formativa idealizada para o ensino superior consistia em um modelo técnico, “neutro”, voltado para a racionalização das atividades educacionais dissociadas das atividades de pesquisa e utilizando-se da racionalidade técnica como critério de legitimidade para as práticas acadêmicas (ANASTASIOU, 1998). É nessa conjuntura em que ocorrem os movimentos estudantis de 1968, onde os alunos buscavam mais verbas para a educação no ensino superior e clamavam por uma universidade gratuita, livre e aberta para todos. Consoante com Cunha (1991), os movimentos se direcionavam contra a política educacional vigente e levaram à formulação de propostas que posteriormente integraram o projeto de lei que resultou na Lei 5.540/68, responsável pela organização do ensino superior brasileiro. Não obstante, é neste momento que as discussões sobre a gratuidade das universidades se afrouxam de forma gradual, assim como a discussão acerca da organização do ensino superior, por conta do grande crescimento do setor privado de ensino apoiado e subsidiado pelo Governo jurídica e financeiramente e, por consequência, pela maior parte da demanda destinada as universidades públicas terem sido absorvidas pelas instituições privadas. Embora o forte desenvolvimento da história do ensino superior brasileiro ter acontecido no período supracitado, Sguissardi (2005) aponta que as discussões mais ferrenhas e determinantes acerca do ensino universitário aconteceram na década de 1980, após o posicionamento rígido do Banco Mundial (BM) acerca da educação. Em 1986, o Banco Mundial publicou um documento chamado “Financing education in developing countries”, defendendo de forma exaustiva a tese do retorno social e individual tanto no âmbito da educação básica quanto no ensino superior. Neste período, o debate sobre o papel do ensino superior ganhou destaque. Para o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento e Fundo Monetário Internacional, órgãos internacionais para os quais o governo brasileiro recorre para suprimento de recursos e desenvolvimento do país, “os subsídios governamentais ao consumo de certas mercadorias devem ser eliminados, tanto ao trigo quanto ao ensino superior” (CUNHA, 1991, p. 46) e, portanto, assim como o pão deve ser pago por quem consome sem que o governo custeie parte do gasto, o ensino 19 superior deve ser também pago por aqueles que o consomem, no caso, os estudantes (CUNHA, 1991). O documento criado pelo BM sugere estratégias variadas para a realocação dos recursos públicos para uma “expansão mais produtiva de investimento educacional”, frequentemente referindo-se apenas a escola primária, este e os demais documentos lançados pelo BM sobre o tema repercutiram de forma decisiva entre os países, principalmente aqueles em desenvolvimento (como o Brasil) (SGUISSARDI, 2005). Contraditoriamente, em 1988, com a reformulação da Constituição Federal, é assegurado no Artigo 205, inciso IV, a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais e, no que diz respeito as universidades em específico, diz- se no artigo 207 que: Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. § 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996) § 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (BRASIL, CF/88) No documento “Higher education: the lessons of experience” (1994), a educação superior é protagonista e então, as discussões se tornam maiores e a apreciação de uma educação sob os moldes capitalistas (a essa altura, neoliberais) é apresentada de maneira explícita. “No documento, dá-se destaque especial ao Chile (de Pinochet) elogiado por ter não apenas seguido à risca as sugestões, mas por ter ido muito além delas [...]” (SGUISSARDI, 2005, p. 200). Nessa busca das determinações do ensino superior, encontramos a subordinação da universidade à empresa capitalista. [...] a organização e a avaliação da universidade em função da produtividade, da “organização racional do trabalho e das linhas de comando [...] (CUNHA, 2007, p. 22). Além de apresentar um diagnóstico de crise da universidade, as propostas apresentadas pelo BM são focadas em um modelo de ensino superior voltado para a pesquisa; mudanças substanciais e subsequentes caíram sobre nossa universidade de uma só vez, mudanças que afetaram sua composição estrutural e a forma de tratar o conhecimento a ser desvelado no ensino superior. Conforme assinalado por Santos (2004), transitamos do conhecimento universitário para o conhecimento pluriversitário, que consiste em um “[...] conhecimento contextual [...] em que o princípio organizador 20 da sua produção é a aplicação que lhe pode ser dada” (SANTOS, 2004, p. 29, grifo nosso). De acordo com Sguissardi (2005), verifica-se no Brasil o crescimento acelerado de uma universidade neoprofissional, em detrimento da universidade de pesquisa. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a educação superior brasileira situou-se em um contexto de submissão à economia global e à um quadro de agravamento nos índices de desigualdade social, passando por reformas orientadas para o mercado e olhando a educação como um serviço social (SGUISSARDI, 2006); o modelo de uma universidade de ensino sobressaiu-se em relação à universidade de pesquisa preconizada na CF/88 e “o modelo humboldtiano das universidades de pesquisa tem sido muito mais uma vontade registrada em lei do que um fato real” (SILVA JUNIOR, 2001, p. 49). No governo de Lula (2003-2006), conforme dito por Sguissardi (2006), o pano de fundo da situação do ensino superior manteve-se essencialmente o mesmo. A educação superior brasileira passou nos últimos anos, em consonância a essa discussão acerca do ensino privado ou gratuito, por reformas pontuais que dialogam com as concepções neoliberalistas e que denunciam uma formação estritamente voltada ao mercado; a valorização da qualidade acadêmica em termos administrativos, a ideia de custo/benefício/produto, o incentivo a competição, as facilidades para criação e expansão de instituições de ensino superior privadas, etc., são apenas alguns itens com os quais a universidade brasileira vêm se relacionando. Esse movimento faz com que a universidade corra o risco de [...] se aviltar e transformar numa instituição humana e socialmente irrelevante. O seu código genético vem sendo ‘desativado’ e substituído por um programa espúrio alheiro, redigido em concordância de fundo com o radicalismo neoliberal e financeiro” (BENTO, 2014, p. 37). Isto posto, dialogamos com Santos (2003; 2004) quanto às três crises enfrentadas pela universidade nos dias atuais: a crise de hegemonia, a crise de legitimidade e a crise institucional. A universidade enfrenta essas crises por diversas razões e, entre elas, as mudanças encabeçadas pelo Estado e pelos agentes econômicos. Mesmo quando a concepção de universidade mais forte consistia em sua visão como espaço privilegiado de alta cultura e conhecimento científico avançado, esta ideia já não relacionava com as “exigências sociais” emergentes, que consistiam em 21 parte na busca pelo acesso livre ao ensino universitário (SANTOS, 2003), principalmente a partir do período dos anos sessenta; com o crescimento e expansão do neoliberalismo, a universidade deixou de ser a única instituição responsável pelo ensino superior e pela produção de conhecimento, entrando, então, em uma crise de hegemonia. A crise de legitimidade, por sua vez, é provocada porque a universidade deixou de ser uma instituição consensual em relação a contradição da hierarquização dos saberes especializados; as discussões levantadas em relação a gratuidade do ensino superior ocasionaram em maiores exigências sociais e políticas de democratização em relação ao ensino superior. Desta forma, o ensino superior que antes consistia em um saber elitizado, agora chega às classes populares e essa demanda precisa ser atendida (CUNHA, 1991, 2007). A crise institucional, em conjunto com as duas outras crises, ocorre como resultado da contradição entre os objetivos da universidade (suas concepções, identidade e autonomia) e a pressão cada vez mais frequente para que ela se submeta à critérios “de eficácia e de produtividade de natureza empresarial ou de responsabilidade social” (SANTOS, 2004, P. 4). É nesta conjuntura conflituosa em que acontece a docência universitária e em que ocorre a formação de professores. Não obstante a universidade tenha adquirido uma característica neoprofissional e de formação para o mercado de trabalho, a docência universitária ainda é subestimada em relação às atividades de pesquisa (RIOS, 2009). O incentivo à competição e à altos níveis de produtividade acadêmica relegam o ensino a um papel complementar na carreira do docente universitário, ignorando o pressuposto básico de que ensinar não é uma atividade simples ou burocrática (ANASTASIOU, 1998). Pensar a formação docente na universidade é pensar também na formação do docente universitário; a ação pedagógica não se orienta apenas pelo o que é estudado, mas pelas vivências dos professores quando discentes. “É tempo de repor o foco sobre o ensino e a formação, o que implica não secundarizar e encarar como um enfado a graduação” (BENTO, 2014, p. 221), ou seja, não se trata apenas de rever o caminho historicamente trilhado pelo ensino universitário, mas de observar com minúcia que em raríssimos momentos o ensino e a formação (principalmente a formação de professores) foram protagonistas das reformas enfrentadas pela educação superior, que eram em maior parte fundamentadas por razões administrativas e econômicas que não dialogavam de forma rigorosa com os 22 processos de ensino-aprendizagem, os modelos de ensino incorporados ao ensino superior ou a questão curricular e pedagógica. Mudanças efetivas referentes aos modelos de ensino – seja ele o jesuítico, o humboldtiano ou o napoleônico – e ao andamento da universidade como um todo, só terão possibilidade se o desenvolvimento social e discente estiver em foco. [...] as transformações das práticas docentes só se efetivam à medida que o professor amplia sua consciência sobre a própria prática, a de sala de aula, a da universidade como um todo, o que pressupõe os conhecimentos teóricos e críticos sobre a realidade. [...] os professores colaboram para transformar as instituições no que diz respeito a gestão, currículos, organização, projetos educacionais, formas de trabalho pedagógico. Reformas gestadas nas instituições, sem tomar os professores como parceiros/autores, não transformam as instituições na direção da qualidade social.” (PIMENTA, 2002, p. 89, grifos nossos) Atualmente, a questão da docência e da discência no ensino superior brasileiro se orientam especialmente pelas metas 12 e 13 propostas pelo Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 13.005/2014 (BRASIL, 2014); a meta 12 objetiva aumentar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, sem perder de vista a qualidade do ensino ofertado. A meta 13 objetiva justamente o aumento da qualidade do ensino superior ampliando a atuação de mestres e doutores nas instituições de ensino superior para, no mínimo, 75% do corpo docente em exercício (BRASIL, 2014). Em contraponto, as estatísticas apresentadas pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) em relação ao ingressos e matrículas nos cursos de ensino superior, especialmente nos cursos de licenciatura, são alarmantes, principalmente se cruzarmos esses dados com o que é pretendido pelo PNE. Novamente, observamos à docência e da discência em um papel coadjuvante no ensino superior, além do aumento progressivo das matrículas na rede privada de ensino superior e da crescente desvalorização não só das licenciaturas, mas do ensino superior público. Os filtros aplicados nas pesquisas de ingressantes e matriculados no ensino superior foram os mesmos, sendo eles: Censo 2014, região SUDESTE, nível acadêmico GRADUAÇÃO e modalidade de ensino PRESENCIAL. 23 Figura 1 - Número de Ingressos na Educação Superior de acordo com o Censo 2014 Fonte: MEC/Inep/Deed - Corresponde ao total de ingressantes em todas as formas de seleção/ingresso. Figura 2 - Número de Matrículas da Educação Superior de acordo com o censo 2014 Fonte: MEC/Inep/Deed - O valor (-) corresponde às matrículas vinculadas a Cursos de Áreas Básicas que ainda não possuem grau acadêmico. Para além da formação docente nas licenciaturas e da atuação docente no ensino superior, nossas reflexões se voltam para que possibilidades formativas têm sido oferecidas. Acreditamos que a sociedade demanda uma universidade cada vez mais atenta para as necessidades do contexto em que se situa, observando as condições propostas para o efetivo exercício da docência (seja na educação básica ou no ensino superior) sejam elas no que diz respeito aos recursos materiais ou a forma como a universidade se organiza – no que concerne à questões de gestão e modelos de ensino. Neste ponto, o trilhar histórico cede lugar à discussão de currículo, diretamente relacionado à organização da universidade, dos cursos e da prática docente nas universidades. 24 2 CURRÍCULO A tônica da educação é preponderantemente esta – narrar, sempre narrar. Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado, quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos, vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta educação. (FREIRE, 2017, p. 79) É possível afirmar que Currículo é um termo habitual, principalmente quando a temática envolve educação; no entanto, não é possível determinar com a mesma facilidade o(s) significado(s) que se vinculam a palavra. Trata-se de um conceito permeado por saberes e incertezas, repleto de dimensões paradoxais que exigem discussão e posicionamento (SACRISTÁN, 2013). Etimologicamente, a palavra deriva do latim Curriculum, que significa “corrida” ou “pista de corrida”, insinuando também “trajetória” ou “percurso”. No grego, embora não houvesse uma palavra que se correlacionasse ao termo de forma exata, aproximava-se de currículo com a palavra odós (caminho) ou até mesmo com a palavra paideia (curso da instrução). É a partir dos séculos XVI e XVII que a palavra passou a ser utilizada para se referir às instituições de ensino, dada a necessidade de estabelecer um caminho educacional a ser seguido e completado – neste momento, o currículo começa a assumir um lugar de ordem e controle para a educação. É também neste momento que o currículo se configura em uma invenção decisiva para a forma como a escolarização se configura e como a entendemos hoje (CASTELLO, 2007; SACRISTÁN, 2013; VASCONCELLOS, 2011). Tudo o que se estuda dentro do sistema educativo está organizado com base em um currículo ordenador da prática. [...] No âmbito educativo, ‘currículo’ faz referência às instâncias que devem ser percorridas, ao estilo de uma corrida, para poder dar por cumprido um trajeto educativo, quer se trate de uma matéria, um curso ou o âmbito completo de um nível educativo. (CASTELLO, 2007, p. 85, grifo nosso) Ao longo dos anos, o significado de currículo assumiu diversas formas que reverberam na forma como entendemos currículo atualmente (ver apêndice A) e no presente estudo. Desta forma, é necessário que se entenda que “o currículo é uma práxis antes que um objeto estático” (SACRISTÁN, 2000, P. 15) representante de uma realidade abstrata. Há conexão entre os princípios que o regem e a sua realização onde a prática, e apenas ela, concretiza seu valor. A definição de um currículo assume uma forma particular determinada por um contexto histórico e social, para um nível ou modalidade de educação específicos, para uma instituição específica. Desta forma, 25 podemos pensar o currículo como algo que é contexto e, ao mesmo tempo, é contextualizado pela prática a partir do todo em que se configura. Desta maneira, antes de discorrer acerca das concepções propostas, temos como ponto de partida as Teorias do Currículo, que se dividem em três grandes vertentes de acordo com Silva (2011): as teorias tradicionais, as teorias críticas e as teorias pós-críticas. Segue abaixo uma breve descrição dos momentos e transformações curriculares que ainda hoje influenciam na forma como compreendemos o conceito. Quadro 1 - As concepções de currículo ao longo dos anos conforme Silva (2011). AS CONCEPÇÕES DE CURRÍCULO AO LONGO DOS ANOS Um breve resgate acerca das teorias do currículo, consoante com Silva (2011). Momento (em anos) As teorias e contribuições Características Início do século XX Teorias Tradicionais John Dewey (1902) com “The Child and the Curriculum”. Vertente considerada progressista com grande preocupação com a democracia e com os interesses dos jovens e crianças. A escola era, antes de lugar preparatório para o trabalho, um lugar fértil para vivências e experiências diretas de princípios democráticos. Essa teoria, no entanto, não teve grande influência na constituição do currículo como campo de estudo. Século XX – Anos Vinte Teorias Tradicionais Bobbitt (1918) com “The Curriculum”. Referência do estabelecimento do Currículo como campo especializado de estudo. Fortemente influenciado por Frederick Taylor e o sistema fabril, a intenção era estabelecer finalidades, objetivos e conteúdos para a educação que acabara de se tornar um fenômeno de massas. Eficiência e organização constituíam as 26 palavras-chave juntamente com a ideia de tornar a educação “científica”, a partir de sua finalidade una de formar para o mercado de trabalho. Século XX – Anos Quarenta Teorias Tradicionais: Ralph Tyler (1949) com, entre outros, “Princípios básicos de currículo e ensino”. Momento em que a teoria proposta por Bobbitt consolida-se juntamente a novas características propostas por Tyler. Essa teoria domina o campo do currículo desde os Estados Unidos até exercer grandes influências em outros países, como o Brasil, pelas próximas quatro décadas. O currículo possui viés extremamente técnico e burocrático e a divisão da atividade educacional se dá por 1) Currículo, 2) Ensino, 3) Instrução e 4) Avaliação. A questão curricular também é fortemente influenciada pela psicologia e pelas chamadas disciplinas acadêmicas, e os filtros que se estabelecem para estudo e criação de currículos se dão a) pela filosofia social e educacional das escolas e pela psicologia da aprendizagem. Os objetivos estão intrinsecamente ligados ao comportamento. Século XX – Anos Sessenta – Década de grandes mudanças e agitações. Início da contestação das teorias tradicionais. Teorias Tradicionais: Robert Mager com “Análise de Objetivos”. Tendência tecnicista e com orientação comportamentalista (behaviorismo). O currículo deve ser voltado para a organização e construção de experiências que atendam a objetivos específicos e detalhados. Forte influência no Brasil. As teorias críticas, por sua vez, passam a pensar o currículo para além de sua 27 organização e finalidade técnica, colocando em destaque as questões sociais e educacionais. Século XX – Anos Setenta Teorias Críticas: Paulo Freire (Com a “Pedagogia do Oprimido”, no Brasil), Althusser (Com “A ideologia e os aparelhos ideológicos do Estado”), Bourdieu, Passeron, Baudelot e Establet (França), Michael Apple (com “Ideologia e Currículo”). William Pinar (1973), na Universidade de Rochester, Nova York, na I Conferência sobre Currículo, líder do movimento de reconceptualização. Ideais baseados em Gramsci e na Escola de Frankfurt – vertente marxista. Michael Young com “Knowledge and control” (1971), na Inglaterra Início do que foi chamado de “reconceptualização” do currículo (TADEU, 2011, p. 27). Contestação definitiva dos modelos tradicionais. As obras que eclodiram neste momento variavam entre críticas mais gerais ao sistema capitalista como um todo e críticas específicas à questão curricular. Ideia de que a escola atua ideologicamente através de seu currículo, seja através do transporte de crenças ou da priorização de determinadas disciplinas; busca pelo entendimento de como a atuação da escola perpetua ou contribui para a dualidade capitalismo x trabalhadores (dominante x dominados). Em outra vertente, as teorias críticas também procuravam, através da fenomenologia e da hermenêutica, significar subjetivamente as experiências pedagógicas e curriculares. Século XX – Anos Oitenta Teorias Críticas: Michael Apple (1982) com “Ideologia e Currículo”. Henry Giroux com “Ideology, culture and the processo f schooling” (1981) e “Theory and resistance in education” (1983). Influências remanescentes de Bobbitt. A literatura estadunidense era liderada por uma concepção de currículo extremamente técnica e de organização mecânica. As palavras- chave eram “organização curricular” para atendimento exclusivo de finalidades burocráticas. No entanto, foi o momento de explosão da literatura crítica. Século XX – Anos Noventa Teorias Críticas: O conceito contribuiu muito para as discussões e para o 28 O encontro com o conceito “Currículo Oculto”. Jurjo Torres Santomé (1995) com “El curriculum oculto”; Tomaz Tadeu (1992) com “A economia política do currículo oculto”. Teorias Pós-Críticas: Stuart Hall com “A identidade cultural na pós- modernidade” (1998) e “Identidade Cultural e diáspora” (1996). desenvolvimento de perspectivas críticas acerca do currículo, destacando muito mais as relações sociais do cotidiano do que o currículo formalizado. Embora por um lado o conceito tenha sido desgastado, por outro proporcionou às teorias críticas grandes possibilidades para discutir estruturalismo. Com a ascensão neoliberal, o currículo aqui se assume capitalista. Início das relações entre currículo e multiculturalismo, onde defende-se que não é possível separar questões culturais de questões de poder. Nos Estados Unidos a temática do multiculturalismo originou- se justamente como uma questão educacional e curricular, onde os grupos subordinados culturalmente (mulheres, negros e as mulheres e homens homossexuais) passaram a questionar o currículo universitário tradicional que , de acordo com eles, era a propagação de uma cultura branca, masculina, europeia, heterossexual e elitizada. Nessa perspectiva, o currículo deve ser criado com vistas a incluir representações das diversas culturas. Além da análise das dinâmicas de classe, entra em destaque as relações de gênero, a pedagogia feminista, entre outras discussões com a premissa de que o currículo deve contemplar uma gama complexa de desigualdades. 29 Diminuição das fronteiras entre o saber acadêmico e escolar do saber cotidiano, cultural e de massa. É com esse movimento que se destaca o enfoque formativo do currículo. Século XXI – Anos Dois Mil até os dias atuais Celso dos S. Vasconcellos (2011) com “O Currículo com princípio da atividade humana”; José Gimeno Sacristán (2000) com “O Currículo: uma reflexão sobre a prática”; José Gimeno Sacristán (organizador, 2013) com “Saberes e Incertezas sobre o Currículo”; Antonio Flávio Barbosa Moreira (organizador, 2013) com “Currículo: políticas e práticas”. Todas as teorias do Currículo com as quais trabalhamos influenciam os estudos que possuímos atualmente. É evidente que a questão curricular está associada a uma questão de poder, assim como seu caráter capitalista e reprodutor cultural de estruturas sociais. Também é perceptível que o currículo é uma CONSTRUÇÃO social e deste fato obtemos a visão de seu papel formativo. Para além disso, a questão curricular encerra muito mais aspectos do que os que foram trabalhados consistentemente ao longo dos anos; trata-se de uma atividade humana. Trata- se de um lugar/espaço/território, um documento, e principalmente, um documento de identidade – identidade da sociedade, das instituições e primordialmente, dos sujeitos. Fonte: Organização da autora. Conforme observamos, de acordo com Silva (2011), o currículo aparece pela primeira vez como objeto de estudo a partir dos anos vinte nos Estados Unidos, concomitantemente ao processo de industrialização e ao início da massificação da escolarização que resultou na necessidade de racionalizar a construção dos currículos. Foi a partir da constituição da escola como um fenômeno de massa que a questão curricular obteve destaque; o preceito da igualdade e da educação para todos 30 passou a exigir da escola conteúdos organizados e dosados dentro de um sistema de forma a estruturar a escolarização e as práticas pedagógicas. Ainda conforme Silva (2011), é com Bobbitt, em 1918, através da obra “The Curriculum” que o currículo se firma como conceito e como campo especializado de estudo, piamente inspirado no modelo fabril e na administração científica. Nesse modelo inicial, o modelo de estudante e de educação preconizado pelo currículo é justamente a especificação precisa de métodos e objetivos com o foco para a obtenção de resultados, onde o aluno é observado como um produto de fábrica. Essa foi a primeira concepção de currículo a ser consolidada e transformada em realidade para muitas escolas, professores e estudantes. No entanto, e felizmente, não é a única teoria da qual dispomos atualmente, mas ainda somos capazes de perceber fortes marcas desta concepção instrumental de currículo. Dessa maneira, o conceito de currículo delimitou as unidades ordenadas de conteúdos e períodos que tem um começo e um fim, com um desenvolvimento entre esses limites, impondo uma norma para a escolarização. Não é permitido fazer qualquer coisa, fazer de uma maneira qualquer ou fazê-la de modo variado. (SACRISTÁN, 2013, p. 18) Consoante às informações trazidas pela tabela, as ênfases do currículo foram alterando-se ao longo da História e os efeitos dessas mudanças puderam ser observados também nas concepções de aluno e escola. Silva (2011) discorre sobre essas variadas ênfases através de palavras-chave, utilizando a divisão das teorias do currículo a qual já nos referimos anteriormente. Os conceitos destacados são: Quadro 2 - Teorias do currículo e suas ênfases. TEORIAS TRADICIONAIS TEORIAS CRÍTICAS TEORIAS PÓS- CRÍTICAS Ensino Ideologia Identidade, alteridade, diferença Aprendizagem Reprodução Cultural e Social Subjetividade Avaliação Poder Significação e discurso Metodologia Classe Social Saber-poder Didática Capitalismo Representação Organização Relações Sociais de Produção Cultura Planejamento Conscientização Gênero, raça, etnia, sexualidade Eficiência Emancipação e Libertação Multiculturalismo 31 Objetivos Currículo Oculto - - Resistência - Fonte: Silva, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Paralelamente, Celso dos Santos Vasconcellos (2011), em “Currículo: a atividade humana como princípio educativo”, também explica as transformações das ênfases do(s) Currículo(s), mas através de concepções acerca da educação. São elas: Quadro 3 - As concepções de educação e as ênfases preconizadas pelo Currículo CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO CONCEPÇÃO DE CURRÍCULO Clássica (Idade Antiga – Grécia, Roma) Sujeito (Público) Escolástica (Idade Média) Objeto (Saber conceitual) Renascentista (Renascimento) Realidade Tradicional (Idade Moderna) Objeto (Saber conceitual) Tradicional (Início da Idade contemporânea) Objeto (Saber conceitual, procedimental e Atitudinal, com caráter instrumental) Moderna/Escola Nova (Idade contemporânea) Sujeito (Indivíduo) Tradicional (Idade contemporânea) Objeto (Saber conceitual) Crítica (Idade contemporânea) Realidade Neotecnicista (Idade contemporânea) Objeto (Saber-fazer) Dialética-Libertadora (Idade contemporânea) Sujeito (Concreto) Fonte: Vasconcellos, C. D.S. Currículo: A atividade humana como princípio educativo. 3ª edição. São Paulo: Libertad, 2011. Sacristán (2000), por sua vez, resgata a análise realizada por Rule (1973) e fala de duas formas de conceber Currículo, organizando-os em grupos de significados. São eles: 32 Quadro 4 - Grupo de Significados que englobam a concepção de Currículo; Rule apud Sacristán (2000). GRUPO DE SIGNIFICADOS A GRUPO DE SIGNIFICADOS B Currículo como experiência ou guia de experiência; conjunto das responsabilidades da escola; experiências de aprendizagem planejadas, dirigidas e utilizadas para o alcance de determinados objetivos. Currículo como definição de conteúdos, como plano, proposta e objetivos reflexos da herança cultural; programa de conteúdos e atividades, soma de aprendizagens, resultados e experiências. Fonte: própria do autor, com as informações de SACRISTÁN,G. O Currículo: uma reflexão sobre a prática. 3ª edição. Porto Alegre, Artmed, 2000, página 14. A visualização das tabelas permite a nós a percepção de que, além de tratar- se de um termo dependente de contextualização, é um termo extremamente complexo e indissociável à Prática Educativa. Ou seja – o currículo não se constitui imóvel e universal, tampouco neutro; trata-se de um território controverso e conflituoso. Apesar de atualmente nos familiarizarmos com alguns preceitos defendidos pelas tendências tradicionais, Sacristán (2013) e Vasconcellos (2011) concordam que na contemporaneidade e no nosso idioma, o termo bifurca-se e assume duas compreensões que dependem do ponto de referência para o qual utilizamos a palavra: a) Ao olharmos para a escola, o currículo refere-se a uma PROPOSTA CURRICULAR que contempla uma proposta de caminho sequencial concreto a ser seguido pela instituição, constituída pela seleção e organização de uma série de experiências de aprendizagens e pressupondo a organização da rotina escolar no que concerne aos tempos, espaços, recursos, saberes, objetivos, metodologias, modos de avaliação, entre outros componentes do cenário educacional. Deste modo, a escola trabalharia com uma “oferta de experiências formativas” (VASCONCELLOS, 2011, p. 27) e englobaria, portanto, uma “complexa gama de pretensões educativas” (SACRISTÁN, 2000, p. 18); b) Ao olhar para o sujeito, o Currículo denomina o percurso profissional percorrido pelo indivíduo ao longo da vida, que não necessariamente se alia ao que foi trabalhado através do currículo escolar. É o que comumente chamamos de curriculum vitae, que funciona como uma resenha das realizações profissionais alcançadas pelo sujeito. Na atual pesquisa, é sob este viés contemporâneo que trabalharemos currículo, destacando-o nas concepções derivadas do cenário escolar e do conceito de 33 “proposta curricular”. É válido ressaltar que, em alguns momentos, realizamos a adequação do aporte teórico à realidade do ensino superior, que é o foco principal desta pesquisa. As transformações que o Currículo sofreu ao longo do tempo são compatíveis ao que trabalhamos no capítulo anterior com a retrospectiva histórica do papel da universidade e da concepção de formação de professores. A universidade enquanto refém de um sistema capitalista (não só a universidade, mas a escola e o sistema educacional como um todo) e de um ideal que preconiza a formação de um profissional completo e acabado para o mercado de trabalho, acaba por se tornar reprodutora de uma educação conservadora e igualmente capitalista, afetando diretamente a ênfase e o papel que se atribui ao currículo. Por ter sua função associada a seleção de conteúdos desde o início de seu reconhecimento como área de estudo, a questão curricular traz muito forte uma visão fragmentada de conhecimento e de escola/universidade. A discussão de currículo acaba acontecendo desvinculada das práticas pois a universidade e a escolaridade são vistas como partes isoladas e não constituintes da realidade; consequentemente, as práticas pedagógicas se fazem em um contexto de reprodução e conservação, que visam unicamente um controle técnico, racionalizado que promova a eficácia e a produtividade (VEIGA, 1991), e a dimensão formativa do currículo acaba ocupando um não-lugar nas discussões a respeito do assunto. Não obstante tenhamos ao longo do tempo variados estudos que procuram refletir o currículo e a prática pedagógica, conforme observamos anteriormente, o currículo instrumental trazido por Bobbitt ainda influencia fortemente a construção dos currículos na contemporaneidade, com propostas extremamente disciplinares, instrucionistas e que delegam ao professor uma atuação andróideana (VASCONCELLOS, 2013). Compreendemos a existência de um grande conflito em relação as formas de pensar o conhecimento, mas independente do ponto de referência que utilizamos para refletir a ênfase das propostas, é muito forte o destaque para o saber conceitual e a herança cultural socialmente construída – por conseguinte, fica fácil constatar o porquê de possuirmos currículos inchados de informações “úteis” e a ausência de reflexão sobre o momento de ensinagem e apr(e)endizagem. Por vezes, os enfoques críticos, e mesmo os enfoques pós-críticos, não produziram a superação da característica um tanto prescritiva que foi marca dos trabalhos na vertente instrumental, mas ainda assim 34 contribuíram, e muito, para a complexificação do entendimento de currículo, bem como para a ampliação e diversificação dos objetos de pesquisa. (LOPES, 2008, p. 209) (Re)Pensar a questão curricular envolve também (re)pensar a questão disciplinar e a organização dos conteúdos (normalmente empreendida através matérias, grades e horários rígidos), além da concepção de escola e de formação de sujeitos, e, no caso desta pesquisa, repensar a constituição da docência e da formação de professores no contexto universitário. Os currículos universitários vivem o mesmo conflito paradigmático que as escolas, e há que se chegar ao entendimento que um currículo constituído de forma instrucionista e produtivista, que não se reconhece como parte integrante e essencial da prática pedagógica, trabalhará com a formatação de sujeitos e professores para uma lógica igualmente conteudista que perpetuará a visão fabril da educação, onde ficaremos presos ao próprio cenário que desejamos modificar (VEIGA-NETO, 1996, p. 12). Estas representações de currículo que procuram unicamente a organização dos conteúdos e disciplinas em grades são tão fortes, que quando nos propomos a pensar a respeito de ensino inovador, pensamos logo em como melhorar a forma da grade curricular, as cargas horárias, o tempo dedicado a cada conteúdo, quando na verdade, o essencial seria pensar a prática pedagógica em toda a sua complexidade. A lógica tradicional de currículo que nos foi sendo imputada gradativamente desde o século XX se fortalece ainda hoje a cada momento em que entendemos e colocamos as disciplinas como protagonistas do processo de construção curricular, em vez de compreender que a sua organização é produto de uma discussão muito mais ampla acerca dos ideais de formação humana pretendidos para o estudante. [...] não está em foco o sentido epistemológico de disciplina, [...]: conjuntos de saberes, bem como métodos e dispositivos de pensamento comuns capazes de produzir e reproduzir esses saberes. Mas as disciplinas como construções sociais que atendem a determinadas finalidades. Reúnem sujeitos em determinados territórios, sustentam e são sustentadas por relações de poder que produzem saberes. (LOPES, 20008, p. 207, grifo nosso) Isto posto, é natural que observemos as constantes propostas de modificações curriculares objetivando o aperfeiçoamento dos cursos, mas não observamos a alteração da lógica dos currículos (CUNHA, 1998), que permanece em essência tradicional e engessado por grades curriculares que são reproduzidas nas propostas das universidades, transformando os cursos de formação de professores igualmente tradicionais e, consequentemente, preservando em nossas escolas o mesmo modelo 35 de educação de um século atrás. Pensar inovação curricular e rearranjar os currículos exige um esforço mais amplo e profundo que excede alterar a disposição do conhecimento disciplinar, pois é o currículo uma área de caráter a) epistemológico, pois se constrói em consonância às concepções de conhecimento, b) pedagógico, pois se envolve diretamente nas percepções de como se dá o ato de aprender e por fim, é de caráter c) político, pois pressupõe de forma inerente concepções de homem, sociedade e educação (CUNHA, 1998). Isto posto, observamos que o currículo já nasce com um enorme potencial regulador, pois a organização da escolaridade está intrinsecamente ligada à política e a questão curricular também se define como uma construção política repleta de e sentidos que se concretizam em um contexto sócio histórico (LLAVADOR, 2013), mas de forma prática, podemos afirmar que o Currículo envolve tudo aquilo que ocupa o tempo escolar. Mais que conteúdo, o currículo é um campo de batalhas que reflete lutas políticas, culturais, econômicas e até mesmo religiosas (SACRISTÁN, 2013); é o responsável da proposta formativa até a seleção dos conteúdos – adquirindo um caráter identitário para a educação e tornando-se então uma questão de poder, já que os conteúdos e propostas contidas nele não são neutros. Conforme disposto por Cunha (1998), o currículo e a educação estão estreitamente envolvidos com uma política cultural que os faz oscilar entre a manutenção e a superação das divisões sociais. Portanto, “não há atitude desinteressada quando se pensa na produção de conhecimento, na sociedade capitalista” (CUNHA, 1998, p. 16) e então, não há também atitude desinteressada ao pensar a construção e validação de determinado currículo e/ou projeto curricular. Pensar a questão curricular excede, e muito, a mera decisão do conteúdo das matérias ou das áreas que devem ser ensinadas. Sempre há uma forma de organização curricular e aqueles que o concebem enquanto meio de estabelecimento de relação entre disciplinas, podem apontar para a organização curricular de três maneiras: através da multidisciplinaridade (diversas disciplinas se situam em suas próprias especificidades mas relacionam-se pontualmente), da interdisciplinaridade (valorização de disciplinas que se inter- relacionam e integram conteúdos e conceitos em uma visão global de conhecimento) e da transdisciplinaridade (o parcelamento em disciplinas deixa de existir, embora se tenham por base seus conhecimentos) (LEITE, 2012, p. 88). 36 Todavia, cabe aqui os seguintes questionamentos: que currículo é esse? A serviço de quem? Qual sua qualidade, suas prioridades, suas ênfases? Quais as suas omissões? (VASCONCELLOS, 2013). Currículo não é agora a declaração de áreas e temas – seja ela feita pela administração ou pelos professores -, mas a soma de todo tipo de aprendizagens e de ausências que os alunos obtêm como consequência de estarem sendo escolarizados. Frente à cultura proposta pelo currículo, aquela que se declara perseguir, é importante analisar a “cultura vivida” realmente nas salas de aula. [...] O currículo tem que ser entendido como a cultura real que surge de uma série de processos, mais que como um objeto delimitado e estático que se pode planejar e depois implantar [...] (SACRISTÁN, 1995, p. 86) O que foi exposto até agora é apenas o início dos esforços que faremos para tentar compreender a forma como o currículo se configura atualmente na universidade e na formação dos licenciados. A bibliografia utilizada nos apresenta diversos conceitos que são comuns para as pesquisas que tratam de educação: Ensino, aprendizagem, cultura, ideologia, reprodução cultural e social, identidade, representação, multiculturalismo, saber-fazer, saber-conceitual, realidade... entre outras que ouvimos, lemos e falamos com frequência ao tratar da docência. Há, então, que desenvolver a percepção da grandeza do currículo e reconhece- lo como parte constitutiva e inerente à prática pedagógica. “[...] Planejar currículo implica tomar decisões [...] implica compreender as concepções curriculares existentes que envolvem uma visão de sociedade, de educação e do homem que se pretende formar” (VEIGA, 1991, p. 83). Isto posto, Veiga (1991) nos apresenta a necessidade de pensar planejamento curricular associado a uma concepção de educação que a autora chama de “progressista”. Logo, para superar a face conservadora da escola e da universidade para a construção de propostas curriculares que se aliem à prática educativa e à atividade humana, precisamos: 1. Pensar o aluno como sujeito de sua própria aprendizagem; 2. Privilegiar o saber a ser produzido sem negar o que o conhecimento trazido pelo aluno; 3. Entender que currículo e ensino não são coisas separadas, mas constituem uma totalidade que visa a transformação crítica e criativa do contexto escolar, principalmente no que concerne à organização da escolaridade; 4. Compreender que a transformação se dará no diálogo entre as contradições e com a elaboração de propostas de ação que busquem a superação dos dilemas enfrentados pela prática pedagógica. 37 Vasconcellos (2013) elenca o Currículo disciplinar e instrucionista como um dos desafios da prática pedagógica. Junto com o desmonte social, o desmonte material e simbólico da escola, a deterioração e desvalorização crescente do professor e com a concepção de avaliação classificatória e excludente, a questão curricular é cada vez mais latente como possibilidade para buscar a melhoria do ensino, da aprendizagem, DA DOCÊNCIA, da educação e como um dos principais caminhos para buscar a emancipação dos sujeitos. Embora a temática seja pouco contemplada no contexto universitário, as produções teóricas acerca do tema vêm aumentando progressivamente e ganhando espaço entre políticos, autoridades, professores e especialistas (MOREIRA, 2012), tornando possível constatar a relevância do tema quando pensamos formação em todos os seus níveis, principalmente quando pensamos a formação de professores. A prática pedagógica como é feita na universidade terá influência direta na prática pedagógica que os futuros professores desenvolverão no ensino básico ou também no ensino superior. É o que Vasconcellos (2013) chama de Imprinting Escolar – onde o docente retoma em sua prática aquilo que vivenciou como aluno. Mesmo que os esforços estejam voltados para a reflexão de uma docência que privilegia o APREENDER e a ENSINAGEM (ANASTASIOU, 1998), as práticas pedagógicas universitárias ainda atendem uma concepção de universidade positivista e conservadora, e seus currículos estão organizados em um formato rígido e igualmente conservador. Há um enorme gradiente entre o sujeito que se deseja formar e a prática pedagógica realizada para alcançar tal objetivo. Evidentemente, os métodos pedagógicos são, por diversas razões, elaborações que obedecem a outras determinações, além das que provém do conteúdo. Porém, lembremos que a posição epistêmica, a essência de um conteúdo, sua projeção na vida, o grau de interação de conteúdos multidisciplinares e os interesses que ele desperta são fundamentais para a educação pelo poder que têm de determinar a natureza do currículo e as possibilidades de desenvolvê-lo. Tanto é assim, que a esperança de melhorar a educação sem mudar os conteúdos é ingênua. (SACRISTÁN, 2013, p. 263) Reforçamos novamente que a necessidade de reformulação do pensamento curricular excede a formalização de um documento emancipatório; mas antes, a reformulação do currículo enquanto documento E prática pedagógica. Em concordância com Vasconcellos (2013), “seria possível um avanço maior sem passar pela ‘alma’ da escola [universidade] que é o currículo?” (página 20). 38 A universidade, em seu caráter de instituição, assim como a escola, está submetida ao sistema capitalista a qual nos referimos anteriormente (no capítulo 1 e no início deste capítulo). Portanto, há determinados limites normativos que devem ser seguidos durante a construção dos currículos, especialmente, nas construções dos currículos de licenciatura. “Estamos falando das engrenagens que envolvem o currículo e o modelam, das regras da gramática que o regem. Falamos das regras do jogo, mas temos de decidir de qual jogo se trata, ou seja, o que estamos jogando” (SACRISTÁN, 2013, p. 23, grifo nosso). 2.1 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores e o Conselho Estadual de Educação de São Paulo Até que ponto fazer melhor o que está dado não é uma enorme armadilha para afundarmos cada vez mais, ainda que cheios de compromisso e de boa vontade? Até que ponto temos uma clareza mínima do nosso sonho pedagógico? (VASCONCELLOS, 2011, p. 20) Para chegar a temática dos Projetos Políticos Pedagógicos e da análise dos projetos dos cursos da UNESP/RC, primordialmente necessitamos de uma compreensão acerca das forças exteriores que interferem na construção dos documentos. Basicamente, antes das propostas de formação serem elaboradas institucionalmente, por cada universidade e por cada curso, atentamos ao fato de que existem dimensões curriculares que os afetam. Conforme exposto anteriormente, o currículo passou a ser estudado após a educação transformar-se em um fenômeno de massa e então, necessitar de algum instrumento organizador das práticas; mas o tipo de racionalidade envolvida no desenvolvimento de currículos para a educação não é neutro ou desinteressado, mas condicionado pela política e por mecanismos administrativos que interferem na modelação do currículo dentro das instituições, já que “[...] o tipo de racionalidade dominante na prática escolar está condicionada pela política e mecanismo administrativos que intervêm [...] dentro do sistema escolar” (SACRISTÁN, 2000, p 107). De acordo com a LDBEN 9394/96, artigo 53, inciso II: Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições: [...] 39 II - fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes; (BRASIL, Lei nº9394/96, artigo 53, grifo nosso) As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores (DCN’s) e o Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo (CEE) representam o que é chamado pela LDB de diretrizes gerais pertinentes e o que chamamos de políticas curriculares. As políticas curriculares caracterizam-se principalmente por responsabilizarem-se por decisões gerais e se manifestarem numa ordenação jurídica e administrativa (SACRISTÁN, 2000). Isso se dá não apenas pelo interesse político usual de utilização da educação como sistema ideológico, mas também pela necessidade de ordenar esse mesmo sistema. Logo, ocorre que a utilização de políticas curriculares se faz necessária em razão da própria estrutura do sistema educativo do qual fazemos parte e da função social exercida por ele. A escolha por esses dois documentos em específico se deu por, concomitantemente, influenciarem de forma direta e explícita a construção dos currículos e dos PPPs das universidades estaduais paulistas e, por consequência, a UNESP do campus de Rio Claro. Tendo o currículo implicações tão evidentes na ordenação do sistema educativo, na estrutura dos centros e na distribuição do professorado, é lógico que um sistema escolar complexo e ordenado tão diretamente pela administração educativa produza uma regulação do currículo. Isso se explica não só pelo interesse político básico de controlar a educação como sistema ideológico, mas também pela necessidade técnica ou administrativa de ordenar o próprio sistema educativo, o que é uma forma tecnificada de realizar a primeira função. (SACRISTÁN, 2000, p. 108) O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo, na Deliberação CEE N° 142/2016 que dispõe sobre a regulação, supervisão e avaliação de instituições de ensino superior e cursos superiores de graduação vinculados ao Sistema Estadual de Ensino de São Paulo, apresenta, diretamente, as normas que regem as universidades. Dentre diversas determinações a serem cumpridas pelas instituições de ensino superior para que estas se mantenham em funcionamento, no que diz respeito à formação de professores e às licenciaturas, há apenas uma norma a ser seguida. Esta norma é disposta pelo artigo 40 que estabelece que todos os “cursos de licenciatura e tecnologia obedecerão ao contido nas diretrizes curriculares pertinentes, inclusive no que diz respeito à duração da carga horária mínima e tempo de integralização, conforme o caso” (Deliberação CEE nº 142/2016, p. 11). Fiel a redação 40 da LDB 9394/96, o CEE imputa às DCN’s caráter determinante aos cursos de licenciatura; uma vez instituído como norma, o que é disposto neste documento torna- se condição sine qua non para a existência de todo e qualquer curso que envolva a formação de professores. Para além deste artigo específico aos cursos de licenciatura, é válido destacar que a respeito das alterações curriculares dos cursos de graduação, todas elas devem ser comunicadas ao CEE, dessa forma, conforme disposto na Subseção IV, artigo 51: Art. 51 As alterações curriculares relativas aos assuntos a seguir elencados deverão ser comunicadas ao Conselho Estadual de Educação: a) nomenclatura de componentes curriculares; b) ementário; c) distribuição de componentes curriculares ao longo do curso; d) carga horária de componentes curriculares sem diminuição de carga horária total do curso; (Deliberação CEE, nº 142/2016, p. 13) Isto posto, chegamos às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores. Em seu artigo primeiro, parágrafo 1, observamos no excerto a seguir o estabelecimento de diálogo em relação ao que foi determinado tanto pela Lei de Diretrizes e Bases quanto ao Conselho Estadual de Educação. § 1º Nos termos do § 1º do artigo 62 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as instituições formadoras em articulação com os sistemas de ensino, em regime de colaboração, deverão promover, de maneira articulada, a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério para viabilizar o atendimento às suas especificidades nas diferentes etapas e modalidades de educação básica, observando as normas específicas definidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). (Parecer CNE/CP, nº 2/2015, p. 42, grifo nosso) Desde o princípio de sua elaboração, as Diretrizes foram vistas como um “horizonte propositivo” para auxiliar e contribuir com as “práticas curriculares vigentes” nos cursos de licenciatura, as Diretrizes as quais nos referimos neste trabalho foram apresentadas em 2015, também denominadas de Parecer CNE/CP nº2/2015. [...] à medida que o controle deixa de ser coercitivo para se tecnificar e ser exercido por mecanismos burocráticos, se oculta sob regulamentações administrativas e “orientações pedagógicas” com boa intenção, que têm a pretensão de “melhorar” a prática. A falta de clareza de um modelo político neste sentido também tem relação com a carência de um sistema explicitamente proposto e aceito de controle do currículo [...] (SACRISTÁN, 2000, p. 109) Embora carregue no nome a expressão “curriculares” e, em sua redação, também apresente diversas vezes o termo “currículo” e expressões similares, é possível perceber que o documento falha em reconhecer-se como política curricular, 41 além de carregar consigo percepções conflituosas. Por currículo, as DCN’s apresentam a seguinte definição: [...] sinalizamos os seguintes considerando como aportes e concepções fundamentais para a melhoria da formação inicial e continuada e suas dinâmicas formativas: [...] o currículo como o conjunto de valores propício à produção e à socialização de significados no espaço social e que contribui para a construção da identidade sociocultural do educando, dos direitos e deveres do cidadão, do respeito ao bem comum e à democracia, às práticas educativas formais e não formais e à orientação para o trabalho [...] (Parecer CNE/CP nº 2/2015, página 21-22) A definição apresentada pelo documento é clara e dialoga com o que apresentamos na primeira parte deste capítulo, já que compreende o currículo em sua dimensão formativa e admite a existência de concepções variadas. No entanto, ao discorrer sobre sua própria elaboração e desencadeamento, não há, de maneira óbvia, além do título que carrega, definições que o elucidem como política curricular influente nas decisões curriculares e nas propostas de formação que as universidades precisam idealizar. Em sua extensão, as DCN’s definem proposições acerca de dinâmicas formativas, princípios, perfil dos licenciados, núcleo de estudos e eixos de formação a serem priorizadas nos projetos da universidade; todos estes itens constituem as DCN’s como política e proposta curricular, pois sua realização se circunscreve em diretrizes e componentes que orientarão um plano educativo que faz parte de um plano global (SACRISTÁN, 2000). Trata-se então de um documento repleto de pretensões e intencionalidades educativas e, portanto, do que chamá-lo, se não currículo? Consoante com a Constituição Federal de 1988, com a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, com o Plano Nacional de Educação e outros documentos variados acerca das legislações educacionais do país, as DCN’s trazem consigo muito forte a importância da educação como um projeto nacional e a necessidade de melhorá-la para, então, obter melhorias para o país de forma globalizada; o perigo deste propósito é o caráter homogeneizador que, as até então denominadas “proposições”, assumem, admitindo o risco que dessa forma as políticas públicas podem constranger e determinar as condições de inovação das instituições (VEIGA, 2003, p. 269). É a partir desta interpretação que os documentos se inserem na pesquisa sobre as especificidades da docência, já que a prática pedagógica e o professor assumem os lugares principais de agentes da mudança. A concepção que as diretrizes exploram 42 acerca da docência eclodiu em consonância às discussões realizadas especificamente sobre os cursos de Pedagogia e, definida como uma concepção que trouxe muitas inovações, destacando-se, entre outros pontos, a concepção de docência compreendida “como ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo” (Parecer CNE/CP nº 2/2015, p. 12) Não obstante, apesar de uma concepção de docência coerente e até mesmo ambiciosa, ao discorrer acerca da organização dos cursos, o que se vê exposto são grades curriculares hipotéticas, componentes curriculares e a disposição das disciplinas. Repletas de estatísticas, números e pesquisas realizadas em âmbito nacional para justificar a proposta que as rege, aprofundando-se inclusive na descrição sobre o curso de Física no Brasil, as Diretrizes apresentam como dado de pesquisa que “a formação de profissionais do magistério da educação básica tem se constituído em campo de disputas de concepções, dinâmicas, políticas, currículos, entre outros” (Parecer CNE/CP nº 2/2015, p. 21, grifo nosso). O uso da expressão “currículos”, termo que, dentro deste documento, pode ser gerador de três entendimentos prováveis onde podemos compreender 1) currículos como as variações nas organizações das grades curriculares institucionais, 2) currículos como as diversas concepções de currículo ao longo dos anos, e ainda 3) currículos definidos em sua pluralidade e como campo de disputa na discussão sobre educação. Não obstante, de forma explícita, a definição de currículo apresentada pelo documento se baseia nas propostas realizadas pela CONAE (Conferência Nacional de Educação, 2010 e 2014) que, sobre a docência e currículo apresentam [...] 8) a docência como ação educativa e como processo pedagógico intencional e metódico, envolvendo conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se desenvolvem na socialização e construção de conhecimentos, no diálogo constante entre diferentes visões de mundo; 9) o currículo como o conjunto de valores propício à produção e à socialização de significados no espaço social e que contribui para a construção da identidade sociocultural do educando, dos direitos e deveres do cidadão, do respeito ao bem comum e à democracia, às práticas educativas formais e não formais e à orientação para o trabalho; 10) a realidade concreta dos sujeitos que dão vida ao currículo e às instituições de educação básica, sua organização e gestão, os 43 projetos e cursos de formação, devem ser contextualizados no espaço e no tempo e atentos às características das crianças, adolescentes, jovens e adultos que justificam e instituem a vida da/e na escola, bem como, possibilitar a compreensão e reflexão sobre as relações entre a vida, o conhecimento, a cultura, o profissional do magistério, o estudante e a instituição; [...] (Parecer CNE/CP nº 2/2015, p. 22, grifo nosso) A redação das DCN’s apresenta conceituações bem coerentes acerca do tema na contemporaneidade, mas essas mesmas definições se confrontam ao que é proposto como norma para as instituições, além de negar-se, ao mesmo tempo, como documento constituinte de um currículo/política curricular. Após este panorama breve e geral sobre educação e alguns conceitos pertinentes para nossa análise posterior, as DCN’s enfim apresentam as especificidades dos cursos de licenciatura. Conforme já pontuado anteriormente, pautada nas legislações educacionais, o documento defende a institucionalização de uma identidade própria as licenciaturas, contemplando a articulação entre ensino, pesquisa e extensão e de tal forma a garantir qualidade na formação oferecida. No entanto, em pesquisa de estado da arte acerca dos cursos de licenciatura no Brasil, Romanowski e Martins (2010) observaram que as licenciaturas têm priorizado a formação com foco na transmissão de conteúdos específicos a serem reproduzidos pelo futuro docente, onde os currículos baseiam-se em disciplinas particulares das áreas de conhecimento desvinculadas das disciplinas pedagógicas e há o constante desprestígio dos cursos de licenciatura em relação aos bacharelados (CANDAU, 1987; LUDKE, 1994; GATTI, 1997). Embora coerente, a conceituação de currículo exposta pelas DCN’s ainda não é contemplada nas licenciaturas. A questão curricular aparece, novamente, como campo de disputas conflituosas no que diz respeito à formação de professores. Ainda a respeito da questão curricular, é pertinente ressaltar que o documento prevê a participação e o estudo sobre currículo e projeto político pedagógico na formação de professores, propondo inclusive o estudo das Diretrizes durante a formação do licenciado. Destaca-se a importância da participação do graduando não apenas nas atividades de planejamento e no projeto pedagógico da universidade, bem como nas reuniões pedagógicas e órgãos colegiados, além das oportunidades para pesquisas que proporcionem conhecimento sobre os estudantes com os quais atuarão e sua realidade sociocultural; sobre processos de ensinar e de aprender, sobre as 44 propostas curriculares e sobre a organização das práticas pedagógicas (Parecer CNE/CP nº 2/2015). Em busca de uma “formação para o exercício integrado e indissociável da docência na educação básica, incluindo o ensino e a gestão dos processos educativos escolares e não escolares, a produção e difusão do conhecimento científico, tecnológico e educacional” (Parecer CNE/CP nº 2/2015, p. 30), as Diretrizes apresentam então cargas horárias específicas para os cursos de licenciatura, abrangendo os chamados “componentes curriculares”. A norma vigente estabelece que todos os cursos de licenciatura devem constituir-se de, no mínimo, 3.200 (três mil e duzentas) horas de “efetivo” trabalho acadêmico, em cursos que possuam a duração de, no mínimo, oito semestres (ou quatro anos). Desta carga horária: a) 400 (quatrocentas) horas de prática como componente curricular, distribuídas ao longo do processo formativo; b) 400 (quatrocentas) horas dedicadas ao estágio supervisionado, na área de formação e atuação na educação básica, contemplando também outras áreas específicas, se for o caso, conforme o projeto de curso da instituição; c) pelo menos 2.200 (duas mil e duzentas) horas dedicadas às atividades formativas estruturadas pelos núcleos I e II, conforme o projeto de curso da instituição; d) 200 (duzentas) horas de atividades teórico-práticas de aprofundamento em áreas específicas de interesse dos estudantes, como definido no núcleo III, por meio da iniciação científica, da iniciação à docência, da extensão e da monitoria, entre outras, conforme o projeto de curso da instituição. (Parecer CNE/CP, nº 2/2015, p. 30, grifos nossos) O documento ainda ressalta a importância de contemplar os conteúdos específicos da respectiva área de conhecimento ou a organização dos conteúdos de maneira interdisciplinar aos fundamentos e metodologias, bem como conteúdos relacionados aos fundamentos da educação, com vistas a garantir um profissional- professor da educação básica formado por um curso que efetivamente relacione teoria e prática. Percebemos neste momento que, novamente, apesar das conceituações coerentes, há uma dicotomia entre “o que é respectivo da docência” e o que “é específico”. Em consonância com Lopes (2008), as áreas de saber (ou disciplinas) são vistas como construções sociais que visam o atendimento de finalidades específicas e, por isso, o pensamento orienta-se em uma estrutura friamente disciplinar. É pertinente ainda a colocação de que o professor universitário não é contemplado na formulação das Diretrizes e a “complexidade da docência universitária segue despercebida” (SOARES, 2010, p. 9). 45 Apesar de preconizar uma identidade institucional própria, a articulação do ensino, pesquisa e extensão e, apresentar manifestações de fundamentação que dialogam com a bibliografia utilizada no presente trabalho, é possível perceber a exigência das Diretrizes para que os projetos de formação das instituições se efetivem junto a base nacional, com a garantia dos componentes curriculares definidos e com a carga horária normatizada. No excerto, Para atender a essa concepção articulada de formação inicial e continuada é fundamental que as instituições formadoras institucionalizem a licenciatura com identidade própria. Assim, a instituição de educação superior que ministra atividades, programas e cursos de formação inicial e continuada ao magistério, respeitada sua organização acadêmica, deverá contemplar, em sua dinâmica e estrutura, a articulação entre ensino, pesquisa e extensão para garantir efetivo padrão de qualidade acadêmica na formação oferecida, em consonância com o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), o Projeto Pedagógico Institucional (PPI) e o Projeto Pedagógico de Curso (PPC). (Parecer CNE/CP nº 2/2015, p. 24, grifos nossos) Observamos, além da variedade terminológica para falar de Projeto Político Pedagógico, a exigência de que este siga o exposto nas DCN’s para o alcance de um “padrão de qualidade” na formação acadêmica oferecida nacionalmente. Milton Friedman (1977), utilizou a mesma expressão para uma metáfora infame onde relaciona escolas/universidades a restaurantes: ambos necessitam de um controle para um padrão de qualidade. Desta forma, as DCN’s assumem-se como uma política curricular reguladora que em muito se assemelha ao que foi pensado por Bobbitt em 1917 para a produção de um currículo homogeneizador e puramente disciplinar. A reflexão acerca da diferença entre oferecer um ensino com qualidade e um ensino para um PADRÃO de qualidade é extremamente necessária. De acordo com Rios (2010) a qualidade na educação deve ser adjetivada: ensino competente é aquele que traz consigo as dimensões técnicas, políticas, éticas e estéticas que a educação necessita e que são essenciais à formação do indivíduo. Não se pretende aqui negar a importância da informação e da transmissão da herança cultural no processo de en