UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes – Campus São Paulo SIMONE SANTOS SOUSA DANDO CORPO À VOZ: Educação Somática na construção de uma proposta de preparação vocal pela experiência do corpo no âmbito do canto coral São Paulo 2021 SIMONE SANTOS SOUSA DANDO CORPO À VOZ: Educação Somática na construção de uma proposta de preparação vocal pela experiência do corpo no âmbito do canto coral Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música, com área de concentração: Música: processos, práticas e teorização em diálogos do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Música. Linha de Pesquisa: Música, Epistemologia, Cultura. Orientadora: Prof.a Dr.a Margarete Arroyo Coorientadora: Prof.a Dr.a Wania Mara Agostini Storolli São Paulo 2021 S725d Sousa, Simone Santos Dando corpo à voz : Educação Somática na construção de uma proposta de preparação vocal pela experiência do corpo no âmbito do canto coral / Simone Santos Sousa. -- São Paulo, 2021 265 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Artes, São Paulo Orientadora: Margarete Arroyo Coorientadora: Wania Mara Agostini Storolli 1. Canto. 2. Corpo e mente. 3. Educação, estudo e ensino. 4. Alexander, Técnica de. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Artes, São Paulo. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. SIMONE SANTOS SOUSA DANDO CORPO À VOZ: Educação Somática na construção de uma proposta de preparação vocal pela experiência do corpo no âmbito do canto coral Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música, com área de concentração: Música: processos, práticas e teorização em diálogos do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Música. Linha de Pesquisa: Música, Epistemologia, Cultura. Orientadora: Prof.a Dr.a Margarete Arroyo Coorientadora: Prof.a Dr.a Wania Mara Agostini Storolli São Paulo 2021 SIMONE SANTOS SOUSA DANDO CORPO À VOZ: Educação Somática na construção de uma proposta de preparação vocal pela experiência do corpo no âmbito do canto coral Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música, do Instituto de Artes da UNESP, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Música. Tese aprovada em: ___/___/___ Banca Examinadora: _________________________________ Profa. Dra. Margarete Arroyo Instituto de Artes da UNESP – Orientadora _________________________________ 2ª Examinadora: Profa. Dra. Marisa Trench de Oliveira Fonterrada Instituto de Artes da UNESP _________________________________ 3° Examinador: Prof. Dr. Paulo Celso Moura Unesp / Instituto de Artes - IA _________________________________ 4ª Examinadora: Profa. Dra. Paula Maria Aristides de Oliveira Molinari Universidade Federal do Maranhão _________________________________ 5º Examinador: Prof. Dr. Fabio Cardozo De Mello Cintra Universidade de São Paulo São Paulo, 26 de março de 2021 A Socorro Sousa AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 A todas e todos que aceitaram o desafio de olhar para si, e assim, me ajudaram a construir este longo caminho, que não termina por aqui. Às cantoras e cantores do Vocal UFC de Sobral, da oficina Vocal da UNIFESP e da Oficina Dando Corpo à Voz, e às alunas e alunos do curso de Música da UFC em Sobral, onde começa este caminho. A Margarete Arroyo, orientadora e parceira, pela paciência, suporte, dedicação e confiança nesse percurso que empreendemos juntas. A Wania Storolli, coorientadora, por todo o conhecimento com o qual pude contar, pela cumplicidade e carinho com este trabalho. A Paula Molinari por me mostrar que há sempre algo a aprender, e há sempre uma nova forma de ensinar. Aos colegas e professores do PPG-Música da UNESP, e às professoras e professores que aceitaram o convite de ler este trabalho e participar da defesa como banca, por todas as contribuições valiosas. A Clisendo de Sousa, Monica Helena, Camila Santos, Lucas Santino, Marta Camurça, Lenine Rodrigues e Ramirez Criste, apoio e carinho constantes em qualquer caminho que eu escolha seguir. A Márcio Brandão, parceiro de vida e de estrada. Você está em cada pedaço deste trabalho. A Socorro Sousa. Sempre. Uma voz significa isto: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Ítalo Calvino RESUMO Esta pesquisa tem como ideia central o entendimento do corpo por inteiro como lugar e o agente de formação da cantora e do cantor coralista. Parte da problemática do trabalho de preparação vocal/corporal da cantora e do cantor, a partir das seguintes questões de pesquisa: a) vivenciar corpo/movimento/voz de maneira integrada favorece a aprendizagem do canto? De que maneira? b) que procedimentos metodológicos poderiam ser abordados no trabalho corporal da cantora e do cantor coralista durante sua preparação vocal? Na tentativa de responder a estas questões escolhi o caminho da Educação Somática, que é ao mesmo tempo campo teórico de conhecimento e conjunto de práticas que consideram o corpo do indivíduo uma unidade psicofísica, sem as tradicionais fragmentações a ele impostas. O objetivo desta pesquisa é compreender de que maneira os fundamentos teóricos e práticos da Educação Somática poderiam ajudar a construir uma proposta de preparação vocal em contextos corais fundamentada na ideia de corpo em sua integralidade; “preparação vocal” aqui entendida não apenas como aquecimento ou técnica vocal, mas também como momento de aprendizagem, espaço de formação da cantora e do cantor coralista e lugar de experiências e explorações do ato de cantar; e “corpo por inteiro” significando que o corpo deve ser visto como uma unidade psicofísica que inclui a voz que o expressa. Assim, o trabalho vocal deve ser pensado a partir e através do corpo. O processo investigativo foi guiado pela ideia de cognição como experiência corporificada apresentada pela abordagem atuacionista conforme proposta por Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch. Configura-se como pesquisa qualitativa de natureza experiencial e descritiva que se aproxima do método cartográfico no que diz respeito à processualidade. O campo empírico do estudo constituiu- se por duas oficinas conduzidas por mim e realizadas no ano de 2018 na cidade de São Paulo. Para as oficinas foi elaborado um plano de ação e criados roteiros dos encontros, construídos com base nos princípios e procedimentos de cinco práticas somáticas: a Antiginástica, o Método Bertazzo, o Método GDS de Cadeias Musculares e Articulares, a Coordenação Motora de Piret e Béziers e a Técnica de Alexander. As oficinas ocorreram em contextos diferentes e foram compostas por grupos diferenciados de cantoras e cantores, com regularidade semanal e ao longo de três meses cada uma. O experienciado e observado durante as oficinas foi registrado em diários de campo; as impressões dos participantes estão documentadas em transcrições de grupo focal e entrevistas individuais. Ao longo do período de campo, foram feitos registros em fotografia, áudio e vídeo. O detalhamento, análise e discussão dos dados produzidos apontam para algumas considerações: 1) uma proposta de preparação vocal fundamentada na somática deve ser construída como um caminho fluido em direção à verticalidade do corpo e ao encontro com o outro e com o grupo; 2) este caminho passa repetidamente, numa organização cíclica, por quatro temas dedicados a aspectos técnico-vocais (postura, respiração, vocalização e repertório) e segue numa experiência contínua de posições e interações (deitados, sentados, em pé; individual, duplas, em grupo); 3) o tempo necessário para percorrer este caminho depende do processo que cada grupo experiencia; 4) tanto os participantes como quem conduz a proposta atravessam um caminho que se assemelha a uma espiral (presente também nos ciclos que constituem a proposta) na qual é possível retornar às experiências de maneira diferente; 5) para conduzir a proposta, uma pessoa deve necessariamente já ter passado pela experiência somática, e compreender que não se trata do que se sugere no processo, e sim do como se sugere o processo; 6) o caminho percorrido envolve escolhas e descobertas, não controle. Palavras-chave: Canto coral. Preparação/formação vocal. Corpo. Educação Somática. ABSTRACT This research has the main idea that the whole body is the place and the agent of learning for the choral singer. From the problematic of the vocal / body preparation work of the singer, the following research questions were elaborated: a) does experiencing body / movement / voice in an integrated manner favor the learning of singing? In what way? b) what methodological procedures could be addressed in the bodywork of choral singers during their vocal preparation? In an attempt to answer these questions, I chose Somatic Education, which is both a theoretical field of knowledge and a set of practices that consider the human's body as a psychophysical unit, without the traditional fragmentations imposed on it. The aim of the research is to understand how the theoretical and practical foundations of Somatic Education could help to build a proposal for vocal preparation in choral contexts based on the idea of the “whole body”; “Vocal preparation” here means not only warm-up or vocal technique, but also a moment of learning, a place for the formation of the choral singer and for experiences and explorations of the act of singing; and “whole body” means that the body must be seen as a psychophysical unit that includes the voice that expresses it. Thus, vocal work must be thought of from and through the body. The investigative process was guided by the idea of cognition as an embodied experience presented by the enactive approach as proposed by Francisco Varela, Evan Thompson and Eleanor Rosch. It is configured in qualitative research of an experiential and descriptive nature that approaches the cartographic method with regard to procedurality. The empirical field of study consisted of two workshops conducted by me in 2018 in the city of São Paulo. For the workshops, an action plan was elaborated and meeting scripts were created, based on the principles and procedures of five somatic practices: Antigym, the Bertazzo Method, the GDS Method of Muscle-Joint Chains, the Motor Coordination by Piret and Béziers and the Alexander Technique. The workshops took place in different contexts and had different groups of singers, with weekly regularity and over three months each. What was experienced and observed during the workshops was recorded in field notes; the participants’ impressions are documented in focus group transcripts and individual interviews. Throughout the field work, photography, audio and video were recorded. The details, analysis and discussion of the data produced point to some considerations: 1) a vocal preparation work based on somatic must be constructed as a fluid path towards the verticality of the body and the encounter with the other and with the group; 2) this path passes repeatedly, in a cyclical organization, through four themes dedicated to technical-vocal aspects (posture, breathing, vocalization and repertory) and follows a continuous experience of positions and interactions (lying, sitting, standing; individual, doubles, groups); 3) the time required to travel this path depends on the process that each group experiences; 4) both the participants and the person conducting the proposal go through a path that resembles a spiral (also present in the cycles that constitute the proposal), in which it is possible to return to the experiences in a different way; 5) to guide the proposal, a person must necessarily have already gone through the somatic experience, and understand that it is not about what is suggested in the process, but how the process is suggested; 6) the path taken involves choices and discoveries, not control. Keywords: Choral singing. Vocal preparation/formation. Body. Somatic education. RESUMEN Esta investigación tiene como idea central la comprensión del cuerpo entero como lugar y agente formador del cantante coral. Parte de la problemática del trabajo de preparación vocal / corporal del cantante, a partir de las siguientes preguntas de investigación: a) ¿Experienciar cuerpo / movimiento / voz de manera integrada favorece el aprendizaje del canto? ¿De que manera? b) ¿Qué procedimientos metodológicos se podrían abordar en el trabajo corporal del cantante coral durante su preparación vocal? En un intento de dar respuesta a estas preguntas, elegí la Educación Somática, que es tanto un campo teórico de conocimiento como un conjunto de prácticas que consideran el cuerpo del individuo como una unidad psicofísica, sin las tradicionales fragmentaciones que se le imponen. El objetivo de esta investigación es comprender cómo los fundamentos teóricos y prácticos de la Educación Somática podrían ayudar a construir una propuesta de preparación vocal en contextos corales a partir de la idea del cuerpo en su totalidad; La “preparación vocal” aquí entendida no solo como calentamiento vocal o como técnica vocal, sino también como un momento de aprendizaje, un espacio para la formación del cantante coral y un lugar para vivencias y exploraciones del acto de cantar; y “cuerpo entero” significa que el cuerpo debe ser visto como una unidad psicofísica que incluye la voz que lo expresa. Por tanto, el trabajo vocal debe pensarse desde ya través del cuerpo. El proceso de investigación estuvo guiado por la idea de la cognición como una experiencia encarnada presentada por el enfoque actuacionista propuesto por Francisco Varela, Evan Thompson y Eleanor Rosch. Se configura como una investigación cualitativa de carácter vivencial y descriptivo que aborda el método cartográfico en cuanto a procedimentalidad. El campo de estudio consistió en dos talleres realizados por mí en 2018 en la ciudad de São Paulo. Para los talleres se elaboró un plan de acción y se crearon guiones para los encuentros, basados en los principios y procedimientos de cinco prácticas somáticas: Antigimnasia, Método Bertazzo, Cadenas Musculares Y Articulares (Método G.D.S.), Coordinación Motora de Piret y Béziers y la Técnica Alexander. Los talleres se desarrollaron en diferentes contextos y contaron con diferentes grupos de cantantes, con regularidad semanal y durante tres meses cada uno. Lo vivido y observado durante los talleres se registró en diarios de campo; las impresiones de los participantes se documentan en las transcripciones de los grupos focales y entrevistas individuales. Durante todo el período de campo se realizaron grabaciones de fotografía, audio y video. Los detalles, análisis y discusión de los datos producidos apuntan a algunas consideraciones: 1) una propuesta de preparación vocal basada en somática debe construirse como un camino fluido hacia la verticalidad del cuerpo y el encuentro con el otro y con el grupo; 2) este camino pasa repetidamente, en una organización cíclica, por cuatro temas dedicados a aspectos técnico-vocales (postura, respiración, vocalización y repertorio) y sigue una experiencia continua de posiciones e interacciones (acostado, sentado, de pie; individual, dobles, grupal); 3) el tiempo necesario para recorrer este camino depende del proceso que experimenta cada grupo; 4) tanto los participantes como la persona que orienta la propuesta atraviesan un camino en espiral (también presente en los ciclos que constituyen la propuesta), volviendo a las experiencias de una manera diferente; 5) para orientar la propuesta es necesario que la persona ya haya pasado por la experiencia somática, y comprenda que no se trata de lo que se sugiere en el proceso, sino de cómo se sugiere el proceso; 6) el camino tomado implica elecciones y descubrimientos, no control. Palabras clave: Canto coral. Preparación/formación vocal. Cuerpo. Educación somática. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Modelo de organização de cada um dos três ciclos da proposta .......................... 78 Figura 2: Modelo do processo de evolução da posição de trabalho ao longo dos encontros ............................................................................................................................................. 79 Figura 3: Modelo da estruturação e da organização dos encontros da segunda oficina ............................................................................................................................................. 80 Figura 4: Posição semi-supina ou repouso construtivo ........................................................ 94 Figura 5: Fotografia do primeiro boneco modelado por mim em argila ............................ 111 Figura 6: Fotografia do último boneco modelado por mim em argila ................................ 112 Figura 7: Fotografias de bonecos modelados em massa por participante da segunda oficina ........................................................................................................................................... 113 Figura 8: Fotografias de bonecos modelados em massa por participante da segunda oficina ........................................................................................................................................... 114 Figura 9: Fotografias de bonecos modelados em massa por participante da segunda oficina ........................................................................................................................................... 114 Figura 10: Esqueleto humano vista frontal ........................................................................ 130 Figura 11: Processo estiloide e osso hioide ........................................................................ 152 Figura 12: Linhas horizontais ............................................................................................ 153 Figura 13: Estrutura do Ciclo 1 .......................................................................................... 157 Figura 14: Modelo de tensegridade (pelve) ....................................................................... 162 Figura 15: Estrutura e organização da proposta de preparação vocal Dando Corpo à Voz ........................................................................................................................................... 206 LISTA DE ÁUDIOS Áudio 1: Que tal experienciar a auto-observação do seu canto? ........................................ 118 Áudio 2: Eu convido você a experienciar um movimento para suas pernas ...................... 131 Áudio 3: Eu proponho um movimento para a sua boca ...................................................... 145 Áudio 4: Um movimento com bolinhas de meia para os seus ísquios ............................... 177 Áudio 5: Ampliar a respiração com movimento e intenção ............................................... 195 SUMÁRIO INTRODUÇÃO – O INÍCIO DO CAMINHO ................................................................ 13 O doutorado como parte do caminho: chegando ao objeto de estudo ............................. 20 CAPÍTULO 1 – EXPERIÊNCIA, CORPO E APRENDIZAGEM ............................... 25 1.1. MERLEAU-PONTY: A EXPERIÊNCIA CORPORAL COMO MEDIAÇÃO ENTRE SUJEITO E MUNDO ......................................................................................... 28 1.2. MENTE CORPORIFICADA: A EXPERIÊNCIA CORPORAL E O CONHECIMENTO DO MUNDO VIVIDO ................................................................... 31 CAPÍTULO 2 – EDUCAÇÃO SOMÁTICA E CANTO ................................................ 36 2.1. SOMÁTICA, ENAÇÃO E CANTO CORAL ..................................................... 41 2.2. O CAMINHO SOMÁTICO PERCORRIDO ...................................................... 51 CAPÍTULO 3 – CORPO E VOZ EM MOVIMENTO: OS CAMINHOS DA PESQUISA ........................................................................................................................ 63 3.1. A EXPERIÊNCIA DAS OFICINAS .................................................................... 65 3.1.1. OFICINA VOCAL: A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA ....................................... 65 3.1.2. MOVIMENTOS, COMPONENTES E SEQUÊNCIA: ELEMENTOS ESTRUTURANTES DA PROPOSTA ...................................................................... 66 3.1.3. DESCOBERTAS DO PROCESSO ................................................................. 68 3.1.4. OFICINA DANDO CORPO À VOZ ............................................................... 73 3.1.5. OS PARTICIPANTES DA PESQUISA .......................................................... 74 3.1.6. ESTRUTURANDO A SEGUNDA OFICINA ................................................ 77 CAPÍTULO 4 – DANDO CORPO À VOZ ...................................................................... 84 4.1. ORGANIZANDO O PROCESSO ........................................................................ 84 4.1.1. SOBRE FICAR DE PÉ E SE MOVER: UM CAMINHO EM DIREÇÃO À VERTICALIDADE ................................................................................................... 87 4.1.2. ESTRUTURA DO ENCONTRO: UM CAMINHO EM DIREÇÃO AO OUTRO .................................................................................................................................... 98 4.1.3. A AUTO-OBSERVAÇÃO ............................................................................ 108 4.2. PRINCÍPIOS ....................................................................................................... 118 4.2.1. APRENDIZADO PELA EXPERIÊNCIA ..................................................... 119 4.2.2. CONSCIÊNCIA ............................................................................................ 127 4.2.3. ESCOLHA ..................................................................................................... 141 4.2.4. VERTICALIDADE ....................................................................................... 148 4.3. MODOS DE TRABALHO ................................................................................. 156 4.3.1. NARRANDO ENCONTROS ........................................................................ 156 4.3.2 BIOTENSEGRIDADE ................................................................................... 161 4.3.3. UNIDADE PSICOFÍSICA ............................................................................ 165 4.3.4. TATO E PROPRIOCEPÇÃO ........................................................................ 171 4.3.5. AMBIENTE .................................................................................................. 179 4.3.6. RESPIRAÇÃO .............................................................................................. 188 4.3.7. INTENÇÃO ................................................................................................... 196 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 203 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 212 APÊNDICE A ................................................................................................................... 222 APÊNDICE B ................................................................................................................... 224 APÊNDICE C ................................................................................................................... 229 APÊNDICE D ................................................................................................................... 233 APÊNDICE E ................................................................................................................... 236 APÊNDICE F .................................................................................................................... 238 APÊNDICE G ................................................................................................................... 242 APÊNDICE H ................................................................................................................... 244 APÊNDICE I .................................................................................................................... 248 ANEXO 1 .......................................................................................................................... 257 13 O INÍCIO DO CAMINHO Este texto começa com uma história. A história de um longo caminho, percurso de descobertas, encontros e perdas. Uma história que começa com uma menina cantando, em algum momento de 1996. Em 1995, quando entrei no Bacharelado em Música, eu já cantava. Fora de casa, cantava desde os 12 anos no Coral Infantil do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno em Fortaleza, capital do estado do Ceará, onde eu residia. No conservatório, eu e minhas irmãs começamos a descobrir música de uma maneira diferente daquela que fazíamos em casa. No entanto, quando por fim tomei uma decisão a respeito do curso superior que escolheria, cantar não estava nos meus planos; seria apenas um passo na direção do meu futuro como regente, o objetivo que estava em minha mente quando comecei a participar do primeiro coral adulto do qual fiz parte. Em pouco tempo eu já estava cantando em quase todos os corais que havia na cidade cujo ingresso era livre, criando arranjos para coro e experimentando dirigir meu próprio coral – cantar em grupo passou a ser o assunto que dominava todo o meu tempo, minha energia, minha vida social e acadêmica. Em 1996 eu participava de um grupo nascido dentro do movimento coral de Fortaleza, o Cinco em Ponto, formado por cinco cantoras. Com o grupo fiz minha primeira apresentação musical em um palco, cantando, sem estar em um coral. Éramos apenas nós cinco no palco, e a exposição inédita que experimentei naquele momento me ensinou que existia um corpo no palco junto com a minha voz, e que esse corpo estava à mostra para a plateia de uma maneira muito mais evidente do que qualquer outra experiência que eu tivesse tido até então. Aprendi que, exposto, meu corpo mudava; minha respiração não era mais a mesma, e era muito difícil contar com ela para cantar. Descobri que todo mundo me via de maneira diferente do coral, onde, com tanta gente ao redor, eu me acreditava completamente invisível ao público. E entendi que a imagem que eu tinha de mim mesma no palco era muito diferente daquela presenciada por quem estava na plateia. Por exemplo, por mais que eu tentasse me movimentar no palco, sempre ouvia das pessoas que assistiam as apresentações do grupo que eu precisava me “mexer” mais. Ouvia também que meus ombros “subiam” quando eu cantava. Além disso, quando os shows começaram a ser mais frequentes, percebi que sempre saía do palco com muita dor nas costas. Na tentativa de compreender esse “recém-descoberto” corpo, ingressei, em 2004, em minha segunda graduação: Artes Cênicas. Nesse período eu já regia corais que 14 montavam espetáculos cênicos, e estava em minha primeira experiência como professora das disciplinas de voz em um curso de Licenciatura em Música, preparando estudantes que seriam, pelo objetivo de sua formação, professoras e professores; além disso eu também estava iniciando uma carreira como cantora solista. Todas estas situações profissionais trouxeram ainda mais motivos para “descobrir” este corpo na voz cantada; não apenas como me movimentar mais no palco, mas também como preparar vocalmente coralistas que deveriam se movimentar cenicamente enquanto cantavam, ou ainda como a imagem corporal de meus alunos influenciava seu canto eram questões importantes. Embora reconheça a importância do estudo das Artes Cênicas neste percurso de compreensão do meu corpo e da minha imagem no palco, a maior descoberta que fiz naquela graduação foi o caminho da Educação Somática. A Somática chegou a mim primeiro em forma de texto. Interessada a princípio pela Eutonia, comecei a ler todo tipo de material produzido por sua criadora, Gerda Alexander, ou sobre ela. Estava fascinada pela sua história: a menina de condição física precária a ponto de, aos 16 anos, ser proibida pelos médicos de realizar qualquer movimento. Decidida a ser bailarina profissional, reaprendeu, a partir de observações e experimentações em seu próprio corpo, a se movimentar com o mínimo de energia possível. Interessava-me sobretudo sua ideia de que, quando se tem noção clara do movimento a ser realizado, o organismo reagiria de maneira reflexa, utilizando a quantidade certa de energia com o nível adequado de tensão para a execução do movimento, desde que os músculos fossem flexíveis e livres de tensões desnecessárias (não à toa sua prática chamou-se eu – bom; tonia – tônus) (ALEXANDER, 1991). Em especial, imaginava como seria possível aprender a utilizar esse nível adequado de tensão; como ainda não entendia a ideia de um conhecimento gerado a partir do corpo físico, sem que necessariamente esse conhecimento partisse do intelecto, não compreendia como “calcular” a tensão necessária para conseguir chegar a esse “bom tônus”. No entanto, Gerda Alexander e sua Eutonia foram apenas o início de um longo caminho na Educação Somática, ao qual se juntaram logo depois F. Mathias Alexander (e a Técnica de Alexander), Lilly Ehrenfried (e a Ginástica Holística) e finalmente, Thérèse Bertherat (e a Antiginástica). Tive acesso ao trabalho dessa última quando já era professora do curso de Artes Cênicas (que nesse momento tinha se transformado em Licenciatura em Teatro, e no qual eu era professora das disciplinas de voz cantada e música). Ler O corpo tem suas razões, primeiro livro de Thérèse Bertherat, escrito em colaboração com a jornalista Carol Bernstein (cujo subtítulo é Antiginástica e consciência de si) (BERTHERAT; 15 BERNSTEIN, 1977) me trouxe uma indicação de que este era o caminho que eu estava buscando. Na introdução, as autoras dizem que o corpo é uma casa na qual não se mora. Somos os únicos proprietários, mas perdemos as chaves há muito tempo. Ficamos de fora, olhando a fachada, mas sem nela morarmos (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1977). As autoras descrevem nessa publicação não apenas como Thérèse Bertherat desenvolveu sua prática de trabalho corporal, mas também o caminho pessoal e profissional percorrido até ela. Cada evento importa: sua mudança para Paris, a procura por uma casa para ela e sua família, o encontro com Suzie L. (aluna de Moshe Feldenkrais e responsável pelo primeiro contato de Bertherat com uma prática de “ginástica suave”, como eram chamados os trabalhos que lidavam com o movimento do corpo e consciência), a perda de seu marido (psiquiatra que foi assassinado por um paciente no hospital), o trabalho com Lilly Ehrenfried (criadora da Ginástica Holística), o ingresso tardio no curso superior de fisioterapia, a descoberta do trabalho de Françoise Mézières (fisioterapeuta criadora do conceito de cadeias musculares), suas primeiras experiências como profissional e as primeiras descobertas de seus clientes/pacientes/alunos1 nos trabalhos em grupo. Entremeando a história pessoal de Bertherat, as autoras citam suas referências teóricas e profissionais: Wilhelm Reich, Roland Barthes, Sigmund Freud, Alexander Lowen; a medicina chinesa, a acupuntura, a micro- massage (ou acupressure, massagem inspirada nos princípios da acupuntura, usando pressão em pontos específicos), a auriculoterapia, o feminismo. “Preconizo a mobilização das mulheres, mas não apenas em células militantes – a mobilização de cada corpo de mulher” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1977, p. 168). E, finalizando o livro mencionado, as autoras apresentam uma série de Preliminares, movimentos sugeridos por Bertherat para tomar consciência do próprio corpo, mobilizar e descobrir músculos e regiões que em geral não sabemos sequer que existem. As histórias contadas no livro, os lugares alcançados por Thérèse Bertherat e seus alunos, e os preliminares descritos (os quais experienciei no corpo) me trouxeram a necessidade de praticar a Antiginástica; no entanto, naquele momento não havia em toda a região Nordeste um único profissional da prática com o qual eu pudesse trabalhar – e assim, a Antiginástica e tudo o que se relacionava com Educação Somática, precisou ficar adormecido enquanto outros desafios se apresentavam em minha vida. 1 As autoras usam as três palavras para nomear as pessoas com as quais Thérèse Bertherat trabalhou, individualmente ou em grupo. 16 Em 2011 outros três acontecimentos importantes me moveram, mais uma vez, para o lugar onde estou neste momento. O primeiro foi a conclusão do Mestrado em Educação Brasileira, cursado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), no qual defendi uma dissertação intitulada Corpo-voz em contexto coletivo: ações vocais formativas no canto coral (SOUSA, 2011). Ao iniciar o curso, eu ainda estava buscando obter respostas para as questões que se me apresentaram antes a respeito do meu corpo e do corpo dos meus coralistas. Tentando responder essas questões na minha pesquisa de mestrado, procurei em Fortaleza um grupo coral2 que desenvolvesse um trabalho semelhante ao que eu mesma realizava: um coro cênico, no qual o corpo não pudesse simplesmente ser deixado de lado no trabalho vocal, já que haveria a necessidade deste corpo estar bastante presente nas apresentações em público. Meu universo de estudo foi o Coral da UFC, um grupo conhecido por seu trabalho cênico, e as atividades de montagem, pelo coral, do espetáculo Borandá Brasil. Eu não fazia parte do grupo – como pesquisadora/observadora, assisti ensaios e apresentações, conversei com regentes, professoras de corpo e professores de voz do grupo, bem como coralistas envolvidos no processo de montagem do espetáculo, e os entrevistei para investigar suas percepções a respeito do processo de aprendizagem da voz cantada dentro das atividades do coral; que dificuldades poderiam surgir nesse processo; e que procedimentos era utilizados ao lidar com o corpo das cantoras e dos cantores coralistas. Entre as respostas que encontrei por meio da investigação desenvolvida no mestrado, ressalto aqui alguns pontos que hoje considero muito importantes (ainda que possam não constar do relatório final, subordinado a questões talvez mais específicas). Destaco em primeiro lugar a fala de um dos professores de voz do coral, que observou que o resultado sonoro do grupo, depois do aquecimento vocal, era diferente a depender de se este aquecimento era realizado antes ou depois do aquecimento de corpo. Segundo esse professor, quando o aquecimento vocal acontecia depois do aquecimento corporal, o grupo parecia estar mais disponível sonoramente, e o resultado sonoro que ele buscava era alcançado mais rapidamente e mais facilmente do que se a ordem dos aquecimentos fosse diferente. Outro ponto a ser destacado diz respeito à busca, por parte de regentes e coralistas, do que chamei na época de organicidade: um corpo fluido em cena, no qual corpo 2 É importante observar que olho para um grupo coral como um espaço de formação, no qual a aprendizagem e o ensino estão sempre presentes. 17 e voz estivessem realmente integrados, nenhum desses dificultando ou inibindo o trabalho do outro. Um dos regentes relatou que, quando a professora de corpo aquecia, preparava o corpo das cantoras e dos cantores coralistas, e montava uma cena, os corpos fluíam pelo palco em um movimento gracioso e totalmente ajustado àquela cena que estavam realizando; no entanto, quando era pedido aos coralistas que cantassem junto com a cena, os corpos perdiam essa fluidez na postura e no movimento. Da mesma forma, a sonoridade conquistada pelo grupo nos ensaios de repertório musical era perdida quando se colocavam os corpos em cena. Essa perda da fluidez não era definitiva; ao se iniciarem os ensaios voltados para o espetáculo, com a repetição das cenas cantadas, o grupo recuperava (ou conquistava) a organicidade desejada por todos. O terceiro ponto que aqui destaco sobre a investigação desenvolvida no Mestrado tem relação com essa ideia de organicidade. Havia no grupo pesquisado, o Coral da UFC (ao menos naquele período da realização dessa investigação) espaços separados e diferenciados para o trabalho de voz e para o trabalho de corpo. Nos ensaios de voz, havia o aquecimento e técnica vocal e a preparação de repertório musical; nos de corpo, a preparação corporal e a montagem de cenas. Ao se aproximar a estreia do espetáculo, iniciavam os ensaios voltados para o mesmo, e as canções eram enfim colocadas em cena. No entanto, não havia movimentação (com exceção daquela mais comum em ensaios de corais, em geral chamada de relaxamento) durante a preparação vocal ou o aprendizado das canções; da mesma forma, as canções ensaiadas não estavam presentes durante a preparação corporal. Com todos esses pontos em mente, encerrei a pesquisa desenvolvida no mestrado com mais interrogações do que afirmações. Nesta época eu já era professora do curso de Licenciatura em Música da UFC no campus de Sobral. Entre a minha graduação em Música e minha entrada na UFC/Sobral, tive outras experiências como professora substituta em cursos de Licenciatura, tanto em Música quanto em Teatro, sempre responsável pelas disciplinas relacionadas à voz cantada. No entanto, como professora do quadro permanente da UFC eu poderia pensar em projetos a longo prazo, em construir um caminho, o que mudou a maneira como eu via o meu trabalho. Pude pensar em estruturas encadeadas de conteúdo para as disciplinas, entrevendo uma estudante ou um estudante que seria (e em muitos casos, já era) uma professora ou um professor que, a princípio, atuaria nos ensinos fundamental e médio; considerando que havia um caminho a ser percorrido por esta ou este estudante, que iniciava por ter mais intimidade com seu aparelho vocal (e sua voz) no curso, passava por experienciar cantar em um coral e ter aulas de técnica vocal para depois disso passar pela 18 experiência de estar à frente de um grupo, prepará-lo vocalmente, ensaiá-lo e regê-lo. Pude organizar as disciplinas e seus conteúdos para que esse caminho pudesse ser realizado, e pude também repensar essa organização ao longo do tempo (inclusive porque ajudei a criar as disciplinas, já que entrei no curso quando esse recebia sua primeira turma). Tudo isso também me fez tentar entender quem eram os estudantes que entravam no curso3; quem seriam os profissionais esperados ao final desse curso; e de que maneira conhecer estudante e profissional mudava o modo como eu estruturava minhas aulas. Tendo em vista estas considerações, quais seriam, então, meus objetivos com relação à formação destes professores? Poder participar da construção de um novo Projeto Pedagógico do Curso4 também influenciou minhas decisões a respeito da condução de minhas disciplinas. Na versão mais recente do documento, aprovada em 2018, o educador musical artista a ser formado pelo curso é descrito como um profissional comprometido com “uma postura inclusiva, democrática, solidária, crítica, participativa, criativa” e que compreenda a música como “atividade fundamental para o desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimensões” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ, 2018, p. 21). Entre os princípios norteadores do curso estão o estímulo ao pensamento de que a música é uma área de conhecimento e componente integrante da formação do ser humano; e o estímulo ao espírito cooperativo, ético e solidário (UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ, 2018). Esses princípios estão de acordo com o que eu acredito que devam ser as prioridades na formação de educadores musicais. Além disso, a Base Nacional Comum Curricular, BNCC (BRASIL, 2018) indica como objetivos do componente curricular Arte (mais especificamente a unidade temática Música) que estudantes sejam capazes de analisar criticamente a música em seus contextos de produção e circulação; relacionar as práticas musicais às diferentes dimensões da vida social, cultural, política, histórica, econômica, estética e ética; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro; perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente; desenvolver o conhecimento de si mesmo; conhecer o próprio corpo; utilizar diferentes linguagens como meio para produzir, expressar e comunicar ideias; construir conhecimento articulando as dimensões crítica, criativa 3 Sobre essas reflexões ver: BORNE et al. (2011) e CÁCERES et al. (2012). 4 Disponível em: http://www.musicasobral.ufc.br/v2/wp-content/uploads/2014/07/1-PPC-M%C3%BAsica- Sobral-2019.1-13mar19.pdf 19 experiencial, expressiva, fruitiva e reflexiva da arte. Para mim, é neste sentido que a Educação Musical deve ser pensada: como formação de um sujeito que possa desenvolver essas dimensões. Neste contexto estão a professora e o professor que acredito que seria interessante estar na escola; os profissionais que estou ajudando a formar. Entendo ser importante que, ao prepará-los vocalmente, eu pense em todos os aspectos acima elencados. Entendo que as disciplinas pelas quais eu sou responsável devem ter esta direção; que é importante entender a voz dos estudantes como corpo, e seu corpo como peça fundamental em sua formação e expressão; e que, ao final do curso, esses mesmos estudantes serão responsáveis pelos corpos, vozes, expressão e formação de outros estudantes. E aqui volto a pensar na Educação Somática como possível caminho nesta direção. Porque os estudantes e os profissionais de que falo não serão necessariamente cantoras e cantores solistas profissionais; acima de tudo, são pessoas que têm uma voz, dentro de um corpo onde tudo está integrado, e que podem, a partir daí, com sua voz e seu corpo próprios, serem capazes de se expressar. Em vista disso, voltei à Antiginástica, e iniciei um longo processo de formação profissional de três anos entre outubro de 2011 e outubro de 2014. Por um ano tive a experiência prática da Antiginástica no Rio de Janeiro e em São Paulo; nos dois anos seguintes participei de um grupo de formação para a prática. Em outubro de 2014 obtive um certificado que me autorizava a ser profissional de Antiginástica. No entanto, muito antes de receber essa autorização, eu já incluía movimentos da Antiginástica em minhas aulas na UFC, nos ensaios dos corais que eu regia e na minha preparação para cantar. Comecei a observar que tinha mais consciência de como o corpo cantava, o que se movimentava ou o que era ativado em meu corpo quando eu estava cantando, e como isso tudo influenciava a cor e a projeção da minha voz e minha atuação vocal. Observei diferenças no meu corpo e na minha postura. Meus ombros ainda subiam e eu não me mexia muito mais do que de costume. Mas havia diferenças importantes: eu tinha consciência de como meu corpo se apresentava, o que tornava minha postura e meu movimento mais fluidos ao cantar em público; mais do que isso: também não havia mais dor nas costas ao descer do palco. Além disso, observei que os movimentos, quando experienciados em minhas aulas de voz cantada, ajudavam meus alunos, que conseguiam entender e realizar ajustes relativos à técnica vocal de maneira mais fácil e rápida. Percebi que os trabalhos de corpo com os corais com os quais eu trabalhava eram mais tranquilos e fáceis, e que as reclamações 20 de cansaço ou dor nesses trabalhos diminuíam bastante. Comecei a pensar como poderia usar os movimentos, materiais, princípios e procedimentos de uma sessão de Antiginástica para conduzir minhas aulas. As experiências realizadas tornaram-se material de pesquisa (RODRIGUES FILHO et al., 2014; SOUSA et al., 2015; SILVA; SOUSA, SANTOS, 2015; TEIXEIRA, 2016) e me levaram à ideia de como seria estruturar uma aula prática sobre aspectos específicos de técnica vocal que envolvesse o corpo por inteiro, não apenas a musculatura vocal e respiratória (que se costuma resumir ao diafragma e intercostais); que utilizasse os movimentos da Antiginástica como suporte para o canto; que possibilitasse à cantora e ao cantor entender que tudo o que envolve seu corpo tem influência direta e real sobre sua voz, inclusive aspectos que costumam ser vistos como distantes, como o modo como o pé se apoia no chão ou a posição do joelho. E aqui chego ao lugar no qual me encontro agora. Essas são as ideias e inquietações que me movimentam. O doutorado como parte do caminho: me aproximando do objeto de estudo Refletindo sobre o trabalho de preparação vocal de coralistas, compreendo que o planejamento para esta atividade deve partir de, e ser pensado para o grupo ao qual ele se refere. Entendo também que esse trabalho não deveria ser exclusivamente, como é de hábito, o treinamento físico que lida especificamente com a emissão vocal e os órgãos do corpo diretamente relacionados a ela. Ao contrário, deveria observar que canto é corpo em movimento e que a voz parte de um corpo que precisa ser vivenciado integralmente. Assim, o processo de ensino e aprendizagem do canto e a preparação vocal de coralistas deveriam ser pensados como um trabalho a partir e por meio do corpo dessa cantora e desse cantor coralista, considerado como unidade psicofísica que inclui a voz que o expressa, conectada com suas sensações e emoções. Nesta pesquisa de doutorado tenho por objetivo compreender de que maneira a Educação Somática pode contribuir para a formação vocal da cantora e do cantor e, a partir dessa compreensão, elaborar uma proposta de preparação vocal de coralistas fundamentada nessa ideia já apresentada de voz que é corpo, entendido como unidade psicofísica. Parto das seguintes questões de pesquisa: a) vivenciar corpo/movimento/voz de maneira integrada favorece a aprendizagem do canto? De que maneira? b) que procedimentos metodológicos 21 poderiam ser abordados no trabalho corporal da cantora e do cantor coralista durante sua preparação vocal? Aqui, entendo “preparação vocal” não apenas como aquecimento ou técnica vocal, mas também e especialmente como momento de aprendizagem, espaço de formação da cantora e do cantor coralista e lugar de experiências e explorações do ato de cantar. “Formação” expressa a concepção de Peixoto (2012): expressão de criatividade, autonomia e criticidade, oposta à instrumentalização, ato mecânico de reprodução e negação do mundo vivido. Esta ideia de “formação” está fundada na compreensão de Merleau-Ponty de ser humano como ser-no-mundo – o corpo seria então gerador da aprendizagem, entrelaçando elementos motores e perceptivos para a ampliação das significações, e a formação envolveria uma compreensão de percepção e de cognição que relaciona a aprendizagem à experiência vivida. Já com o termo “unidade psicofísica”, fundamentada na Educação Somática, refiro- me à ideia de que o corpo coordena suas funções fisiológicas elementares em estreita relação com suas funções mais complexas (como imaginação, percepção, emoção e ação). Ou seja, as dimensões corporal, emocional e psicológica estão inter-relacionadas e interligadas no funcionamento e comportamento de uma pessoa. O campo empírico da investigação são duas oficinas, sendo a primeira de preparação vocal em grupo coral e a segunda, de interessados no trabalho corporal/vocal. Embora minha intenção inicial fosse adaptar o trabalho de Thérèse Bertherat, tive a oportunidade de conhecer, experienciar e estudar outras práticas somáticas paralelamente ao curso de doutorado. Essas práticas proporcionaram outras ideias, abriram caminhos diferentes e trouxeram novas contribuições para minha busca no sentido de possibilitar a cantoras e cantores coralistas aprendizes reconhecer o próprio corpo como seu instrumento; reconhecer sua voz como corpo, um corpo que opera como unidade; e, a partir daí, ser capaz de se expressar por meio de sua voz. A pesquisa foi guiada pela ideia de cognição como experiência corporificada apresentada pela abordagem atuacionista (ou enativa) conforme proposta por Varela, Thompson e Rosch (1993) em um trabalho inspirado na fenomenologia de Maurice Merleau- Ponty. Para os autores os processos de conhecimento derivariam da interação entre corpo, mente e ambiente, resultando em uma cognição corporificada, o que sugere uma mudança na natureza da reflexão, que passa de uma atividade abstrata da qual o corpo não faz parte para uma reflexão atenta, corporificada, na qual corpo e mente não estão separados. Além desses, outros autores importantes para a pesquisa foram os criadores das práticas somáticas 22 que embasaram a proposta de preparação vocal de que trata este trabalho: Thérèse Bertherat, L. Ehrenfried, Godelieve Denys-Struyf, Gerda Alexander, Moshe Feldenkrais, Ivaldo Bertazzo, Frederick Mathias Alexander, Suzanne Piret, Marie-Madeleine Béziers; e investigadores do campo da Educação Somática: Philippe Campignion, Débora Pereira Bolsanello, Eleni Vosniadou e Thomas Hanna5. Nesta pesquisa defendo a tese de que liberar o corpo de tensões excessivas e habituais através da consciência de si e do conhecimento do próprio corpo auxilia na construção de uma autoimagem corporal mais fidedigna; e essa liberação deixa o corpo livre para se movimentar da forma mais adequada à atividade que está realizando, econômica (em termos de energia utilizada) e expressiva, com menor desgaste físico. Assim, em alternativa ao treinamento com vistas ao controle do corpo no canto, sugiro a experiência da consciência plena do movimento desse corpo, no momento da ação de cantar, como fundamental e indispensável na preparação vocal da cantora e do cantor coralista. Abordarei essas ideias ao longo de quatro capítulos. No primeiro capítulo desenvolvo o referencial teórico da pesquisa, expondo o pensamento das autoras e autores já citados, cujas ideias considero essenciais para fundamentar o entendimento dos conceitos centrais deste estudo. Com base na abordagem enativa da cognição corporificada, desenvolvida por Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch (além da contribuição da fenomenologia de Merleau-Ponty para a educação, que parte de suas concepções de corpo e existência), discuto a ideia de corpo como experiência, pilar da Educação Somática. No segundo capítulo elaboro uma discussão sobre a relação entre Educação Somática, consciência corporal e aprendizagem do canto, a partir de revisão de literatura a respeito desses temas. Destaco pesquisas que integram Educação Somática e aprendizado do canto, com a finalidade de conhecer a situação da produção de conhecimento científico nesta temática, revelar os referenciais teóricos adotados e conhecer as propostas e experiências realizadas. Os trabalhos encontrados envolveram as práticas somáticas Técnica de Alexander, Técnica Klaus Vianna, Antiginástica, Método Feldenkrais, Eutonia, Método GDS de Cadeias Musculares e Articulares e Método Bertazzo, além do trabalho de Alfred Wolfsohn e Roy Hart, da Bioenergética de Alexander Lowen e da Respiração Vivenciada de Ilse Middendorf. Discorro também sobre as práticas somáticas que fundamentaram a proposta de preparação vocal que é um dos objetivos desta pesquisa. 5 Embora Hanna tenha criado sua própria prática somática, para esta pesquisa consultei seu trabalho teórico referente ao campo da Educação Somática – e não a prática criada por ele. 23 No terceiro capítulo delineio o percurso da pesquisa, seus processos e procedimentos metodológicos; exponho as características do estudo, uma investigação de abordagem qualitativa de natureza experiencial e descritiva que se aproxima do método cartográfico no que tange ao seu aspecto processual; apresento os colaboradores da pesquisa, os recursos utilizados no trabalho de campo; e descrevo como foram estruturadas as duas oficinas que compuseram o campo empírico da investigação. O quarto capítulo detalha os princípios que guiaram as oficinas e os modos de trabalho nelas empregados, e traz uma breve descrição dos encontros. Neste capítulo também inter-relaciono o material empírico com minhas experiências durante as formações e vivências de práticas somáticas, e minha experiência profissional como cantora, professora de técnica vocal, preparadora vocal e regente de corais. Uma vez que o caráter da experiência somática é cíclico e assemelhado a uma espiral, na qual é necessário retornar a lugares já percorridos com um outro olhar, advirto que a experiência de leitura desse capítulo possivelmente demandará um retorno frequente a pontos já levantados sob uma nova perspectiva. Os textos consultados em outras línguas foram traduzidos por mim; o texto original citado está sempre exposto em nota de rodapé. Todos os grifos e itálicos das citações foram mantidos conforme os originais. Conceitos estruturais da tese e citações de trechos do material produzido durante o trabalho de campo estão em itálico; estes últimos adotam os modelos das citações bibliográficas e são acompanhados da referência do documento na qual a informação está contida. É importante também expor meu incômodo com a questão linguística que envolve gênero. A regra para a língua portuguesa aponta para a prioridade no tratamento masculino. Entendo que assumir essa regra sem questioná-la consistiria falta de reflexão da história e herança patriarcais presentes na língua, alinhando-me com o pensamento de Grada Kilomba, para quem a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos, constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana (KILOMBA, 2019, p. 8-9). Apesar desse incômodo e ciente da dimensão política da palavra, assumo uma posição ao optar por, quando não for evidente, me referir aos dois gêneros sempre que 24 possível, mantendo os termos no masculino quando estiverem no plural para evitar uma redação truncada. 25 1 Experiência, corpo e formação Na introdução do livro O corpo tem suas razões, Bertherat e Bernstein (1977) afirmam que, apesar de sermos nosso corpo, não queremos admiti-lo. Por não termos coragem de olhar, ou por não sabermos como fazê-lo, confundimos o visível com nossa realidade. Lugar ao mesmo tempo comum e incomum, próximo e desconhecido, “o corpo é o que não sabemos, seu caráter intangível se dá na multiplicidade das verdades que o compõem” (KEIL; TIBURI, 2004, p. 9). Contemporaneamente, o corpo mostra-se a um tempo superposto e ausente, sendo sobretudo um corpo visto; “a imagem passou a ser a coisa” (KATZ, 2011, p. 19). Talvez estes sejam alguns dos motivos pelos quais temos do corpo apenas uma consciência parcial, fragmentada, como se fosse formado por partes desconectadas que estivessem fora de nós; como se as alterações sofridas em cada uma delas não se referissem ao todo. Como se cabeça e corpo fossem unidades distintas, separadas, e apenas a primeira fosse o centro de pensamentos, emoções e lembranças. No entanto, para além de possuir um corpo, somos nosso corpo. Sentimento, raciocínio, movimento; somos tudo isso e ainda mais. Ao agirmos no mundo, agimos como unidade. Nossas funções cognitivas, fisiológicas e comportamentais caminham juntas, referindo-se a um ser que é corpo em todas as suas dimensões, conforme ficará evidenciado adiante. Este ser corpo (não restrito à sua condição física, mas que reúne aspectos como percepção, imaginação, motricidade, pensamento, sensação e emoção), integra toda e qualquer experiência. “[... É] essencial sentir em nosso corpo quem somos, o que somos. Sejamos antes de tudo corpo” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1977, p. 197). O corpo é, então, inseparável do sentido, e abre espaço à experiência de ser e estar no mundo como aquele que sente, vê e se movimenta, que busca o sentido do que é vivido. Assim, a experiência seria necessariamente algo que se sabe pelo corpo, por ser um corpo. O filósofo da educação Jorge Larrosa (2015) nos diz da necessidade de um pensamento da educação que parta da experiência, a qual pode ser entendida pela frase em espanhol eso que me pasa – a experiência é algo que nos passa, que nos acontece, que nos toca. Para isso, é necessário que haja um eso (externo a mim, alheio a mim, que não sou eu), um me (um espaço, que sou eu, no qual o eso tenha lugar) e o que pasa (uma passagem, uma 26 travessia, um acontecer repleto de perigo). A experiência é, então, algo externo a mim, que me atravessa deixando marcas, afetos, efeitos. Ao sintetizar a ideia de experiência como “isto que me acontece”, o autor trata de formular o que chama de princípios da experiência: o “princípio de alteridade”, ou “exterioridade” ou ainda “alienação” (o acontecimento deve ser externo a mim); o “princípio da subjetividade” ou da “transformação” (o lugar, o sujeito da experiência que sou eu); e o “princípio da passagem” (o movimento da experiência). Aqui vou me deter neste segundo princípio enunciado por Larrosa, o que se refere a “me”. Ao pressupor a experiência como acontecimento, o autor indica como lugar da experiência o sujeito que passa por ela. “É em mim (...) onde se dá a experiência, onde a experiência tem lugar” (LARROSA, 2011, p. 6). Por esse motivo é chamado “princípio da subjetividade”: porque o lugar da experiência é o sujeito e, assim, a experiência é sempre subjetiva. Para o autor, esse é um sujeito capaz de permitir que algo lhe passe, que algo lhe aconteça, um sujeito aberto, sensível, vulnerável. O princípio da subjetividade também pressupõe que “não há experiência em geral, que não há experiência de ninguém, que a experiência é sempre experiência de alguém ou, dito de outro modo, que a experiência é, para cada um, a sua” (LARROSA, 2011, p. 7). Larrosa também chama a este o “princípio da transformação”, e este é o aspecto que o autor designa à experiência que compreendo ser mais importante para o presente trabalho. Este sujeito da passividade, da receptividade, disponibilidade e abertura, vulnerável e exposto a uma experiência única, particular, é também um sujeito aberto à sua própria transformação. E aqui se pode encontrar um componente fundamental da experiência: sua capacidade de formação ou de transformação. “A experiência me forma e me transforma. Daí a relação constitutiva entre a ideia de experiência e a ideia de formação” (LARROSA, 2011, p. 7). Aprender é, assim, uma possibilidade de experiência, um deixar-se atravessar que transforma. Um saber que se dá na relação entre conhecimento e vida humana. Um saber que se adquire “no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. [...] Não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece (LARROSA, 2015, p. 32). E este saber, relacionado a um indivíduo concreto, particular e singular, é também um saber necessariamente relacionado ao corpo. “Não há existência humana que seja independente do corpo” (LARROSA, 2004, p. 168). Se não há 27 experiência fora do corpo, e se penso essa experiência como lugar de formação e transformação, também não há educação separada do corpo. E aqui, sugiro que isso que me atravessa (na “experiência” de que fala Larrosa) também pode ser encontrado em mim: reconhecer o próprio corpo traz consigo uma possibilidade de atravessamento que pode ser transformadora e, assim, formativa. A experiência é geradora de um conhecimento que também é corpo. A investigação sobre a relação entre corpo, movimento e cognição não é recente. Em 1987 o filósofo estadunidense Mark Johnson explicava que a cognição tem origem na motricidade, e aponta que o corpo é ignorado no raciocínio em favor da razão, tida como abstrata e transcendente. Johnson, como contam Katz e Greiner (2011), sustenta a proposta de que pensar corpo e ambiente como entidades independentes é um erro – “o organismo não existe sem o ambiente, que é parte dele tanto quanto qualquer outro componente ‘interno’” (KATZ; GREINER, 2011, p. s/p). Desde a década de 1960, pesquisas sobre cognição humana tiveram implicações filosóficas determinantes, iniciando o que mais tarde viria a se tornar, nos anos 1980-90, uma corrente teórica denominada embodied cognition, segundo a qual a experiência corporal (sensório-motora) é a base para a construção de qualquer tipo de conhecimento. A cognição não está estritamente ligada aos processos e operações puramente mentais, mas se desenvolve a partir das experiências corporais. Somos formados pelas experiências vividas e pelas relações interativas com o ambiente. A ciência chegava a conclusões muito importantes: o corpo está diretamente implicado no conhecimento do mundo – a maneira como se experiencia o mundo interfere determinantemente no que se conhece. Então, uma vez que experiência é algo individual, que pode ser compartilhada apenas parcialmente, é impossível uniformizar o conhecimento de cada corpo diante do mesmo objeto ou evento. Corpo não é um ambiente passivo que reage ao mundo de maneira sempre previsível; é um ambiente ativo que constrói novos conhecimentos e comportamentos na interação com o mundo, em tempo real (DOMENICI, 2010, p. 72). Assim, os processos de conhecimento derivariam da interação entre corpo, mente e ambiente, resultando em uma cognição corporificada, como observaremos mais adiante no trabalho de Varela, Thompson e Rosch (1993), que estabelece um diálogo entre as ciências cognitivas e as tradições budistas da meditação, a psicologia e a filosofia, notadamente a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. 28 1.1 Merleau-Ponty: a experiência corporal como mediação entre sujeito e mundo A fenomenologia, corrente filosófica iniciada no começo do século XX por Edmund Husserl, afirma a importância dos fenômenos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos, recolocando o mundo das essências na existência. Em A fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (1999) elabora uma releitura da fenomenologia husserliana, reconhecendo o papel central do corpo vivenciado como consciência encarnada no mundo. Para Merleau-Ponty (1999) o corpo não é uma coisa ou uma máquina, mas movimento, sensibilidade e expressão criadora. Não é um obstáculo, mas dimensão da totalidade do ser humano, exercendo um papel de mediação entre o indivíduo e o mundo e sendo, a um tempo, natureza e cultura. O pensamento não está fora do corpo; se completa e se torna possível a partir da ação, sendo com ela unidade. Para além disso, o agir, para Merleau-Ponty, tem o seu pensar. O corpo é, dessa forma, fonte de sentido. Ignorar a contribuição da experiência corporal para a construção do saber pode levar à consideração de que essa experiência só se torna conhecimento se transformada em representação ou pensamento. Ao recuperarmos a experiência do corpo, nos deparamos com a experiência primeira, anterior a qualquer ideia. Isso não significa ignorar o pensamento, e sim poder contar com uma concepção mais ampla do pensar, que inclua um pensar anterior àquele convertido em linguagem: o cogito tácito. “O Cogito tácito, a presença de si a si, sendo a própria existência, é anterior a toda filosofia” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 541). Esse saber não é reflexão, fala ou representação; não há que transformá-lo em palavra ou em pensamento. Não é produto do pensamento, e sim, se revela na ação, na intenção, no movimento. Isso significa, em primeiro lugar, que nosso corpo não é um objeto, nem seu movimento um simples deslocamento no espaço objetivo, (...). É preciso que exista, como Kant o admitia, um “movimento gerador de espaço”, que é o nosso movimento intencional, distinto do movimento “no espaço”, que é aquele das coisas e de nosso corpo passivo. Mas há mais: se o movimento é gerador do espaço, está excluído que a motricidade do corpo seja apenas um “instrumento” para a consciência constituinte. (...) O movimento do corpo só pode desempenhar um papel na percepção do mundo se ele próprio é uma intencionalidade original, uma maneira de se relacionar ao objeto distinta do conhecimento. É preciso que o mundo esteja, em torno de nós, não como um sistema de objetos dos quais fazemos 29 a síntese, mas como um conjunto aberto de coisas em direção às quais nós nos projetamos (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 517-518). A intencionalidade é, então, um dirigir-se a algo. Ela dá sentido ao ambiente, ao espaço externo, ao que está ao meu redor; é vivência, consciência e mundo. É, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, ser humano e mundo, pensamento e ser. “O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 576). Sem intencionalidade, os movimentos do corpo seriam desprovidos de direção – é na ação, no movimento, que a espacialidade do corpo se realiza. A partir dela torna-se possível o sentido que aparece no encontro de minhas vivências, da intersecção do eu com o mundo. “O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 18). Ou seja: o mundo é aquilo que percebemos; não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; estou aberto ao mundo, comunico-me com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável – desconstruindo a ideia de um mundo puro, fechado na própria razão de ser (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14). Nossa motricidade acompanha nossa corporeidade, uma não se distinguindo da outra. São a expressão do ser intencional no mundo fenomenológico de que fala Merleau-Ponty. Nós nos inserimos, com nossos desejos e julgamentos, em um mundo tecido de múltiplas relações que interagem e conferem significado às nossas vivências. Assim, o corpo é dimensão da totalidade do ser humano. Não possuo um corpo; eu sou meu corpo. É pela experiência do corpo no mundo que eu me insiro neste mundo. E aqui, experiência não é “experimentalismo” ou “operação intelectual”; a fenomenologia de Merleau-Ponty propõe o retorno ao mundo vivido. Experiência, nesse sentido, seria voltar às coisas mesmas, à sua essência, à originalidade do corpo. E é no movimento intencional que se compreende essa noção de experiência: uma experiência que tem o corpo como origem e lugar de acesso ao mundo, e que tem no espaço o seu lugar de ação. O autor fala de uma intencionalidade operante, corporal, que “já trabalhando antes de qualquer tese ou qualquer juízo (...) só se conhece em seus resultados” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 575). A consciência deve então ser compreendida como perceptiva, mantendo um diálogo permanente com o mundo na medida em que também é corpo. É consciência perceptiva, é ser- no-mundo, é existência. Considerado a partir da experiência merleau-pontiana, o saber não é estático, 30 único e universal, e a educação só poderia ocorrer a partir de um corpo necessariamente visto como um organismo ao mesmo tempo sensório e reflexivo. Partindo de uma leitura sobre as concepções de corpo e existência para Merleau-Ponty, Peixoto (2012) explora a contribuição do filósofo para a educação, buscando o sentido formativo dessas concepções. Em contraposição à instrumentalização, entendida como ato mecânico e preocupado com ações de reprodução e negação do mundo vivido, o autor propõe a formação enquanto expressão de criatividade, autonomia e criticidade. “A educação, nessa perspectiva, precisa ser compreendida como formação, e não como instrumentalização” (PEIXOTO, 2012, p. 50). Sendo o corpo, para Merleau-Ponty, fonte de sentido, a educação, como defende Peixoto, não pode vê-lo como uma coisa; com base nessas perspectivas, o corpo na educação é movimento, comunicação e expressão criativa. De fato, observar que eu sou meu corpo, e além disso, que este corpo é ser-no-mundo – “nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 205) – dá destaque à experiência fundada na perspectiva corporal, cujos processos são processos de subjetivação. Pensar a educação na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty é pensá-la para além das velhas práticas pedagógicas que enfatizam o trabalho técnico separado do expressivo, e romper com as práticas educativas que ignoram o desenvolvimento da corporeidade (PEIXOTO, 2012, p. 50). A experiência de ser e estar no mundo tem espaço aberto por ser corpo, que busca o sentido do que é vivido. Vivenciar essa experiência através da corporeidade, reconfigura nossas percepções a cada nova maneira de ver o mundo. A aprendizagem acontece quando o corpo humano se reorganiza, fazendo emergir sentidos aos seus movimentos exploratórios e firmando, assim, o ser cognoscente. Nesse sentido, a fenomenologia de Merleau-Ponty aponta o papel do corpo na construção de saberes e na produção de subjetividades. Partindo da compreensão do ser humano como ser-no-mundo, e do corpo como lugar gerador da aprendizagem, que entrelaça os elementos motores e perceptivos necessários para a ampliação das significações, a formação envolve uma outra compreensão de percepção e de cognição, que ressignifica a aprendizagem e a relaciona à experiência vivida. 31 1.2 Mente corporificada: a experiência corporal e o conhecimento do mundo vivido A noção de corporificada (embodied6) vai orientar, a partir do final da década de 1980, uma linha de discussão interessada no mundo empírico e “em tornar visíveis os significados de nossas vidas, redefinindo quem e o que somos (GREINER, 2013, p. 28). No caso das ciências cognitivas, essa noção norteou o pensamento de autores que tinham em comum o entendimento de que processos fisiológicos e psicológicos estão entrelaçados, apresentando-se como consequências da estrutura física do organismo e de como essa estrutura interage com o ambiente. Para a embodied cognition, a cognição humana está entrelaçada aos processos sensório-motores, à forma do corpo (a maneira como este corpo se apresenta), aos seus estados internos e ao ambiente em que se encontra. Mesmo com algumas diferenças sutis entre as abordagens da corrente da cognição corporificada, um pensamento fundante é compartilhado por elas, ou seja, o de que a experiência é o meio elementar através do qual o corpo do indivíduo não apenas condiciona as suas crenças, conceitos, pensamentos e ações, como vai sendo modificado ao longo de interações cognitivas em um mundo natural e social (SOUZA, 2017, p. 31). Em estudo publicado pela primeira vez em 1991 sob o título The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience, Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch, a partir da aproximação entre ciências cognitivas, tradições budistas, psicologia meditativa e filosofia, buscam, no gesto da experiência humana, uma nova proposta sobre a concepção de corpo e o entendimento do processo de cognição. Os autores apresentam o argumento de que, para haver um modelo integrativo de ciência, é preciso considerar aspectos “em primeira pessoa”, ou experiências, de maneira que estes também possam ser incluídos em estudos empíricos. Esta é uma ideia central, exposta já na introdução do livro que apresenta o estudo. Este livro começa e termina com a convicção de que as novas ciências da mente precisam ampliar seu horizonte para abranger tanto a experiência 6 Não é fácil traduzir o termo embodied. Encontramos mais usualmente a palavra traduzida como encarnado, ou incorporado, como no caso da versão para o português do livro ao qual esta seção se refere, publicada em 2003 como “Mente Incorporada”. Acredito que estas não seriam as palavras mais adequadas para este trabalho, porque remetem a algo não corpóreo que se torna corpóreo. Por esse motivo escolhi traduzir o termo como corporificado, que usarei doravante sempre que precisar mencioná-lo em português. 32 humana vivida quanto as possibilidades de transformação inerentes à experiência humana7 (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993, p. xv). Dessa forma, o conhecimento não seria o resultado de um espelhamento da natureza pela mente, mas sim, depende do ser-no-mundo. O “conhecer o mundo” emerge da atuação do sujeito no mundo concreto, material, encarnado – a mente não apenas capta e processa informações, mas se apresenta como mente corporificada ou embodied mind, sugerindo uma mudança na natureza da reflexão, que passa de uma atividade abstrata (desincorporada) para uma reflexão atenta, aberta (corporificada), ou seja, uma reflexão que não separe corpo e mente. “O que essa formulação pretende transmitir é que a reflexão não está apenas na experiência, mas é ela mesma uma forma de experiência em si – e que a forma reflexiva da experiência pode ser realizada com atenção consciente8” (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993, p. 27). Partindo dessa concepção, a ciência cognitiva – embora não apenas esta – precisaria ser entendida a partir da constante inter-relação entre sujeito, corpo9, e mundo. O sujeito entende e vai ao encontro da realidade por meio de um corpo vivido, um corpo experiencial. “Assim, observe que nossa cognição é direcionada para o mundo de maneira determinada: ela é direcionada ao mundo conforme nós a experienciamos10” (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993, p. 52). Para que tal fato possa ocorrer, é preciso que exista uma interação sistêmica bastante complexa entre mente, corpo e mundo, que confira significação ao sujeito em contato com o mundo. Ou seja, processos cognitivos como ações, comportamentos e percepções se dão na interação entre sujeito e mundo. Vamos explicar o que queremos dizer com a expressão ação corporificada. Ao usar o termo corporificado, queremos destacar dois pontos: primeiro, que a cognição depende dos tipos de experiência que provêm de se ter um corpo com várias capacidades sensório-motoras, e segundo, que essas capacidades sensório-motoras individuais estão embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente11 (VARELA; 7 No original This book begins and ends with the conviction that the new sciences of mind need to enlarge their horizon to encompass both lived human experience and the possibilities for transformation inherent in human experience. Todas as traduções presentes nesta tese são minhas. 8 No original What this formulation intends to convey is that reflection is not just on experience, but reflection is a form of experience itself-and that reflective form of experience can be performed with mindfulness awareness. O grifo é dos autores. 9 Aqui o corpo entendido como organismo biológico/fisiológico. 10 No original Thus notice that our cognition is directed toward the world in a certain way: it is directed toward the world as we experience it. Grifo dos autores. 11 No original: Let us explain what we mean by this phrase embodied action. By using the term embodied we mean to highlight two points: first, that cognition depends upon the kinds of experience that come from 33 THOMPSON; ROSCH, 1993, p. 172-173). O termo “ação” se refere aos processos sensoriais e motores, já que, segundo os autores, a percepção e a ação são inseparáveis na cognição, tendo evoluído juntas. Essa ação corporificada passa a ser chamada “enação”, e a partir daí não é mais possível pensar na cognição como representação de um mundo preestabelecido, elaborada por uma mente predefinida; longe disso, a cognição seria “o conjunto de um mundo e de uma mente a partir da história de diversas ações que caracterizariam um ser no mundo” (GREINER, 2013, p. 29). A abordagem enativa, ou atuacionista, afirma que todo conhecimento é inseparável do sujeito cognoscente, e que sujeito e mundo constituem-se mutuamente, apontando para a interdependência entre estrutura biológica e práticas sociais e culturais. A cognição, nesse ponto de vista, não pode ser isolada da estrutura e da experiência (corporificação) do sujeito, em sua maneira de estar no mundo. Corpo físico ou biológico e corpo fenomenológico ou experiencial são a mesma estrutura, o que sugere uma conexão que integra o pensar, o ser e o interagir com o mundo ao redor. Processos mentais estão atrelados ao corpo e às ações que este estabelece em seu meio. O corpo é assim entendido como um sistema que muda ao longo do tempo, passando por processos coevolutivos com o ambiente que o envolve. O sujeito se autorregula de maneira a significar o mundo e o contexto no qual se encontra. Na abordagem atuacionista, o conhecimento emerge desse sistema que entrelaça o sujeito conhecedor e o objeto do conhecimento por meio de ações efetivas e adaptativas no mundo. Em síntese, a enação (ou abordagem atuacionista) é concebida sobre duas noções correlacionadas: “(1) a percepção consiste na ação perceptivamente orientada e (2) as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores recorrentes que permitem que a ação seja perceptivamente orientada12” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1993, p. 173). Em outros termos, “percepção” é a maneira pela qual quem está percebendo consegue guiar suas ações. Isso significa que o ponto de referência necessário para que se compreenda a percepção deixa de ser um mundo predeterminado e independente de quem o percebe para tornar-se a estrutura sensório-motora desse que percebe. “Essa estrutura – a maneira pela having a body with various sensorimotor capacities, and second, that these individual sensorimotor capacities are themselves embedded in a more encompassing biological, psychological, and cultural context (grifos dos autores). 12 No original: (1) perception consists in perceptually guided action and (2) cognitive structures emerge from the recurrent sensorimotor patterns that enable action to be perceptually guided. 34 - qual o observador é corporificado – é que determina como o observador pode agir e ser modulado por eventos ambientais13” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1993, p. 173). Ou seja: a preocupação geral de uma abordagem atuacionista da percepção não é determinar como algum mundo independente do observador deve ser recuperado. Trata-se, isto sim, de determinar os princípios comuns ou ligações entre os sistemas sensoriais e motores que explicam como a ação pode ser perceptivamente orientada em um mundo dependente do observador. O conceito de “mente corporificada” tal como apresentado pelos autores, conduz à ideia de uma mudança fundamental no entendimento do papel desempenhado pelo corpo no processo de aprendizagem. Uma vez que a experiência está ancorada na nossa estrutura sensório-motora, e que existe uma interconexão entre cognição e experiência, ação e percepção, e entre um modo particular de ser e o modo como o mundo nos aparece, é possível dizer que não há aprendizagem sem percepção e movimento. A experiência corpórea do mundo interfere no que se conhece dele. Longe de apenas reage passivamente ao mundo de maneira previsível, e assim, poder ser entendido como instrumento (a ser treinado de forma mecânica e repetitiva), ou recipiente (a ser abarrotado de informações para reprodução), o corpo, nesse entendimento, constrói ativamente novos conhecimentos na interação com o mundo, como um sistema complexo em constante transformação. Aqui creio ser importante lembrar o objetivo desse trabalho, qual seja, construir uma proposta de preparação vocal para cantoras e cantores coralistas que consista em um espaço de aprendizagem, experienciação e exploração do ato de cantar, para possibilitar à cantora e ao cantor coralista aprendiz reconhecer seu próprio corpo como um organismo que trabalha como unidade para, a partir daí, ser capaz de se expressar por meio de sua voz. Para isso, é necessário entender a voz como um complexo dinâmico (que muda continuamente) que reflete quem somos, nossas ações, desejos, emoções e atitudes; que influencia e é influenciado pelo meio, pelas situações e períodos de vida; que é corpo, e assim, é também expressão e movimento. Uma proposta de preparação (entendida como formação, no sentido apontado por Peixoto) dessa voz, não pode ser pensada puramente como trabalho mecânico ou treinamento físico. É necessário entender que o corpo age como um sistema, do qual também participa o ambiente que o envolve, e que esse sistema inclui a voz. O ato de cantar, 13 No original: This structure – the manner in which the perceiver is embodied – rather than some pregiven world determines how the perceiver can act and be modulated by environmental events. 35 nesse contexto, é construído na inter-relação corpo-ambiente, consistindo em um processo contínuo de aprendizagem e transformação. A experiência sensório-motora do corpo em movimento desempenha papel fundamental na aprendizagem do canto. O corpo é o ambiente no qual essa aprendizagem acontece, a partir das experiências vividas na interação com o meio e com outros corpos. Considerar que voz é corpo, e que este se apresenta como um sistema vivo caracterizado por plasticidade e permeabilidade (adaptações momento a momento entre sujeito e o ambiente), autonomia, tomada de sentido, emergência, experiência e busca de equilíbrio, aproxima o ato de cantar da abordagem enativa da cognição corporificada. E como caminho em direção a uma proposta de preparação vocal da cantora e do cantor coralista que leve em conta este entendimento de voz como corpo, apresento, no capítulo que segue, a Educação Somática. 36 2 Educação Somática e canto A Somática pode ser vista tanto como um campo teórico de conhecimento quanto como um conjunto de práticas corporais. Enquanto campo de conhecimento, costuma-se citar o livro The body thinking (“O corpo pensante” em tradução livre) de Mabel Todd (1937) como a primeira publicação da área. No livro, a autora chama a atenção para o que ela nomeia como corpo inteligente: um corpo que não está separado da mente; um corpo que pensa enquanto corpo. Já o termo “somática” foi proposto por Thomas Hanna em 1976, no artigo The Field of Somatics, como uma reinterpretação da palavra grega soma (corpo vivenciado). Hanna estabelece uma diferença entre corpo e soma a partir do modo de percepção da estrutura: soma seria o corpo subjetivo, e corpo, aquele que é percebido objetivamente. Somática é o campo que estuda o soma: a saber, o corpo como percebido de dentro pela percepção de primeira pessoa. Quando um ser humano é observado de fora – isto é, do ponto de vista de uma terceira pessoa – o fenômeno de um corpo humano é percebido. Mas, quando esse mesmo ser humano é observado do ponto de vista da própria pessoa, a partir de seus sentidos proprioceptivos, um fenômeno categoricamente diferente é percebido: o soma humano14 (HANNA, 1986, s/p). Somatics era o nome de uma revista publicada a partir de 1976 pelo próprio Hanna. Na revista, o autor usou o termo para descrever abordagens desenvolvidas por diferentes terapeutas e educadores que trabalhavam com base na integração corpo e mente em suas práticas (FERNANDES, 2015). E, ao propor um novo campo de conhecimento, o próprio autor o define, não apenas especificando seu objeto de conhecimento, mas também o reconhecendo como uma prática profissional. Aqui, arte e ciência estariam interessadas nos processos de interação sinérgica entre consciência, funcionamento biológico e meio ambiente. Existe um enorme alcance para o campo somático; as orientações da pesquisa são tão variadas quanto as direções e os interesses das variadas ciências que entram nesse campo. À medida que a pesquisa somática 14 No original: Somatics is the field which studies the soma: namely, the body as perceived from within by first-person perception. When a human being is observed from the outside – i.e., from a third-person viewpoint – the phenomenon of a human body is perceived. But, when this same human being is observed from the first-person viewpoint of his own proprioceptive senses, a categorically different phenomenon is perceived: the human soma (grifo do autor). 37 cresce e enriquece a nossa compreensão do processo de vida individual, nos aproximamos de alcançar o que eu acredito ser o desafio central do campo da somática: a formação de uma somatologia. Como eu a entendo, a somatologia seria uma anatomia do processo somático, pelo qual o processo funcional/estrutural da vida é descrito a partir de suas características principais para suas características periféricas. Mesmo que a anatomia grosseira descreva as características centrais e periféricas das estruturas corporais, a somatologia descreveria as funções de vida consistentes e antigas afetadas pelas estruturas consistentes dos corpos vivos15 (HANNA, 1976, s/p). Assim, o termo sugerido por Hanna ajudou a descrever e unificar sob uma expressão processos criados a partir de experiências corporais individuais. No entanto, a diversidade dessas experiências e das práticas geradas por elas, que diferem em tempo, contexto e objetivos e se estendem do fim do século XIX até nossos dias, faz com que existam muitas maneiras de se definir o campo somático. Isabelle Ginot, por exemplo, sugere a expressão somatic knowledge como possibilidade para se referir às entidades múltiplas que a informam, assim como seu emergir das experiências corporais, evitando reduzir diversos métodos práticos em um único modelo teórico (apud DE GIORGI, 2015, p. 55). Para este trabalho adotei a expressão Educação Somática, mais usualmente dirigida à prática, na acepção proposta por Sylvie Fortin (1999, p. 40) em artigo traduzido para o português16, primeira publicação da área no Brasil: conjunto de práticas corporais alternativas que propõem uma visão do corpo na qual as estruturas orgânicas nunca estão separadas de suas histórias pulsional, imaginária e simbólica. “Novo campo de estudo, a educação somática engloba uma diversidade de conhecimentos onde os domínios sensorial, cognitivo, motor, afetivo e espiritual se misturam com ênfases diferentes” (FORTIN, 1999, p. 40). A autora define três períodos distintos no desenvolvimento da educação somática: as três primeiras décadas do século XX, quando os pioneiros desenvolviam seus métodos (em geral partindo 15 No original: There is an enormous range to the somatic field; the directions of research are as varied as are the directions and interests of the varied sciences which enter into this field. As somatic research grows and enriches our understanding of the process of individuated life, we will come nearer to achieving what I believe to be the central challenge of the field of somatics: namely, the formation of a somatology. As I understand it, a somatology would be an anatomy of somatic process, whereby the functional/structural process of life is described from its core features out to its peripheral features. Even as gross anatomy describes the central and peripheral features of the bodily structures, a somatology would describe the consistent and ancient life functions implied by the consistent structures of living bodies. 16 FORTIN, Sylvie. L'education somatic et la formation en danse. Nouvelles de Danse. Bruxelas: Contradanse, n. 28, p. 15-30, 1996. Publicado em português no número 2 dos Cadernos do GIPE-CIT (1999). Disponível em https://view.officeapps.live.com/op/view.aspx?src=http://www.teatro.ufba.br/gipe/files/cadern_02.doc Acesso em 12 jun. 2017. 38 de uma questão de autocura); de 1930 a 1970, período no qual ocorre a disseminação dos métodos pelos discípulos desses pioneiros; e a partir dos anos 1970, com as diferentes aplicações e integrações das práticas a estudos terapêuticos, psicológicos, educativos e artísticos (FORTIN, 1999, p. 41). Embora múltiplas e diversas, todas as práticas somáticas consideram o corpo como uma unidade nos aspectos físico, emocional e cognitivo, a partir de um enfoque na experiência pessoal do indivíduo que se baseia numa compreensão do todo. Partindo deste entendimento, que práticas podem ser então consideradas somáticas? A lista, de acordo com as fontes pesquisadas, não é pequena nem consensual, e parece crescer a cada dia devido às próprias premissas deste campo. Costa e Strazzacappa (2015) em pesquisa documental e quantitativa que buscou investigar os diferentes campos do conhecimento em que se realizavam produções científicas sobre Educação Somática, apresentam a seguinte lista de práticas sobre a qual foi feito o estudo: Foram usadas como palavras-chave, por assunto, entre aspas: Educação Somática; Técnica Feldenkrais; Eutonia; Técnica Alexander ou Mathias Alexander; Métodos das Cadeias Musculares e Articulares ou Método G.D.S. ou, ainda, Godelieve Denys-Struyf; Ginástica Holística ou Dra. L. Ehrenfried; Método Bertazzo ou Ivaldo Bertazzo; Técnica Klaus Vianna; e Método de Reorganização Postural Dinâmica ou José Antônio de Oliveira Lima (COSTA; STRAZZACAPPA, 2015, p. 42). A busca sobre trabalhos acadêmicos com este tema teve como fontes prioritárias o site de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o site da Biblioteca Nacional Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), e evidenciou uma maior representatividade acadêmica na área de Artes, seguida da área da Saúde, concluindo que a Educação Somática é multidisciplinar. No mesmo trabalho as autoras se referem ao primeiro Encontro Internacional de Educação Somática no Brasil, organizado pelo Laboratório de Estudos sobre Artes, Corpo e Educação/Laborarte da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em parceria com o Serviço Social do Comércio (SESC) de Campinas (SP) em novembro de 2001. O encontro teve duração de uma semana e contou com representantes das seguintes linhas de trabalho: Método Feldenkrais, Técnica de Alexander, Eutonia, Ginástica Holística, Body- Mind-Centering, Ideokinesis, entre outros (COSTA; STRAZZACAPPA, 2015). Já Fernandes (2015), em artigo no qual discute a Somática na contemporaneidade a partir de suas bases técnicas e conceituais, apresenta outra lista bem 39 mais abrangente: Dentre as técnicas somáticas existentes na contemporaneidade, podemos citar a Técnica Alexander, os Bartenieff FundamentalsTM, o Body-Mind Centering®, as Connective Tissue Techniques®, o Continuum, o Dynamic Embodiment©, a Eutonia, a Klein TechniqueTM, o Feldenkrais Method®, a Hanna Somatic Education, a Ideokinesis, a Postural Integration, o Progressive Relaxation, o Rolfing, a Reorganização Postural Dinâmica, o Rosen Method Bodywork, a Sensory Awareness, a Skinner Release Technique, a Spiral Praxis, a Strozzi Somatics, a Técnica Klaus Vianna, o 3-D WorkoutTM, a Trager Approach e a Voice Movement Integration. Métodos somáticos afins a técnicas somáticas são, por exemplo, o Authentic Movement, o Embodied ConductingTM, o Kestenberg Movement Profile, a Laban/Bartenieff Movement Analysis (que inclui os Bartenieff FundamentalsTM), a Movement Pattern Analysis, o Somatic CenteringTM (que inclui o Rolfing), a Somatic ExperiencingTM, entre outros (FERNANDES, 2015, p. 12-13). Para a autora, as diferentes práticas poderiam ser consideradas técnicas ou métodos, diferenciando-se por seu arcabouço constitutivo: exercícios (técnica) ou procedimentos (método), ambos guiados por princípios17. A autora levanta ainda a questão das controvérsias quanto ao Método Pilates ser ou não uma técnica somática; no entanto, não o coloca entre as técnicas ou métodos citados. Apesar da delimitação da somática por Thomas Hanna ter tomado por base práticas terapêuticas já existentes e disseminadas na década de 1970, grande parte dos trabalhos citados pelas autoras acima foi pensado ou estruturado depois disso, e passou a ser reconhecida como parte de um campo com premissas comuns, “inclusive em constantes atualizações a partir de métodos criados por discípulos daqueles pioneiros, num processo de diferenciação, multiplicação e expansão de especialidades que continua até hoje” (FERNANDES, 2015, p. 12). Bolsanello (2007), ao elaborar em artigo a expressão “educação somática”, a define como “um campo teórico-prático que se interessa pelas relações entre a motricidade humana, a consciência e o aprendizado” (BOLSANELLO, 2007, p. 99). A mesma autora organizou um livro no qual apresenta, por meio de diferentes autores brasileiros e 17 A despeito dessa classificação sugerida por Fernandes e do uso destes mesmos termos, técnica ou método, pelos autores que cito nesta seção, preferi adotar a expressão “práticas somáticas” para me referir aos trabalhos criados por educadores somáticos que embasam esta pesquisa. Utilizo os termos “técnica” ou “método” com letra maiúscula quando esses fizerem parte dos nomes pelos quais as práticas são conhecidas (por exemplo, “Técnica de Alexander”). 40 estrangeiros, uma variedade de métodos e técnicas que se propõem como somáticos. No índice podemos ter ideia de que práticas ganharam espaço: Bartenieff, Técnica Alexander, Eutonia, Método Feldenkrais, Método das Cadeias Musculares e Articulares G.D.S, Método Body-Mind Centering, Continuum, Somaritmos, Ginástica Holística, Antiginástica, Somato- psicopedagogia, Pilates, Métodos S. P. S. (Sistema Postural Seijas) e o Método Gyrotonic (BOLSANELLO, 2010). Em tese na qual trata da apresentação e descrição da Reorganização Postural Dinâmica como técnica de Educação Somática, Lima (2010) discute a concepção da área. Para o autor, teriam destaque no universo da Educação Somática o Método Feldenkrais, Técnica de Alexander e a Antiginástica18, aos quais se juntam ainda: Body&Mind Centering de Cohen, Fundamentals de Bartenieff, Eutonia de Gerda Alexander, Ideokinesys de Lulu Sweigard e a Ginástica Holística da Dra. Ehrenfried (LIMA, 2010, p. 46). Por fim, o Reagrupamento pela Educação Somática (R.E.S.), organismo sem fins lucrativos fundado em 1995, em Quebec, Canadá que se propõe ser um espaço de pesquisa e de ações pelo avanço da prática da Educação Somática, reconhece como práticas possíveis de serem assim nomeadas a Técnica de Alexander, o Método de Feldenkrais, a Aproximação Global do Corpo e Método de Liberação das Couraças e a Ginástica Holística da Dra. Ehrenfried19. Embora não se apoiem nos mesmos princípios e procedimentos, as propostas listadas acima como práticas de Educação Somática têm muito em comum. Em essência, todas elas se fundamentam na ideia de um corpo único e indivisível, sem as tradicionais fragmentações a ele impostas: corpo/espírito, corpo/mente, etc. Além disso, suas teorias a respeito das possibilidades de movimentos e visão de corpo estão embasadas em conhecimentos de caráter científico (com suporte nas ciências biológicas e humanas)20. 18 Embora cite e descreva a Antiginástica no capítulo dedicado à definição de Educação Somática, o autor ressalta também a perda de espaço da prática e o fato de não ser (segundo ele) considerada uma prática de Educação Somática pelas organizações internacionais RES (Reagrupamento da Educação Somática) e ISMETA (LIMA, 2010, p. 46). 19 Acesso em 19/06/2017. 20 Abro aqui um parêntese para falar brevemente sobre o papel da ciência na Educação Somática. Isabelle Ginot, analisando os princípios gerais de produção de conhecimento e transmissão de práticas somáticas, afirma que estas estão no interstício entre duas modalidades do conhecimento: “uma é a que ‘faz conhecer’ verdades estáveis e repetíveis: a ciência. A outra é aquela do saber sensível, do conhecimento empírico, singular, infinitamente variável, que derrota todas as medições visto que, precisamente, só se compara a si mesmo” (GINOT, 2010, p. 12). A autora conclui que a função principal da ciência no discurso das práticas somáticas é a de alimentar a “crença” na eficácia desses métodos, ou seja, “acreditar” na natureza “científica”, universal e “demonstrável” da experiência para que se possa oferecer um horizonte estável e coletivo à uma experiência instável e singular (GINOT, 2010, p. 8). Com base em meus estudos e 41 Todas trabalham com a ideia de que a relação do sujeito com o mundo fixa sua estrutura corporal, bem como seu comportamento psicomotor, podendo interferir em seu desempenho – a mudança das estruturas corporais aconteceria no experienciar, através do corpo, o desenvolvimento da consciência de si do indivíduo. Além disso, nos desdobramentos das propostas (em especial a partir do terceiro período conforme descrito por Sylvie Fortin nesta seção) são encontradas interfaces destas com as áreas da educação, da arte e da saúde. 2.1 Somática, enação e canto coral No capítulo anterior, ao argumentar a favor de uma proposta de preparação vocal guiada pelo conceito de “enação”, observei um ponto de articulaç