UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS CORPO E FESTA EM TRANCE YASMIN PALULIAN MACCARI Rio Claro- SP 2021 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO unesp PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS CORPO E FESTA EM TRANCE YASMIN PALULIAN MACCARI Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Humano e Tecnologias. Orientador: Flávio Soares Alves Rio Claro- SP 2021 M123c Maccari, Yasmin Palulian Corpo e festa em trance / Yasmin Palulian Maccari. -- Rio Claro, 2021 121 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro Orientador: Flávio Soares Alves 1. Subjetividade. 2. Musica eletrônica. 3. Cartografia. 4. Corpo. 5. Festivais de arte. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Dedico este trabalho ao meu vô ,que fez sua passagem ao longo desse meu processo, um bon vivant que sempre me ensinou que é necessário brindar à vida! AGRADECIMENTO Meu primeiro agradecimento vai para meu companheiro de vida, Chassi (ou Matheus), que esteve comigo em cada parte dessa experiência, desde a entrada no Mestrado, as pesquisas de campo, a montagem de video, as crises de escrita, sempre me colocando pra cima e dando todo o suporte possível para me ajudar. Você foi e é essencial no meu caminhar e “por onde for eu quero ser seu par”. Agradeço aos meus pais e minha família, que desde pequena sempre estimularam essa minha vontade de explorar o mundo, me dando todo o suporte emocional e material para poder me tornar pesquisadora, e agora sendo a primeira mestra da família. Em especial meu vô Gabriel e minha vó Haydeé que se foram nesse fim de mestrado. Agradeço muitíssimo ao meu orientador Flávio, por sempre topar as minhas ideias malucas, me dando possibilidades de inventar, compondo com as minhas produções ao invés de podá-las. E por ser sempre tão atencioso aos meus chamados e compreensivo com todas as dificuldades e barreiras que passei ao longo da pós graduação. Não posso deixar de esquecer minhes amigues (Alice, Aline, Colômbia, Fica, Gabi, Jequiti, Kitty, Margot, Mini Vaca, Sheldon, Vésper), que sempre me ouviam tagarelar sobre o meu trabalho, sobre os autores, sobre as festas, sobre as brisas, sobre as crises, e principalmente as reclamações. E que sempre me colocavam para cima acreditando em mim. Principalmente aquelus (Fininho, Moreno e Salsicha) que me acompanharam nas festas, me ajudando a carregar um montão de tralhas, montar o “cantinho de troca (d)e saberes”, tirando fotos, aceitando passar 8 dias no festival em uma experiência totalmente nova. Ao grupo E-labore(si) pelas trocas, ter com quem contar dentro da academia é sempre um abraço no coração. As discussões, trocas, conselhos e críticas foram muito importantes para o meu crescimento como pesquisadora, aprendi muito com vocês. Ao coletivo Calisto, mesmo me distanciando por falta de tempo, sempre é um respiro, aquela flor que cresce no asfalto, uma espécie de lar pra mim. À seção de pós-graduação sempre solícita a tirar nossas dúvidas, principalmente a Ivana que recebeu diversas ligações e visitas minhas ao longo do Mestrado sempre com muita paciência e acolhimento. Agradeço a todas as pesssoas que visitaram e trocaram comigo no “cantinho de troca (d)e saberes”. Sem a participação de vocês não existiria trabalho. A cada pessoa que passava por ali eu tinha mais certeza da importância do que estava fazendo. Também à UNESP e ao Programa de Desenvolvimento Humano e Tecnologias por poder proporcionar essa experiência que me fez crescer como pessoa e profissional. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Então agradeço também à CAPES pela bolsa, para poder ter suporte financeiro na situação tão complexa em que se encontram as universidades públicas brasileiras. Agradeço de um jeito especial a dois seres que foram essenciais nesse meu processo que sempre me enchiam de vida, os gatinhos que habitam minha casa, ‘Riroca e Vidália, cada um com seu jeitinho sempre encantando meu cotidiano. Agradeço a mim, nos reconhecer como protagonistas dentro do nosso próprio trabalho também é essencial. Agradeço aos autores. Sem as suas ideias doidas, as minhas ideias malucas não achariam solo para florescer. E à Mãe Terra, aos seres místicos, deuses, energias, fluxos que perspassam minhas crenças e imaginários, da onde flui a inexplicável sensação de conexão e pertencimento. Onde eu consigo olhar o mundo com um pouco mais de magia e vida. “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música” (Friedrich Nietzsche) RESUMO Os festivais de música eletrônica Trance nos colocam em outros regimes corporais, possibilitando outras experiências daquelas do cotidiano. Festas que duram de dois a dez dias e acontecem normalmente em meio à natureza, uso de drogas psicodélicas e estimulantes, práticas de dança, discussão de estilos de vida alternativos e promoção de arte das mais variadas, esses ambientes brincam com uma integração entre tecnologia, vida e natureza. Por meio da cartografia, baseada nas ideias de Deleuze & Guattari, este trabalho mergulha nesse universo colocando o corpo em jogo em todas essas relações. Busca-se observar se essas relações movimentam também os processos de subjetivação daqueles que se envolvem com a experiência trance. Para tanto, indaga-se: que movimentos os festivais trance ajudam a compor na subjetividade daqueles que participam desse evento? Para dar encaminhamento às proposições deste trabalho, foi feita pesquisa de campo em festivais de música eletrônica, nos quais foi criado um espaço chamado “Cantinho de troca de troca (d)e saberes”. Este espaço funcionava como uma instalação, com materiais visuais, artísticos e bibliográficos acerca do Trance, que ficavam disponíveis para todos os que dali se aproximavam, promovendo, assim, ampla integração e composição com o evento. Neste lugar de encontros e interações lúdicas e horizontais, foram produzidas entrevistas e diários de campo aproveitados neste estudo. As intensidades que irromperam deste material, foram observadas como multiplicidades, isto é, como rizoma, lida como movimento de uma experiência caleidoscópica constituída a partir do Trance, dentre os quais se destacaram: a conexão com a natureza, o reencantamento e a vida em comunidade. Tais experiências concorreram a favor da composição de uma análise dialógica e diferencial acerca da problemática central assumida nesta pesquisa, na medida em que permitiram observar que os festivais e festas trance acabam por ser espaços potentes de mobilização de práticas de resistência, ao apontar para outros modos de existência mais ecológicos, que oportunizam a emergência de outros modos relacionais estabelecidos de si para consigo mesmo, de si para com o espaço e com os outros, que forçam os limites a ordem dos convencionamentos sociais, em função da expressão vibrante de um corpo festa, que ousa dançar, ao invés de simplesmente (sobre)viver. Palavras-chaves: Trance. Música eletrônica. Subjetividade. Cartografia. Festivais de arte. ABSTRACT The Trance Music festivals place us in other body regimes, enabling possibilities which are different from the habitual ones. Parties that last from two to ten days and happen in natural sites, psychedelic and stimulating drugs, dance practices, discussions on alternative lifestyles, promotion of the most varied styles of arts; all these environments play with an integration between technology, life and nature. Through cartography, based on Deleuze & Guattari’s ideas, the present work looks into this universe putting the body in all these relations. It tries to find out if these relations also move the processes of subjectification of those who get involved with the experience of trance. In order to do that, we ponder: which movements do the trance festivals help form in the subjectivity of those who participate in the event? To forward the propositions of this research, we developed a field research in electronic music festivals, among which we created a space called “Corner of knowledge exchange”. This space worked as an installation, with visual, artistical and bibliographical materials about the Trance, which were available for everyone who approached, promoting, thus, integration and composition with the event. In this area of ludic and horizontal interactions, interviews and field diaries were produced. The intensity that emerged from this material was observed as multiplicity, that is, as rootstock, read as the movement of a kaleidoscope experience brought up from Trance, such as: connection with nature, re-enchantment, life in community. Such experiences contribute in favor of the composition of a dialogical and differentiated analysis about the central problematics discussed in this research, as they allowed us to observe that the festivals and trance parties end up being powerful spaces of mobilization of resistance practices, when they point to other more ecological ways of existence, which make emerge other types of relations established from self to self, from self to environment and the others, which force to its limits the order of social conventions, upon de vibrant expression of a party body, which dares to dance, instead of simply surviving. Key words: Trance. Electronic Music. Subjectivity. Cartography. Festivals SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO – UM CONVITE À FESTA! ............................................................ 9 1.1 HISTÓRICO ....................................................................................................... 12 1.2 ATUALMENTE NO BRASIL ............................................................................... 16 1.3 CONTRACULTURA ........................................................................................... 18 2 SUBJETIVIDADE EM MOVIMENTO NAS FESTAS ............................................. 21 3 DO TRANCE À INVESTIGAÇÃO ......................................................................... 28 3.1 DO TRANCE À PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS ....................................................................................................... 30 4 METODOLOGIA ................................................................................................... 33 4.1 PROCESSOS DE COMPOSIÇÃO DA PESQUISA ............................................ 34 4.2 FESTAS E ENTREVISTAS ................................................................................ 41 5 EXPERIÊNCIA CALEIDOSCÓPICA ..................................................................... 45 5.1 CALEIDOSCOPIZANDO O TRANCE ................................................................. 47 6 HAPPY PEOPLE, HAPPY MUSIC ........................................................................ 52 6.1 ROUND AND ROUND IS THE SOUND THAT’S RUNNIN’ THROUGH MY BRAIN… .................................................................................................................. 53 6.2 LIFT ME UP ....................................................................................................... 56 6.3 NO BORDERS, NO NATIONS ........................................................................... 60 6.4 DANCEM MACACOS, DANCEM ....................................................................... 65 7 VIVER JUNTOS .................................................................................................... 69 7.1 O ESPÍRITO DAS ÁRVORES ............................................................................ 71 7.2 REENCANTAMENTO ........................................................................................ 82 7.3 P.L.U.R. – A COMUNIDADE .............................................................................. 88 7.4 TODOS SOMOS UM.......................................................................................... 96 7.5 CRIANÇAS ...................................................................................................... 100 8 O FIM DE UMA FESTA NÃO É O FIM DA FESTA ............................................. 103 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 109 GLOSSÁRIO ......................................................................................................... 114 ANEXO A – PROJETO DE LEI 1089/2007 ............................................................ 116 ANEXO B – ROTEIRO DE QUESTÕES DAS ENTREVISTAS .............................. 119 ANEXO C – LETRA TRADUZIDA DO “NO BORDERS, NO NATIONS” .............. 120 ANEXO D – LETRA “IMPERMANÊNCIA” (CULTIVO) ......................................... 121 9 1 INTRODUÇÃO – UM CONVITE À FESTA! Essa pesquisa começa com um convite... Um convite à festa! Assim, de partida, reclama por movimento, sem o qual não há dança, tampouco festa. Mas que festa é essa? O trance! O trance não é somente um estilo musical, o que se cria ao redor dele é muito mais do que apenas música, é um movimento cultural com amplas ligações com a arte tecnológica em diversos aspectos da sua composição, que ganham maior visibilidade nos festivais trance. Segundo Lemos (1997), nesses festivais se constituem múltiplas interações, que ampliam de forma simbiótica as possibilidades de comunicação entre os indivíduos que experimentam o trance. Desde suas origens, que são fundadas em ideais do movimento hippie, há no trance um interesse lúdico e inventivo pelas tecnologias eletrônicas e cibernéticas, sem abrir mão de componentes experimentais que buscam um êxtase trazendo releitura de sons tribais/ancestrais, tais como a própria dança, os sons percusivos e o uso de psicodélicos, que conectam o trance com uma dimensão primitiva e instintiva do ser humano. Talvez por isso, o trance busque uma relação intensa com o meio natural, isto é, com a natureza, sendo que, muitas vezes, as festas são realizadas em locais distantes das cidades, que transbordam a exuberância da natureza, como cachoeiras, praias, florestas, montanhas ou canyons, sendo necessário acampar no local caso a festa tenha duração de alguns dias (VASCONCELOS, 2008). Por conta do contato direto com a natureza, as festas trance possuem em sua estrutura o máximo possível de bioconstrução e arquiteturas sustentáveis, para interferir o mínimo no ambiente ao redor, podendo inclusive ter captação de água local, utilização de banheiros secos e redes de reciclagem, o que já coloca o sujeito em situações não rotineiras, de intensa relação com a natureza. 10 Figura 1 – Universo Paralello 2011 – Praia de Pratigi – Bahia Fonte: Yasmin Palulian Maccari (2011) Em meio aos festivais de trance, se expressa a música eletrônica. Esse estilo de música, mais comumente conhecido como rave psicodélica, é tocado por DJs1 e possui esse nome por ter uma sonoridade bastante peculiar, produzida de forma computadorizada em sintetizadores, nos quais se misturam diferentes sons tribais e frequências sonoras, por vezes imperceptíveis aos ouvidos. Devido a essa característica, o trance chega a proporcionar nos ouvintes a imersão em estados alterados de consciência, que muitas vezes chega a beirar estados de transe, isto é, estados cerebrais semelhantes ao da hipnose (FERREIRA, 2006; NASCIMENTO, 2006; MOREIRA, 2015). A música trance invade os ouvidos e reverbera no corpo, instigando-o a dançar. Entre a dança e a música, o indivíduo que frequenta essas festas experimenta um cenário cheio de brilho, que está presente nas luzes, na decoração, nos palcos com artes complexas e exibição de videoprojeções durante a noite, dentre outros elementos que transformam um espaço vazio em um mundo quase que futurista tribal. Ampliando esse cenário, somam-se também outros recursos de ambientação, tais como performaces de circo, malabares, dança, teatro e outros estilos musicais enriquecendo ainda mais a festa (NASCIMENTO, 2006). ¹ Inflexão para a expressão Disc Jockey. 11 Figura 2 – Pista de dança Fonte: Arnaldo Dantas (2019) Muitas das festas trance contam também com atividades e oficinas oferecidas ao público e oficinas de meditação, yoga, sagrado feminino, confecção de artesanato e instrumentos, bioconstrução, rodas de conversa sobre espiritualidade, misticismo e vida alternativa, demonstrando interesse perante a estilos de vida diferenciados. Figura 3 – InfoPoint com roda de conversa sobre Educação Alternativa Fonte: Página do Coletiva.mente,Jan/ 2020 12 Outros elementos que atravessam as festas trance são as drogas. É importante deixar claro, desde já, que a experiência trance não depende, necessariamente, das drogas, mas a presença delas é frequente nesses eventos, o que torna impossível ignorá-las. Antes de sucumbir, no entanto, a um discurso moralista que tenta recriminá-las, interessa-nos ver de que maneira as drogas podem contribuir para instigar nos frequentadores das festas uma certa regra de prudência2, necessária não só durante os festivais, mas também no curso da vida3. Enfim, ao se envolver com esses diferentes encontros nas festas trance, o indivíduo, experimenta uma outra possibilidade de existência, um território muitas vezes com regras, tempo e situações próprias. Segundo Nascimento (2006), essas festas trance instalam uma nova ordem, como um “espelho que reflete a situação complexa da contemporaneidade” (p. 160), sendo, portanto, uma potência de produção de outras subjetividades. Assim, neste contexto múltiplo que integra arte tecnológica e natureza, na mistura entre diferentes meios comunicacionais, os frequentadores encontram espaços para se conectar consigo mesmos, com o espaço que os rodeia e com os outros, o que nos instiga a pensar na possibilidade dessas festas afetarem não só a experiência sensorial de seus frequentadores, mas também a constituição de seus modos de ser, dançar e viver. Tendo em vista essa intuição, pergunta-se: que movimentos os festivais trance ajudam a compor na subjetividade daqueles que participam desse evento? 1.1 HISTÓRICO A descrição acima ajuda a mergulhar um pouco no ambiente da festividade, mas existe outro ponto que é essencial para entendermos o “trance” e suas questões, que é a sua história. Aqui irei apostar na composição de uma imagem 2 A regra de prudência surge de Deleuze & Guattari, e é colocada aqui com a ideia de um uso não destrutivo, mas que diz respeito ao aspecto construtivo ou positivo das experiências com drogas. 3 Encontramos indícios desta intuição ao observar iniciativas que se propõem refletir sobre o uso abusivo de drogas nos festivais. Como já foi possível constatar, vários eventos contam com equipes de Redução de Danos, que possuem visão antiproibicionista e informativa sobre drogas e saúde que incentivam o autocuidado. Ali eles distribuem panfletos sobre cuidado ao usar entorpecentes, fazem testagem química de pureza das drogas, recebem as pessoas que estão na bad trip, analisando se existe a necessidade de envio ao ambulatório ou não. 13 tramada historicamente acerca deste contexto, para que sirva de ponto de partida para situarmos o território existencial da pesquisa, território esse que não é definido pelos seus contornos geográficos, mas sim pela expressividade dos sujeitos nele contidos. É processual, em constante movimento de produção. “O território é antes de tudo lugar de passagem" (Deleuze e Guattari, 1997, p. 132). Primeiro chamo a atenção para um ponto importante sobre a sua historiografia. Existem poucos dados escritos, principalmente em materiais “formais”, sobre como se iniciou e desenvolveu o movimento. Diversas hipóteses surgem concomitantemente vindas de relatos, entrevistas e materiais como ingressos, revistas e zines4. São esses materiais, em composição com alguns trabalhos acadêmicos que encontramos sobre o assunto, que darão corda à narrativa ficcional5 e cartográfica que aqui se inicia. O início das festas de música eletrônica se deu na Inglaterra em meados da década de 80. Os eventos sempre ocorreram de forma ilegal, sendo ligados ao mundo underground, e por conta disso se tornou extremamente difícil acessar registros sobre como realmente começou (CAMARGO, 2008). Por mais que os eventos estudados nesse trabalho ocorram normalmente em meios rurais ou na natureza, no início das raves seu público sempre foi em maioria urbana e, no começo, o lugar de suas atividades eram no coração na cidade, em lugares considerados fora de uso como galpões abandonados. Conforme o tempo foi passando, em 1990, as festas já tinham dimensões enormes e causavam certo pânico moral nas comunidades locais. Foi quando em 1992 uma rave na Grã-Bretanha reuniu entre 25 a 40 mil pessoas. A imagem da multidão atravessando o local da festa foi noticiada ao modo de uma invasão criminosa. Ali, naquele momento, as festas já tinham uma imagem extremamente negativa pela população e pela mídia, e só piorava (CAMARGO, 2008). Foi dessa forma que o governo britânico aprovou em 1994 uma lei que ficou conhecida como “Lei da Justiça Criminal”, com foco de ação nas raves. Essa lei 4 Um zine é um trabalho autopublicado normalmente independente de pequena circulação de textos e imagens sobre um algum assunto específico. Normalmente estão ligados a movimentos punk, anarquistas e sociais. 5 Baseado em Passos et al. (2009; 2014), esse termo surge com a ideia que a cartografia não tem um compromisso com a verdade, mas com uma composição da realidade, sempre complexa, heterogênea e diferencial, a narrativa que ela desvela é sempre ficcional, ou seja, inventiva. Refere- se a uma dentre múltiplas outras possibilidades de ser e existir. 14 trouxe algumas consequências ao movimento de música eletrônica de diversas formas, segundo Sauders (1997). Uma das consequências foi a volta das festas para locais que possuíam licença para funcionar, assim as festas deveriam estar de acordo com as normas de segurança. Por outro lado, parte dos produtores ficou ultrajada com a lei e resolveu fazer festas ilegais ainda maiores, retomando alguns preceitos do movimento punk, como o “faça você mesmo”6. Mas a consequência que mais nos interessa foi a migração dos eventos para outras partes do mundo, incluindo o Brasil. Uma das razões de os eventos terem chegado até aqui, foi a perseguição policial dos eventos em Londres. Também porque os novos locais para onde as raves se mudaram eram mais permissivos, embora o imaginário das festas já fosse bastante negativo perante as populações locais. Conforme esses eventos vão se espalhando, vão ganhando diversas conformidades em relação a realidade local e o contexto político-histórico, criando grande diversidade de festas. O início das festas trance como conhecemos hoje e que é o estilo que foco nesse trabalho, começou pelo movimento hippie em Goa, na Índia. Muitos hippies estavam fugindo para outros países por conta da guerra do Vietnã, ou pela própria imersão em outras culturas, de modo que esse movimento acabou seguindo a onda de contracultura das décadas de 60/70, sendo espaços inclusive de resistência política. Saindo das praias de Goa, ele dispersa para outros países. A forma como o trance dá seus primeiros passos no Brasil ainda é confusa e nebulosa, e não se sabe ao certo como começou (CAMARGO, 2008, p. 8). Alguns autores afirmam que os eventos de música trance vieram para o Brasil já com uma busca de mercado consumidor, como um espaço promissor para o mercado de festas e entretenimento, alegando que a primeira festa grande e reconhecida feita em solos brasileiros foi feita pela L&M, empresa de cigarros, em 1993 (CASTRO, 2004). Já em outras bibliografias, se fala na vinda de DJs estrangeiros e brasileiros que estavam no exterior, e que trazem consigo esse novo tipo de festa, começando timidamente nas paisagens paradisíacas de Arraial D’Ajuda e Trancoso (NASCIMENTO, 2006, p. 188). Sua mercantilização só ocorreria mais tarde, principalmente quando começa a chegar em grande regiões metropolitanas como 6 O “do it yourself”, ou traduzido, “faça você mesmo”, é uma ideia de movimentos punks e anárquicos onde, como o nome diz, você mesmo faz suas coisas como uma forma de buscar autonomia. 15 São Paulo. Já nas entrevistas da tese de Abreu (2011), ainda existe um relato que conta da chegada de aproximadamente 50 profissionais estrangeiros em 1994 como decoradores, DJs, produtores e técnicos de som, que saem de Goa e chegam ao Brasil com todo seu material, à procura de um novo local para disseminar a semente do trance. Observando as bibliografias, podemos enxergar que foi um fenômeno que, em seu desenvolvimento no Brasil, acabou por ser disseminado de variadas formas e até mesmo concomitantemente em locais diferentes, ficando difícil podermos tirar conclusões da sua história pensando somente em sua raiz. Porém, fica claro que parte do processo da vinda desse movimento para o Brasil carrega consigo uma ideia em partes colonizadora, em partes mercadológica, que conforme o tempo vão levar a divisões de diferentes dinâmicas de festas. No início, as festas ficaram às margens, fazendo parte do cenário underground, e normalmente sendo acessíveis, não focando em lucro. Mas, com o aumento da demanda e irradiação das festas, os produtores começaram a investir cada vez mais em estrutura e consequentemente o lucro passou a fazer parte (MOREIRA, 2014, p. 63), gerando núcleos de organização de festas comerciais. Assim começa a divisão entre as raves e as “megarraves”, que se diferenciam na quantidade de pessoas presentes nos eventos, nos preços e na infraestrutura. Ainda na sua dissertação, Moreira (2014) discute sobre as estratégias de mercado para aumento do público das festas, e uma das formas mais relevantes de aumentá-lo foi o “convite à periferia”, pois até então os eventos eram destinados a um público de jovens de classes sociais mais abastadas. Com isso começou a distribuição de flyers7 das festas em diversas partes das cidades e, para maior acessibilidade, havia a possibilidade de pagar transportes contratados a preços baratos, saindo de locais estratégicos. Assim que houve a entrada desse público, ficou conhecido de forma pejorativa como os “cybermanos”. Eram identificados principalmente pela sua expressão estética, ou seja, pelos seus símbolos, deixando muito nítida a diferença de classes dentro dos eventos (FRANCO, 2016). Ocorreram divisões de grupos 7 Um “flyer” (panfleto) é uma forma de anúncio em papel destinado à ampla distribuição e normalmente publicado ou distribuído em um local público, entregue a indivíduos ou enviado pelo correio. 16 dentro das festas, havendo relatos até mesmo de divisão entre as pistas de dança (ABREU, 2005). Essa divisão chegou a um ponto que levou a um novo galho das festas, surgindo assim as private partys, ou PVTs8: festas menores, com um público restrito, sendo divulgadas através da política do segredo, seja por boca-a-boca, ou em canais de comunicação exclusivos (ABREU, 2005). Por mais que essas private parties tentassem resgatar alguns ideais das primeiras festas de trance no Brasil, a ideia do seu surgimento é higienista, preconceituosa e racista, pois seu intuito é afastar os “cybermanos”, as “pessoas feias” (ABREU, 2005). As private parties vão aumentando e ganhando visibilidade com a ascenção do mercado de música eletrônica, misturando tribos urbanas9, ganhando um caráter cada vez mais híbrido até chegar aos modelos de festas que serão mais discutidas no trabalho, os festivais de música eletrônica da cultura trance (MOREIRA, 2014). 1.2 ATUALMENTE NO BRASIL Quando o movimento se insere no Brasil, se constrói em relação a toda uma condição sócio-cultural local. Nosso país é muito grande e de traços culturais variados (já sendo uma característica dos eventos o hibridismo). Isso reflete nas festas, cada lugar acaba por ter certas características próprias quanto ao evento, e consequentemente isso reflete na produção de pesquisas sobre o assunto. Muitas das pesquisas se delimitam em um espaço definido, como uma cidade ou estado, já que conforme o contexto mudam-se as políticas locais e culturais em relação aos eventos, sendo necessária uma atenção direcionada a essa questão. Alguns casos são o de Franco (2016), que analisa os processos de mudança da cena eletrônica de Brasília, Fontes (2011), que investiga discursos de frequentadores de um grupo online do Rio Grande do Sul, Neves (2010), que trabalha com a sociabilidade nas festas em Natal, Camargo (2008), cuja pesquisa de psicogeografia ocorre em Cuiabá, e Nunes (2010), com a questão afetiva e de juventude em Fortaleza. Mesmo em pesquisas que debruçam-se sobre festivais em 8 Do inglês significa “festas privadas”, mas elas não eram literalmente privadas. Havia venda de ingressos e bebidas; eram festas discretas com o intuito de não serem amplamente divulgadas. 9 Tribos urbanas, também chamadas de subsociedades, são constituídas de microgrupos que têm como objetivo principal estabelecer redes de amigos com base em interesses comuns. Essas agregações apresentam uma conformidade de pensamentos, hábitos e maneiras de se vestir. A expressão "tribo urbana" foi criada pelo sociólogo francês Michel Maffesoli. https://pt.wikipedia.org/wiki/Rede_social https://pt.wikipedia.org/wiki/Soci%C3%B3logo https://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_Maffesoli 17 locais dispersos, sempre ocorre um momento de descrição sobre esses espaços e suas peculiaridades locais. Atualmente no Brasil as megaraves têm aumentado. Inclusive, o país recebeu, durante dois anos seguidos (2015 e 2016), com expectativa de receber em 2020, um dos maiores festivais do mundo de música eletrônica geral: o “Tomorrowland”. Em termos de trance, nas praias paradisíacas da Bahia ocorre a Universo Paralello, um dos maiores e mais reconhecidos festivais do mundo, que acontece desde 1997 e recebe pessoas de diversos países, contando com 25 mil participantes e mais de 2 mil artistas. O Brasil é considerado um dos lugares em que mais cresce o público e mercado desse estilo musical (MOREIRA, 2014). Infelizmente essa não é a realidade dos eventos menores, que tentam manter a multiculturalidade, arte e principalmente a acessibilidade financeira (o que faz dos eventos menores muito mais diversos em público), não movimentando tanto dinheiro. Sofre-se uma grande proibição dos eventos nas esferas municipal e estadual, sem contar os embargos e repressões policiais que acontecem no dia ou durante o evento, fazendo os pequenos organizadores perderem dinheiro. Como exemplo disso temos o “Núcleo Alaye” de Limeira, festa que tinha como proposta a junção da cultura negra e nordestina com a cultura trance, e que por embargo da polícia no meio do evento, tomou grande prejuízo e teve que pausar as suas atividades. Várias cidades, estados e até mesmo países tiveram tentativas de proibir os eventos, porém, como é considerando anticonstitucional a proibição de manifestações culturais, não conseguiram aprovar a maioria desses projetos. Por conta disso, como solução, diversas instituições tentaram criar propostas de regulamentação dos eventos, criando exigências que tornam a festa praticamente impossível de acontecer. Como exemplo, podemos citar o Projeto de Lei nº 1089/2007 (anexo A), que ficou famoso e serviu de base para outros projetos, principalmente por um dos propositores ser o Sr. Flávio Bolsonaro, atual senador do Rio de Janeiro (eleito em 2018) e filho do presidente da república, e deputado estadual pelo Rio de Janeiro na época do projeto. Esse projeto de lei buscava a regulamentação dos eventos de música eletrônica no estado do Rio de Janeiro, propondo no máximo 6 horas de evento, presença da polícia militar dentro da festa, instalação de detectores de metais na entrada, solicitação de autorização por escrito 18 da Polícia Civil, Polícia Militar, Bombeiros, Guarda Municipal, Ministério Público Estadual, Prefeitura e Juizado da Infância e Adolescência, sem contar as multas altíssimas caso alguma dessas exigências não fossem cumpridas. Essas imposições fariam com que as festas tivessem custos altíssimos para produção e consequentemente para o público, além de deturpar diversas características essenciais da festa como o tempo de duração, a presença de crianças, ambiente amigável e confortável (visto que a presença da polícia modificaria isso). Muito mais do que uma lei afirmativa de promoção dos eventos, tal lei se constitui como um verdadeiro ato proibitivo. Esse projeto foi feito com a justificativa da morte de um jovem de 16 anos por consumo excessivo de drogas. Outros exemplos encontramos logo aqui perto, já houve projetos de lei com a ideia de proibir/regulamentar raves em Limeira, São José dos Campos, Valinhos, Campinas, São João da Boa Vista, entre outras cidades. Outro ponto importante é que a tensão de classes ainda é um grande problema dentro dos eventos. Os “cybermanos” hoje são conhecidos como “Bonde da Oakley” (por conta da marca de roupas e acessórios frequentemente usada pelo grupo), grupo normalmente composto por jovens negros de renda mais baixa. Ocorrem diversos discursos discriminatórios contra essas pessoas, eventos onde eles comparecem são considerados eventos “mal frequentados” e até mesmo organizações de eventos colocam em suas listas de proibições adereços da Oakley. Por mais que durante o evento se forme um novo lugar, uma nova comunidade com estrutura própria, as estruturas sociais ainda estão impregnadas no nosso corpo e são facilmente vistas dentro das dinâmicas dos eventos, seja na questão organizacional, ou dentro das relações dos participantes. Felizmente, pautas como o racismo, feminismo, elitismo e até apropriação cultural começaram a aparecer nos eventos, tanto de modo informal quanto por espaços organizados pelo próprio evento, trazendo novas discussões e possibilidades de mudança na cena. Esse é mais um indício de que o trance vai muito além das festas, implicando a vida daqueles que elas envolvem, e é justamente esse engajamento com a existência que queremos aqui chamar à pauta da pesquisa! 1.3 CONTRACULTURA 19 Por suas múltiplas expressões culturais e artísticas, as festas e festivais podem ser consideradps contestadores do sistema vigente, sendo muitas vezes o trance definido como um movimento de contracultura (SILVA, 2005), principalmente no seu período de início. Atualmente os debates caminham para várias direções, trazendo diversos pontos diferentes quanto a essa questão. Alguns autores analisam o evento como uma forma de normatização e controle do corpo, colocando esse movimento como um fenômeno de massa, como exemplo principal que mais me instigou temos Camargo (2008), que aposta nas questões de normatização, alegando que o evento é mais um espaço de disciplinação e elitismo (principalmente pelas questões de acesso financeiro), que cria novos padrões de identidade para serem alcançados e por conta disso não seria uma contracultura. E também Posi (2005) que analisa o movimento trance do contexto universitário e que alega que a festa está “em consonância com a sociedade de consumo” (p. 110) e que seria um espaço de fuga da realidade. Alguns autores como Moreira (2014), Nunes (2010), Nascimento (2006) e Neves (2010) apostam nas potencialidades dos eventos, como uma forma de viver a dança, arte, corpo e cultura, repensar espaços e se tornar parte disso como uma forma de resistência. Desse autores me amparei muito em Moreira (2014), que fez uma historiografia da cultura trance dialogando com diversos autores sobre suas características pós-modernas, suas efervescências, efemeridades e lutas, também apostando no evento como uma resistência subversiva. Não como uma prática que se encontre dentro das estruturas, mas entre elas. Por isso muitas vezes não seja vista como contracultura, por serem “estruturas arcaicas que se revitalizam a partir do desenvolvimento tecnológico”; dentro de uma lógica progressista de cultura, as festas “foram sufocadas por não corresponderem aos ideais desse progresso” (MOREIRA, 2014, p. 144). Ainda existe um terceiro grupo que vive sob o questionamento de ser ou não um evento contracultural e que explora esse limiar, como Cavalcante (2005), que discute em suas considerações finais justamente essas embates sem chegar a uma resposta, e também Abreu (2006; 2010), com seus trabalhos “Raves: encontros e disputas” e “Experiência rave: entre o espetáculo e o ritual”, que já evidencia nos temas os “entres”. 20 Dentro deste trabalho não nos interessa muito definir se o evento é uma contracultura ou não, visto que a cartografia não tem essa intenção. Até mesmo porque diversas leituras de contracultura as colocam como um movimento que aconteceu no passado e não caberia uma leitura dessa na atualidade. Porém, essa é uma questão trabalhada em diversas pesquisas. Quase todas as produções acadêmicas que usei sobre a temática das festas trance tentam discutir sobre as questões contraculturais do evento. Aqui apresento um pouco desses diálogos pois demonstram as diversas perspectivas e discursos sobre as festas, colocando em pauta todas as suas contradições. 21 2 SUBJETIVIDADE EM MOVIMENTO NAS FESTAS Janela sobre o corpo A igreja diz: O corpo é uma culpa A ciência diz: O corpo é uma máquina A publicidade diz: O corpo é um negócio O corpo diz: Eu sou uma festa (Eduardo Galeano) Assim como neste excerto de Galeano, citado acima, esta seção gravita ao redor do “corpo”. Para tanto, busca por operadores teóricos que nos convide a pensá-lo como festa, isto é, como multiplicidade e que, portanto, não se fie pelo enfoque da igreja, da ciência, da publicidade, ou de qualquer outra instituição que pretende representá-lo de uma certa ordem e em uma certa medida. O múltiplo é pleno gozo... acontecimento... devir! E onde se encontra o múltiplo? No “estar sendo” da experiência... quando em ato... Nas entrelinhas dos discursos identitários e do enfoque das representações que organizam a linha do tempo de nossas existências. E que linha do tempo é essa? Acompanhem comigo: antes mesmo de nascer, já temos nome, gênero, classe social, desejos de nossos pais sobre nós. Nascemos, crescemos, vamos para a escola. Ali aprendemos sobre as matérias, mas também aprendemos a sentar, a olhar para frente, respeitar o professor, o momento de falar, aprendemos o horário do intervalo pelo sinal, que também é o horário de comer. Durante a infância brincamos de boneca, de carrinho, de casinha, de salvar o mundo, de vida de “gente grande”. Na adolescência começamos a pensar o que queremos fazer da vida ou simplesmente pensar em trabalho (ou começar a trabalhar). Começamos a olhar algumas pessoas com interesses diferentes, o corpo começa a mudar, aparecem várias sensações confusas. Muitas vezes estamos insatisfeitos com os nossos corpos e com quem nós somos, vivendo uma espécie de limbo estranho da vida. Depois trabalhamos, pensamos em dinheiro, juntamos dinheiro, compramos, compramos roupas, acessórios, viagens, tecnologias. Sonhamos com o carro próprio, para depois pensar a casa própria. No trabalho nos importamos: será que 22 estou sendo bom profissional? Será que estou no ápice de minha vida? Será que é isso mesmo que eu quero? Ao mesmo tempo pensamos em achar um “par de vaso”, namorar, noivar, casar, constituir família. Arranjamos um cachorro e então podem vir os filhos, os filhos que já possuem gênero, nome e classe social, e talvez alguns desejos que são transferidos pelos próprios pais. O corpo dá as caras com o passar do tempo, na pele as entranhas do relógio aparecem, a gente tenta fugir, vai a médicos, toma remédios, pensa na aposentadoria: será que vou dar trabalho para meus filhos? Nega a morte, se sente improdutivo. Ao longo do dia a gente acorda, muitas vezes com horário, com despertador assim como o sinal da escola. Escovamos os dentes com movimentos circulares em uma escova de design estudado para melhor acomodação da sua mão, com uma pasta de dente que diz ser a mais apropriada pela ciência após anos de estudos. Tomamos um café, principalmente um cafezinho preto (que é um clássico brasileiro), para dar aquela motivação ao dia e vamos para o trabalho. Trabalhamos, lidamos com pessoas, pensamos o salário, contabilizamos. Entre trabalho e a casa, às vezes nos dedicamos a algum hobby ou então alguma atividade física, afinal é necessário cuidar do corpo e da mente. Quando adoecemos, vamos ao médico, fazemos exames e tomamos remédio se necessário. Quando entramos em crise, vamos ao psicólogo, falamos, falamos sobre tudo isso, e ele nos ajuda a aprender a lidar. Ao longo do dia comemos, podemos optar por comer refeições porcionadas e equilibradas, 1200 calorias diárias preferencialmente, ou comemos o que dá tempo pela rua. Chegando em casa, abrimos o computador para olhar as redes, ou vemos alguma coisa na TV. Entre uma coisa e outra, propagandas daquele hotel maravilhoso ou um produto que você nunca imaginou que precisava. De noite nos preparamos para deitar, às vezes colocamos a cabeça no travesseiro e já pensamos no dia seguinte, às vezes mal conseguimos dormir e para isso tomamos um bom Rivotril receitado por algum psiquiatra. De repente, ufa! É fim de semana, então pedimos pizza, damos uma volta no shopping ou em um parque dependendo da preferência, às vezes arrumamos a casa. Podemos ir a alguma festa de aniversário, bar ou balada com os amigos, 23 bebemos algumas cervejas. E quando dá, nas férias do trabalho tentamos viajar, muitas vezes nos deparamos com lugares lotados de pessoas fazendo a mesma coisa. Você provavelmente deve ter se identificado com pelo menos algumas das situações descritas na linha do tempo acima. A nossa vida é organizada por linhas do tempo como essa, que nos colocam em relação com outras pessoas, com lugares, com objetos, até mesmo com valores e ideias. Pois bem: essa dinâmica relacional nos coloca em jogo com a vida, produzindo-a, em última análise, e, em meio a esse jogo, se evidenciam relações de poder. E que relações de poder são essas? Muitas vezes quando imaginamos poder exercido sobre nossos corpos imaginamos uma ideia repressora, que deixa nosso corpo imobilizado, mas Foucault trabalha essa ideia de outra forma. Ele apresenta o poder como algo que coloca a produtividade do corpo em cena. Na nossa sociedade tão ativa, de tanta produção, mercado, compra, movimento, do que valeria um corpo inerte? Então o poder investe em criar corpos que produzem (MCGUSHIN, 2011). Assim, no bojo dessa produtividade posta em cena, tendemos a adentrar no fluxo da vida normalizada, que, por sua vez, nos faz ver o caráter pronto da vida, percebido em nós como algo dado e permanente que reclama por processos de adequação e obediência. Como apresenta McGushin (2011, p. 173): Esse caráter pronto da vida vem do que Foucault chama de poder disciplinar ou governamentalidade. Ao passar por todas as instituições (escolas, locais de trabalho, lares, agências governamentais, consultórios médicos, locais de entretenimento, etc.) que dão forma à minha vida, eu me encontro apanhado em uma intrincada rede de compulsão e escolha, desejo e necessidade. Eu interajo com especialistas e autoridades que estão aí para me ajudar a tornar-me um membro bem-ajustado, feliz, saudável e produtivo da sociedade. Psicólogos e médicos, por exemplo, têm resolvido cuidadosamente todos os estágios minuciosos do desenvolvimento psicológico e físico, e têm inventado instrumentos maravilhosamente precisos para medir nossas vidas e nossas subjetividades em termos desses estágios. O mercado e a indústria de entretenimento têm trabalhado arduamente para construir um mundo de comodidades que nos ajudam a conhecer e expressar nossas verdadeiras subjetividades a partir de produtos e marcas que consumimos, da música que ouvimos, dos filmes que assistimos. Essas indústrias, autoridades, peritos e instituições me orientam empurrando-me para descobrir, maximizar e expressar-me a mim mesmo: “A principal função do poder disciplinar é ‘treinar’ [...]. A disciplina ‘faz’ indivíduos” (FOUCAULT, 1979, p. 170). Todas essas autoridades e instituições me treinam para ser eu. 24 Mas será que só nos resta se assujeitar ao poder disciplinar? Será que somos apenas um depósito de disciplinas sem desejos próprios ou resistências? Será que nada podemos fazer ou sentir que fuja disso? Para responder essas questões, busco respaldo em Foucault, segundo o qual onde há relação, há o despontar de dinâmicas de poder que atravessam os corpos. Mas essa dinâmica não é sempre de assujeição, podendo ser também expressão de resistência, que não só se adequa mas que também produz vida em plenitude. É no bojo desta faceta produtiva que irrompe o corpo festa observado pelo poeta Galeano. Citando Teixeira (2006, p. 40): Há aqui uma característica do pensamento de Foucault que gostaríamos de ressaltar: a afirmação de que o poder deve ser visto como produtivo. Para o autor, tanto o indivíduo, como o conhecimento que deste advém, são produções do poder (Foucault, 2003a). O poder produz jogos de verdade e uma luta de forças na qual estamos colocados uns em relação aos outros, em posições estratégicas, mas nunca fora de relações de poder. Desta forma, o autor, mais do que nos mostrar sua capacidade de positivar as relações de poder, nos coloca a frente à valorização da resistência como forma de transformação social. Se o poder para Foucault é sempre produtivo, é exatamente esta característica que possibilitará aos indivíduos resistirem aos mecanismos coercitivos presentes nas relações que estabelecemos conosco e com os outros. A resistência surge exatamente onde ocorre uma captura e é sempre primeira: os seus efeitos fazem com que as relações de poder se alterem (Foucault, 1984a). Nota-se, portanto, que na perspectiva Foucaultiana onde há poder há também resistência. Os dois existem em relação um ao outro. Muitas vezes o poder é criado a partir de modulações das resistências e vice-versa; liberdade e poder são mutuamente constituídos. Se as relações de poder se alteram a partir das resistências que lhe opomos, e se a constituição da subjetividade é marcada pelas relações de poder que incidem em nossos corpos, estamos frente à ideia de uma subjetividade que se encontra em permanente processo (TEIXEIRA, 2006, p.41). E quando tangenciamos essa subjetividade em permanente processo? Quando em festa... onde sentimos o auscultar da potência de resistir! E Galeano nos dá a dica do “corpo festa”! Pois bem, é esse “corpo festa” que aqui nos interessa! Queremos vê-lo pulsar nos festivais de música trance... 25 Aqui, deste ponto, voltamos a atenção para nossas intenções de partida. Intenções que colocam em cena algo que aqui tensiona, forçando-nos a pensar. Ao vivenciar festivais de trance, observamos que tudo lá está em festa: o ambiente, a música, a dança, as relações, os encontros... São esses elementos em festa que aqui queremos colocar em pauta. Segundo Araújo (2014, p. 2), “cria-se o ambiente de uma vila temporária, onde os participantes podem conviver 24 horas por dia”. Pode-se perceber que, durante o período em que o evento ocorre, cria-se um mundo à parte, muitas vezes com regras, temporalidade e situações próprias. O evento muitas vezes é considerado uma desordem, levando a uma nova ordem, como um “espelho que reflete a situação complexa da contemporaneidade” (NASCIMENTO, 2006, p. 160), sendo uma potência de produção de outras subjetividades, muitas vezes diferente das que vivenciamos no cotidiano, descritas no início deste capítulo. As restrições que nos são colocadas na vida não são metafísicas, mas sim historicamente dadas, então são restrições que podem ser superadas (MAY, 2011, p. 101). E pensando que para Foucault “a subjetividade não é alguma coisa que nós somos; é uma atividade que nós fazemos” (McGushin, 2011, p. 176), ela é relacional, dinâmica, fluída; um devir. Dentro dessas ideias, encontro a questão deste trabalho: de que forma os festivais de trance podem nos levar a outras produções de subjetividade mais potentes e resistentes, visto que estes colocam o corpo em jogo em outras experiências (e aqui experiências são lidas como acontecimentos, afetos), em outros fazeres e práticas? “O corpo diz: Eu sou uma festa”. Os ravers dançantes anseiam outros movimentos de vida, em seus discursos falam sobre liberdade, de se conhecerem, e sentirem quem são. Mas no fundo isso tem relação com o que estamos fazendo: com as práticas, por intermédio das quais vamos nos constituindo, nos elaborando e nos modificando. É nesse contexto que deixamos de adotar uma compreensão essencialista, identitária e estática acerca da subjetividade, para pensá-la como reflexibilidade, isto é, como práticas: exercícios de si sobre si mesmo. É como reflexibilidade que o corpo é festa! É como reflexibilidade que nos colocamos em movimento! Criando-nos e diferenciando-nos na festa, que, em última análise, é a própria vida! 26 Não é algo essencialista, afinal, como dito, nenhuma das situações descritas no começo deste texto são naturais. Elas são produzidas e são móveis. Quando estou na festa e tenho essas novas sensações não quer dizer que eu me descobri ali, como se tivesse alguém debaixo de mim mesma a ser revelada. Na verdade eu me “criei” ali a partir da experimentação, eu estou em festa e sou festa. Para Foucault, a liberdade é uma questão de experimentação. Abrir um “espaço de liberdade concreta” não é descobrir quem podemos ser e então ir até aí; é tentar diferentes possibilidades para as nossas vidas, diferentes “transformações possíveis”, ver aonde poderiam levar. Viver livremente é experimentar consigo mesmo, nem sempre sabendo se você está se libertando das forças que têm o moldado, nem tendo certeza dos efeitos da própria experimentação. Trata-se de tentar criar uma vida a partir de um espaço de incerteza, tendo-se algum conhecimento de como tem sido feito ser (MAY, 2011, p. 109). Partindo dessa ideia acredito que as raves e festivais não podem ser lidos como um lugar de liberdade ou não liberdade, mas um lugar onde abre-se a possibilidade de experimentação, pois coloca o corpo em outras práticas. Não é à toa que o espaço em questão é cheio de contradições polêmicas, e vive entre capturas e resistências. No fundo a gente mira em algo que foge às normas, mas muitas vezes reproduz estruturas. Quando fazemos algo diferente nunca sabemos onde isso vai levar. Se construirmos histórias como as de Foucault, histórias que nos fornecem relatos de diferentes aspectos das forças que nos têm influenciado a sermos quem nos tornamos, então temos um conhecimento parcial de como chegamos a ser assim. A partir daí, podemos decidir quais dentre essas forças são aceitáveis para nós, e quais são, para usar o termo de Foucault, intoleráveis. (...) Ao procurarmos superar as forças intoleráveis, devemos experimentar quem poderíamos nos tornar, não sabendo inteiramente se estamos fugindo delas. Isso é algo que só podemos descobrir mais tarde, depois que os nossos experimentos estejam em andamento. Não somos, então, nem impotentes em face do que nos molda, nem certos de como e do que podemos fazer acerca disso. Estamos em algum lugar intermediário. É aí que a nossa liberdade repousa e, de fato, é isso que a nossa liberdade é (MAY, 2011, p. 109). Os festivais podem ser muitas vezes esse lugar intermediário para muitas pessoas, onde ocorre esse jogo de forças, e o corpo acaba por vazar em festa, criando novas formas de existir, formas mais artesanais e artísticas. Algo que Foucault chama de “Estética da Existência”, que seria a capacidade do indivíduo de constituir a si mesmo como uma obra de arte (FOUCAULT, 2002), “uma prática de 27 liberdade, um ‘voltar-se sobre si’ na tentativa de adquirir um estilo de vida próprio” (TEIXEIRA, 2006,p. 42), que envolve também uma dimensão ética e política da vida. E esse é um dos pontos centrais deste trabalho: que movimentos os festivais trance ajudam a compor na subjetividade daqueles que participam desse evento? Tal questionamento pretende se ocupar com a produção de subjetividade, compreendendo-a como devir, como potência em variação, que é viva e mutante, que busca linhas de fugas e que ousa se criar e se diferenciar continuamente a cada novo encontro, a cada nova relação de um corpo em festa consigo mesmo, com o espaço e com os outros. Ao focar no corpo em festa, queremos colocar em cena os movimentos de criação e resistência que vazam em meio às capturas. Assim, como aquilo que vaza, enquanto gozo, interessa desconstruir um certo imaginário extremamente negativo, acerca desses festivais de música eletrônica, de modo a evidenciar suas produtividades positivas, fazendo do próprio trabalho uma espécie de investigação- festa que busca pelas marcas de resistência desse movimento, sem se deixar capturar por seus discursos alienantes, tampouco pelas contradições moralistas e maniqueístas que insistem em rebaixá-lo. 28 3 DO TRANCE À INVESTIGAÇÃO Uma das motivações nessa pesquisa surge com as minhas experiências pessoais dentro dessas festas, como frequentadora de espaços como esse e ao mesmo tempo investigadora do corpo, o trance sempre me intrigou muito. Foi um fator muito importante no que diz respeito à conexão com meu corpo e mudanças na minha forma de ver o mundo, além de uma prática de autoconhecimento muito forte durante o ato de dançar e mergulhar na música. Frequento os eventos desde 2011, e não parei desde então. Foi pelo convite de amigos de faculdade que frequentei a minha primeira rave (como na maioria dos relatos dos entrevistados). Era uma festa que tocava todos os estilos de música eletrônica, inclusive o trance, e ocorreu aqui em Rio Claro. Na época estava começando a ter contato com as drogas e substância psicodélicas e com a ideia da psicodelia em si também, passo muito importante na minha vida, e na construção de quem sou e quem fui. Não sabia direito como seria ir para lá, meus amigos só sabiam narrar o quanto era bom, mas tinha algumas imagens negativas na cabeça, principalmente por conta da mídia. Resolvi ir só para conhecer; experimentar meus limites, talvez? Só sei que lá tudo parecia bem bacana! Dancei um bom tanto da noite, mas o momento que me mudou foi o nascer do sol, quando começou a tocar full on (um dos “estilos” de trance). Naquele momento, sentia o som bater no coração, as pernas flutuavam, meu corpo dançava como se tivessem fio de luzes saindo dos meus braços. Me entreguei à música... vi cores... vi mandalas, tudo isso de olhos fechados e corpo aberto ao devir... Só existia meu corpo, a música e todo o universo de possibilidades... Me entreguei de uma forma pra mim mesma, como nunca havia feito! A minha sensação era de estar em um castelo em cima das nuvens, eu tinha certeza que estávamos no céu! Até que teve um momento que saltei e quando encostei o pé descalço no chão, eu senti toda a unidade, todas as pessoas que estavam ali, como uma grande comunhão, como se todos os nossos corações estivessem conectados, como se toda a história e ancestralidade do mundo estivessem dentro de mim, e naquele momento eu descobri que estavam e que sempre estiveram! Pode parecer uma história meramente ficcional, um “fora-texto”, 29 absolutamente descabido aqui, mas que fala tão alto em mim que aqui pede passagem, com uma espontaneidade inconteste, mas foi um momento que mudou minha forma de ver festas, dança e ritos. A partir daí, comecei cada vez mais a mergulhar nesses territórios, colecionando histórias. Conheci diversos tipos de eventos, dos mais variados tamanhos e estilos, o discurso era sempre muito parecido, era sobre amor, liberdade e comunhão. Algo ali me instigava existencialmente, movendo-me a pensar. Figura 4 – Dançando (Biodelia, Rio Claro-SP) Fonte: Olhar Rastafari, 2019. Ao longo dos anos participando desses eventos e fazendo troca com pessoas em situação de afeição semelhantes, percebi que esse relato se torna recorrente, porém pouco investigado no que diz respeito à produção de conhecimento. Os relatos somente se fecham em conversas e espaços online, muitas vezes sem ter uma diálogo substancial do porquê dessa experiência mexer tanto com as pessoas, chegando até mesmo a modificar suas visões de mundo, expressas em seus modos de ser. Além dessas motivações de cunho pessoal, outras também me instigam à pesquisa e se relacionam às questões acadêmico-científicas. Como foi possível observar na pesquisa bibliográfica realizada para respaldar esse estudo, ainda há poucos estudos sobre eventos de música eletrônica. Não obstante, é crescente o 30 interesse, não só da juventude, como de todas as faixas de idade por essas manifestações, o que confirma a urgência por maiores estudos que possam refletir sobre esses fenômenos, que se modificam rapidamente pela plasticidade da música eletrônica e cultura tecnológica (CARVALHO, 1999). Ademais, convém observar que essa pesquisa soma-se à área de estudos da educação não-formal, na medida em que considera a festa trance como espaço informal de constituição e expressão dos indivíduos. Neste sentido, a reflexão acerca da experiência trance pode contribuir para um maior entendimento das necessidades e das questões da juventude atual, que não só amplia, como também aponta novos direcionamentos para as pesquisas educacionais. 3.1 DO TRANCE À PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO HUMANO E TECNOLOGIAS Nesta seção, interessa-nos explorar esta temática dentro de um programa de pós-graduação, cujo nome é Desenvolvimento Humano e Tecnologias (DHT). Convém observar, primeiramente, que se trata de um programa que, como o próprio nome sugere, pretende tangenciar questões referentes ao desenvolvimento humano (DH). De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pensar o DH significa focar em “um processo de ampliação das escolhas das pessoas para que elas tenham capacidades e oportunidades para serem aquilo que desejam ser” (PNUD BRASIL, 2019). Baseando-se nessa definição, é possível observar que o DH se relaciona com o desenvolvimento pessoal, isto é, com a construção das identidades, portanto, propõe projetar uma visão mais ampla e complexa acerca do sujeito, que considere não apenas questões formais, objetivas e instrumentais, mas também, e principalmente, questões intensivas, referentes à sua subjetividade, desejos e vida. Aprofundando ainda mais a localização desta pesquisa, convém observar que ela se encontra, mais especificamente, na linha de pesquisa de “Tecnologias, Corpo e Cultura”. Com essa inserção, torna-se um pouco mais claro o cabimento de nossa pesquisa dentro do programa DHT, uma vez que falar de trance implica em falar também de um movimento constituído na interface entre corpo, tecnologia e cultura. 31 Para uma localização ainda mais precisa de nosso trabalho, faz-se necessário um melhor entendimento acerca da noção de “tecnologia”, pois reside justamente aí o diferencial de nossa pesquisa dentro do contexto desse programa. De maneira geral, quando se fala em tecnologia, se pensa em uma relação instrumental com algo externo ao corpo, que se projeta com uma função estritamente utilitária. Não é essa noção tecnológica que nos interessa! Para deslocá-la, buscamos respaldo na ideia de “tecnologias de si”, em Foucault. Segundo esse autor, tecnologias de si referem-se a certos modos de modificação e treinamento dos indivíduos, que os permitem efetuar “com seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade” (FOUCAULT,1982,p. 323-324). Ou seja, nossa noção de tecnologias quer fazer ver os modos por meio dos quais os sujeitos se autocompõe dentro de um determinado contexto espaço- temporal. Ademais, convém salientar também que o programa DHT propõe pensar ações interdisciplinares. Segundo Japiassu (1976), pensar essa modalidade de ações implica em pensar nas trocas entre especialistas e “no grau de integração real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa” (p. 74). Isso significa dizer que a interdisciplinaridade implica, senão em uma dissolução dos muros, ao menos em uma dinâmica mais flexível das fronteiras que separam este daquele conhecimento, na busca por novas pragmáticas. Portanto, em nome dessa interdisciplinaridade, é preciso pensar também que tecnologia não tem apenas uma função instrumental, mas, também, uma função ética, estética e existencial, como quer chamar à atenção nossa pesquisa. E como vimos, ao longo da realização das disciplinas do programa, nem sempre é fácil promover esse tipo de ação interdisciplinar! Isso porque tendemos a pensar “dentro das caixinhas”, tendo visível inabilidade para pensar fora delas. O trance pode ser um convite pra pensar fora da caixa... Um convite para buscar outras maneiras de expressão interdisciplinar... 32 Um convite que reclama pelo corpo, e pelas technés nele expressas que nos instigam a pensar! 33 4 METODOLOGIA Primeiramente realizamos uma pesquisa bibliográfica, por meio da qual verificamos o estado da arte dos estudos sobre festivais de música eletrônica já realizados. Por meio do rastreamento dessas obras, foi possível compor um quadro teórico, que teve grande utilidade, tanto para situar nosso estudo nas áreas de conhecimento que se interessam por essa temática, quanto para movimentar o exercício da reflexão que se desdobra ao longo do percurso. A pesquisa de campo foi realizada a partir dos princípios da pesquisa- intervenção. A pesquisa-intervenção se enquadra no contexto das pesquisas participantes/participativas, nas quais se evidencia um aprofundamento da “ruptura com os enfoques tradicionais de pesquisa” e ampliação das “bases teórico- metodológicas das pesquisas participativas” (ROCHA, 2003, p. 67). De modo geral, as pesquisas participativas: rompem com a lógica hegemônica do positivismo, desestabilizando o mito da objetividade e da neutralidade na produção de conhecimentos; propõem outras possibilidades de articulação entre teoria e prática e entre sujeito e objeto nas investigações; ressaltam que a ação do pesquisador também modifica o objeto estudado, uma vez que ele também está presente na investigação e, portanto, também é coparticipante deste “processo de diagnóstico da situação-problema e da construção de vias que possam resolver as questões” (ROCHA, 2003, p. 66). Para tanto, buscamos respaldo teórico-conceitual e metodológico na Cartografia..A perspectiva cartográfica permite pesquisar sem afirmar a posição hierárquica do pesquisador frente a seu objeto de pesquisa. Neste sentido, a ação investigativa não pesquisa “sobre alguém, mas com alguém, ou algo” (PASSOS, et al., 2009, p. 135). Assumir esse tipo de investigação implica na necessidade de abandonar, ou ao menos questionar, a relação de oposição e assimetria que localiza e distingue o pesquisador do pesquisado, em função da instalação de outra relação investigativa, que pretende ser mais horizontalizada, de modo a dar vazão a outras dimensões de conhecimento sobre a experiência pesquisada. 34 Essa outra possibilidade investigativa só se instala em um clima de empatia, entusiasmo e informalidade entre os pares da pesquisa, que dissolve a neutralidade e imparcialidade do pesquisador, despojando-a em uma ação investigativa caracterizada por mútuas trocas e plena coletividade (PASSOS et al., 2009). Assim, a perspectiva cartográfica permite que possamos falar de dentro da experiência que pretendo pesquisar (festas/festivais trance) e não sobre ela. O exercício investigativo coloca pesquisadora e seus pesquisados em um mesmo plano de composição da realidade estudada. Surge daí a visibilidade implicada, ou seja, a possibilidade de uma escrita da pesquisa constituída como efeito de composição, forjado entre quem pesquisa e seu território investigativo (PASSOS, et al., 2009). Desta forma, como visibilidade implicada, pretende-se mapear e descrever movimentos das arte tecnológica que ocorrem nas festas de música eletrônica que serão pesquisadas e perceber possíveis extensões desses movimentos na constituição da subjetividade de seus frequentadores. 4.1 PROCESSOS DE COMPOSIÇÃO DA PESQUISA Na pesquisa de campo, foram selecionadas festas de música eletrônica, realizadas no estado de São Paulo. Dentre essas festas, interessou-nos, particularmente, aquelas que se caracterizam por veicular a experiência trance, ao oportunizar múltiplas interações entre os frequentadores e as artes tecnológicas que compõem essas festas. A participação nesses eventos ocorreu tal como uma frequentadora. Assim, demarcaram-se as especificidades de uma ação investigativa situada no contexto das pesquisas-participante. Durante as festas de música eletrônica, foram realizadas entrevistas individuais ou em grupos com outros participantes desses eventos. As entrevistas e rodas de conversa foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas integralmente, para efeito de análise. Convém notificar que existia um roteiro semiestruturado (anexo B), porém os diálogos poderiam seguir caminhos diferentes conforme o que fosse surgindo ao longo da conversa. Também foi feito um diário da pesquisadora, onde foram anotadas diversas reflexões e questões que foram surgindo ao longo do trajeto da pesquisa, 35 principalmente em campo, além de recortes de cenas e indagações sobre o corpo cartógrafo que vive a pesquisa. A função desse diário vem na ideia de “o trabalho de investigação ganhar função de dispositivo, não propriamente para concluir o trabalho ou apresentar seus resultados finais, mas como disparador de desdobramentos da pesquisa” (KASTRUP & BENEVIDES, 2009, p. 173). Posteriormente, na ocasião da análise dos dados, esses registros de diário também serão considerados, com vistas à produção das análises desta pesquisa. A ideia principal era que esses momentos de imersão em campo ocorressem da forma mais espontânea possível, para que assim pudéssemos capturar as intensidades que passavam na relação dos frequentadores com a experiência trance que estavam vivenciando10. A estratégia pensada para fazer com que o espaço das entrevistas fosse confortável, espontâneo e condizente com os eventos de música eletrônica foi transformá-lo em algo que fazia parte do evento e não à parte dele. Como todos somos coautores do evento (ABREU, 2011), a ideia foi transformar o espaço em mais uma possibilidade de experiência e criação, sendo mais condizente com a cultura escolhida para investigação. Outro ponto importante quando pensei nesse “cantinho”, foi de que forma a partir daquele local eu poderia estar em ação social e política naquele território, já propondo uma espécie de troca. Então também resolvi tornar aquele espaço em uma espécie de divulgação de produção de conhecimento acerca da temática do trance e de diálogos subjacentes. Para isso selecionei materiais dos mais diversos como livros, revistas, zines, artigos, teses e dissertações para colocar em exposição nesse espaço, o que muitas vezes gerava bastante atenção das pessoas que passavam, muitos parando, fazendo algumas perguntas e pegando algum desses materiais para ler em algum canto. Para isso foram feitos levantamentos de pontos de grande passagem de pessoas, onde foi montado uma espécie de estande chamado de “Cantinho de trocas (d)e saberes” (figura 5), com placas decorativas e exposições de materiais usados na investigação, esperando incitar o frequentador do evento a uma procura/pergunta ativa acerca daquele espaço. Assim, nesse momento era 10 Aqui ressalto a justificativa de ter escolhido o momento das festas para as entrevistas e não o momento posterior. O objetivo era capturar as intensidades e sensações do momento, um olhar do presente dos afetos e não uma memória destes. 36 explicada a pesquisa e feita a proposta de entrevista. Essa ideia buscava a quebra da dinâmica do pesquisador que “caça” o pesquisado, colocando o entrevistado como o ativo e interessado na situação. Figura 5 – Cantinho de troca (d)e saberes (Gaia Connection, Lagoinha – SP) Fonte: Matheus Silva, 2019. Montar o estande em um primeiro momento pareceu uma ótima ideia, porém ao longo da sua montagem enfrentei algumas dificuldades. Primeiramente os eventos envolviam camping, logo precisei readequar a minha bagagem para poder carregar tudo o que necessitava: os livros, as cangas, os cartazes, a decoração. Ao fazer a busca do espaço, foi extramamente difícil achar lugares onde havia grande passagem de pessoas e ao mesmo tempo o som não atrapalhasse as gravações, inclusive em diversos eventos menores somente usei o diário da pesquisadora porque se tornava impossível achar um espaço onde conseguisse usar o gravador. Em alguns eventos foi quase impossível achar áreas sombreadas, de modo que acabei montando o espaço no sol algumas vezes, o que também atrapalhou a parada de algumas pessoas. O envolvimento das pessoas também se modificava conforme os eventos. Em eventos onde o enfoque era maior na música e havia menos intervenções culturais, consequentemente havia menos pessoas interagindo com o espaço. Já 37 eventos onde havia uma grande predominância de oficinas e intervenções culturais, havia uma maior interação e interesse dos participantes. Alguns olhavam o espaço com um certo receio e estranheza, quase que pareciam possuir medo dos livros e escritos, mas muitos chegavam com muita curiosidade. A maioria das pessoas interagiam com o material, pediam para ver algum livro/revista/zine na sombra, inclusive aconteceram de alguns desses materiais não serem devolvidos. Em um dos eventos até mesmo crianças vieram até o espaço (figura 6), primeiramente para pedir canetas e folhas e acabaram por perguntar o que estava acontecendo ali e por que havia “papéis falando sobre leis e outras coisas estranhas”. Com a chegada da pessoa no estande, falava um pouco do que tinha ali, explicava sobre a pesquisa e fazia a proposta da entrevista. A maioria das pessoas aceitava participar, foram poucas pessoas que negaram, e as poucas que negaram ainda assim continuaram pelo espaço. Figura 6 – Crianças no espaço (Reveilloz, Lagoinha – SP) Fonte: Arthur de Lima, 2019. Durante o processo da entrevista, a maioria dos ravers parecia se sentir confortável. Em alguns senti certa timidez. Quando a entrevista acontecia em grupos maiores a conversa fluía com mais facilidade. A prenseça dos amigos parecia dar mais confortabilidades para as pessoas e em alguns casos eram trazidas diversas questões que os próprios grupos já haviam conversado e levantado anteriormente. Quando parava de gravar parecia que sempre tinha faltado algo ao fim, e a conversa acabava por continuar com o gravador desligado. Quando tudo acabava, as 38 assinaturas do TCLE11 aconteceram sem problemas, mas, para a minha surpresa, o registro das formalidades se constituiu, também, para além do contexto formal. Nas entrelinhas, nas margens dos termos e no branco e pálido do verso da página, vi se constituírem inesperadas expressões de carinho... de intensidades... recados carinhosos e agradecimentos pela pesquisa que estava fazendo. Muitos deles me abraçavam ao fim e me agradeciam por estar fazendo algo bacana pelo movimento trance (figura 8). Figura 7 – Raver no espaço (Reveilloz, Lagoinha – SP) Fonte: Arthur de Lima, 2019. Figura 8 – Abraço de participante (Reveilloz, Lagoinha – SP) Fonte: Arthur de Lima, 2019. Nesse processo de pensar de que forma me colocaria como pesquisadora no evento, compondo com ele, surgiu outra questão que me foi muito importante: o corpo que vai a campo. A nossa formação, tanto escolar quanto acadêmica, ainda é 11 Esses procedimentos aqui definidos foram devidamente aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, do Instituto de Biociências da Unesp, Campus de Rio Claro. Dados do CEP: n. CAAE: 87648018.9.0000.5465, data da aprovação do parecer pelo colegiado 27/06/2018. 39 muito pautada em uma ciência cartesiana e positivista, e essa ideia de pesquisa fica corporeificada e automática (KASTRUP, 2007). Como exemplo disso, compartilho esse trecho escrito por mim no meu diário da pesquisadora em meu primeiro campo, onde achei um lugar onde podia observar as pessoas da pista de dança atrás de uma grade: EU, a grade, a pista de cima... O RETRATO PERFEITO PARA PESQUISAR, ANALISAR E NEM SER OBSERVADA... Meu corpo, meu pensamento agiram cartesianamente e eu nem percebi. Senti quase como quem observava um zoológico, depois que me dei conta do automático positivista que me habita. As pessoas não eram animais pra eu observar daquele jeito (Trechos de diário da pesquisadora em Biodelia Private). Observe que se instala, no fragmento de diário acima, uma relação bastante fragmentada e dualista, na qual me distancio para constituir uma visão mais clara e coesa acerca do “objeto” pesquisado. O problema desta instalação é que não me implico! As grades me impedem, me forçam a apenas olhar, escrutinar... Uma alteração desse olhar, portanto, era necessária para implicar meu corpo no trance! De nada adiantaria mudar a metodologia se a forma de ir a campo e investigar os processos continuassem com a mesma lógica corporal que antes, só estaríamos dando outro nome para um mesmo tipo de pesquisa. Logo quando resolvemos optar por uma metodologia como a cartográfica passamos por um processo de transformação como pesquisador para ficarmos alinhados com a nossa proposta. Primeiramente é necessário ajustar a nossa atenção de uma forma que envolva o corpo inteiro imerso no território. Para isso é preciso mudar para uma atenção aberta e flutuante, “que presta atenção em tudo” com a mesma intensidade, tanto visualmente quanto sensorialmente. Uma atenção de um corpo que só “deixa chegar” o que está ao seu redor, desfocando e fugindo de uma atenção seletiva, ou seja, aquela atenção que busca algo ativamente (KASTRUP, 2007). Para isso acontecer também foi necessário outro passo, o abandono das hipóteses. Eu como frequentadora já tinha várias verdades próprias sobre aquele espaço que poderiam me levar a uma seleção prévia da atenção “levando a um predomínio da recognição e conseqüente obturação dos elementos de surpresa presentes no processo observado” (KASTRUP, 2007, p. 17). Ou seja, se fez necessário me desvencilhar de ir para campo com uma ideia já fixa do que se procura, pois essa ideia acaba por direcionar a atenção para procurar aquilo que 40 gostaria, ao invés de abrir para todas as outras possbilidades que estão lá e não foram percebidas antes. Isso foi necessário para pensar numa investigação rizomática, uma investigação platô, buscando estar ao meio conectada com todas as potências múltiplas daquele espaço, não em uma linearidade de quem já vai com um fim específico onde chegar. “Um platô está sempre no meio, nem início nem fim” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 44). Com essas pistas que me foram dadas, eu pude ir construindo, ao longo da pesquisa, outro corpo, outro devir-pesquisadora, que em campo observa sem saber onde quer chegar, mas que por momentos algo salta aos olhos despreocupadamente, sem compromisso. Às vezes passa, às vezes se torna mais intenso e me atento, e busco refletir “o que está acontecendo aqui?”. E por mais que já frequentasse o evento por anos, é como se tivesse mergulhando em um espaço estranhamente familiar. Com todos esses processos, passamos a produzir os dados, não coletá-los, haja vista que os dados não são descobertos, mas expressos em um plano de composição da realidade acerca daquilo que já estava ali o tempo todo, só precisava de um outro processo investigativo para ganharem espaços no sulco da escrita, em um processo inventivo, que repensa as políticas cognitivas, colocando o pesquisador como agente social em meio aquele território12. A partir dessa produção de dados (que ocorrem nas entrevistas e diário da pesquisadora), foram investigadas as formações discursivas13 que passam em meio à experiência multimídia dos frequentadores, buscando entender o que levam os sujeitos a frequentar espaços como esses, e de que modo as experiências que passam em meio a essas movimentos trance podem modificar os modos de ser dos indivíduos, inclusive fora do espaço e do tempo da festividade, ou seja, na sua vida cotidiana. Para isso analisamos os discursos e práticas observadas nas temáticas que surgem nos diálogos e intensidades em relação ao evento e as produções de subjetividade. 12 A proposta da produção de dados surge do texto “Cartografar é acompanhar processos” de Barros e Kastrup (2009). 13 “No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (FOUCAULT, 2012, p. 47). 41 4.2 FESTAS E ENTREVISTAS Ao longo da pesquisa fui a 8 festas, sendo estas: a) Black Out (2-3/02/2019) – Rio Claro/SP; b) Biodelia Private (20-21/04/2019) – Rio Claro/SP; c) Biodelia Uni.Verso (1-2/06/2019) – Rio Claro/SP; d) High Paradise (12-14/07/2019) – Altinópolis/SP – Vale das Grutas; e) Black Out Reloading (28/07/2019) – Rio Claro/SP; f) Gaia Connection (06-9 /09/2019) – Lagoinha/SP – Aldeia Outro Mundo; g) Trance de Rua – RAVEindicação da liberdade (20/10/2019) – São Paulo/SP – Galeria Olido; h) Reveilloz (27/12/2019 a 04/01/2020) – Lagoinha/SP – Aldeia Outro Mundo. Ainda existiam planos de ir a mais algumas, mas infelizmente por conta da pandemia não foi possível. A maioria das festas se concentraram em 2019, visto que parte de 2018 a pesquisa estava passando pelo Comitê de Ética, impossibilitando entrevistas nesse meio tempo. Ao mesmo tempo só passei a receber bolsa ao fim de 2018, o que me trouxe maior mobilidade para ir as festas visto que os custos são altos, principalmente para as que são longe e de longa duração. Porém, frequento raves desde outubro de 2011. Ao longo desses anos fui às mais variadas festas, sendo essas experiências atravessadas ao longo da minha pesquisa também. As festas de maior impacto neste trabalho foram as que ocorreram na “Aldeia Outro Mundo” (Gaia Connection e Reveilloz), contando com cerca de 5 mil participantes. O lugar é uma espécie de comunidade alternativa com estrutura para festivais. O idealizador do espaço se inspirou nas maiores festas do mundo para a montagem da propriedade. Tudo é montado de bioconstrução e pensado de forma sustentável. Além disso, os produtores todos moram no do terreno; é super interessante caminhar pelo espaço e se sentir praticamente em uma cidade autônoma. As pessoas envolvidas na organização do evento possuem a ideia de mudar a cena eletrônica e apostam em se envolver com a pequena cidade de Lagoinha (normalmente as produções dos eventos se envolvem em diversos problemas com a 42 prefeitura, mas ali ocorre o contrário, a cidade adora a “Aldeia Outro Mundo”). Diversos eventos da cidade acontecem dentro da propriedade como rodas de gestantes do SUS e visitação de escolas públicas (devido ao potencial de educação ambiental que o espaço proporciona), além dos moradores poderem entrar gratuitamente em todos os eventos. Em festas como Carnaval, Festa Junina e dia das crianças que ocorrem na praça de Lagoinha, os produtores da “Aldeia Outro Mundo” ajudam emprestando decoração, som, dando suporte estrutural. Além de tudo fazem questão de empregar moradores da cidade com carteira assinada durante os festivais e colocaram Lagoinha em cena internacionalmente visto que alguns festivais produzidos no espaço já possuem fama mundial. As festas dessa produção são extremamente pautadas na pluralidade cultural, possuindo uma área específica onde acontecem as oficinas, palestras e onde também fica a área das crianças. Ali pelo som ser moderado devido às atividades que acontecem, foi possível fazer entrevistas facilmente. A passagem também colaborava pois as pessoas que estavam por ali sempre estavam caçando algo para fazer, e ao se deparar com a montagem do cantinho acabavam parando e interagindo. Foram as festas onde eu fiz a maioria das entrevistas e onde as pessoas também estavam mais abertas à intervenção que estava propondo. Durante a Gaia Connection fiz somente um dia de entrevistas, já no Reveilloz foram três dias. A maioria das entrevistas ali aconteceram em grupos de amigos que paravam e foram conversas fluídas, sem contar que foi uma diversidade grande de pessoas entrevistadas em termos de idade, profissão, raça, gênero. A sensação é que toda a energia do lugar colaborava para o meu trabalho, ele simplesmente se encaixava no território. Além de tudo, durante o “Reveilloz” passei 8 dias no festival, o que te deixa muito mais imerso na experiência pela quantidade de dias, sendo onde aconteceu a maioria da produção do material do diário da pesquisadora também (esse material era por vezes escrito em um caderno que carregava comigo, por vezes gravado em áudio ou em vídeo e depois transcrito). Outra festa em que consegui fazer boas entrevistas foi a “High Paradise”, com cerca de 7 mil participantes, mesmo acontecendo em um terreno grande, que é na verdade um camping (recebe festivais conhecidíssimos há anos como o “Forró da Lua Cheia”). Foi difícil achar um lugar de passagem de pessoas onde tivesse pouco impacto do som, o que rendeu menos entrevistas. Ao mesmo tempo o evento era 43 mais focado no som e nas pistas de dança que em propostas multiculturais, a programação falava sobre oficinas, palestras, área kids, mas esses espaços sempre estavam esvaziados ou desorganizados. Parecia ser algo mais secundarizado dentro do evento, logo as pessoas se concentravam muito na pista de dança, ficando um pouco mais inacessível o diálogo. Já os eventos da “Biodelia” e “Black Out” eram muito menores, ocorrendo todos no mesmo sítio na zona rural de Rio Claro, o único que ainda “pode” fazer as festas na região. A maior festa tinha cerca de mil pessoas, já a menor não contava nem com 200 participantes. Por conta do espaço pequeno e som alto não havia possibilidade alguma de fazer entrevistas no decorrer do evento, contando somente com o diário da pesquisadora. As festas da “Biodelia” ao longo dos eventos traziam artistas para performaces e havia uma ou outra oficina. Também ocorria uma preocupação ambiental, você podia trocar um determinado número de garrafas vazias de água por uma cheia ou trocar uma garrafa cheia de bitucas por uma bebida. Já na “Black Out” haviam alguns artistas fazendo malabares, inclusive artistas de rua que trabalham em faróis de Rio Claro. Era perceptível que essas festas ao redor da cidade, que possuem inclusive ingresso mais acesível, eram festas muito mais heterogêneas em termos de participantes, principalmente no que tange às questões raciais. Ao mesmo tempo era um público muito mais jovem que das festas maiores, algumas pessoas pareciam inclusive serem menores de idade. Vale ressaltar que os artistas que tocavam nesses eventos eram da região. Contando com poucos DJs considerados “famosos”, essas festas acabam servindo de certa forma como uma alavanca para artistas independentes menores. Além de tudo esses eventos menores também contavam com artesões da região vendendo suas produções. Já o “Trance de Rua” é um evento que tem crescido nas áreas urbanas, normalmente são festas que acontecem em praças e espaços públicos, de forma gratuita, mas também podem acontecer em casas noturnas a preços baixos, já aconteceu alguns anos atrás em cidades da região como Rio Claro, Limeira e Araras, no interior de São Paulo, e tem aumentando em grandes centros urbanos do Sudeste, e principalmente do Nordeste. Neste caso aconteceu em uma sala dentro da Galera Olido, na República, em São Paulo. Também não foi possível fazer entrevistas, usando somente o diário da pesquisadora. Ali no meio da selva de pedra 44 se encontravam misturados todos os grupos possíveis: adolescentes, pessoas em situação de rua, usuários, idosos, hippies, artistas de rua. Foi bastante interessante poder vivenciar a experiência no meio da cidade. Mesmo que em parte das festas não tenha ocorrido a possibilidade de fazer as entrevistas, vale lembrar que pela cartografia toda a experiência atravessa a pesquisa. Ao longo dos campos tive a oportunidade de conversar com vários trabalhadores, participantes, produtores, músicos e levar isto de outras formas para o trabalho pelo meu diário da pesquisadora. Ao longo de toda a investigação entrevistei 23 pessoas, como já dito a maioria em grupos. As entrevistas aconteceram sem problemas, assim como toda a questão burocrática que as envolviam. A maioria das conversas tomaram seus próprios rumos conforme pontos levantados pelos participantes. Cerca de três das entrevistas foram um pouco mais engessadas e os entrevistados responderam de maneira mais direta e seca com respostas sendo somente “sim” ou “não” sem muitas explanações. Enquanto eu entrevistava as pessoas, sempre passavam outras interessadas no cantinho ou no que estava acontecendo, neste ponto foi essencial sempre ter amigos comigo, pois estes recepcionavam quem parava, explicando o que era aquilo, direcionando para os materiais, já que eu não podia pois estava ocupada entrevistando. Acredito que se o trabalho de entrevista fosse em equipe, eu teria conseguido alcançar um número bem maior de participantes, já que que o processo de receber a pessoa no cantinho, conversar, explicar, entrevistar, assinar o TCLE, agradecer e me despedir era um processo que demandava um bom tempo. Um fato curioso foi que eu mesma fui entrevistada para a minha pesquisa. Um amigo que estava me ajudando durante o processo de montagem do cantinho e organização das coisas perguntou se ele poderia me entrevistar. Disse que sim, ele seguiu o meu próprio roteiro semi estruturado e também colocou algumas questões a mais acerca do interesse dele no meu processo de pesquisa. E foi bastante curioso passar pelo processo desse outro lugar. Ao longo da dissertação, quando usar trechos das conversas, os entrevistados serão identificados por numeração para manter anonimidade conforme acertado com o comitê de ética, e eu sempre serei identificada pela letra Y. Ao fim dos trechos será descrito em que festa ocorreu a entrevista/relato. 45 5 EXPERIÊNCIA CALEIDOSCÓPICA Ao longo desse trabalho, passam-se inúmeras reflexões acerca da experiência trance. Nenhuma dessas reflexões, no entanto, pretende trazer uma representação cabal dessa experiência. Até mesmo porque não é a intenção representar o trance, mas compor com ele. Neste sentido, a compreensão não converge para um discurso unívoco, mas dispersa... vibra... cria fractais e compreensões que apontam para multiplicidades. Como colocar essa multiplicidade em palavras, sem limitar ou universalizar aquilo tudo? Sem encerrar, com palavras, o que insiste em se abrir, criar, diferenciar? Nos áudios das entrevistas realizadas em campo, encontrei uma resposta a essa questão! Quando interpelado sobre a experiência trance, um participante assim se manifestou: Uma percepção que eu tenho assim... É que eu gosto muito de ser uma pessoa de ter o que fazer no sentido, de tipo, preciso de enriquecimento ambiental. Saca? É uma coisa da vida que eu tenho percebido. Acho que é por isso que eu gosto de jogos e essas coisas, para me colocar em situações... diferentes. E que eu posso enfim, ahn, como posso dizer... caleidoscopizar as coisas que eu faço e falo, então tipo assim, estamos aqui, então ali oferece um espaço de yoga, então assim, o que seria um evento que eu estava acostumado a ir, seria um evento onde tem as músicas, e tem as pessoas, e fim. Eu acho que colocar essas coisas, essas tendas, essas interações, essas pessoas fazendo um lago, sabe? Isso me dá uma sensação de que estou vivendo no meu dia a dia com um monte de coisas para fazer, e isso me acalma, no sentido de tipo assim, eu penso “ai meu deus, o que será que vou fazer? O que será que vai ter para pra fazer aqui?”. Aqui eu consigo ter possibilidades de fazer as coisas. Acho que é um pouco isso, e foi isso que eu gostei muito no ambiente, no espaço. Não é simplesmente um palco com a música e lugar para dormir, não, dá para cozinhar, dá para nadar, dá para deitar, dá para ir discutir coisas e isso pra mim é simplesmente a perfeição. Adoro isso (Entrevistado 18 em Reveilloz). A experiência é caleidoscópica! Há algo mais múltiplo que isso? Essa alegoria poderia funcionar aqui, para dar visibilidade ao múltiplo, situando a pesquisa em um plano de composição com a experiência trance. E o mais interessante dessa alegoria é que o caleidoscópico faz verbo com a experiência trance, de modo a operar aí uma ação... de caleidoscopizar. Antes jogar com as possibilidades de inflexão desse verbo no infinitivo, é importante observar que a ação de caleidoscopizar, aqui proposta, é aviada dentro 46 de um contexto que entende a noção de experiência como acontecimento... como afeto... afetação. É a experiência ancorada nas ideias de Deleuze, é um momento presente vivido pelo corpo, um instante que se inscreve no corpo sem separá-lo da mente (SILVA, 2008). É desse lugar, onde um momento presente vivido se ancora no corpo que a ação de “caleidoscopizar” em múltiplas inflexões... convidando-nos a pensar. A esse entendimento de experiência, gostaria de acrescentar, também, o olhar presenteísta de Maffessoli (1996, 2004), ao pontuar que, na experiência, se insere uma urgência, que nos avisa que a vida vivida é a do agora, o que coloca em jogo uma certa intensificação do momento. Também chamo para composição uma passagem do texto “Notas sobre a experiência e o sabor experiência” de Larrosa (2002): “(...) o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. (...) O sujeito da experiência é um sujeito ‘ex- posto’”. É nesse plano de composição da experiência que ouso caleidoscopizar: verbo transitivo, que faz rizoma com o trance, forçando-nos a pensar na diferença... na multiplicidade do trance. Não é à toa que essa investigação se dá em cartografia pois as próprias características do evento expõem as potências das expressões culturais da modernidade. O evento é múltiplo, não possui centralidade, acontece nas minúcias com impactos individuais imensuráveis por meio da experiência. É uma mistura “de tudo um pouco” não traçando limites na sua criação e muitas vezes não é decodificável, mas se sente. Foi tentando expressar essa sensação, que escapa à organização dos sentidos, que a experiência da escrita dessa pesquisa foi traçando seus rumos... caleidoscopizando-se, a cada novo sulco de escrita. Antes de prosseguir na escrita, gostaria de convidar o leitor à um exercício caleidoscópico. Porém, como guisa a proposição desse exercício, pergunto, primeiramente: o que é um caleidoscópio? Essa pergunta objetiva, nessas alturas da escrita, pode ser interessante para nos convidar a pensar... para nos colocar em jogo fractal com a experiência trance. Caleidoscópio é uma espécie de tubo com espelhos dentro em posição que se refletem. Em seu interior são colocadas miçangas, pequenos objetos, vidros coloridos, mini flores, e conforme o movimento e a entrada de luz, esses espelhos vão refletindo infinitas formas, as imagens são 47 sincrônicas e mandaladas e a cada movimento se criam novas imagens. Além de tudo seu nome é originário de três palavras gregas: “kalos”, que significo belo ou bonito, “eidos”, imagem ou figura, e “scopeo”, olhar ou observar, assim, ficaria algo como “ver belas imagens”. A beleza que nos interessa aqui, no caleidoscópio, é aquela que opera uma certa atração irresistível por se diferenciar, sempre e a cada vez, a cada novo movimento. É essa diferenciação que aqui nos interessa... Quisera poder diferenciar... desorganizar seu entendimento... ultrapassar o arranjo sensorial já tão habituado a seguir os trilhos da coesão narrativa... Quisera poder caleidoscopizar sua leitura, de modo transformá-la em múltiplas imagens, que se movem e se transformam a cada novo movimento. Para tanto, proponho um exercício: Entre no link do vídeo a seguir: https://is.gd/experienciacaleidoscopica Permita-se deixar afetar por esse vídeo... Apenas observe os fractais se movendo... Formando imagens que se criam e se diferenciam a cada novo movimento... Se atente às suas sensações... O vídeo é longo... Você pode observá-lo o tempo que quiser... ... pular para outras partes... ... colocar uma música de sua preferência de fundo... ... ou usar o áudio do próprio vídeo... Nessas alturas, perceba se houve alguma alteração na sua percepção... Dentre os perceptos que te afetam, busque por aqueles que flutuam... Deixe-se afetar por esse nível perceptivo... ... pois é por meio dele que proponho pensar acerca da experiência trance, nesta pesquisa. 5.1 CALEIDOSCOPIZANDO O TRANCE O evento por sua estética já possui diversas afinidades com o caleidoscópio, mas está para além disso. Os festivais assim como o caleidoscópio são uma forma https://is.gd/experienciacaleidoscopica 48 de brincar com o movimento gerando diversas imagens-alegorias (que no caso são as experiências). Você nunca sabe o que vai acontecer em cinco minutos, ou no próximo dia, como vão ser os rumos do seu “rolê”, tudo é muito passível de mudanças, muitas vezes difíceis de prever. A experiência caleidoscópica é um ocorrido, acontecimento, uma imagem-sensação que se abre, se psicodeliza, em uma mandala, te dando possibilidades de fazer e experimentar as coisas de outras formas, como dito no relato evocado no início dessa seção. Neste sentido, o trance, como experiência caleidoscópica, carrega muito essa ideia da imanência14, do nômade15, haja vista que cada movimento é uma experiência-imagem que te leva a uma cartografia autoral, que nunca se sabe ao certo onde começa e onde termina, traçando um caminho próprio, que não pode ser pré-estabelecido, mas que está sempre em devir. Poderíamos dizer, portanto, que a experiência caleidospóica faz rizoma com aquilo que advém da percepção, afetando nossos sentidos... nossa capacidade de sentir e se relacionar com o mundo. Neste sentido, a noção de rizoma, em Deleuze e Guattari, se aproxima dessa experiência caleidoscópia aqui em pauta. Deleuze & Guattari, no primeiro volume da obra “Mil Platôs” (2019, p. 43), foram buscar na Botânica o termo rizoma, para situar uma modalidade do pensamento próxima a isso que aqui estamos chamando de experiência caleidoscópica. Segundo esses autores: [...] diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. [...] Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. [...] O rizoma é uma antigenealogia. É uma memória curta ou uma antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. São os decalques que é preciso referir aos mapas e não o inverso. Contra os sistemas centrados 14 Imanência refere-se a algo que tem em si próprio o seu princípio e seu fim, onde a existência não possui algum fim a ser alcançado e não vive em função de nada exterior. Ela opõe-se a transcendência. 15 O nômade está sempre em movimento, carrega uma ideia de fluxo, por conta disso está sempre se reinventado, criando novos territórios, e acaba por ser uma resistência, visto que não consegue ser capturado. 49 (e mesmo policentrados), de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, o rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, u