Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP VANDERLEI DE CASTRO EZEQUIEL “A VIOLÊNCIA, ELA VEIO DO ESTADO, DEPOIS ELA VEIO DOS PROFESSORES”: medo, violência e memória das manifestações secundaristas paulistas de 2015 ARARAQUARA – SP 2023 VANDERLEI DE CASTRO EZEQUIEL “A VIOLÊNCIA, ELA VEIO DO ESTADO, DEPOIS ELA VEIO DOS PROFESSORES”: medo, violência e memória das manifestações secundaristas paulistas de 2015 Tese de Doutorado, apresentado ao Conselho, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientadora: Professora Dra. Maria Ribeiro do Valle Bolsa: ARARAQUARA – SP 2023 VANDERLEI DE CASTRO EZEQUIEL “A VIOLÊNCIA, ELA VEIO DO ESTADO, DEPOIS ELA VEIO DOS PROFESSORES”: medo, violência e memória das manifestações secundaristas paulistas de 2015 Tese de Doutorado, apresentado ao Conselho, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento Social Orientadora: Profa. Dra. Maria Ribeiro do Valle Bolsa: Data da defesa: 05/06/2023 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: _________________________________________________________________________________ Presidenta e Orientadora: Dra. Maria Ribeiro do Valle Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) _________________________________________________________________________________ Membro Titular: Dra. Rosemary Segurado Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) _________________________________________________________________________________ Membro Titular: Dr. Luís Antônio Groppo Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL) _________________________________________________________________________________ Membro Titular: Dr. Pablo Emanuel Romero Almada Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) _________________________________________________________________________________ Membro Titular: Dr. Edmundo Antônio Peggion Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Aos alunos e alunas que lutam pela escola pública. AGRADECIMENTOS Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP-FCLAr, pela oportunidade dada para a elaboração deste trabalho. À minha mãe, Ana Maria, pelo apoio, amor e dedicação desde sempre. À minha orientadora, Profa. Maria Ribeiro do Valle, por ter me aceitado como orientando, e por todas as sugestões e comentários. Além de ter me permitido construir a pesquisa com autonomia e liberdade. Aos professores Luís Antônio Groppo e Rosemary Segurado, que fizeram parte do meu exame de qualificação e contribuíram com o desenvolvimento das ideias contidas neste trabalho. A todos os membros titulares da banca examinadora da tese: Rosemary Segurado, Luís Antônio Groppo, Pablo Emanuel Romero Almada, Edmundo Antônio Peggion. Agradeço a leitura atenta e rigorosa do meu trabalho. Todos os comentários, críticas e elogios foram extremamente importantes para mim e para o meu crescimento intelectual e pesquisas futuras. A todos e todas que aceitaram responder as perguntas desta pesquisa que, por sigilo ganharam os pseudônimos. Aos alunos e alunas: Fabiano, Mirela, Kaique, Alice, Daniele, Felipe, Jaci, Flávia, Rafael, Matheus, Laura e Thais. Às professoras e professores: Antônio, Carlos, Marcos, Thiago, Cláudia, Ana, Marcelo, Marta e César. Às apoiadoras e apoiadores: Nanci, Rosa, Sebastião, Júlio e Joana. Às funcionárias e aos funcionários da Seção Técnica de Pós-Graduação da UNESP- FCLAr, em especial ao Juliano e à Mariana, que sempre me atenderam prontamente. A todas e todos mestrandos e doutorandos que fizeram parte comigo das aulas presenciais no campus Araraquara, antes da pandemia de Covid-19. Foi um prazer conhecer e conviver semanalmente com essa turma, especialmente com os colegas de doutorado, Janaína, Bia, Aline, Milene e Jonatas. Ao querido amigo e parceiro de viagem semanal para Araraquara, Oswaldo Soulé Jr, pelo companheirismo e longas reflexões nas estradas paulistas. Às revisoras, Aline e Emerenciana, pelo carinho com que trataram meu texto. Ao orientador da minha dissertação de mestrado, Cláudio Novaes Pinto Coelho, que contribuiu enormemente com a minha formação intelectual. Aos familiares, amigos e amigas por compreenderem minha ausência nos períodos mais intensos de estudos. Aos olhos de nossos gestores políticos, a resistência dos secundaristas não passava de uma reação passageira, de um estorvo a ser rapidamente removido, uma insanidade juvenil. Mas de repente, inverteu-se a equação – insanidade era o que apareceu aos olhos de todos, da prepotência surda do Secretário de Educação à barbárie fascista da Polícia Militar, protegida pelo Secretário de Segurança, e que se abateu sobre o corpo das crianças e jovens de maneira. Peter Pál Pelbart, abril de 2016. (Esse texto foi lido no Colégio Fernão Dias Paes, em 28 de abril de 2016, durante debate público em torno do tema da Ética, com a participação de Marilena Chauí, alunos, pais, professores e funcionários da escola, por iniciativa de Dalva Garcia, professora da escola e da PUC-SP). RESUMO Ao iniciarmos esta pesquisa, constatamos que havia uma carência de trabalhos que abordassem em profundidade o tema da violência contra o movimento secundarista paulista de 2015. Por isso, consideramos relevante refletir sobre as situações de violência contra os e as estudantes, registrando o fenômeno a partir de suas memórias. Assim, partimos da seguinte problemática: Qual a memória/percepção dos e das estudantes em relação às múltiplas violências que sofreram durante o movimento secundarista? O que a violência fez com a subjetividade dos e das estudantes? Por que as manifestações pacíficas dos e das estudantes secundaristas foram reprimidas com violência? Diante disso, a pesquisa teve como objetivo geral identificar e refletir sobre as múltiplas situações de violência praticadas contra os e as secundaristas paulistas. Para tanto, foi necessário mapear as situações de violência praticadas contra os e as estudantes, analisar como a grande imprensa paulista noticiou a violência contra os e as manifestantes e refletir sobre o impacto da violência na memória dos e das estudantes. Realizamos, então, três tipos de pesquisa, a saber: a pesquisa bibliográfica, a documental e a pesquisa de campo. A pesquisa bibliográfica inicial se concentrou em publicações acadêmicas que abordaram as manifestações secundaristas. Os dados obtidos nessas leituras proporcionaram uma visão panorâmica dos fatos e das situações de violência. De posse dessas informações, partimos para uma pesquisa em teses e dissertações sobre o assunto. Por fim, realizamos pesquisa bibliográfica em obras de referência para o debate teórico-conceitual. A pesquisa documental consistiu no levantamento das notícias publicadas na imprensa sobre o movimento secundarista, para isto, selecionamos os dois maiores jornais paulistas: Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo. Na pesquisa de campo, realizamos entrevistas com os e as manifestantes. Entretanto, a dificuldade em obter as entrevistas, levou-nos a utilizar a técnica bola de neve (descrita no item 3.1.2), que resulta numa amostra não-probabilística. Como estávamos no auge da pandemia de Covid-19, todos os contatos foram realizados por meio de aplicativo de troca de mensagens (WhatsApp). Foram obtidas 26 entrevistas. Diante disso, verificamos que, embora os e as secundaristas tenham realizado um movimento pacífico, reivindicando principalmente o direito de discutir o projeto do governo paulista, eles enfrentaram a forte repressão policial. Ademais, sofreram violência física e psicológica da direção escolar e docentes, além de atos violentos praticados por outros atores sociais contrários ao movimento. Verificamos, ainda, que o medo da violência deixou marcas profundas na subjetividade dos e das manifestantes. Por fim, verificamos que os dois maiores jornais paulistas seguiram uma linha editorial muito semelhante ao noticiar as manifestações secundaristas, limitando o confronto de versões e opiniões sobre o movimento. Concluímos que, a grande imprensa paulista não noticiou o fenômeno da violência contra os e as estudantes em sua totalidade. Nesse sentido, defendemos, nesta tese de doutorado, que o estudo das situações de violência em sua profundidade, escutando os e as manifestantes, permite uma visão mais abrangente dos fatos. Enfim, compreendemos que, apesar de suas limitações, esta pesquisa se tornou uma denúncia da violência contra os e as estudantes secundaristas, constituindo sua relevância acadêmica e social ao mesmo tempo. Palavras-chave: Movimento secundarista; ocupações; violência; medo; memória. ABSTRACT When we started this research, we found that there was a lack of works that addressed in depth the theme of violence against the high school movement in São Paulo in 2015. Therefore, we consider it relevant to reflect on situations of violence against students, recording the phenomenon from the perspective of of your memories. Thus, we start from the following problem: What is the memory/perception of the students in relation to the multiple violence they suffered during the secondary movement? What did violence do to the subjectivity of the students? Why were the peaceful demonstrations of high school students repressed with violence? In view of this, the research had as its general objective to identify and reflect on the multiple situations of violence practiced against high school students from São Paulo. For that, it was necessary to map the situations of violence practiced against the students, analyze how the great São Paulo press reported the violence against the protesters and reflect on the impact of violence in the memory of the students. We then carried out three types of research, namely: bibliographic research, documentary research and field research. The initial bibliographical research focused on academic publications that addressed secondary manifestations. The data obtained from these readings provided a panoramic view of the facts and situations of violence. With this information in hand, we set out to research theses and dissertations on the subject. Finally, we carried out bibliographical research in works of reference for the theoretical- conceptual debate. The documentary research consisted of surveying the news published in the press about the secondary movement, for this, we selected the two largest newspapers in São Paulo: Folha de S.Paulo and O Estado de S. Paulo. In the field research, we conducted interviews with the demonstrators. However, the difficulty in obtaining the interviews led us to use the snowball technique (described in item 3.1.2), which results in a non-probabilistic sample. As we were at the height of the Covid-19 pandemic, all contacts were made through a messaging application (WhatsApp). 26 interviews were obtained. In view of this, we found that, although the high school students carried out a peaceful movement, mainly claiming the right to discuss the São Paulo government project, they faced strong police repression. Furthermore, they suffered physical and psychological violence from the school board and teachers, in addition to violent acts committed by other social actors opposed to the movement. We also verified that the fear of violence left deep marks on the subjectivity of the demonstrators. Finally, we found that the two largest São Paulo newspapers followed a very similar editorial line when reporting high school demonstrations, limiting the confrontation of versions and opinions about the movement. We conclude that the great São Paulo press did not report the phenomenon of violence against students in its entirety. In this sense, we defend, in this doctoral thesis, that the study of situations of violence in their depth, listening to the demonstrators, allows a more comprehensive view of the facts. Finally, we understand that, despite its limitations, this research has become a denunciation of violence against high school students, constituting its academic and social relevance at the same time. Keywords: Secondary movement; occupations; violence; fear; memory. TABELAS Tabela 1 - Perfil das pessoas entrevistadas ................................................................. 158 FIGURAS Figura 1 - Jovens se reúnem em frente ao shopping Metrô Itaquera - Reprodução/Facebook 85 Figura 2 - A PM foi acionada por conta do "rolezinho", no shopping Interlagos; ninguém ficou detido - Joel Silva/Folhapress ................................................................................................... 86 Figura 3 - Alunos da rede estadual realizam uma manifestação na pista sentido Consolação da Avenida Paulista. Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADAO ................................................ 94 Figura 4 - Jovem é detido por policiais enquanto estudantes de escolas estaduais protestam na Avenida Paulista, na região central de São Paulo. (Leonardo Benassatto/Futura Press/Estadão Conteúdo) ................................................................................................................................. 96 Figura 5 - Grupo tentou invadir sede do governo estadual – Foto: Hélvio Romero/Estadão... 97 Figura 6 - Estudantes da rede estadual protestam em frente a secretaria de educação na praça da República , no centro , contra o projeto de reorganização das escolas Foto: CLAYTON DE SOUZA/ESTADAO ................................................................................................................. 98 Figura 7 - Alunos e professores da rede estadual de ensino fazem protesto na Avenida Paulista contra a reorganização das escolas do Estado Foto: Nilton Fukuda/Estadão ......................... 100 Figura 8- Entrada lotada da EE Diadema - Reprodução do site Aprendiz. ............................ 107 Figura 9 - Toda a Escola Estadual Fernão Dias Paes permanece cercada por policiais, que vigiam as grades para impedir que os alunos recebam alimentos e água de fora Foto: Hélvio Romero/Estadão ..................................................................................................................... 109 Figura 10 - Estudante ficou caída e foi socorrida por colega Foto: Luiz Cláudio Barbosa/Código19 .................................................................................................................. 110 Figura 11 - CONTRA REORGANIZAÇÃO, ALUNOS OCUPAM TERCEIRA ESCOLA EM SP - Foto: Isabela Palhares/Estadão ....................................................................................... 112 Figura 12 - PM agrediu manifestantes com cassetete e spray de pimenta em Pinheiros Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO ............................................................................................. 113 Figura 13 - Festa em Pinheiros. Inicialmente, juiz autorizou remoção de alunos, sem uso de violência Foto: ALEX SILVA/ESTADAO ............................................................................ 114 Figura 14 - Estudante é levada por dois policiais militares a delegacia Foto: Giovana Morais ................................................................................................................................................ 118 Figura 15 - Rosemeire Ferreira, Flavia Meireles, Flavia Oliveira e Célia Lustosa evitam ocupação de escola – Foto: Zanone Fraissat/Folhapress ........................................................ 119 Figura 16 - Veja alguns motivos que levam a pasta a ter dificuldades para convencer a população sobre os possíveis benefícios da medida. Foto: SÉRGIO CASTRO/ESTADÃO 122 Figura 17 - Alunos da Escola Fernão Dias Paes interditam cruzamento contra o fechamento de escolas da gestão Alckmin (PSDB). Foto: Werther Santana/Estadão .................................... 125 Figura 18 - Alunos a favor de ocupações de escolas liberam av. Faria Lima após 3 horas - Marlene Bergamo - 30.nov.15/Folhapress ............................................................................. 126 Figura 19 - Estudantes bloqueiam a marginal do Tietê, na altura da ponte do Piqueri, durante um protesto – Adriano Vizoni – 30 nov.2015/Folhapress. ..................................................... 126 Figura 20 - Alckmin publica decreto e avança na reforma dos ciclos da rede paulista - Marlene Bergamo - 1º.dez.2015/Folhapress ......................................................................................... 128 Figura 21 - Policial aplica “mata-leão” em manifestante durante protesto que terminou em confusão na avenida 9 de julho, na região central de São Paulo, na noite desta terça (1) – Joel Silva 1º.dez.2015/Folhapress .................................................................................................. 129 Figura 22 - Jovem é dominado por policiais militares e encaminhado a delegacia após protesto na Avenida Doutor Arnaldo, na zona oeste da capital paulista - Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press ........................................................................................................... 130 Figura 23 - Policial agride estudante durante protesto na avenida Doutor Arnaldo, zona oeste de São Paulo – Marlene Bergamo/Folhapress ........................................................................ 131 Figura 24 - Estudante é detido por policiais durante protesto na avenida Doutor Arnaldo, zona oeste de São Paulo – Marlene Bergamo/Folhapress ............................................................... 132 Figura 25 - Policiais imobilizam estudante durante protesto na avenida Doutor Arnaldo (zona oeste de São Paulo) contra reorganização de rede estadual paulista – Marlene Bergamo – 2.dez.2015/Folhapress ............................................................................................................ 132 Figura 26 - Estudantes protestam contrata a reorganização das escolas e fecham pistas na marginal Pinheiros na altura da ponte Eusébio Matoso – Jorge Araújo – 3.dez.2015/Folhapress. ................................................................................................................................................ 133 Figura 27 - Estudantes protestam contra reorganização das escolas - Diego Padgurschi – 03.dez.2015/Folhapress .......................................................................................................... 134 Figura 28 - Estudantes protestam contra reorganização das escolas - Marlene Bergamo/Folhapress ............................................................................................................... 134 Figura 29 - Estudantes protestam contra reorganização das escolas - Diego Padgurschi/Folhapress ............................................................................................................ 135 Figura 30 - Estudantes protestam contra reorganização das escolas - Diego Padgurschi/Folha ................................................................................................................................................ 136 Figura 31 - Estudantes protestam contra reorganização das escolas - Danilo Verpa – 4.dez.2015/Folhapress ............................................................................................................ 137 Figura 32 - Protesto termina em tumulto no centro de São Paulo - Daniel Teixeira/ESTADAO ................................................................................................................................................ 142 Figura 33 - Agentes de segurança reprimiram a ação com cassetetes Foto: ALEX SILVA/ESTADAO ................................................................................................................. 143 Figura 34 - Técnica Bola de neve para amostragem não-probabilística - elaborado pelo autor ................................................................................................................................................ 156 Figura 35 - Fechamento de escolas e remanejamento de alunos da rede pública estadual - Fonte: Datafolha ................................................................................................................................ 218 Figura 36 - Ocupações de escolas públicas por estudantes contra medidas do governo - Fonte: Datafolha ................................................................................................................................ 218 SIGLAS E ABREVIAÇÕES APEOESP Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, denominado Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CIMA Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação Educacional, órgão da Secretaria Estadual de Educação (SEE-SP) CMPL Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação Educacional, órgão da Secretaria Estadual de Educação (SEE-SP) E.E. Escola Estadual FMI Fundo Monetário Internacional FOLHA Jornal Folha de S.Paulo LGBTQIA+ Lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, intersexo, assexual e outros MASP Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand MPE Ministério Público Estadual MTST Movimento dos trabalhadores Sem-Teto OCUPAS denominação dada aos/às estudantes que participaram diretamente das ocupações de escolas OESP Jornal O Estado de São Paulo OIT Organização Internacional do Trabalho ONG Organização Não-Governamental PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento SARESP Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo SECUNDA abreviatura de secundarista TJ-SP Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 17 2. VIOLÊNCIA, MEDO E MEMÓRIA ................................................................... 27 2.1 Violência ............................................................................................................. 27 2.1.1 Capitalismo e violência: a questão social .................................................... 28 2.1.2 Neoliberalismo e o desmonte do sistema de proteção social estatal ........... 32 2.1.3 Atualidade da “questão social” no Brasil .................................................... 34 2.1.4 Precarização do ensino público ................................................................... 35 2.1.5 A produção e reprodução da violência estrutural ........................................ 37 2.1.6 Herança violenta da sociedade brasileira ..................................................... 40 2.1.7 Mito da não-violência .................................................................................. 43 2.1.8 Escola e violência ........................................................................................ 45 2.1.9 Violência policial ......................................................................................... 51 2.1.10 Mídia e violência ....................................................................................... 58 2.2 Medo ................................................................................................................... 64 2.2.1 Medo secundário .......................................................................................... 65 2.2.2 Cultura do medo .......................................................................................... 67 2.3 Memória e violência ........................................................................................... 69 2.3.1 Memória coletiva ......................................................................................... 70 2.3.2 História e memória ...................................................................................... 71 2.3.3 Trauma, silêncio e esquecimento ................................................................. 74 3. UMA BREVE HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA ...................................................... 78 3.1 Estudantes secundaristas: atores políticos .......................................................... 78 3.2 Antecessores do movimento: Jornadas de junho e rolezinhos ............................ 81 3.3 De repente, a “Reorganização” ........................................................................... 87 3.4 Situações de violência contra o movimento secundarista paulista de 2015 ....... 92 2.4.1 Primeiro ato: manifestações de protesto e passeatas ................................... 92 3.4.2 Segundo ato: as ocupações ........................................................................ 102 3.4.3 Terceiro ato: o trancamento das avenidas .................................................. 123 3.4.4 Quarto ato: o pós-ocupações ...................................................................... 146 4. O QUE DIZEM OS MANIFESTANTES ........................................................... 151 4.1 Realizando as entrevistas .................................................................................. 151 4.1.1 Os grupos entrevistados ............................................................................. 151 4.1.2 Amostragem: bola de neve ........................................................................ 154 4.1.3 Perfil das pessoas entrevistadas ................................................................. 156 4.1.4 Técnica de entrevista ................................................................................. 158 4.1.5 Roteiro de entrevista .................................................................................. 159 4.2 Motivações para participar das manifestações ................................................. 161 4.3 Situações de violência ....................................................................................... 169 4.3.1 Violência policial ....................................................................................... 171 4.3.2 Violência de outros agentes públicos ........................................................ 178 4.3.3 Pós-movimento: perseguição e mais violência .......................................... 183 4.4 Medo de quê? .................................................................................................... 185 4.4.1 Nas ocupações: medo de invasão policial ................................................. 186 4.4.2 Nas ruas: medo de tiro, porrada e bomba .................................................. 191 4.4.3 Medo da comunidade escolar .................................................................... 196 4.4.4 Medo do entorno ........................................................................................ 198 4.5 A grande imprensa e o movimento secundarista .............................................. 201 4.5.1 A cobertura da imprensa ............................................................................ 201 4.5.2 Os e as secundaristas foram ouvidos/as? ................................................... 210 4.6 O apoio da sociedade ao movimento secundarista ........................................... 215 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 226 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 233 APÊNDICES .......................................................................................................... 247 APÊNDICE A – Texto de apresentação da pesquisa ............................................. 247 APÊNDICE B – Roteiro de entrevista .................................................................... 248 17 1. INTRODUÇÃO Meu primeiro contato com as manifestações do movimento secundarista paulista, no final de 2015, deu-se através da imprensa. Nos primeiros dias, tudo indicava que seria mais um ato que o governo paulista imporia “goela abaixo” da comunidade escolar, dos estudantes e da sociedade. Contudo, as manifestações de rua passaram a ocorrer em várias cidades paulistas e, principalmente, na capital, indicando fôlego do movimento. O contato presencial ocorreu no início de outubro do mesmo ano. Estava atravessando o terminal de ônibus de Pinheiros, em São Paulo, quando, em meio aos ruídos do trânsito, destacaram-se apitos, tambores e palavras de ordem. Estes sons rompiam da pista lateral à Marginal, interrompendo parcialmente o fluxo de carros de uma das pistas da avenida. Algumas dezenas de estudantes, professores e apoiadores portando faixas e cartazes protestavam contra o “projeto de reorganização”. A partir desse momento, passei a acompanhar com mais atenção o noticiário sobre o movimento. Durante o mês de novembro, torci pelos estudantes que estavam ocupando as escolas para defender seu direito à educação. Quando iniciaram os trancamentos de avenidas, concomitantemente às ocupações de mais de 200 escolas, percebi que os estudantes estavam “emparedando” o governo paulista. Com a suspensão do “projeto de reorganização”, e a vitória parcial dos secundaristas, tudo indicava que o movimento estudantil tinha saído vitorioso. Um ano após os acontecimentos, em outubro de 2016, durante a mesa de abertura do IV Seminário Comunicação e Política na Sociedade do Espetáculo1, tive a oportunidade de assistir à apresentação da Professora Dra. Rosemary Segurado intitulada “Ocupamos o que é nosso: análise das ocupações dos estudantes secundaristas de São Paulo e as novas práticas políticas”. Constatei, então, que a vitória dos secundaristas, parcial ou não, obteve um preço muito alto, resultando em marcas psicoemocionais significativas nos estudantes. Em 2018, ao elaborar o projeto de pesquisa de doutorado para participar do processo seletivo da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus Araraquara, o tema da violência contra o movimento secundarista, enfim, tornou-se objeto de pesquisa. No levantamento bibliográfico inicial, encontrei o artigo “Extensão, pesquisa e engajamento: aprendizado de lutas e dores no seminário memorial das Ocupações estudantis” 1 Seminário realizado pelo Grupo de Pesquisa Comunicação e Sociedade do Espetáculo, vinculado à Pós- graduação da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo/SP. 18 (COSTA; GROPPO; ROSSATO, 2018). Nele, a violência contra os estudantes aparece como antítese à descrição romantizada do movimento. Além disso, me deparei com o relatório de pesquisa do professor Groppo, denominado “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: Formação e autoformação das/dos ocupas2 como sujeitos políticos”3. Ele se tornou, igualmente, uma fonte de reflexões e questionamentos sobre o impacto dos acontecimentos violentos nas subjetividades dos jovens e adolescentes. Pode-se dizer que o movimento secundarista paulista de 2015 teve seu marco inicial em 23 de setembro de 2015, quando o jornal Folha de S.Paulo publicou uma reportagem cuja manchete surpreendeu a comunidade escolar da rede pública: “SP vai transferir mais de 1 milhão de alunos para dividir escolas por séries” (MONTEIRO, 2015). Herman Voorwald, então secretário da educação do Estado de São Paulo, anunciava nessa reportagem o projeto chamado “Reorganização Escolar”4. A notícia teve repercussão imediata. Muitos estudantes, professores e pais foram às ruas protestar e realizaram manifestações em espaços públicos e mobilizações nas redes sociais (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, 2016). No entanto, apesar de toda mobilização, o governo paulista manteve o projeto e os estudantes passaram a ocupar as escolas que seriam reorganizadas ou fechadas. As ocupações cresceram até atingir o ápice de mais de 200 escolas ocupadas no mês seguinte. No início, em 9 de novembro, o governo aumentou a repressão contra o movimento estudantil: escolas cercadas pela Polícia Militar, impedindo o acesso dos apoiadores; ameaças de expulsão dos alunos que aderissem à ocupação; truculência contra os manifestantes – inclusive menores de idade – no entorno das escolas com bombas e balas de borracha; ameaças de policiais aos secundaristas, pais e professores; detenções ilegais e tortura de alunos. Como afirma Santos e Segurado (2016, p. 21), “A violência policial foi marcante durante as ocupações [...]. A atuação policial expressa a falta de diálogo por parte do governo paulista”. O marco de encerramento do movimento secundarista deu-se em 4 de dezembro. Após um mês do início das ocupações, o governador anunciou a suspensão do projeto de reorganização escolar. Nos dias seguintes, os estudantes iniciaram a desocupação das escolas. O movimento secundarista havia saído vitorioso. Todavia, a violência contra os estudantes não 2 Termo utilizado para denominar as/os estudantes que ocuparam as escolas 3 Disponível em: https://c6ee6991-13b2-43fd-8811- af175a4b44f0.filesusr.com/ugd/6dcdf0_7ca2540099a84e5e8399e6ba0d0725d8.pdf. Acesso em: 28 abr. 2023. 4 O Projeto de Reorganização escolar proposto pelo Governo do Estado de São Paulo, que deveria ser implementado em 2016, resultaria em 754 escolas de ciclo único, com o remanejamento compulsório de 311.000 (trezentos e onze mil) alunos. Os impactos do projeto atingiriam diretamente a vida funcional de 74.000 (setenta e quatro mil) professores e o fechamento de 94 (noventa e quatro) escolas. https://c6ee6991-13b2-43fd-8811-af175a4b44f0.filesusr.com/ugd/6dcdf0_7ca2540099a84e5e8399e6ba0d0725d8.pdf https://c6ee6991-13b2-43fd-8811-af175a4b44f0.filesusr.com/ugd/6dcdf0_7ca2540099a84e5e8399e6ba0d0725d8.pdf 19 cessou com o fim do movimento, segundo diversos relatos dos manifestantes que participaram dessa pesquisa. A repressão contra os secundaristas, guardando as devidas proporções em relação aos acontecimentos de 1968, indica que, na disputa entre governo e movimento estudantil, o diálogo continua sendo a violência (VALLE, 2016). Além disso, considerando que a maioria dos estudantes do ensino público paulista é oriunda das classes trabalhadoras, com baixo rendimento salarial, “Evoca-se o passado quando a pobreza era concebida como caso de polícia, ao invés de ser objeto da ação do Estado no atendimento às necessidades básicas da classe trabalhadora” (EZEQUIEL, 2005, p. 72). Percebe-se, diante dessas preocupações, principalmente em relação ao direito social à educação e ao contexto social dentro da escola e seu entorno, a importância de se pesquisar as expressões da questão social no contexto da escola pública. Como afirmam Catini e Mello (2016, p. 1187), “as condições degradadas de escolarização da rede pública paulista têm demonstrado que, do ponto de vista da gestão, o simples acesso à escola tornou-se sinônimo de direito à educação”. Da mesma forma, Andrade (2017) lembra que a escola não está isolada do contexto social em que se insere: A escola apresenta inúmeras questões que ultrapassam os limites da formação pedagógica e escolar, já que se trata de um espaço múltiplo que a cada dia se transforma a partir da realidade societária. Certamente expressões da questão social estão presentes na família, na comunidade e nas relações, e acabam sendo levadas e vivenciadas também no espaço escolar, uma vez que os sujeitos não se distanciam do que vivem a partir do momento em que frequentam a escola (ANDRADE, 2017, p. 30). Embora a descrição do movimento secundarista seja fundamental para contextualizar essa pesquisa, não se pretende realizar mais um inventário do movimento ou mapeamento das ações dos estudantes. Isso já foi realizado com abrangência e diversidade por pesquisadores e pesquisadoras que se debruçaram sobre o tema desde 2015, tais como Campos, Medeiros e Ribeiro (2016); Santos e Segurado (2016); Januário e Melo (2019); Piolli, Pereira e Mesko (2016); Segurado (2018); Santos, Costa e Groppo (2018); Catini e Melo (2016); Canesin (2018); Purin (2020); Rosa (2019b); Cortilho (2020); Patta (2017); e Perlbart (2017). Dessa forma, essa pesquisa se concentrou nas múltiplas situações de violência que os estudantes secundaristas sofreram durante as manifestações de 2015. Conforme observado nos trabalhos e pesquisas já realizados sobre o tema, além da violência policial, os estudantes também sofreram violência de agentes da comunidade escolar, tais como professores e diretores 20 de escola, além de alunos contrários ao movimento e grupos organizados para realizar a desocupação das escolas. Ademais, houve não somente violência física, mas também violência psicológica5, sendo que esta ocorreu durante e após as manifestações. Quando praticada dentro do ambiente escolar, ela passou a explicitar a perseguição e o assédio contra os e as estudantes no pós-manifestações. Essa violação praticada por supostos sujeitos educadores e gestores foi mais cruel, levando inclusive a evasão escolar (GROPPO, 2019). O pouco espaço, ou ausência, de fala dos estudantes na imprensa também é considerada uma violência, entendida como um silenciamento deliberado do movimento estudantil. Há pouca literatura sobre a abordagem da violência contra o movimento secundarista, o que aponta, portanto, para a relevância desta pesquisa. Porém, esta não é a única justificativa. É preciso mencionar, igualmente, a relevância social que este tema aporta, ancorada nos seguintes elementos: dar visibilidade à população violentada; registrar o fenômeno investigado; realizar a denúncia científico-política, proporcionando subsídios para novas pesquisas sobre o tema. Considerando que a grande imprensa não noticiou a violência contra os e as estudantes em sua totalidade, defendemos que o registro, em profundidade, deste fenômeno permitirá um contraponto à visão “enquadrada” pela grande imprensa. Assim, será possível valorizar a luta dos e das estudantes pela educação pública. Dessa forma, a presente pesquisa visa contribuir com as discussões sobre a violência contra o movimento secundarista paulista de 2015. Entendemos que, a violência contra os movimentos sociais demandantes de direitos são, historicamente, reprimidos pelas foças de segurança do Estado. Aliás, é importante notar que o movimento secundarista ocorreu num contexto político-social de ascensão de forças conservadoras e de extremistas de direita no Brasil. Tomando ciência da violência contra estudantes que lutavam pelo direito à educação pública, a problemática de nossa pesquisa partiu das seguintes questões: a) Qual a memória/percepção dos e das estudantes em relação às múltiplas violências que sofreram durante o movimento secundarista? b) O que a violência fez com a subjetividade dos e das estudantes? c) Por que as manifestações pacíficas dos e das estudantes secundaristas foram reprimidas com violência? 5 Para definição do conceito “violência psicológica”, considera-se o que foi estabelecido pela Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) Artigo 7, Inciso II: “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação“ (BRASIL, 2006). 21 Como já apontamos, a temática da pesquisa são as violências, resistências e sofrimentos dos e das estudantes secundaristas paulistas em 2015. Assim, seu objetivo principal é identificar e refletir sobre as múltiplas violências praticadas contra os e as secundaristas durante as manifestações. Já os objetivos específicos são os seguintes: a) Mapear as situações de violência praticadas contra os e as estudantes; b) Analisar como a grande imprensa paulista noticiou a violência contra os e as manifestantes; c) Refletir sobre o impacto da violência na memória dos e das estudantes. A problemática do nosso trabalho demandou a apropriação de alguns conceitos. Dessa forma, foi realizada uma pesquisa bibliográfica para refletir sobre termos e conceitos envolvidos na discussão que se pretendia realizar, tais como violência, medo, memória, mídia, questão social, entre outros. Além disso, foi realizada uma pesquisa documental que consistiu no levantamento das notícias sobre o movimento secundarista, publicadas nos dois principais jornais paulistas: Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo. Mais precisamente, foram levantadas as matérias jornalísticas que abordavam a violência contra os e as manifestantes. Ademais, para identificar as situações de violência praticadas contra os e as secundaristas, foram realizadas entrevistas com perguntas abertas. Os participantes foram manifestantes que protagonizaram o movimento secundarista, incluindo estudantes, docentes, apoiadores e apoiadoras. Os relatos obtidos com as entrevistas realizadas subsidiarão a reflexão sobre o impacto da violência na memória dos e das estudantes. Esta pesquisa pretendeu apresentar argumentos à guisa de possíveis respostas às perguntas apresentadas. O primeiro argumento aponta que embora os secundaristas tenham realizado um movimento pacífico, reivindicando principalmente o direito de discutir o projeto do governo paulista, enfrentaram a forte repressão policial. Além de terem sofrido violência física/psicológica de diretores de escola e professores, assim como atos violentos praticados por outros atores sociais contrários ao movimento. Nesse sentido, torna-se praticamente impossível precisar a dimensão dos sofrimentos causados pela violência sofrida pelos secundaristas. Isso porque muitos sequer conseguem falar sobre os fatos vividos: “os estudantes viveram o medo constante e frequente de andar na rua, ir à escola, dormir, ser abordado pela polícia e ser morto” (PURIN, 2020, p. 208). Já o segundo argumento revela que os e as manifestantes sentiram medo durante as manifestações de rua, durante as ocupações de escolas, e do próprio futuro no ambiente escolar. As marcas da violência a qual foram submetidos podem ser traduzidas na dificuldade em encontrar manifestante disposto a falar sobre os acontecimentos, de rememorar os próprios sentimentos relacionados às manifestações de 2015. 22 Por fim, o último argumento aponta que, historicamente, os movimentos sociais demandantes por direitos, no contexto das manifestações da questão social no Brasil, sempre sofreram forte repressão das forças policiais. Neste sentido, a forma como a imprensa noticia os protestos por demanda de direitos, e contra decisões governamentais, também interfere na percepção da sociedade quanto à legitimidade das reivindicações. Assim, ela naturaliza o uso da violência (MARCUSE, 1975) contra esses movimentos. A presente tese de doutorado está organizada em três capítulos. No primeiro capítulo, intitulado “Violência, medo e memória”, são apresentados conceitos importantes para análise das situações de violência contra o movimento. Trata-se de um capítulo teórico, que aborda conceitos e temas importantes para o desenvolvimento da reflexão em torno dos relatos das pessoas entrevistadas, apresentados no último capítulo desta pesquisa. Este primeiro capítulo é composto de três tópicos, a saber, “Violência”, “Medo” e “Memória e violência”. O primeiro tópico é subdividido em seis subitens. O primeiro subtópico apresenta um breve histórico da categoria “questão social” (PASTORINI, 2004), entendida como resultado da violência contida no sistema capitalista, que expõe um processo de exploração do trabalho e culpabilização do miserável (HEGEL, 1997, MARX, 2011). No segundo subtópico, destacamos que a violência de ordem estrutural é produzida por meio das condições econômicas, políticas e sociais, cuja base material segue as determinações da sociedade capitalista (MARX; ENGELS, 2011). Dessa forma, para ser apreendida numa perspectiva de totalidade, considera-se a violência no capitalismo contemporâneo a partir de suas determinações e múltiplas faces. Entende-se que sua incidência não se dá ao acaso (CHAUÍ, 2017). Em seguida, no terceiro subtópico, pretendemos abordar a problemática da violência na sociedade e na cultura. Entendemos que a violência, nas mais variadas formas de manifestação, é praticada no Brasil desde os primórdios de sua formação, dando origem a uma sociedade violenta. Nesta sociedade que se constitui sobre relações violentas, a violência torna-se, ela própria, uma linguagem organizadora (ADORNO, 1995, ODÁLIA, 1983). No quarto subtópico, procuramos refletir sobre o desafio atual da comunidade escolar em conviver com a violência. Reconhecemos que o tema violência na escola não é novo e segue preocupando educadores, pais e a sociedade no geral (ABRAMOVAY e RUA, 2003, ABRAMOVAY e CASTRO, 2006, WILLIAMS et al., 2011). Já no quinto subtópico, o principal objeto de reflexão é a violência policial. Este tema é fortemente debatido na atualidade da realidade social brasileira, abordando os atos de violência ilegal praticados por policiais. Aqui, parte-se do conceito de monopólio estatal da violência 23 (WEBER, 1968, WIEVIORKA, 1997), entendido como uma característica definidora do Estado moderno e conceito de coesão social (ALVAREZ, 2004). Seguimos com um breve histórico da constituição das polícias militares no Brasil (ADORNO, 1996, 2014), e finalizamos com a apresentação das diversas situações de desvios e excessos praticados pelas polícias militares, reconhecendo o uso ilegal da violência contra civis (PINHEIRO, 1982, 1997). Por fim, no sexto subtópico, refletimos sobre a participação da mídia na produção e circulação de informação e imagens numa sociedade hiper conectada por tecnologias de informação (CHAIA, 2004). Também serão abordados os temas cultura do silêncio e silenciamento das vozes dissonantes no contexto de disputas entre classes na sociedade brasileira (FREIRE, 1981, 2000). No próximo tópico, intitulado “Medo”, pretende-se refletir sobre as origens do medo (CICERI, 2004) e o surgimento do medo constituído social e culturalmente (BAUMAN, 2006), esse medo “derivado” que orienta o comportamento humano. Pretende-se, também, abordar a chamada “cultura do medo” (GLASSNER, 2003), ou medo “cultivado” pela mídia. Entende-se que, na atualidade, a grande mídia constitui-se como um dos principais fatores responsáveis pela formação cultural dos indivíduos. Por sua vez, no terceiro tópico, intitulado “Memória e violência”, abordamos o conceito de memória coletiva (HALBWACHS, 1990), entendendo que nenhuma lembrança pode coexistir isolada de um grupo social. Faremos uma referência às categorias história e memória em Benjamin. Realizaremos, além disso, uma breve reflexão sobre o trauma (FREUD, 2010a), e sua interrelação com o silêncio (POLLAK, 1989) e o esquecimento (MARCUSE, 1975). Estas são consideradas importantes categorias para entender o sofrimento dos e das estudantes que lutaram contra a “reorganização” e que estão presentes nos relatos apresentados no terceiro capítulo desta tese. Seguindo para o segundo capítulo, intitulado “Movimento secundarista paulista: uma breve história de violência”, apresentamos as situações de violência sofridas pelos/as manifestantes que participaram do movimento secundarista paulista de 2015. Ele foi elaborado a partir de pesquisa bibliográfica em publicações acadêmicas que abordaram as manifestações secundaristas. Apresentamos principalmente os textos sobre a chamada primeira onda de ocupações secundaristas, ocorrida em 2015. Para contar essa história, utilizamos, igualmente, matérias jornalísticas publicadas nos dois maiores jornais de São Paulo – Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo. Entende-se que ela já foi registrada e analisada em diversas pesquisas acadêmicas, abordando diversos aspectos, tais como as causas do movimento, o tipo de organização, a repressão ao movimento, as 24 consequências políticas, entre outras. Dessa forma, optamos por contar a história do movimento, destacando as situações de violência que os e as secundaristas sofreram durante e após as manifestações. Ele é composto por quatro tópicos. No primeiro tópico, intitulado “Estudantes secundaristas: atores políticos”, apresentamos um breve histórico do movimento secundarista brasileiro. Aqui, o movimento estudantil é entendido como uma forma de organização política protagonizada por estudantes (MENDES JR, 1982, GOHN, 2016). Em seguida, no segundo item, intitulado “Antecessores do movimento: Jornadas de Junho e Rolezinhos”, apresentamos dois movimentos juvenis considerados precursores do movimento secundarista de 2015. Aponta-se que as manifestações das Jornadas de Junho e os Rolezinhos deixaram como legado a expansão do ativismo juvenil. Este último busca superar as antigas práticas políticas hierarquizadas, ainda que se limite ao plano discursivo (GROPPO, 2018d, FRANÇA; DORNELAS, 2014, ORTELLADO, 2016, BARBOSA-PEREIRA, 2016). Já no terceiro tópico, intitulado “De repente a Reorganização”, apresentamos as origens e justificativas do governo para implantação do projeto de “reorganização”. Destacamos o seu anúncio e os primeiros embates sobre sua validade para melhoria da educação pública (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, JANUÁRIO et al., 2016, PIOLLI; PEREIRA; MESKO, 2016, GROPPO, 2018b, PATTA, 2017). Por fim, no quarto tópico, intitulado “Situações de violência contra o movimento secundarista paulista de 2015”, contamos a história do movimento secundarista a partir das situações de violência que os e as estudantes sofreram. Aqui, optamos seguir a cronologia dos fatos, dialogando com o que a grande mídia publicava, principalmente os dois grandes jornais paulistas: Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo. Este tópico é subdividido em quatro partes, nas quais apresentamos o anúncio do projeto de “reorganização” para a comunidade escolar e sociedade em geral; o início das ocupações, seu desenvolvimento e a reação do governo e repressão da Polícia Militar; a última e mais radical das táticas adotadas pelos e pelas estudantes: trancamento das avenidas; a violência que os e as estudantes sofreram, principalmente de docentes e direção das escolas no retorno às aulas (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, JANUÁRIO et al., 2016, PIOLLI; PEREIRA; MESKO, 2016, GROPPO, 2018a, 2018b, CATINI; MELO, 2016, PATTA, 2017, CORTI; CORROCHANO; SILVA, 2016, entre outros). O terceiro e último capítulo, intitulado “O que dizem os manifestantes”, apresenta os relatos das pessoas entrevistadas (estudantes, docentes, apoiadores e apoiadoras). Aqui, são consideradas as categorias de medo, violência e mídia/imprensa. Nele, mapeamos a dimensão 25 subjetiva (do sofrimento) dos e das estudantes, ou de como sentiram/memorizaram o medo e as múltiplas situações de violência durante as manifestações. Este capítulo é composto de seis tópicos. No primeiro tópico, intitulado “Realizando as entrevistas”, apresentamos um breve relato do caminho trilhado para obtenção das entrevistas: identificação de possíveis entrevistados/as; roteiro de entrevista; e perfil dos e das pessoas participantes da entrevista. Em seguida, no segundo tópico, intitulado “Motivações para participar das manifestações”, realizamos a apresentação dos relatos das pessoas entrevistadas. Iniciamos com as respostas à primeira pergunta do roteiro de entrevista, a saber “Você participou (ou apoiou) das manifestações contra o projeto de “Reorganização escolar” do governo Alckmin? Descreva.” Já no terceiro tópico, intitulado “Situações de violência”, abordamos o tema violência, rememorando as diversas situações de violência as quais os e as manifestantes foram submetidos. As informações foram obtidas a partir das respostas dadas às seguintes perguntas: “3) Presenciou ou teve algum contato/confronto ou com a Polícia Militar?”; e “4) Presenciou ou sofreu alguma violência física ou moral por parte de agente público (Diretores de escola, Policiais, outros) durante ou após as manifestações? Comente”. Os relatos foram agrupados em subtópicos, considerando os agentes causadores da violência, a saber: policiais, comunidade escolar, e pessoas do entorno das escolas. Por fim, são apresentados os relatos de situações de violência sofridas no pós-ocupações, sendo que estas não foram divulgadas pela imprensa, tratando-se de uma violência intramuros, silenciosa. As situações mais citadas envolvem principalmente docentes e pessoas ligadas à direção das escolas. No quarto tópico, intitulado “Medo de quê?”, abordamos o tema “medo”, rememorando as diversas situações causadores de medo, a partir dos relatos dos e das manifestantes. Consideramos a memória coletiva (HALBWACHS, 1990), juntando as lembranças de dois ou mais manifestantes sobre um fato determinado. As informações foram obtidas a partir das respostas dadas à segunda pergunta da entrevista, ou seja, “Sentiu medo em algum momento durante ou após as manifestações? Quando, onde e por quê?”. Os relatos foram agrupados em subitens considerando as pessoas e grupos causadores de medo (polícia militar, comunidade escolar e criminosos do entorno). O medo da polícia se deu em dois ambientes distintos: nas ruas e nas escolas ocupadas. Em seguida, no quinto tópico, intitulado “A grande imprensa e o movimento secundarista”, apresentamos os relatos das pessoas entrevistadas sobre a atuação da imprensa, 26 principalmente, dos grandes veículos. As informações foram obtidas a partir das respostas dadas às perguntas cinco e seis do roteiro de entrevista: “Como você define a cobertura da grande mídia (Rádio/TV, jornais, revistas) sobre as manifestações?”; e “Acredita que os estudantes tiveram oportunidade de defender sua posição na grande mídia paulista?”. Este tópico está subdividido em dois. Eles se referem à percepção das pessoas entrevistadas em relação a cobertura da imprensa dos atos e manifestações contra a “reorganização”; e à percepção das pessoas entrevistadas em relação às oportunidades que os e as estudantes tiveram de externar suas demandas na grande imprensa. No sexto e último tópico, intitulado “O apoio da sociedade ao movimento secundarista”, apresentamos os relatos obtidos através das respostas à pergunta sete do roteiro de entrevista. Nesse caso, procuramos obter a percepção das pessoas entrevistadas em relação ao apoio (ou não) da sociedade ao movimento. Finalizando o texto, sem a pretensão de ser conclusivo, são apresentadas possíveis respostas para a pergunta que norteia essa pesquisa, ou seja, “Por que as manifestações pacíficas dos e das estudantes secundaristas foram reprimidas com violência?”. Sendo que outras duas perguntas são consideradas, a saber: “Qual a memória/percepção dos e das estudantes em relação às múltiplas violências que sofreram durante o movimento secundarista?’; e “O que a violência fez com a subjetividade dos e das estudantes?”. Enfim, elas complementam a problematização dessa tese e as suas respectivas respostas encerram o trabalho. 27 2. VIOLÊNCIA, MEDO E MEMÓRIA 2.1 VIOLÊNCIA Considerado um dos mais dramáticos problemas sociais brasileiros, o tema sobre causa/fato da violência têm tido forte impacto nas pesquisas acadêmicas. O tema violência e suas conexões com o direito, a justiça, a cidadania, os direitos humanos, o Estado de Direito, entre outros, coloca em evidência os rumos da institucionalização e consolidação da democracia brasileira, bem como seus desafios e perspectivas para o futuro. Compreendendo que a violência é uma construção social que se expressa em várias esferas das relações humanas, pretende-se, neste item, apresentar o conceito e as formas de manifestação da violência, que permeiam o cotidiano na contemporaneidade. Especificamente, pretende-se analisar as diferentes manifestações de violência que se apresentaram no contexto da manifestação secundarista paulista de 2015. Não se pretende realizar aqui uma revisão da literatura especializada, mas priorizar as abordagens que possam auxiliar na busca de respostas para a violência sofrida pelos/pelas secundaristas entrevistados nesta pesquisa. Este item contribui com uma base teórica para análise dos fatos e, principalmente, das situações de violência a que os e as estudantes foram submetidos durante as manifestações do movimento secundarista de 2015. O item inicia com uma breve discussão sobre o capitalismo e a origem da questão social, considerada elemento fundante da violência sistêmica, expressa por meio das contradições capital-trabalho e das lutas de classes. Segue com apresentação dos conceitos da produção e reprodução da violência estrutural. Na sequência, a herança violenta da sociedade brasileira é apresentada a partir de um recorte histórico de práticas violentas ocorridas no país. Na finalização desse item, parte-se para algumas reflexões sobre as situações de violência no cotidiano da sociedade brasileira: na e da escola; das forças de segurança contra movimentos sociais e, principalmente, contra manifestações de populações pobres das bordas dos grandes centros urbanos do país. A intersecção violência e mídia encerra esse item, cotejando a participação – ativa ou passiva – dos meios de comunicação na perpetuação de práticas violentas no contexto brasileiro. 28 2.1.1 Capitalismo e violência: a questão social Este subitem apresenta breve histórico da categoria “questão social”, entendida como resultado da violência contida no sistema capitalista contra o trabalho, que expõe um processo de exploração da força de trabalho e culpabilização do miserável. No âmbito do pensamento liberal, não há uma preocupação com a objetividade da “questão social”. Ela é dissolvida em torno da polêmica que se criou entre o que deveria ser responsabilidade pública de resolvê-la, seja através de ações do Estado, seja por meio da atuação da sociedade civil, e da responsabilidade individual dos próprios miseráveis. Essa polêmica persiste e, na atualidade, sob a cartilha neoliberal ganha força a defesa da desresponsabilização do Estado ante as sequelas da “questão social”, ou seja, um Estado mínimo para o social (SOARES, 2003). Destaque-se aqui um retorno ao pensamento hegeliano- marxista para o entendimento da relação liberdade-igualdade na superação da “questão social”. Um dos primeiros pensadores a utilizar o termo “questão social”, Hegel estabeleceu um debate com seus contemporâneos liberais, levantando dúvidas quanto à responsabilização do indivíduo pelo problema da pobreza ou estado de miséria. Para Hegel, a miséria constituía-se, então: “[...] como uma questão social, que não se explica simplesmente com a suposta indolência ou com outras características do indivíduo que está na miséria” (LOSURDO, 1997, p. 206). Dessa forma, para Hegel a indigência não poderia ser considerada fruto de uma “calamidade natural” ou “desgraça”, ao contrário, tratava-se de uma forma de injustiça resultante do predomínio dos interesses particulares de uma classe em detrimento de outra. Uma divergência em relação à posição de outros liberais, para os quais os indivíduos eram os responsáveis pela condição de miséria em que viviam. Na percepção de Hegel, as formas de enfrentamento da “questão social” se dariam pela constituição de um direito cuja responsabilidade caberia à sociedade civil, não se limitando às ações emergenciais de caridade. Neste sentido, Valle (2005) entende que, A filosofia de Hegel traz a questão social para o centro do pensamento, através da incorporação ativa, e não apenas formal, dos “direitos materiais” ao âmbito do poder político. O progresso decisivo na história da humanidade passa a ser visto como a realização da liberdade, a partir do reconhecimento da qualidade universal de homem, em contraposição à visão particularista que vincula os direitos àqueles indivíduos que se encontram numa situação particular, expressa fundamentalmente pela propriedade privada (p. 25). 29 O reconhecimento de que as contradições são inerentes à sociedade moderna, levaram Hegel a defender a necessidade de um Estado forte, entendendo que este, ao interferir nas esferas social e econômica, possibilitaria a redução das diferenças entre as classes, evitando, assim, a crescente desigualdade social. Para o filósofo germânico, uma situação de extrema necessidade, de miséria, anularia a realização da liberdade, pois exprimiria uma ausência de direitos para todos. Sendo assim, a liberdade para desenvolvimento da propriedade privada e da esfera individual, na ausência de garantias da igualdade, seria algo totalmente formal, abstrato (cf. LOSURDO, 1997, p. 185). Em Hegel, o Estado é a expressão do reconhecimento e desenvolvimento de direitos e dos deveres do indivíduo, considerado cidadão. Valle (2005) acrescenta que, Nesta perspectiva, atribui-se ao Estado não apenas a proteção da propriedade e da vida, mas, fundamentalmente, a intervenção direta no controle dos conflitos da sociedade civil para a manutenção efetiva dos direitos inalienáveis do indivíduo. Em contrapartida, parte significativa do liberalismo clássico, embora, no plano formal, traga a igualdade para o centro do pensamento segundo a máxima de que “todos nascem livres e iguais”, acaba por reduzir este universal a partir do momento em que a defesa da propriedade privada, elevada à esfera da excelência, é feita em detrimento até mesmo da vida daquele que a ameaça (p. 27-28). A plebe, ou conjunto de indivíduos situados abaixo do nível mínimo de subsistência, não poderia sobreviver apenas da caridade, fruto da compaixão das classes mais ricas da sociedade, mas pela oferta de trabalho remunerado. Com isso, Hegel (1997) entende que os instrumentos de trabalho devem ser garantidos pela lei: A possibilidade de participação na riqueza universal, ou riqueza particular, está desde logo condicionada por uma base imediata adequada (o capital); está depois condicionada pela aptidão e também pelas circunstâncias contingentes em cuja diversidade está a origem das diferenças de desenvolvimento dos dons corporais e espirituais já por naturezas desiguais. Neste domínio da particularidade, tal diversidade verifica-se em todos os sentidos e em todos os graus e associada a todas as causas contingentes e arbitrárias que porventura surjam. Consequência necessária é a desigualdade das fortunas e das aptidões individuais (p. 179). A efetivação dos chamados “direitos materiais” – direito ao trabalho e direito à vida –, na tradição hegeliano-marxista, tornou-se uma condição insuperável para a realização do indivíduo livre, pois, existindo a condição de miséria absoluta, o homem continuará reduzido à servidão. Importante destacar que Marx se apoia nas leituras de Hegel para defender de maneira 30 clara e persuasiva o problema da servidão: quem está faminto, além do risco de morrer de inanição, está relegado à “total carência de direitos”, ou numa condição análoga à escravidão. A crítica fundamental à sociedade, feita por Marx, segundo Valle (2005), remete à relação “liberdade-igualdade”, pois “[...] a liberdade, mesmo estando garantida no âmbito jurídico - formal, desaparece completamente, a partir do momento em que há a desigualdade nas condições econômico-sociais” (p. 29). Assim, cai por terra a primazia da liberdade em relação à igualdade. Conclui-se, então, que a construção da liberdade é indissolúvel da construção de um mínimo de igualdade entre os indivíduos. Dessa forma, pode-se afirmar, sem desconsiderar a evolução da forma de organização do capital e do trabalho, que a “questão social” manifestada nas sociedades capitalistas contemporâneas, mantém a característica de ser uma expressão concreta das contradições e antagonismos presentes nas relações de classes6, e entre estas e o Estado. Embora se admita a existência de diversas versões da “questão social” nos diferentes momentos do desenvolvimento da sociedade capitalista e, com isso, diferentes repostas dadas a ela por parte da sociedade ao longo da história, o móvel principal da preocupação das classes dominantes e dos governos sempre foi a busca da estabilidade e a manutenção da ordem estabelecida7. Por isso, a tentativa de entender a problemática vivida hoje no heterogêneo mundo capitalista sem fazer referência à relação capital e trabalho, isto é, sem mencionar os indivíduos como sujeitos envolvidos nessa disputa e às desigualdades sociais que dela decorrem, deixa as sequelas da “questão social” na sociedade contemporânea reduzidas às expressões de uma crise do vínculo social, cujas manifestações devem ser enfrentadas com políticas sociais direcionadas aos setores “mais necessitados”. A sólida base fornecida pelo marxismo para pensar criticamente as relações sociais8, a ousadia de uma explicação contrária ao pensamento dominante, a busca da totalidade e a 6 “A classe não é apenas um relacionamento entre grupos, é também sua coexistência no interior de uma estrutura social, cultural e institucional estabelecida por aqueles que estão por cima. O mundo do pobre, embora elaborado, reservado e separado, é um mundo subalterno e, portanto, em alguns sentidos, um mundo incompleto, pois normalmente admite a existência de uma estrutura geral daqueles que detêm a hegemonia ou, de qualquer maneira, sua própria incapacidade de na maior parte do tempo fazer algo quanto a isso. O pobre aceita esta hegemonia, mesmo quando desafia algumas de suas implicações, porque, em grande parte, tem de aceitá-la” (HOBSBAWM, 1987, p. 64). 7 As contribuições do marxismo nesse terreno revelam-se fundamentais pela crítica contundente que dirige às formas especulativas que perpassam o pensamento histórico no século XIX (ver MARX, 1996, 1998; MARX & ENGELS, 1998; HOBSBAWM, 2000). 8 Em contraposição aos desenvolvimentos de Marx é necessário ponderar a contribuição de Adam Smith (1723- 1790) que publicou, em 1776, a mais importante obra de economia do século XVIII: A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas, onde defendia o laissez-faire – liberdade individual total na economia – afirmando que somente os capazes e inteligentes prosperariam num regime de concorrência (ver SMITH, 1997). 31 proposta de conhecimento das causas das “questões sociais” são elementos cruciais para uma reflexão histórica, em oposição à visão otimista, mistificadora do presente e de pouca consistência teórica. Como afirma Pastorini (2004), Analisar a questão social como uma questão política, econômica, social e ideológica que remete a uma determinada correlação de forças entre diferentes classes e setores de classes, inserida no contexto mais amplo do movimento social de luta pela hegemonia (p. 99). Com a intensificação da exploração do trabalho pelo capital, os trabalhadores passam a manifestar seu descontentamento por via da mobilização, iniciada com o movimento operário de reivindicação de direitos, pressionando o empresariado e o Estado, constituindo-se em uma ameaça real à ordem estabelecida. Esse movimento não se passa sem uma reação por parte da classe dominante, como afirma Pastorini: “[...] por outro lado e ao mesmo tempo, se faz presente a intervenção inibidora da burguesia, que buscou impedir o acesso igualitário das classes trabalhadoras ao processo de socialização da política, da riqueza etc.” (2004, p. 105). Para os pesquisadores vinculados ao projeto de investigação do Centro de Estudos Latino-americano de Trabalho Social, Marilda Iamamoto e Raul Carvalho: A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão (1986, p.77). Diante da incapacidade de garantir o direito ao trabalho, a burguesia procurou uma estratégia que pudesse anular a pressão exercida pela classe trabalhadora. Inicia-se, então, a intervenção de uma instituição aparentemente neutra, mas com poderes de “vigiar” o social. A partir daí, o Estado começou a interferir na relação capital-trabalho, almejando cobrir os riscos que têm consequências negativas para o interesse do capital, travestindo sua atuação como “uma preocupação com o interesse coletivo”. Com isso, as manifestações da “questão social” (fome, doença, miséria, desemprego) consideradas como males incuráveis – numa tentativa de 32 naturalização9 – são entendidas como passíveis de serem amenizadas com a intervenção estatal. Para a socióloga Vera da Silva Telles, Discutir a questão social significa um modo de problematizar alguns dos dilemas cruciais do cenário contemporâneo: a crise dos modelos conhecidos como de Welfare State (modelo nunca realizado no Brasil, é bom dizer), que reabre o problema da justiça social, redefine o papel do Estado e o sentido mesmo da responsabilidade pública (2001, p. 15). As alterações propostas pelo modelo neoliberal – redução da atuação do Estado no social, e a consequente precarização dos serviços oferecidos à população em geral e, principalmente, aos mais carentes, levando a lógica mercantil das empresas para o campo social –, requer um entendimento mais profundo das causas da “questão social”, para depois discutir sua evolução histórica e as possibilidades de sua superação10. 2.1.2 Neoliberalismo e o desmonte do sistema de proteção social estatal Embora para alguns, as origens do neoliberalismo possam ser identificadas com a publicação de O Caminho da Servidão de Friedrich Hayek, a afirmação concreta desse movimento ocorreu na virada da década de 70 do século passado. Foi a eleição dos governos conservadores de Margareth Thatcher na Inglaterra em 1979 e de Ronald Reagan nos EUA em 1981 que abriram caminho para o novo avanço do ideário liberal. Foi a revitalização do liberalismo como reação político-ideológica à crise dos anos 1970, e da ineficácia do Estado em controlar essa crise que possibilitou a enorme expansão desse tipo de perspectiva pelos países de todos os cantos do planeta. O neoliberalismo fundamenta-se em um discurso que privilegia a esfera econômica. Sua principal vítima é o social. O mercado não reconhece sequer direitos sociais já conquistados e, com isso, sacrifica prioritariamente a população. Por isso, o neoliberalismo, mesmo quando alardeia sucesso com a estabilidade monetária, não exibe sua outra face, que lhe é indissolúvel. O ajuste fiscal, que deveria garantir o fim da inflação e a estabilidade da moeda, faz-se à custa das políticas de educação, saúde, habitação, saneamento e 9 Muitas teorias surgiram para justificar as ações contra a proteção social pública. Destaque para a posição de um pensador do início do século XIX: Thomas Malthus. Malthus acreditava que a ajuda aos pobres minava o espírito de independência destes e incentivava a ociosidade (ver MALTHUS, 1982). 10 Para um entendimento dos fatos que ocorrem na atualidade, necessitamos adentrar na tensão dialética, onde se debate a humanidade, fruto da dicotomia irreconciliável que surgiu com a “era do capital”, mais especificamente com o advento da relação capital-trabalho, ver Hobsbawm (2004). 33 cultura – enfim, das prestações do Estado que universalizam os direitos de todos, independentemente de classe social (SADER, 2003, p. 9). A pesquisadora Laura Tavares Soares afirma que foi a crise da acumulação capitalista agravada na segunda metade de 1970, que propiciou o ressurgimento da ideologia liberal – que havia perdido espaço para o keynesianismo no pós-1930 –, e que agora ressurge “travestida de um conservadorismo político aliado a um ultraliberalismo econômico na defesa da superioridade do mercado diante do Estado. Surge assim o neoliberalismo, cuja estratégia conservadora para superar a crise era cortar o poder dos assalariados na luta por uma distribuição de renda a seu favor, ‘desenterrando’ os tradicionais mecanismos de mercado” (2003, p. 36-7). A predominância do pensamento conservador na sociedade se expressa no retorno à naturalização das desigualdades sociais. Instala-se a aceitação da existência do “fenômeno” da pobreza como inevitável, ou decorrente da “inaptidão” para o trabalho. Sobre o crescimento da pobreza após a implantação de políticas neoliberais, Soares faz um questionamento: “Seriam essas consequências ‘naturais’ ou ‘necessárias’ a um suposto processo de evolução? Seriam as ‘dores do crescimento’? Claro que essa visão só pode ser confirmada por aqueles que estão ‘ganhando’ com esse estado de coisas, mas para quem está disposto a trilhar um novo caminho: certamente que não. O preço que vem sendo pago pela maioria da população do mundo em nome da suposta ‘modernização’ não é absolutamente necessário nem é uma fatalidade” (SOARES, 2003, p. 14). Como enfatiza Netto (1993), “Em resumidas contas, a proposta neoliberal centra-se na inteira despolitização das relações sociais: qualquer regulação política do mercado (via Estado, via outras instituições) é rechaçada de princípio” (p. 80). Além da despolitização, a mercantilização dos serviços sociais – mesmo os essenciais, como saúde e educação – também é naturalizada: na doutrina neoliberal as pessoas devem pagar pelos serviços, pois somente assim estes serviços são “valorizados”. E quanto às pessoas que não podem pagar? Neste caso, se comprovarem sua pobreza, o Estado deve intervir prestando serviços “focalizados”, ou criar condições (com isenção de impostos) para que as empresas privadas possam praticar sua “responsabilidade social”. Na verdade, a “questão social” – que se expressa por meio das contradições capital- trabalho e das lutas de classes – fruto da desigual distribuição de renda, continua inalterada. Verifica-se, isto sim, o surgimento e alteração das sequelas e expressões que a representam, sendo que o padrão de resposta social, no atual modelo neoliberal, tende a ser o da transferência da responsabilidade do coletivo e permanente para o âmbito imediato e individual. 34 2.1.3 Atualidade da “questão social” no Brasil Atualmente, no Brasil, a “questão social” passa a ser (novamente) objeto de violento processo de criminalização11. Para Octávio Ianni, dentre as explicações que naturalizam a “questão social”, uma tende a transformar as manifestações da “questão social” em problemas de violência com a óbvia resposta: segurança e repressão. Toda manifestação de setores sociais subalternos na cidade e no campo pode trazer o ‘gérmen’ da subversão da ordem social vigente. A ideologia das forças policiais e militares, bem como de setores dominantes e de tecnocratas do poder público, está impregnada dessa ‘explicação’ (IANNI, 1992, p. 100). Assim, a noção de “classes perigosas” – não mais classes proletárias – é recriada e sujeita à repressão. Evoca-se o passado, quando a pobreza era concebida como caso de polícia, ao invés de ser objeto da ação do Estado no atendimento às necessidades básicas da classe trabalhadora. De acordo com Iamamoto (2001): Na atualidade, as propostas imediatas para enfrentar a questão social no país atualizam a articulação assistência focalizada/repressão, com reforço do braço coercitivo do Estado em detrimento da construção do consenso necessário ao regime democrático, o que é motivo de inquietação (p. 17). Percebe-se, como afirma Mestriner, que o Estado brasileiro ao estabelecer formas de intervir na “questão social”, buscou sempre remediar seus efeitos de forma paliativa, [...] operando por meio de práticas integrativas e de ajustamento, restritivas ao protagonismo das classes populares e impeditivas de mudanças sociais expressivas. A intermediação do setor filantrópico sempre dificultou esse protagonismo [...] A interlocução com o Estado no campo da assistência social foi exercida efetivamente pelo universo de entidades sociais, que pouco trânsito de participação e reconhecimento possibilitam ao público demandatário de suas atenções (MESTRINER, 2001, p. 290). Nesse contexto, as desigualdades sociais não são reduzidas; ao contrário, se agravam. Vários itens da “questão social” atravessaram a história do Brasil: as lutas operárias e camponesas, a luta pela terra, a liberdade sindical, o direito de greve, as garantias de emprego, 11 Para um entendimento da atualidade da questão social no Brasil ver: MESTRINER (2001); EZEQUIEL (2005); YAZBEK (2004). 35 o salário-desemprego, o acesso à saúde, educação, alimentação e habitação, as reivindicações do movimento negro, o problema indígena. Muitos outros itens – sequelas da “questão social” – aparecem em diversos momentos, revelando uma história que pode ser sintetizada nos seguintes termos: a “questão social” é tratada como problema de polícia e não como um problema político e de direitos. 2.1.4 Precarização do ensino público Na versão brasileira do neoliberalismo, intensificado nas últimas décadas, tudo deve ser privatizado: educação, saúde, moradia e demais direitos sociais, devastando todas as formas de transferência de renda e de garantias de direitos sociais. Trata-se de uma perspectiva neoliberal que se casa com a violência constitutiva brasileira12. Um exemplo é o que acontece na área da educação. A educação é a via de acesso dos saberes adquiridos numa sociedade e a criação de novos saberes, sendo um direito de todos os cidadãos13. Porém, quando o Estado não garante uma educação pública de qualidade, quando esse mesmo Estado investe na privatização a educação – nos três níveis de governo –, ele rompe com o princípio universal da educação como direito de acesso ao saber, à pesquisa e a produção de novos saberes. No campo da educação, o neoliberalismo foi paulatinamente estimulando um discurso que traz a ideologia14 do mercado para o debate. Com isso, as ações governamentais são movidas por uma praxe neoliberal de privatização da educação, priorizando a entrada de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e demais entidades com supostas atuações filantrópicas. Nesse sentido, sob a ótica neoliberal, a Educação Pública é vista como apenas um 12 A origem violenta da sociedade brasileira é abordada no item “1.1.3 – A herança violenta da sociedade brasileira”. 13 A importância da educação para a construção de uma sociedade democrática é enfatizada por Paulo Freire: “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-la sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda” (2000, p. 31). 14 Buscando contornar a multiplicidade de significados atribuídos ao termo ideologia e seu múltiplo uso, Bobbio et al (2010) estabelecem dois tipos gerais de significado para o termo: “sentido fraco” e “sentido forte”: “No seu significado fraco, Ideologia designa o genus, ou a species diversamente definida, dos sistemas de crenças políticas: um conjunto de ideias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos. O significado forte tem origem no conceito de Ideologia de Marx, entendido como falsa consciência das relações de domínio entre as classes, e se diferencia claramente do primeiro porque mantém, no próprio centro, diversamente modificada, corrigida ou alterada pelos vários autores, a noção da falsidade: a Ideologia é uma crença falsa. No significado fraco, Ideologia é um conceito neutro, que prescinde do caráter eventual e mistificante das crenças políticas. No significado forte, Ideologia é um conceito negativo que denota precisamente o caráter mistificante de falsa consciência de uma crença política” (p. 585). 36 ativo financeiro, sendo que de forma direta ou indireta é o suposto mercado que dita as regras e ações implementadas pelas políticas públicas. Menezes (2011) afirma que, A onda neoliberal vem permeando cada vez mais aspectos no discurso da realidade brasileira. Em crise sistêmica, o debate em torno da Educação Básica pública se fragiliza coercitivamente quando seus pilares fundamentais são cerceados pelas imediatas veleidades da economia de livre mercado (p. 120). Dessa forma, entende-se que a reestruturação mundial dos sistemas educacionais e de ensino faz parte de um projeto político e ideológico do capital neoliberal. A estratégia de privatização dos serviços públicos sob a tutela das agências do capital internacional resultou na criação de mercados globais altamente competitivos para os serviços públicos, incluindo os serviços voltados ao bem-estar social, como a educação. Os chamados “mercados educacionais” concretizam processos de seleção e exclusão que marcam o crescimento exponencial das desigualdades no âmbito das nações. Na prática, a estratégia educacional neoliberal – contrária ao Estado do Bem-estar Social – inclui a privatização das escolas, além de contínuo corte de subsídios estatais para a educação (cf. BRAGA, 2003, p. 25), Atualmente, são amplamente conhecidas as condições de precariedade de grande parte da oferta de ensino público no Brasil, sempre carente de maiores investimentos e priorização. Projetos governamentais, ancorados na ideologia neoliberal de mercantilização e privatização da educação, vão de encontro à necessidade de uma política educacional implementada para superar as discriminações e reduzir as desigualdades. Embora a escola não seja a origem das desigualdades, ela as reflete. Segundo Peregrino (2006), É ali, quando tudo começa, que percebemos as interdições, degradações e injustiças que passarão a demarcar os contornos dessas vidas em seu início. Assim, se a escola não produz as condições que delimitarão daí por diante as vidas “que começam”, ela, com certeza, as reproduz. A escola, portanto, não é o início do ciclo onde tudo começa, mas demarca o espaço de conservação e de “perpetuação” do movimento: quando tudo re-começa (PEREGRINO, 2006, p. 12). Em contraponto à precariedade do ensino público no Brasil, a privatização dos serviços educacionais15 e das escolas promete mais eficiência na utilização dos recursos destinados à 15 Para uma síntese das dimensões e formas da privatização da educação no Brasil nos últimos anos ver Adrião (2018). 37 educação. Porém, o compromisso das empresas privadas donas de escolas e colégios não é com os estudantes ou com a diminuição das desigualdades, mas com seus acionistas, seu lucro. 2.1.5 A produção e reprodução da violência estrutural Neste subitem se pretende demonstrar que a violência de ordem estrutural é produzida por meio das condições econômicas, políticas e sociais cuja base material segue as determinações da sociedade capitalista. Dessa forma, para ser apreendida numa perspectiva de totalidade, impõe-se considerar a violência no capitalismo contemporâneo a partir de suas determinações, múltiplas faces e que sua incidência não se dá ao acaso. Para desvendar os meandros das diversas manifestações de violência é necessário apreendê-la e problematiza-la nos seus efeitos e, também, buscar as raízes históricas desse fenômeno na sociedade. Minayo (1994) entende a violência estrutural como aquela que: [...] oferece um marco à violência do comportamento e se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando- os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte (p.8). Fenômeno com gênese no capitalismo, a violência estrutural é resultante do processo de exploração das classes trabalhadoras, juntamente com a espoliação de seus direitos, principalmente, daqueles conhecidos como direitos sociais, embora fossem apregoados como fenômenos naturais. A desigual distribuição das riquezas socialmente produzidas é condição primária para prevalência da violência estrutural, onde prevalece dominação de classes e desigualdades sociais e econômicas profundas como interpretam Marx e Engels em contrapartida ao pensamento liberal que concebe as causas da miséria do trabalhador como sendo naturais. Embora se reconheça que a violência estrutural seja constituída por variadas ações que se produzem e reproduzem no âmbito da vida cotidiana, frequentemente essas ações não são consideradas violentas. A influência das estruturas normativas, notadamente da ideologia dominante, induz a uma apreensão do que é violência, quem são os algozes e as vítimas, bem como as formas de entende-la. Assim se concretiza a ideologia da classe dominante, atuando nos modos de pensar e agir dos indivíduos, cooptando as consciências e induzindo a sociedade 38 a enxergar a realidade social concreta através das lentes da ideologia da classe dominante (ver MARX, 1998; MARX e ENGELS, 2008 e 2011). Entende-se, neste trabalho, que o problema relativo à violência na sociedade capitalista necessita ser melhor averiguado. Porém, deve-se ir além do entendimento da gênese histórica da formação do modo de produção capitalista, procurando entender, na esteira de Marx e Engels, como a lógica capitalista, ancorada na acumulação e concentração das riquezas produz e promove as diversas formas de manifestação da violência na sociedade contemporânea. Entendendo que elas advêm da mesma matriz: a violência do capital contra o trabalho. Dessa forma, a violência estrutural deve ser entendida como fruto da ideologia dominante16. A ideologia mascara a realidade concreta ao invadir todas as esferas da vida social, impossibilitando o rompimento com valores socialmente impostos que oprimem e subalternizam determinados segmentos sociais. A ideologia também atua na inversão da causa e efeito das condições nas quais os fenômenos sociais se manifestam, criando obstáculos a busca pelas raízes históricas, fortalecendo a naturalização das injustiças e preconceitos. A sociedade capitalista vive segundo uma certa ideologia (a do consumo), que não se restringe a uma posição política ou econômica, mas a um estilo de vida fundado numa “visão de mundo” que teve sua gênese no processo de industrialização e, consequente, urbanização das sociedades modernas. Como afirma Chauí (2000), “A ideologia é um fenômeno histórico- social decorrente do modo de produção econômico” (p. 539). A violência também é afetada por esse processo de naturalização, pois ao entende-la como algo natural, a sociedade não busca superar as situações que favorecem o seu aparecimento nas relações sociais, almejando apenas minimizar seus efeitos sem atuar diretamente nas raízes que condicionam esse fenômeno na sociedade de classes. Entretanto, a violência em suas múltiplas formas e manifestações não pode ser entendida como natural, ou seja, independente da intenção e ação do ser humano. Considerada uma construção social que se implementa a partir de relações interpessoais no âmbito da sociedade, a violência não pertence à condição humana e, ao contrário, tem sua gênese nas dinâmicas da realidade e das condições econômicas, sociais, culturais e éticas de um dado contexto histórico. 16 Para o desenvolvimento desta pesquisa, considera-se que a ideologia é uma forma de ver a realidade, uma visão de mundo. Implica em o indivíduo manifestar uma determinada forma de se relacionar com as pessoas, com os objetos, com a natureza, mas sempre considerando que se trata de uma forma de tomar partido, de optar. Isto quer dizer que ao se relacionar com as coisas do mundo, o indivíduo necessariamente favorecerá uma coisa e não outra, optando por essa e não por aquela situação, selecionando o mundo em que quer acreditar, em que quer viver. Pode- se dizer, portanto, que ideologia é um conjunto de ideias, de procedimentos, de valores, de normas, de pensamentos, de concepções religiosas, filosóficas, intelectuais, que se expressa por meio de uma lógica, uma certa coerência interna e que orienta o sujeito para determinadas ações (cf. MARCONDES FILHO, 1997). Para um entendimento do significado de ideologia na ciência e na sociologia política ver Bobbio et al (2010, p. 585). 39 O desmoronamento de uma perspectiva igualitária nas relações sociais e a invisibilidade das contradições contribuem para o mascaramento das situações de violência na sociedade brasileira. A violência nas relações capitalistas tem sua gênese nas desigualdades sociais e no seu agravamento na cena contemporânea. A espoliação do(a) trabalhador(a) da riqueza socialmente produzida atinge também as esferas da vida privada, dificultando o acesso à alimentação, habitação digna, saúde, educação de qualidade e cultura. O cotidiano, na ordem capitalista, manifesta-se como alienação, afastando os trabalhadores do conhecimento dos processos envolvidos nas atividades de produção. O impedimento de condições prejudica o desenvolvimento de um conhecimento crítico do indivíduo sobre sua própria vida, uma vez que o elemento que caracteriza a vida cotidiana é a alienação. Neste contexto, o trabalhador fica limitado no desenvolvimento de suas habilidades, perde as possibilidades de interação social (lazer), pois as intensas horas de trabalho exaurem suas forças vitais. Com isso, entende-se que no capitalismo, a desvalorização do sujeito não se restringe às relações internas do trabalho, mas invade as relações sociais em sua totalidade. Diante da incapacidade de garantir o direito ao trabalho, a burguesia procurou uma estratégia que pudesse anular a pressão exercida pela classe trabalhadora. Iniciou-se, então, a intervenção de uma instituição – o Estado – aparentemente neutra, mas com poderes de “vigiar” o social. A partir daí, o Estado começou a interferir na relação capital-trabalho, almejando cobrir os riscos que têm consequências negativas para o interesse do capital, travestindo sua atuação com uma “preocupação” pelo interesse coletivo. Com isso, as manifestações da “questão social” (fome, doença, miséria, desemprego) antes consideradas como males incuráveis da humanidade – numa tentativa de naturalização das desigualdades sociais – passam a ser entendidas como passíveis de serem amenizadas com a intervenção estatal. Entretanto, nessa disputa desigual entre capital e trabalho, o Estado deveria atuar para garantir os direitos sociais e impor barreiras diante das condições predatórias do capital no processo de acumulação. Porém, seja por omissão, seja por ineficácia o Estado não cumpre a função de proteção dos trabalhadores e trabalhadoras, e quando estabelece políticas sociais públicas não fiscaliza com competência e, propositalmente, favorece diversas violações de direitos nas relações laborais e, também, nas relações sociais. Mesmo não sendo originária do modo de produção capitalista e de suas estratégias para enfrentar as constantes crises, a violência encontra na sociedade capitalista terreno fértil para sua reprodução. A atual sociabilidade está estruturada em modos e valores que comportam relações de dominação, opressão e exploração, produzindo novas expressões e manifestações 40 de violência. Os modos de agir e pensar e os valores predominantes numa sociedade influenciam o acometimento da violência, principalmente naquelas em que predomina a cultura que alimenta práticas usualmente violentas contra minorias17 e populações vulneráveis: crianças, mulheres, idosos, negros, indígenas, população LGBTQIA+, entre outros. A reprodução socialmente aceita desses modos de pensar e agir constroem subjetividades brutalizadas que reproduzem ideologias e induzem ao estranhamento em relação ao outro e a banalização da vida humana. Nessa condição, se repete mecanicamente comportamentos e posturas socialmente aceitas, sem reflexão crítica dos atos centrados no senso comum. 2.1.6 Herança violenta da sociedade brasileira Neste subitem pretende-se abordar a problemática da violência na sociedade e na cultura, entendendo-se que ela – nas mais variadas formas de manifestação – é praticada no Brasil desde os primórdios de sua formação. Acompanhar esse processo ajuda a entender o caráter violento da sociedade brasileira. Uma análise histórica das práticas violentas no Brasil remonta ao seu “descobrimento”. A violência – nas mais variadas formas de manifestação – permaneceu presente como modo institucionalizado, costumeiro e mesmo valorizado. Para Adorno (1996), essa violência: Permaneceu atravessando todo o tecido social, penetrando em seus espaços mais recônditos e se instalando resolutamente nas instituições sociais e políticas em princípio destinadas a ofertar segurança e proteção aos cidadãos. Trata-se de formas de violência que imbricam e conectam atores e instituições, base sob a qual se constitui uma densa rede de solidariedade entre espaços institucionais tão díspares como família, trabalho, escola, polícia, prisões tudo 17 No senso comum, o termo minoria refere-se a um grupo quantitativamente inferior à maioria, como é o caso dos chineses no Brasil, dos latinos nos Estados Unidos e assim por diante. No entanto, a característica essencial desses grupos “minoritários não se reduz a termos numéricos, mas sim a certas feições estruturais básicas nas interrelações minoria-maioria, neste sentido, em relação ao poder exercido no âmbito da sociedade, a parcela da população considerada maioria possui mais poder que a minoria. Um exemplo notório, nesse caso, ocorreu na África do Sul durante o período do apartheid, quando a minoria numérica branca dominava a grande maioria negra impondo a estas normas de ação e conduta. Conforme Chaves (1970), num estudo clássico sobre as minorias: “De acordo com as características que envolvem o contexto de relações maioria-minoria, infere-se que o fenômeno "minoria" só se tornou possível ao longo da História humana com o aparecimento do Estado. Com efeito, o Estado é constituído de um povo ocupando um território determinado com soberania própria perante outros grupos estatais, os quais pretendem de igual modo o monopólio do poder sobre o seu território e seu povo. Mas o povo, constitutivo de um Estado, dificilmente forma uma nacionalidade única, compondo-se ao contrário da agregação de diferentes grupos étnicos. Um desses, ao apropriar-se do poder, impõe suas características culturais sobre os outros, reivindicando a representatividade da nação inteira. Os grupos subordinados formam as minorias. O poder estatal é, pois, o instrumento mais eficiente de que a maioria numa sociedade dispõe para subjugar as minorias integrantes da mesma sociedade (p. 150). 41 convergindo para a afirmação de uma sorte de subjetividade autoritária na sociedade brasileira (p. 51). De acordo com Marcondes Filho (2001), a violência “[...] organiza as relações de poder, de território, de autodefesa, de inclusão e exclusão e institui-se como único paradigma” (p. 22) e, nesse sentido, o autor entende que há uma violência fundadora18 baseada no tipo de colonização e na cultura tradicional herdada dos colonizadores. E nessa sociedade constituída sobre relações violentas, a violência torna-se, ela própria, uma linguagem organizadora. Violência que se manifesta também de maneira silenciosa: [...] as agressões cometidas silenciosa e cotidianamente no mundo doméstico contra mulheres, velhos e crianças; enfim, a vida nos estabelecimentos de isolamento e de reparação social como sejam manicômios judiciários, prisões, delegacias de polícia, instituições de tutela de crianças e de adolescentes (ADORNO, 1995, p. 303). Para Alba Zaluar (1991), na sociedade brasileira contemporânea, as mulheres, crianças e demais grupos ou categorias considerados discriminados ou fracos são “[...] alvo de certa violência que, mais que um mero problema da criminalidade urbana, é um traço cultural que marca crescentemente as relações interpessoais no país” (p. 191). Odália (1983) considera que a violência na atualidade está entranhada no cotidiano e que “[...] pensar e agir em função dela deixou de ser um ato circunstancial para se transformar numa forma do modo de ser e de viver o mundo do homem” (p. 10). Mesmo não tendo um lócus específico, ou seja, existindo em qualquer região geográfica do país, a violência revela- 18 Marcondes Filho (2001) faz uma reflexão sobre a “violência fundadora” e seus traços particulares relativos às variáveis da violência: o agir indiferente; o agir vândalo; e o agir cínico: “Um A