UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS Henrique Albiero Pazetti A região do Médio Tietê e os primeiros acordes paulistas: o Cururu PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS Rio Claro-SP 2014 1 Henrique Albiero Pazetti A região do Médio Tietê e os primeiros acordes paulistas: o Cururu Trabalho de Dissertação apresentado ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Rio Claro, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Geografia. Orientadora: Lívia de Oliveira 1 2 Henrique Albiero Pazetti A região do Médio Tietê e os primeiros acordes paulistas: o Cururu Trabalho de Dissertação apresentado ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de Rio Claro, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Geografia. Comissão Examinadora Profª. Drª. Lívia de Oliveira Prof. Dr. Eduardo José Marandola Júnior Prof. Dr. João Pedro Pezzato Rio Claro, SP, 13 de outubro de 2014. 3 À Vivian e à Cecília, minhas topofilias mais cálidas. À memória de meu avô, Nelson Pazetti, que me ensinou a essência do caipira. À lembrança de Manezinho Moreira e à permanência de todos os canturiões do Médio Tietê. 4 AGRADECIMENTOS Durante o percurso desta dissertação muita água passou debaixo da minha ponte. Água que se movimentou de maneira diferente em momentos também distintos, ora corriam calmas e me confortavam, ora esbravejavam e balançavam a estrutura da ponte, ameaçando minha segurança. Em algumas ocasiões tive a certeza de que a ponte não racharia e eu permaneceria seco, em outros senti que estava na água, correndo para direções desconhecidas e perigosas. Acredito que realmente estive nessas duas condições (e em outras que ainda não reconheci, pois escrevo ainda molhado) e se não me afoguei foi graças a inúmeras pessoas que estiveram ao meu lado, encorajando-me, provocando-me, fazendo-me respirar e mantendo-me vivo, disposto a seguir pelo curso do rio a salvo. O agradecimento inicial vai à instituição da Universidade Estadual Paulista da cidade de Rio Claro, mais especificamente ao Instituto de Geociências e Ciências exatas que me deu todo respaldo necessário para a confecção deste trabalho e a todos os seus funcionários que tão prontamente me ajudaram. Agradeço aos amigos e colegas do Grupo de Pesquisa Geografia Humanista e Cultural, pelos inúmeros estudos, conversas e debates que muito contribuíram para a formulação de ideias aqui presentes. Em especial agradeço a Thiago Gonçalves pela amizade e pelo auxílio mais do que valioso nos diálogos e na formatação do trabalho, Tiago Cavalcante e a Letícia Pádua pela ponte de diálogo feita com a orientadora em momentos em que não consegui encontrá-la, Hugo e Tiago de Paula pelas “prosas filosóficas de boteco”. Ajuda não menos valiosa foi a de meu primo Cláudio Roberto Polastri, seu filho Giovanni Polastri e sua esposa Jaqueline Nicolosi Polastri pelo grande zelo e atenção com que me acolheram na cidade de Tietê, me levando a lugares e a pessoas fundamentais para esta pesquisa. Inestimável ajuda foi a de Célia Barbosa Rodrigues Gonçalves, que revisou todo o texto desta dissertação. Também agradeço aos amigos Álvaro Mestre Ramos (Arvico) pelo companheirismo e conversas sempre valiosas sobre o Médio Tietê e a cultura caipira, bem como a parceria violada e à Eder Roberto (Edinho) pela paciência e talento na confecção dos mapas presentes neste trabalho. Devo valioso reconhecimento a todos os cururueiros e violeiros que pacientemente me atenderam e aceitaram conversar e dividir parte de suas vidas comigo. 5 Agradecimento especial ao canturião Cido Garoto pela enorme ajuda, dando-me endereços, telefones, e o rico material que pude estudar e a Luizinho Rosa que carinhosamente me aceitou em sua casa, no seio de sua família, como se fosse seu amigo. Não poderia me esquecer de meus pais Nelson e Maria Helena, que mesmo não compreendendo a minha vontade de estudar o Cururu estiveram ao meu lado. E a minha família, meu lar e minha vida: Vivian e Cecília, pela alegria e calor com que preencheram meu coração. Iniciei a dissertação sozinho e a encerro com uma família constituída. Não sei como vivi até então sem a companhia de vocês! Agradeço à Lúcia Helena Batista Gratão pela poética. Aos professores que me lecionaram neste período, contribuindo cada qual de sua maneira. Em especial ao João Pedro Pezzato e Manuel Baldomero Rolando Berríos que fazem parte da banca desta dissertação. Por último guardo comigo, como num bauzinho que guarda relicários, alguns agradecimentos muito especiais. O primeiro é direcionado ao Eduardo que está presente desde a seleção das primeiras sementes que brotaram aqui. Quando cheguei à Campinas vindo de Londrina, fui recebido por ele com grande apreço. Fui instruído e provocado por suas “tocaias filosóficas” com enorme destreza, sempre me convidando a pensar diferente, a olhar outros ângulos, outras paisagens, a viver a geografia. Pacientemente me ouviu em momentos de ansiedade e me encorajou a ficar na água de cabeça erguida. Gostaria de dizer obrigado amigo! Obrigado por me apresentar esta geografia deliciosa e fascinante! Devo agradecer a Eduardo por outra razão muito especial: apresentar-me a uma das pessoas mais incríveis que já conheci, Lívia de Oliveira. Eu conhecia Lívia por suas obras, suas ideias. Posso dizer que era um grande admirador de sua obra e nunca imaginava que um dia iria conhecê-la e ainda mais tê-la como minha orientadora. Lívia me aceitou em sua casa, dispondo-se a me ensinar a pesquisar e a escrever: “pegue o dicionário” dizia ela incessantemente, cuidadosa com cada detalhe. Assim construímos esta dissertação, com pitadas de broncas e chacoalhões, Lívia me manteve na direção certa, manteve o bisão pastando no campo certo. Obrigado Lívia, um grande abraço fraterno, do caipira de Sorocaba para a caipira de Mairinque! 6 Eu nasci aqui na serra, pisando na merma terra unde Deus passô primêro, purisso fico orgúioso i me sinto venturoso: sô paulista e brasileiro! Na nossa terra abençoada, unde, a lúiz da madrugada, canta os canário brejêro, inté os nosso arvoredo, parece dizê em segredo: sô paulista e brasileiro! As estrela, esparramada no céu desta terra amada, deste chão dos cafezêro, tem ráio de lúiz briante: são arma dos banderante, dos paulista e brasileiro! Eu nasci aqui na serra, neste pedaço de terra de São Paulo hospitalêro; i eu tenho orgúio de sê i tamém podê dizê: sô paulista e brasileiro! (“Sô paulista e brasileiro” – Víctor Abílio) 7 RESUMO O Cururu é uma antiga tradição cultural da região paulista do Médio Tietê e consiste em um desafio de versos improvisados entre cantadores ao som da viola caipira. Como entendemos a música como um atributo geográfico, afirmamos que a paisagem, o lugar, a região e a geograficidade do Médio Tietê estão presentes no Cururu, da mesma maneira em que o Cururu é parte fundamental da constituição desta região. Para a realização desta tarefa nos amparamos pela Geografia Humanista que nos permitiu apreender o Cururu pela via existencial, de maneira íntima e orgânica, buscando a essência desta cultura por meio da vivência dos lugares e das prosas com as pessoas que tão fortemente apreciam esta tradição caipira. Palavras-chave: Geografia Humanista, Cultura Caipira, Lugar, Paisagem, Geograficidade 8 ABSTRACT The Cururu is an ancient cultural tradition of the São Paulo region of the Middle Tietê and consists of a challenge between singers improvised verses of the sound of the viola caipira. As we understand music as a geographical attribute, we affirm that the landscape, the place, the region and the geographicity the Middle Tietê are on Cururu, just where the Cururu is a fundamental part of the constitution of this region. In carrying out this task on hold you for Humanistic Geography which allowed us to grasp the Cururu the existential route, intimate and organic way, seeking the essence of this culture by living places and talks with people who so strongly appreciate this rustic tradition. Keywords: Humanistic Geography, Caipira Culture, Place, Landscape, Geographicity 9 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – “Família Guarani aprisionada por escravistas”, de Jean Baptiste Debret. ............. 21 Figura 2 – A “Partida da Monção” de Almeida Junior representando a saída das canoas de Porto Feliz rumo às terras cuiabanas ........................................................................................ 26 Figura 3 – Nesta pintura de Charles Landseer intitulada de “Pouso Tropeiro” é notória a distinção da hierarquia dos tropeiros pela diferença de suas vestes ......................................... 32 Figura 4 – Os movimentos da Catira, no seu bater de pés e mãos, é fruto da herança musical indígena. ................................................................................................................................... 39 Figura 5 – Batelão repleto de canoeiros é preparado para o evento tradicional sob as águas do rio Tietê em Anhembi-SP ......................................................................................................... 40 Figura 6 – Grupo dos Irmãos Lara mantém viva esta tradição caipira se apresentando em inúmeras cidades paulistas........................................................................................................ 42 Figura 7 – Duplas como Tonico e Tinoco fizeram enorme sucesso com a difusão e gravação da música caipira através dos discos e ondas de rádio ............................................................. 45 Figura 8 – A Turma Caipira de Cornélio Pires. Da esquerda para a direita, em pé: Ferrinho, empunhando a "puíta", Sebastião Ortiz de Camargo (Sebastiãozinho), Caçula, Arlindo Santana; sentados: Mariano, Cornélio Pires e Zico Dias.......................................................... 45 Figura 9 – Mapa dos municípios da Zona Cururueira do Médio Tietê (SP) ........................... 57 Figura 10 – Figura indicando a presença de violas em parte do território português ............. 66 Figura 11 – Exemplares de violas portuguesas. Da esquerda para a direita: Viola de Braga, Viola Amarantina, Viola Beiroa, Viola Toeira e Viola Campaniça ......................................... 67 Figura 12 – Exemplares de violas brasileiras. Da esquerda para a direita: Viola caipira, Viola Nordestina (dinâmica), Viola do Fandango, Viola de Cocho, Viola de Queluz e Viola de Buriti ......................................................................................................................................... 72 Figura 13 – Representação das oito tradições das violas brasileiras ....................................... 73 Figura 14 – O violeiro sul-mato-grossense ponteando sua viola ............................................ 78 Figura 15 – O mineiro Renato Andrade ficou conhecido por inovar tecnicamente o modo de se tocar este instrumento........................................................................................................... 78 Figura 16 – Tião Carreiro empunhando sua eterna companheira: a viola caipira ................... 79 Figura 17 – Bambico, exibindo grande técnica, marcou história neste instrumento. .............. 81 Figura 18 – A violeira Helena Meirelles tocava o instrumento de uma maneira muito peculiar .................................................................................................................................................. 81 Figura 19- Luizinho Rosa, no centro da foto, devidamente adornado com seu chapéu para a fotografia em sua residência em Cerquilho (SP) ...................................................................... 88 Figura 20- Cido Garoto ao lado de suas camisas; O canturião fez questão do registro. ......... 88 Figura 21- Cururu ocorrido em barracão em Tietê (SP), lugar de encontro entre cantadores, violeiros e apreciadores do Cururu. ........................................................................................ 101 Figura 22- Cururu ocorrido na praça central de Laranjal Paulista (SP) em festa de São João, um grande público acompanhou a trovação de Dito Carrara de Sorocaba. ............................ 101 10 SUMÁRIO …CAMINHAR ....................................................................................................................... 11 1.“CHÃO ENCANTADO”: REGIÃO DO MÉDIO TIETÊ ............................................... 16 1.1. Entradas e Bandeiras: Os “Corsários do Sertão” ................................................... 20 1.2. As Rotas Fluviais Das Monções ............................................................................ 24 1.3. Cruzando o Sertão no Lombo de Mulas ................................................................ 30 1.3.1. As Rotas Tropeiras ................................................................................................ 33 1.3.2. Sorocaba - “A Capital dos Tropeiros” ................................................................... 35 1.4. O Desabrochar da Cultura Caipira ......................................................................... 37 1.5. O Caipira no Disco: “Registros de uma Tradição” ................................................ 43 2.CURURU E VIOLAS: TRADIÇÕES CAIPIRAS ........................................................... 46 2.1. As Sementes do Cururu ......................................................................................... 47 2.2. Zona Cururueira ..................................................................................................... 54 2.3. Desafios do Cururu ................................................................................................ 55 2.4. A Estrutura das Trovas .......................................................................................... 61 2.5. Violas: “A Magia das Cordas” .............................................................................. 63 2.5.1. Tradições Das Violas Brasileiras ........................................................................... 69 2.5.2. Violeiros, Cobras e Crendices ............................................................................... 74 2.5.3. Panorama da Viola Brasileira ................................................................................ 77 3.CURURUEIROS PAULISTAS: TROVAS, PROSAS E VIVÊNCIAS .......................... 82 3.1. Trovadores Paulistas: Os Canturiões ..................................................................... 83 3.2. Narciso: o Canturião Diante do Espelho ............................................................... 86 3.3. Trovas: A Essência do Ser-Cururueiro .................................................................. 90 3.4. Na trilha dos Canturiões: Vivências de Campo ..................................................... 98 3.5. Lugares do Cururu – Lar, Vigília e Permanência. ............................................... 104 PERMANÊNCIA DO CURURU: RESSIGNIFICAÇÃO E REINVENÇÃO DE UMA TRADIÇÃO .......................................................................................................................... 106 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 112 11 …CAMINHAR O caminho trilhado nesta dissertação pode ser comparado ao movimento de entrada em uma mata densa e fechada, assim como faziam os antigos indígenas em seus peabirus. Tais caminhos ancestrais cortaram floresta adentro e, ligando diversos pontos da mata, possibilitaram comunicação e trocas, iluminando o desconhecido. Assim vislumbramos nosso percurso feito até aqui. Adentramos na mata fechada e escura em busca de esclarecimentos e para isso dispendemos muito esforço na caminhada, devidos às condições, por vezes adversas. Raros raios (lunares ou solares, não importa aqui discernir) atravessavam as copas das árvores e iluminaram nosso entorno, possibilitando o reconhecimento da área e um esboço de trajeto. Caminhamos… Esta movimentação (o exercício da reflexão), provavelmente seja o grande legado de um estudo como este. Encorajar-nos a entrar na floresta densa, abrir picadas e clareiras, repensar caminhos é a força motriz que nos cativa a pesquisar. E como é prazeroso investigar aquilo que amamos, aquilo que nos pertence e nos faz ser o que somos. Assim é a cultura caipira para nós: essência paulista, alma do Médio Tietê, parte de nós e de nossa geografia. O amor foi que nos convidou a desbravar a mata densa e explorar suas entranhas, que nos parecia familiar, porém, desconhecida. Familiar, porque herdada de meus antepassados (principalmente de meu falecido avô e daqueles a quem não conheci, mas deixaram suas marcas em solo sorocabano) a antiga paixão para o som da viola caipira e a poesia cabocla. Desconhecida, porque nada, ou muito pouco sabia sobre as origens e a importância destas manifestações tradicionais. Guardo inúmeras lembranças dos tempos de criança quando ouvia aquela música chorosa e suave transmitida pelo rádio no quintal de casa. Ainda era criança e não estava entre os adultos em suas celebrações, mas ouvia tudo da janela do meu quarto, e me punha a imaginar… A música caipira me transmitia muita emoção e carinho. Sentimentos que reencontrei ao ouvi-la tempos mais tarde, quando me iniciei no ponteio da viola caipira. O som das dez cordas, ao reverberar pela primeira vez em meu colo, me acalantou. Parecia ter reencontrado um seio materno, um abraço ancestral me aqueceu. Lembremos que esta confissão deve ser lida com a imagem da entrada na floresta. Assim sendo, estamos dentro dela, entorpecidos pelo seu aroma e umidade, 12 motivados a caminhar, mas ainda desorientados em relação a um rumo preciso. Eis que encontramos o Cururu, um braço da cultura caipira. O encantamento é imediato! Agora era nele que pretendíamos chegar, rumamos ao seu encontro… Nosso caminho coincidia com as águas do rio Tietê, na verdade com as águas do Médio Tietê. Entendemos que esta região é o berço e morada desta antiga tradição caipira. Não bastava analisar as cidades de modo separado, era preciso trabalhar com uma escala regional. Percebemos que sua geografia remonta a tempos antigos e que reverberam incessantemente neste solo paulista. Do passado ao presente, do bandeirante ao caipira, compreendemos que tempo e espaço se fundem em um só instante, dando origem (e reoriginando constantemente) ao cururu e ao Médio Tietê. As paisagens e os lugares do Médio Tietê constituem o Cururu e de seus representantes, os cantadores. Os versos cururueiros exalam e exaltam esta região. A geografia e história do Médio Tietê é quem molda o Cururu, ao mesmo tempo em que esta manifestação cultural é parte significativa do Médio Tietê, elo existencial indissociável. Aquela floresta escura e herma (descrita no início) ganhara uma rota estruturada, que nos possibilitou desbravá-la com maior intensidade. Tínhamos uma direção e uma proposta definida, agora conseguíamos planejar melhor o trajeto e o tempo que durariam nossas empreitadas. Também sabíamos onde poderíamos parar e descansar, tomar fôlego para prosseguir, eram nossos pousos. Este avanço não ocorreu de maneira linear. Tentamos direções diferentes, abrimos picadas desnecessárias, mas também obtivemos êxitos em diversas incursões. O que nos é claro no presente momento, nasceu deste incessante trabalho de exploração. Que alívio foi pousar (no sentido de estada, permanência e descanso) no Médio Tietê, ali conseguimos escavar melhor o solo caipira. Partimos da viola (o amor ao som deste instrumento), chegamos ao Cururu e ancoramos na região paulista do Médio Tietê, eis o resumo de nossa empreitada. Portanto no primeiro capítulo intitulado de “CHÃO ENCANTADO”: Região do Médio Tietê, buscamos elucidar o processo de formação da região do Médio do Tietê por meio de uma releitura histórica destes acontecimentos. Aqui, também ressaltamos aspectos essenciais para a compreensão do Cururu e desta região, principalmente através da geograficidade emanada por este solo. Geograficidade que é expressa nas trovas do Cururu, no ponteio da viola caipira, na paisagem do Médio Tietê e na população desta região em sua maneira de ser cotidiana. O conceito de geograficidade elaborado por Eric Dardel (2011) 13 refere-se à ligação existencial do homem com a Terra, com seu lugar, sua paisagem e sua região, esta ideia clarifica todo nosso entendimento geográfico presente nesta dissertação. Já no segundo capítulo, que leva o título de “CURURU E VIOLAS: Tradições Caipiras”, pretendemos explicar como surgiu, se difundiu e como acontece o Cururu atual (diferenciando do antigo, considerado tradicional). Aqui detalhamos o “universo cururueiro”: seus cantadores, locais de ocorrência, suas rimas, suas crenças e seu principal instrumento de acompanhamento, a viola caipira. Devido a imensa riqueza (musical e simbólica) deste instrumento, neste capítulo ela ganha uma atenção especial. Tentamos explicar sua origem em Portugal e o modo como se particulariza em cada região brasileira, tomando formas e afinações distintas, absorvendo muito da cultura dos locais onde se enraíza. Os aspectos materiais e imateriais que envolvem o instrumento e seu tocador (o violeiro) também são trabalhados neste momento da pesquisa. A Geografia Humanista foi quem iluminou esta dissertação. Entendemos que esta possibilidade de conhecimento geográfico é quem melhor nos fundamenta na busca da compreensão e entendimento da relação do homem com seu espaço de vivência. Segundo Holzer (1997, p.77) a pretensão primordial da Geografa Humanista é: “relacionar de uma maneira holística o homem e seu ambiente ou, mais genericamente o sujeito e o objeto, fazendo uma ciência fenomenológica que extraia das essências a sua matéria prima”. Quando pensamos o espaço, como condição existencial, não podemos considerá-lo de maneira geométrica, somente. É preciso enxergá-lo em sua totalidade, permeado por emoções e atributos humanos (que são impressas na arte; a música em nosso caso). Desta maneira, os espaços: Não são vazios abandonados aos quais se atribuem, por vezes, qualidades e significados, mas são os contextos necessários e significantes de todas nossas ações e proezas. Então, o espaço não é euclidiano ou alguma outra forma geométrica, na qual nos movimentamos e que percebemos como separadas de nós (RELPH, 1979, p.16). Nesta perspectiva, o conhecimento cotidiano se faz muito relevante, pois é no dia a dia que experienciamos o mundo em todo seu fulgor. É no cotidiano que apreendemos a Terra em suas potencialidades e particularidades. E não é desta experiência cotidiana que a arte é composta e que os versos de Cururu são feitos? 14 Sim. É da existência que nasce a arte. Em nosso entendimento ela é a expressão existencial mais sublime da condição humana. Ela é um sólido caminho para a busca das coisas mesmas, como almeja a filosofia fenomenológica, norteadora da Geografia Humanista. Assim abrimos clareiras iluminadas que nos permitiram enxergar melhor o fenômeno que tanto buscávamos: o Cururu e, por consequência, a região do Médio Tietê. Entendemos que a arte seja um valioso caminho para a compreensão dos lugares e da(s) geografia(s). Frequentando diversos eventos de Cururu, conversando com cantadores, violeiros e o próprio público presente, pudemos compreender a geografia do Médio Tietê sob outra perspectiva: a perspectiva existencial, a perspectiva daqueles que vivem este solo diariamente. Analisar e buscar compreender um fenômeno com as lentes da escala local e regional se fez muito relevante em nossa caminhada. Adentrar a floresta, sentir seus cheiros, tocar suas folhas e ouvir o som das águas que nela desenham, nos permitiu nos aproximar do fenômeno desejado. Poderíamos sobrevoar a mata por nós imaginada, mas queríamos estar dentro, e assim o fizemos. Esta aproximação se dá no terceiro capítulo desta dissertação intitulado de “CURURUEIROS PAULISTAS: Trovas, Prosas e Vivências”. Aqui está nossa bagagem experiencial vivenciada em diversos lugares onde ocorre o Cururu. Nosso campo realizado principalmente nas cidades de Sorocaba, Tietê, Cerquilho, Laranjal Paulista e Piracicaba nos possibilitou vivenciar o Cururu de maneira íntima. Aspectos fundamentais deste estudo foram revelados por meio da experiência e de inúmeros diálogos travados com as pessoas que vivenciam o Cururu (cantadores, violeiros e o público destes espetáculos). Trabalhamos com algumas trovas improvisadas pelos cururueiros, entendendo que neste momento uma grande e valiosa carga experiencial é relatada, sendo fundamentais para a compreensão do Cururu e a consequente composição desta dissertação. Após essas etapas elencamos algumas ideias conclusivas sobre o Cururu e a geografia do Médio Tietê que na verdade não se encontram solidificadas e imutáveis visto que a vida se apresenta de maneira fluida e constante, como as águas do Tietê tão importantes para a região e a música aqui estudadas. Em alguns momentos fomos obrigados a parar a caminhada e refletir, principalmente quando farejamos o cheiro da morte. Não exatamente a morte de indivíduos, mas sim, a possiblidade da morte desta antiga tradição e o consequente fim da região do Médio Tietê, visto que o amálgama desta porção paulista com sua essência cultural é muito 15 intenso. Tais reflexões (sem conclusões fechadas) sobre a condição do Cururu na atualidade estão no pequeno capítulo intitulado de “MORTE E VIDA CANTURINA: Reinvenção e Resistência do Cururu”. Esperamos que nossa incursão possa de alguma maneira ter contribuído com o pensar e o fazer geográfico. Obviamente que continuaremos a caminhada, pois a pesquisa não pode ser considerada findada e acabada, o movimento é contínuo. Caminhemos e principiemos a canção… 16 1. “CHÃO ENCANTADO”: REGIÃO DO MÉDIO TIETÊ “Chão encantado” é a expressão feliz, simbólica e geográfica, cunhada pelo violeiro sorocabano Ricardo Anastácio, ao dar título ao seu CD. Estas palavras traduzem toda a melodia e riqueza da cultura caipira do Médio Tietê paulista. A região do Médio Tietê é fruto da confluência de fatores históricos, sociais e culturais. Da fusão de lugares, paisagens e geografias, constitue-se uma existência específica e particular, ou, nas palavras de Eric Dardel, uma geograficidade própria. Para o autor, a geograficidade é quem “liga o homem à Terra, uma geograficidade (géographicité) do homem como modo de sua existência e de seu destino” (2011, p.1-2). A geograficidade nasce da íntima relação do homem com o seu lugar existencial, no caso aqui proposto, a relação orgânica do homem que se dá com a região (do Médio Tietê). Não a região administrativa e estatística, ou as regiões naturais tão frequentes nos trabalhos de Geografia, mas sim a região como espaço vivido e experienciado. Aquela que surge das atitudes e percepções humanas frente ao espaço, que inclui o homem em sua abordagem, pois, como assegura Fremont: […] o homem não é um objeto neutro no interior da região, como muitas vezes se poderia julgar pela leitura de certos estudos. Apreende desigualmente o espaço que o rodeia, emite juízos sobre os lugares, é retido ou atraído, consciente ou inconscientemente, engana-se ou enganam-no… Do homem à região e da região ao homem, as transparências da racionalidade são perturbadas pelas inércias dos hábitos, as pulsões da afectividade, os condicionamentos da cultura, os fantasmas do inconsciente (FREMONT, 1980, p. 16-17) A região vivida é aquela: “vista, apreendida, sentida, anulada ou rejeitada, modelada pelos homens e projetando neles imagens que os modelam” (FREMONT, 1980, p.17). Desnudando-nos de armadilhas estatísticas, nos aproximamos de uma região viva, inerente a uma geografia humanista. A região é formada por lugares e os lugares são contidos na região. Podemos então afirmar que a região do Médio Tietê é formada pela confluência dos lugares que a compõem, estando inscrita neles, uma aliança indissociável. Por tal razão, a consideramos aqui, uma região-lugar, ou em outras palavras, uma região com atributos de lugar. 17 Região pela sua dimensão escalar. Lugar pela intensidade com que se dá a experiência do homem neste “pedaço do mundo”, permeada por sensações, emoções, alegrias e angústias. É onde verdadeiramente existimos e construímos nossa vida. É o espaço do dia-a- dia, do cotidiano, nossa verdadeira geografia. É um “chão encantado”. Viver o lugar é também viver a região, pois são indissociáveis. Com isso, a experiência regional brota, primeiramente, pela experiência do lugar, lugares com elementos essenciais em comum. Esta essência em comum é que torna a região particular, específica, como é o caso do Médio Tietê e suas particularidades (materiais e imateriais) impressas na paisagem. Na realidade é difícil destrinchar a experiência terrestre em diferentes momentos e escalas, ela acontece de modo uno e sinestésico. As separações são feitas para efeito didático. Edward Relph (1979, p.16) clarifica tal situação afirmando que: “não há limites precisos a serem traçados entre espaço, paisagem e lugar, como fenômenos experienciados. Nem a relação entre eles é constante – lugares têm paisagens, e paisagens e espaços têm lugares”. Aqui também somamos o conceito de região à reflexão de Relph. Paisagem, em nosso entendimento, extrapola a mera enumeração de elementos visíveis em determinado “recorte espacial”. Ela é parte fundamental da vivência do homem, é quem abre a possibilidade de desbravamento, de aventura e de gozo frente à Terra. Sendo horizonte, é aberta, escancara e convida o homem ao seu devir existencial. Altera o homem no mesmo ímpeto em que é transformada, simbiose visceral. Como ratifica brilhantemente Dardel (2011, p.30): “Muito mais que uma justaposição de detalhes pitorescos, a paisagem é um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma impressão, que une todos os elementos”. E prossegue o autor: A paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afetiva dominante, perfeitamente válida ainda que refratária a toda redução puramente científica. Ela coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra […] A paisagem é um escape para toda a Terra, uma janela sobre as possibilidades ilimitadas: um horizonte. Não uma linha fixa, mas um movimento, um impulso (DARDEL, 2011, p.31). A paisagem está na dimensão do sentido. Antes de poder ser objetiva e racionalizada ela é sentida de maneira sinestésica. Pode ser comparada a uma força que invade o homem e o desperta para a habitação. Nas palavras de Besse (2006, p.80): “a paisagem é o espaço do sentir, ou seja, o foco original de todo encontro com o mundo. Na 18 paisagem, estamos no quadro de uma experiência muda, “selvagem”, numa primitividade que precede toda instituição e toda significação”. O conceito de paisagem não pode ser encerrado em si mesmo, delimitado e quantificado em elementos físicos somente. Ela abarca toda dimensão geográfica. Quando então consideramos a região do Médio Tietê temos que fazê-lo em sua totalidade, ou seja, considerando a experiência geográfica de modo conjunto e inseparável. Apesar desta densidade que compõe esta região escolhemos o rio Tietê como fio condutor do desvelamento do Médio Tietê. Extrapolando a questão do recurso hídrico, este rio parece ser o elo entre as diferentes situações, escalas e lugares desta região, como se suas águas constituíssem sua unidade. Este rio tem uma característica muito específica: corre no sentido contrário ao mar. Percorre todo o interior do estado de Leste para Oeste até desaguar no rio Paraná. Por tal razão, muito de sua significância se deu por sua função desempenhada no período de interiorização do sertão da antiga colônia portuguesa. Estes rios foram fundamentais neste processo. Representaram um papel de guia para os homens que participavam das bandeiras, monções e posteriormente do tropeirismo. Suas águas, ainda, carregam esta valiosa herança e as cidades por elas banhadas reverberaram toda esta carga histórica e geográfica. A região do Médio Tietê é considerada encantada, pois contém beleza tamanha que provoca em seus moradores grande satisfação e prazer, uma felicidade despertada por vivê-lo e habitá-lo cotidianamente. O encanto a que nos referimos não se limita a uma imagem de natureza estonteante, não nos referimos a sensações corpóreas específicas, mas sim à beleza intrínseca presente nos detalhes poéticos do cotidiano e que, de alguma maneira, preenchem nosso existir. O Médio Tietê é encantado pela sua grande riqueza cultural. Nos inúmeros costumes, crenças, cantos e sons que emanam de seu solo, do seu povo, constituindo uma das mais preciosas tradições paulistas, quiçá brasileiras. Esta região é composta por inúmeras cidades nas quais a cultura caipira é muito presente e enraizada em seu solo, sendo própria à sua população. A cultura caipira do Médio Tietê é muito peculiar, sendo algumas manifestações específicas deste lugar-região, como é o caso do Cururu, que só ocorre nessas cidades. O surgimento do paulista mameluco, fruto da miscigenação étnica do português com o indígena local, é o principal “ingrediente” da formação cultural desta região. A mistura genética e cultural destes povos deu à cultura caipira tons muito especiais, podendo ser percebidos nas mais variadas manifestações e particularidades do caipira do Médio Tietê. 19 O caipira, figura típica desta região, é sujeito humilde e tem na sua relação íntima com a natureza seu maior bem. Ao contrário da figura jocosa e preguiçosa que lhe foi taxado, ele é um trabalhador incansável e da lida com a roça faz brotar seu próprio sustento. Quando o clima não favorece o plantio não hesita em pedir ajuda aos seus santos de devoção, visto que a fé é uma de suas características mais presentes. E não seria o caipira, e aqueles que vivem de modo direto a natureza, pessoas que sentem a presença da Terra e sua potência de modo mais perceptível e intenso? Parece-nos que Eric Dardel pensa neste sentido quando afirma que a experiência geográfica: Se realiza na intimidade com a Terra que pode continuar secreta. Inexprimida, inexprimível, é a “geografia” do camponês, do montanhês ou do marítimo. Recolhido ao silêncio pelo acompanhamento ou pelo pudor, porém muito vivo e muito forte em suas ligações com a terra, a montanha ou o mar sobrepujam frequentemente as afeições humanas. Em sua conduta e em sua vida cotidiana, em sua sabedoria lacônica carregada de experiências, o homem manifesta que crê na Terra, que confia nela; que conta absolutamente com ela. E lá, em seu horizonte concreto, que uma aderência antes de tudo corporal assegura seu equilíbrio, sua rotina, seu repouso. A Terra não se discute, em ela tudo desaba (DARDEL, 2011, p.93). Com a expansão urbana observada em nosso país e a modernização nas técnicas e no estilo de vida rural este sujeito peculiar se torna mais raro, porém suas raízes estão fincadas em solo paulista e em sua população. Nas cidades do Médio Tietê muitas famílias têm seu passado vinculado ao meio rural e consequentemente as pessoas carregam consigo esta identidade. Ela é perceptível na culinária, no sotaque, na música, nas simpatias e crendices, enfim, nas nuanças deste povo que através das trilhas de asfalto e poeira, entre a modernidade e a tradição, mantém este modo de ser ainda presente. A viola caipira, instrumento símbolo das manifestações culturais desta região, entoa a música do Médio Tietê de forma muito particular. Pelo ponteio deste instrumento o chão encantado ganha vida através de sons que expressam suas paisagens, lugares, odores, cores e sentimentos que permeiam a mente e o coração deste povo. Quando ouvimos um verso improvisado de Cururu acompanhado da viola de dez cordas (como também é conhecida a viola caipira) estamos diante da manifestação cultural autêntica do Médio Tietê. Nele está presente toda bagagem histórica e geográfica que consolidou esta região, tudo aquilo que encantou este chão, toda a geograficidade deste solo. Nesta música são nítidas as influências das paisagens e lugares desta região, bem como os elementos que inicialmente formaram esta cultura: a saudade do português de 20 sua amada pátria distante, a dor do indígena arrancado de suas florestas, bem como a celebração ao paulista que retorna a sua terra após brava expedição sertão adentro. Por tal razão Cornélio Pires em sua canção “moda do peão” afirma que a música caipira “é sempre dolente, é sempre melancólica, é sempre terna” (PIRES, 1982). Procurar entender o processo de formação desta região paulista é buscar as razões que encantaram este solo. É procurar desvendar as origens da cultura e da música caipira em suas mais variadas manifestações e expressões, dentre as quais, o Cururu, “perfume” em comum que é exalado pelos lugares do Médio Tietê. 1.1. Entradas e Bandeiras: Os “Corsários do Sertão” Para se compreender o início da atividade das Entradas e Bandeiras é necessário retomar a condição social em que se encontravam os paulistas no planalto de Piratininga no início de sua formação como vila. A população local viveu praticamente de maneira independente da Coroa Portuguesa, visto que a região não apresentava atrativos econômicos que trouxessem investimentos lusitanos como havia ocorrido no Nordeste, com a produção de açúcar cultivada no fértil solo de massapê. Obrigados a buscar meios de sobreviver neste ostracismo os paulistas viveram na pobreza durante muito tempo, sobrevivendo de maneira rústica, com muitas técnicas herdadas dos indígenas locais. Darcy Ribeiro descreve com clareza a situação da vila paulista e de seu povo nesta época: São Paulo era uma cidade pobre: casebres de taipa ou adobe, cobertos de palha, poucas ruas, vida familiar ainda semi-indígena, com a utilização de técnicas nativas, como a lavoura de coivara, caça, pesca e coleta de frutos silvestres. Os poucos “luxos” em relação à vida tribal se resumiam ao uso de roupas simples, ao consumo de toucinho de porco, rapadura e pinga de cana, à posse de alguns instrumentos de metal, de armas de fogo e de candeias de óleo. A canjica, cujo preparo dispensava o sal, frequentemente escasso, era uma das bases da alimentação. Dormia-se em redes e eram fiadas e tecidas em casa as roupas de uso diário – amplas ceroulas e camisolão para os homens e, blusas e saias largas e compridas para as mulheres. Todos andavam descalços ou usavam chinelas alpercatas (RIBEIRO, 1995, p.194). As características físicas da região do planalto de Piratininga também contribuíram para a formação do movimento das Entradas e Bandeiras. Primeiramente, a Serra do Mar representava uma espécie de barreira aos paulistas, impedindo o seu livre trânsito entre o litoral e o planalto. Além disso, o rio Tietê servia como um guia que 21 canalizava a atenção destes homens para o sertão, conduzindo suas longas caminhadas nestas terras incógnitas em busca de riquezas que pudessem reverter sua pobre situação. Diante deste contexto social e geográfico os paulistas irão iniciar um dos momentos mais importantes da história brasileira. Como os paulistas estavam afastados dos grandes centros de importância da colônia não tinham acesso ao consumo de escravos africanos. Encontraram na escravização do indígena uma grande possibilidade de mão-de-obra. Posteriormente, a caça e o aprisionamento de indígenas se tornou a principal atividade econômica bandeirante. Os índios caçados eram inicialmente escravizados nas vilas e fazendas. Em número bem maior foram comercializados para trabalharem nos engenhos de açúcar do nordeste. A figura 1 representa o momento de preação indígena feita por mãos bandeirantes. Figura 1 – “Família Guarani aprisionada por escravistas”, de Jean Baptiste Debret. Fonte: Acervo Casa da Memória de Curitiba. Este momento é denominado como a primeira fase do bandeirismo, o período defensivo. Esta atividade restrita ao planalto paulista feita principalmente por “capitães-mores, governadores ou prepostos oficiais desses dirigentes e teve um caráter defensivo” (AB´SABER et al, 2004, 284). 22 É datado da primeira metade do século XVII o segundo período do bandeirismo (agora denominado de ofensivo). Nesta ocasião a área de caça do gentio indígena se expande. Os bandeirantes se adentram profundamente nos sertões em todas as direções na busca de sua “mercadoria”. Agiam como verdadeiros “corsários do sertão” devastaram tribos e missões jesuítas inteiras com extrema violência para conseguir seus intuitos (RIBEIRO, 1995). A relação do paulista com o indígena excedia o aspecto econômico, era uma ligação no aspecto cultural, social e genético. Da fusão genética do português com o índio local descende o mameluco, linhagem étnica que povoou os solos paulistas e foi o grande contingente do exército bandeirante. É com o índio que o paulista aprenderá a viver naquele lugar bravio, como elucida Buarque de Hollanda: É inevitável que, nesse processo de adaptação, o indígena se torne seu principal iniciador e guia. Ao contato dele, os colonos, atraídos para um sertão cheio de promessa, abandonam, ao cabo, todas as comodidades da vida civilizada. O simples recurso às rudes vias de comunicação, aberta pelos naturais do país, já exige uma penosa aprendizagem, que servirá, por si só, para reagir sobre os hábitos do europeu e de seus descendentes mais próximos. A capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço; o senso topográfico levado a extremos; a familiaridade quase instintiva com a natureza agreste, sobretudo com seus produtos medicinais ou comestíveis, são algumas das imposições feitas aos caminhantes, nessas veredas estreitas e rudimentares (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990, p.16-17). O indígena, inclusive, fazia parte do exército bandeirante constituído por um chefe supremo (normalmente um branco) que detinha total poder sobre seus subordinados, um capelão para cuidar do aspecto religioso, um exército mameluco e um enorme número de escravos índios. Eram fundamentais para o êxito da Bandeira, pelo seu conhecimento da floresta eram utilizados como exploradores de caminhos, coletores de alimentação, carregadores de carga e combatentes (SANTOS, 2001). As vestes destes sertanistas eram simples. Costumavam andar descalços pelas matas utilizando-se de um chapelão de abas largas, camisa e ceroulas, sua proteção corpórea era feita pelo gibão (uma espécie de colete resistente que os protegia dos disparos de flechas) e a gualteira (um tipo de chapéu de pele de anta que se assemelhava a um capacete rústico). As armas de fogo, como o mosquetão, era de uso dos brancos e das tropas mamelucas. Os índios dispunham de arco e flecha, que tinha a vantagem de ser leve, silencioso e veloz, comparado ao mosquetão (SANTOS, 2001). 23 Antes da partida das bandeiras, índios escravizados partiam primeiro, plantando lavouras que seriam utilizadas pelo resto do exercito no decorrer da empreitada. As expedições menores seguiam a frente capitaneando mais índios que seriam incorporados ao grupo. Quando encontravam a aldeia ou a missão a ser atacada faziam um acampamento nas redondezas. Neste momento os doentes e as bagagens ficavam no local, enquanto as armas eram preparadas para o ataque. Todo esse processo era adotado para que o ataque fosse de surpresa e silencioso e consequentemente tivesse maiores chances de obter êxito. Após o ataque bem sucedido, os cativos eram trazidos a São Paulo, para serem comercializados enquanto parte do grupo continuava em busca de mais índios para escravizar (TORAL, 2000). Se a primeira metade do século XVII é considerado o período de apogeu do bandeirismo de aprisionamento indígena a segunda metade deste século é considerada o declínio desta atividade. As dificuldades residiam principalmente na dificuldade encontrada em caçar os índios em terras espanholas e também no “sucesso” da busca bandeirante por riquezas minerais. Apesar do declínio desta atividade, ela foi de suma importância para o decorrer do processo de formação socioterritorial brasileiro. Ab´Saber et al. aponta com clareza os reflexos do bandeirismo na história nacional: Consequências do bandeirismo de aprisionamento foram: a manutenção e a sobrevivência do núcleo social paulista, o fornecimento de braços para as lavouras piratininganas e a para a região da cana-de-açúcar e outras, na falta de escravo negro, o devassamento do interior facilitando o povoamento, o recuo da expansão castelhana representada pelos jesuítas, rumo ao Atlântico e sustentada pelos bandeirantes, a conquista e o alargamento territorial do Brasil a sul e a sudoeste pela posse de extensa área correspondente à margem esquerda do Paraná e ao território atual do Rio Grande Do Sul (AB’SABER et al 2004, p. 288). Encerra-se esta atividade, mas não se encerra o ímpeto expansionista e desbravador do bandeirante iniciando uma nova fase em sua história: a do explorador de riquezas minerais. Partem rumo a novos territórios em busca da terra prometida, onde o ouro e a prata seriam abundantes e poderiam os paulistas enriquecer enormemente. Para isso, os bandeirantes: “devassaram o interior, abriram caminhos, preparam a descoberta do ouro a partir do século XVIII em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, expandindo cada vez mais para oeste as terras da América Lusitana” (AB´SABER et al, 2004, p.295). A busca por riquezas em outras regiões da colônia portuguesa também ocorreu por meio de embarcações. Os rios da região do Médio Tietê foram utilizados para 24 desbravar terras a noroeste em um período denominado de monções, mais um importante episódio da formação de nosso país. 1.2. As Rotas Fluviais Das Monções As monções representam um importante momento histórico no processo de interiorização e constituição da unidade territorial brasileira, um capítulo que tem como característica peculiar a utilização dos rios como aliados na árdua tarefa de desbravar o sertão do Brasil. Elas eram expedições fluviais, de cunho povoador ou comercial, que navegavam pelo leito dos grandes rios, como o Tietê, o Paraná, o Paraguai e o Cuiabá em busca de ouro ou de redutos indígenas que ainda eram capturados por parte dos paulistas (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990). Elas surgem e ganham força com o declínio da atividade bandeirante no século XVIII e com a expulsão dos paulistas das minas gerais na Guerra dos Emboabas. Se para o bandeirante o rio era um obstáculo, para os homens das monções representava um grande aliado, verdadeiras “estradas móveis”, como afirma Buarque de Hollanda (1990, p.75). As duas atividades (bem como o tropeirismo que desenvolveu os caminhos para o sul do Brasil) não devem ser vistas como partes distintas da história e sim uma continuidade do mesmo processo expansionista feita pelo homem paulista. Assim esclarece Ab´Saber et al.: As monções representam, em realidade uma das expressões nítidas daquela força expansiva que parece ter sido uma constante histórica da gente paulista e que se revelara, mais remotamente, nas bandeiras e impelirá pelos caminhos do sul os tropeiros de gado. Tomados no seu conjunto, o historiador de hoje poderia talvez reconhecer, nessas formas, uma só constelação (AB’SABER et al, 2004, p. 307). A origem do termo monção é árabe e foi incorporado pelos portugueses para denominar o período de ventos favoráveis a navegação à vela. Aqui, foi adaptado às condições e características da navegação feita pelos paulistas, que não se utilizavam dos ventos e sim do curso natural dos rios para se deslocar. O termo monção, em nosso contexto, significa o período pluvial ideal para navegar, quando os rios estariam cheios e facilitariam a atividade. Os principais meses escolhidos para a partida das monções eram os de março e abril, às vezes este período era estendido até meados de junho, e havia aqueles que optavam em partir entre os meses de julho a setembro. Épocas mais secas, porém, com menos 25 riscos de adoecer com a alguma febre maligna (constantes nos tempos das enchentes) (AB´SABER et al, 2004). As monções partiam predominantemente do Porto de Nossa Senhora da Mãe dos Homens de Araritaguaba (posteriormente denominada de Porto Feliz) e tinham como meta atingir as terras do extremo noroeste brasileiro, Cuiabá. A partida das canoas era feita pelo rio Tietê (que não era nenhuma novidade aos paulistas que por ele se orientavam para percorrer os caminhos das bandeiras) até alcançar o rio Paraná e seus afluentes, como o rio Pardo. Estas rotas eram constantemente retraçadas, visando a minimizar os empecilhos desta viagem, porém, a principal rota feita pelos paulistas pelos rios no período das monções: Era variável o roteiro das primeiras viagens, que se faziam sem ordem e sem época determinada. Desciam então as canoas o Tietê até a foz, seguiam o curso do atual Paraná, entravam por um dos seus afluentes da margem direita, em geral o Pardo e, neste caso, subiam depois a Anhanduí-Guaçu, ganhando as contravertentes do Rio Paraguai para atingir este rio através de um dos seus afluentes orientais. Subindo em seguida o Paraguai, alcançavam o São Lourenço e finalmente o Cuiabá, que os conduzia nova terra da promissão […] Foi por volta de 1720 e graças à diligência dos irmãos Leme, que se começaram a verificar as vantagens de uma alteração nesse itinerário, de modo a que as canoas subissem a parte encachoeirada do Pardo, que fica acima da barra do Anhanduí-Guaçu, até o ribeirão de Sangue-xuga. Neste ponto justamente atinge o divisor das águas do Paraná e Paraguai sua menor largura – cerca de duas léguas e meia (AB´SABER et al, 2004, p. 314). A partida das canoas, como representado na figura 2, era feita normalmente pela manhã e envolvia grande número de familiares, comerciantes e curiosos todos atentos à saída das embarcações que cruzariam o interior da colônia pelos caminhos fluviais. O momento da saída e da chegada das embarcações era repleto de emoção e de festividades, visto que o risco de infortúnio que rodeava os canoeiros era imenso. 26 Figura 2 – A “Partida da Monção” de Almeida Junior representando a saída das canoas de Porto Feliz rumo às terras cuiabanas Fonte: Acervo Museu Paulista – USP Por tal razão, nesta oportunidade, também acontecia um momento religioso para benzer as canoas e seus remeiros quando: “o padre implorava para os navegantes a mesma proteção divina, outrora dispensada a Noé sobre as águas do dilúvio ou ao apóstolo Pedro sobra as do mar” (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990, p.71). Os perigos que rondavam estes homens eram inúmeros e residiam principalmente no ataque de índios e nas cachoeiras encontradas no percurso dos rios. Cachoeiras como a Canguera, de Jurumirim, de Averemanduava e a de Pirapora eram conhecidas por serem grandes obstáculos aos canoeiros. Em trechos encachoeirados acompanhava a tripulação um guia ou prático, sujeito com grande habilidade em manobrar a canoa nas cachoeiras. Por vezes o caminho fluvial era tão complicado que eram obrigados a terminar o percurso a pé, conduzindo as canoas por cordas pelo lado de fora da água, outras vezes, aliviavam os pesos das canoas para que estas pudessem passar pelas quedas-d'água (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990). A fama de riqueza das terras a oeste do Rio Paraná era tão exuberante que se dizia que “arrancando-se touceiras de capim nos matos, vinham as raízes vestidas de ouro” (AB´SABER et al, 2004, p.311), por tal razão homens de São Paulo, do litoral e das minas gerais partiram desesperadamente para este rincão tentar a sorte. 27 Porém, o início da exploração aurífera em terras cuiabanas não foi fácil, inúmeros conflitos com os indígenas locais dificultavam a atividade. A situação foi contornada com a chegada do bandeirante Fernando Dias Falcão e seus homens que além de combaterem e domesticarem os índios revoltos levaram instrumentos básicos de mineração (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990). A presença significante de indígenas na região também era fonte de atração para Cuiabá, onde estes eram aprisionados por paulistas, acostumados a se beneficiar com tal atividade. O primeiro paulista a alcançar as beiradas do rio Cuiabá, Antônio Pires de Campos, chegou a tais terras em busca do gentio da tribo Caximpó e não de metal precioso (AB´SABER et al., 2004). Os monçoneiros (outra denominação destes paulistas) foram desenvolvendo recursos e técnicas que facilitassem o sucesso das viagens. Durante seu percurso plantavam e criavam animais para reforçar sua alimentação. Vale ressaltar que parte da gente envolvida nesta tarefa ia a pé (chamados de pedestres) percorrendo as margens dos rios navegados pelas embarcações e nelas preparavam o arcabouço necessário para o êxito da monção. A alimentação também era conseguida através da caça, pesca e da coleta de frutas silvestres muito numerosas nas florestas que margeavam os rios. A saída em comboio foi adotada para a segurança dos tripulantes contra a investida de índios, cabia neste momento aos barcos particulares se unirem aos barcos oficiais que eram munidos de armas para enfrentar possíveis batalhas. Para melhor proteger os mantimentos e a tripulação adotaram a utilização de toldos e mosqueteiros nas canoas. Apesar da utilização destas inovações as técnicas de navegação e da confecção das canoas eram todas elas oriundas da tradição indígena, sendo praticamente nula a influência portuguesa. A canoa indígena tinha a vantagem de resistir aos rios encachoeirados (como era o caso da navegação do Tietê e seus afluentes) além de serem feitas sem grandes gastos podiam ser abandonadas no meio do mato se assim fosse necessário (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990). As canoas eram feitas de troncos de árvores como a peroba e ximbaúva inteiriços e escavados com machados, enxós, fogo e água e variavam de nome conforme suas especificações, como descreve Pardim: Dependendo do tamanho e do tipo de construção havia as ubás (rasas, de pequenas dimensões e fundo chato, talhadas em casca de árvore), as igaras (escavadas num único tronco de árvore, de forma aproximadamente elíptica, rasas, fundo chato e mais altas na popa), os piperis (tipo de jangada), os batelões (barcaças ou canoas de madeira ou ferro, geralmente rebocadas, usadas para transporte de carga pesada). As mais comuns eram os canoões, 28 que exigiam que se remasse em pé; os maiores eram, em geral, inteiriços, feitos com um só tronco de árvore, chegando a medir treze metros de comprimento, por um metro e meio de diâmetro (PARDIM, 2005, p. 32). A parte central dos canoões ficava reservada para as cargas, à frente iam seis remeiros (que remavam de pé como os indígenas faziam), além do piloto e do proeiro. O proeiro era fundamental nas embarcações e deveria ter grande destreza e inúmeras outras habilidades para comandar a navegação: O proeiro, segundo parece, era a figura mais importante da tripulação, pois levava a chave do caixão das carnes salgadas e também a do frasqueiro, comandava e governava a proa e, batendo com o calcanhar no chão, marcava o compasso das remadas. A prática das navegações apurava nele a tal ponto a capacidade de observação, que do simples movimento das águas podia deduzir muitas vezes onde o rio era mais fundo ou mais raso, e onde existia canal ou escolho. Não raro guardava de memória todas as circunstâncias que, nesse percurso de mais de cem cachoeiras, pudessem afetar a navegação. Não é, pois, de admirar se desfrutava de grande prestígio e se podia ostentar, segundo nota um cronista do tempo, “toda a chibança de um vilão obsequiado e respeitado” (AB´SABER et al, 2004, p. 317). A evolução na maneira de conduzir as canoas e o conjunto estrutural que foi se formando no percurso das monções tornou essa tarefa menos dificultosa ao longo do tempo, porém, ainda perigosa. Para que as embarcações obtivessem sucesso em sua empreitada era necessária a consolidação de paradas fixas ao longo do rio onde os barcos pudessem encontrar apoio. Entre Tietê e Cuiabá, existia a fazenda Camapoã localizada no fim do rio Pardo na divisa com Mato Grosso do Sul onde os homens podiam descansar, se alimentar e renovar suas mercadorias. Piracicaba também foi um importante local de apoio para a realização das monções, inclusive construindo muitas das canoas utilizadas nestas empreitadas. A sedentarização dos homens em Cuiabá e em áreas mineradoras próximas foi muito dificultosa, dependiam muito dos produtos trazidos pelas monções. Por vezes chegavam a atingir o número de trezentas a quatrocentas canoas carregadas de produtos fundamentais para a consolidação das vilas próximas as minerações cuiabanas, inclusive animais foram levados até para dar maior suporte a vida destes homens. A fixação humana nestas terras era fundamental para que o processo de mineração não cessasse. Um grande esforço era feito para este intuito, inclusive pelos próprios homens das minas que viviam praticamente como índios caçadores e coletores. 29 As últimas monções são datadas de 1838, quando um grande surto de febre tifoide dizimou grande parte das populações que viviam pelas margens e águas do rio Tietê. A diminuição do ouro existente em Cuiabá e a construção de caminhos terrestres que margeavam os rios também podem ser apontadas como fatores cruciais para o fim desta atividade. A aventura paulista feita sobre águas dos rios teve consequências fundamentais para a expansão das terras coloniais conquistando inclusive áreas ao norte com a chamada “monção do norte” que foi realizada da década de 1750 à primeira metade do século XIX. Por tal razão as monções superaram (em distâncias percorridas e conquistadas) qualquer outra atividade desbravadora feita em solo brasileiro: O aproveitamento dos rios que procuram o oceano, extremo-norte, prende-se assim, ao velho caminho das monções, que avança do sul, do planalto paulista. A função histórica desta autêntica estrada fluvial de perto de dez mil quilômetros, que abraça todo o território da América Portuguesa, supera a de qualquer das outras linhas de circulação natural do Brasil… (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990, p. 65). A importância das monções não se restringe somente à expansão territorial. Teve uma grande contribuição de cunho povoador e econômico da colônia portuguesa. Foi fundamental no surgimento de inúmeros povoados e vilas nas proximidades dos caminhos fluviais, bem como dinamizou a vida econômica do Brasil colonial, levando e trazendo produtos de diferentes e distantes localidades. O homem monçoneiro também pode ser visto como uma evolução do sertanista bandeirante, herdando destes homens a bravura e o ímpeto desbravador, porém, tornam-se mais civilizados e menos hostis, mais aptos à vida em sociedade: É inevitável pensar que o rio, que as longas jornadas fluviais tiveram uma ação disciplinadora e de algum modo amortecedora sobre o ânimo tradicionalmente aventuroso daqueles homens. A própria exiguidade das canoas das monções é um modo de organizar o tumulto, de estimular, senão a harmonia, ao menos a momentânea conformidade das aspirações em contraste. A ausência dos espaços ilimitados, que convidam ao movimento, o espetáculo incessante das densas florestas ciliares, que interceptam à vista o horizonte, a abdicação necessária das vontades particulares, onde a vida de todos está nas mãos de poucos ou de um só, tudo isso terá de influir poderosamente na mentalidade dos aventureiros, que demandam o sertão remoto. Se o quadro dessa gente aglomerada à popa de um barco tem, em sua aparência, qualquer coisa de desordenado, não será a desordem das paixões em alvoroço, mas antes a de ambições submissas e resignadas (BUARQUE DE HOLLANDA, 1990, p. 72). 30 A evolução social ocorrida na época das monções continua a ser desenvolvida pelo tropeiro, que além da expansão territorial continuará este progresso para a aptidão social, trazendo ao Brasil colonial não só novas terras, mas também novos homens. 1.3. Cruzando o Sertão no Lombo de Mulas O transporte no Brasil colonial, durante longo tempo foi feito nas costas de escravos indígenas e africanos, graças a relativa proximidade das atividades econômicas aqui existentes. Com o estopim da busca por ouro na região das minas fez-se necessário uma melhor forma de se transportar produtos e pessoas que pudessem abastecer a região aurífera. Muitos paulistas que se encontravam fora do contexto social e econômico da colônia viram a possibilidade de comercializar e transportar produtos no lombo dos animais. Animais que conseguissem carregar muito peso, se locomover em caminhos rústicos e precários por meio das matas, visto que “no século XVIII poucas estradas foram construídas e a possibilidade de utilização de veículos de rodas tracionadas por cavalo ou boi era limitada” (KLEIN, 1989, p.347). Diante desta situação nasce o tropeiro, descendente direto do bandeirante já bem acostumado à aventura de desbravador do sertão. É o homem responsável por dar maior integração ao país que se formava. Ligando centros isolados uns aos outros, levava nos lombos de seus animais não só bagagens, mas também a civilização, a novidade e a possibilidade de sobrevivência em um território que paulatinamente ganhava ares de unidade: O tropeiro é o sucessor direto do sertanista e talvez o precursor, em muitos pontos, do grande fazendeiro. A transição faz-se sem violência. O gosto da aventura que admite, e não raro exige, a agressividade, encaminha-se pouco a pouco para uma ação mais disciplinadora. Ao fascínio dos riscos e da turbulenta ousadia substitui-se, agora, o amor às iniciativas corajosas e que nem sempre dão imediato proveito. A atração da pecúnia, alcançada a longo prazo, vence o interesse pela rapina. Aqui, como nas monções de Cuiabá, uma vontade mais paciente do que a do bandeirante ensina a medir, calcular oportunidades, contar sempre com os danos e as perdas possíveis. (AB´SABER et al, 2004, p. 362) Foi dos castelhanos do Rio da Prata e do Peru que os paulistas herdaram as habilidades e as técnicas de conduzir animais, pois estes homens do sul do continente americano já realizavam esta atividade na “carreira de Buenos Aires – Tucuman, Potosí E 31 Lima” (ALMEIDA, 1981, p.16). O termo tropa, se referindo a condução de animais, também é oriundo desta cultura, sendo posteriormente incorporada ao vocabulário paulista. Inicialmente a função primordial do tropeiro foi a de abastecer as zonas exploradoras de riquezas minerais. Com a crise aurífera no final do século XVIII toda esta região entrou em crise e a demanda pelo transporte de muares diminuiu, porém, o tropeirismo encontrou outro mercado consumidor, as regiões cafeeiras paulistas. Com o advento da produção do café em meados do século XIX no vale do Paraíba é que o tropeirismo atingirá o seu auge e “se fixará como único e mais importante meio de transporte do Brasil, tornando-se indispensável para a circulação de mercadorias, informações e pessoas, articulando o interior numa grande rede de rotas […]” (STRAFORINI, 2001, p.65). Se o paulista foi o tipo humano adequado para iniciar tal atividade o muar (mulas, burros e bestas) era o animal mais apropriado para resistir a enormes distâncias a serem percorridas. As mulas foram proibidas de serem criadas pela Coroa Portuguesa em 1761, porém, este veto logo foi anulado por compreenderem que era o animal adequado para resistir as longas jornadas e ao enorme peso a que seriam submetidas (AB´SABER et al, 2004) Uma mula chegava a suportar até doze arrobas, ao contrário do cavalo que era muito mais caro e bem menos resistente a tamanho esforço. Elas eram adquiridas xucras (selvagens) nos campos sulinos e domesticadas em terras paulistas onde adquiriam um grande valor (STRAFORINI, 2001). O tropeiro era o dono da tropa, cruzava o interior do sertão transportando seus animais e apanhando cargas que posteriormente poderiam ser vendidas. Não viajava sozinho, com ele iam os camaradas (seu braço direito), o cozinheiro, aprendizes, carrieiros e um bom cão que era imprescindível para manter o comboio de animais na rota. A função do tropeiro extrapolava o mero posto de comerciante e transportador de bagagens e produtos: “era o emissário oficial, o correio e o transmissor de notícias, intermediador de negócios, portador de bilhetes e de recados e aviador de receitas e de encomendas” (PIGNATARO, 2003). Por tal razão, eram homens muito requisitados e bem recebidos em qualquer lugar que parassem com suas mulas. Quando o tropeiro enriquecia já não viajava mais para o sul buscar os animais, passava a administrar seus negócios a partir das vilas onde havia se estabelecido. Tornaram-se pessoas mais sociáveis e aptas ao comércio, o perfil do paulista bruto e rústico presente não era mais necessário. Quem ia buscar os muares no sul do país eram os capatazes, 32 sujeitos de confiança do tropeiro que iam a cavalo até o sul do país e ordenavam as tarefas aos camaradas e aos aprendizes que faziam todo o trabalho penoso da lida com os animais. A divisão social do trabalho presente no tropeirismo era visível nos trajes usados pelas pessoas envolvidas na tarefa. O dono da tropa utilizava roupas de panos fortes, um chapéu de feltro, longas botas de couro que atingiam as coxas e mantas de baeta sobre os ombro. Os demais componentes da tropa, costumeiramente, andavam descalços e suas roupas eram compostas por tecidos muito rústicos, como afirma Straforini (1999, p.31): “a roupa do dono da tropa refletia muito mais a necessidade de diferenciá-lo do restante do grupo, colocando-o no topo da hierarquia tropeira, do que uma adaptação as condições naturais da viagem”. A figura 3 demonstra detalhes desta distinção social observada pelos trajes. Figura 3 – Nesta pintura de Charles Landseer intitulada de “Pouso Tropeiro” é notória a distinção da hierarquia dos tropeiros pela diferença de suas vestes Fonte: Acervo Particular A hierarquia tropeira era composta (do menor ao maior grau de importância) por: cozinheiro ao mesmo tempo madrinheiro (quem conduzia a mula que ia a frente do comboio), camarada ou peão, arrieiro (peão mais velho e de grande importância para o 33 sucesso da caminhada, é ele, inclusive, que era responsável pelo atendimento às “mulas aguadas” (doentes)), capataz, patrão ou dono da tropa. (ALMEIDA, 1981). A tropa era dividida em diversos grupos de animais chamados de lotes. Esta divisão nas tarefas tinha o intuito de facilitar o controle e manter a ordem do comboio, apesar desta divisão era mantida uma unidade no grupo. A frente da tropa ia um animal (besta, cavalo ou égua) chamado de madrinha, era mais velho e conduzia a caminhada muito bem, servindo de guia para os demais animais. Como as tropas montadas partiam interior adentro, transportando e comercializando produtos, ligando os diversos centros de importância na colônia, utilizando de diversas rotas, permitiam o “diálogo” entre as regiões centrais e sulinas do Brasil colonial e por onde passavam “plantavam cidades”, como escrito por Almeida (1981). 1.3.1. As Rotas Tropeiras A primeira rota conhecida a ser de suma importância para a busca de muares no sul do país é o “Caminho do Viamão”, uma longa estrada que interligava Sorocaba (onde os muares eram comercializados) à cidade de Viamão no Rio Grande do Sul (onde os animais eram criados e comercializados). No retorno havia uma parada no Paraná para tratar e engordar os animais durante a invernada para que estes chegassem vistosos em seu destino de comercialização, a cidade de Sorocaba. Sendo assim, Klein (1989), afirma que existia uma nítida divisão territorial do trabalho no tropeirismo: os gaúchos criavam as mulas, os paranaenses alugavam seus solos para a invernada e o paulista cuidava do transporte e da comercialização final do animal. Posteriormente, outra rota nasce no percurso bandeirante o “Caminho Novo de Vacaria”. Com a ausência do animal no litoral gaúcho partem para oeste a partir de Lages (Santa Catarina) seguindo pelo planalto meridional até atingirem as regiões ocupadas pelas Missões, passando por Vacaria, Passo Fundo, Cruz Alta e Santiago atingindo as fontes fornecedoras de muares. Com a descoberta dos campos de Guarapuava uma nova rota se desenha, partindo então desta região do Paraná até atingirem os territórios das Missões onde o muar se encontrava abundante. Essa rota demorou a se consolidar devido à resistência indígena na região que acabou sendo dizimada com a intervenção do exército, em 1809 e 1810, nasce assim a “Estrada das Missões” ou “Caminho de Palmas” (STRAFORINI, 2001). 34 Os tropeiros procuravam fazer os caminhos menos penosos para os animais, obedeciam assim os limites naturais da região, porém, por vezes era preferível subir e descer morros para encontrar algum pouso do que seguir o caminho plano sem nenhuma estrutura presente. Os tropeiros encontravam muitos perigos e dificuldades no percurso: Embora as estradas atravessassem áreas de campos naturais, os tropeiros encontravam inúmeras dificuldades ao longo da rota, como a mata fechada de Lages. Enfrentavam constantemente ataques de saqueadores e dos índios que lutavam pela sobrevivência para não serem dizimados. Os caminhos eram estreitos, muitas vezes podendo passar apenas um animal de cada vez, além de possuir atoleiros causados pelas chuvas e sofrer ataques de animais. Muitas pontes se encontravam danificadas, obrigando a utilização de balsas improvisadas nas travessias de leitos mais largos. As dificuldades encontradas ao longo das estradas refletiram o modo de vida do tropeiro (STRAFORINI, 2001, p. 30). As viagens eram longas, duravam meses, costumavam sair do sul do país em setembro e outubro para chegar à feira sorocabana (onde comercializavam os animais) apenas no mês de março. Era necessário fazer algumas paradas para pernoitar, reabastecer as energias e descansar os animais. Estas paradas foram se tornando cada vez mais fixas e definitivas. Os viajantes já partiam destinados a encontrar as estadias estratégicas para o sucesso do comboio, muitas destas estadas se tornaram cidades. As paradas variavam de qualidade e estrutura, passando por diversas fases com diferentes nomenclaturas. A primeira fase era a do pouso: mero terreno para acampar no qual o proprietário consentia que os tropeiros ali dormissem e alimentassem seus animais. A segunda era a do rancho: consistia em um longo telheiro coberto, por vezes tinham paredes rústicas, por vezes não, era o “bangalô” dos viajantes (diz-se que era necessária pele de tropeiro para dormir em tais locais, pois os vermes costumavam fazer moradas nas peles dos viajantes despreparados). A terceira é a venda, sinônimo do progresso. Local onde se vendia de tudo um pouco e onde os tropeiros podiam se alimentar melhor e dormir em quartos lá encontrados. A quarta fase é a estalagem ou hospedaria e a quinta o hotel, já bem mais pretensioso (PIGNATARO, 2003). Nas paradas é onde, principalmente, o tropeiro se alimentava. Sua dieta era bem simples, constituída basicamente de carne-seca, feijão, angu, farinha de mandioca, coité de molho (pimenta em conserva) e café, alimentos de fácil transporte e difíceis de perecer. O 35 café era adoçado com rapadura, sempre acompanhado do fumo de corda; já a cachaça tinha a função de remediar as doenças e o frio. O cantar durante a parada das viagens era uma característica marcante destes homens que acompanhados da viola caipira preenchiam o seu tempo e (en)cantavam as paisagens por onde passavam. Muitos dos costumes tropeiros fazem parte da cultura caipira presente em diversas cidades do interior do sertão sendo observada na culinária, na música, nas vestes e no modo de falar de inúmeras pessoas pelo interior de São Paulo. Como Almeida descreve uma parada tropeira: Descarregaram a tropa, acomodaram a carga, soltaram os animais. Daí a pouco, enquanto fervia o caldeirão suspenso pela corrente à forquilha, e chiava a gordura na caçarola em uma das “tacuruvas”, os tropeiros entendidos pelos ligais, temperavam a viola e soltavam a voz no descantes das modinhas costumadas (ALMEIDA, 1981, p.73). Muitas cidades se formaram a partir destas paradas. Os viajantes tinham que passar obrigatoriamente por elas durante seus percursos, assim, foram ganhando força e importância. É o caso da cidade de Sorocaba que teve um importante papel no período do tropeirismo. 1.3.2. Sorocaba - “A Capital dos Tropeiros” A história da cidade de Sorocaba é marcada pela importância do tropeirismo em sua formação, tanto que o pesquisador Aluísio de Almeida a definiu como a “capital dos tropeiros” (ALMEIDA, 1981, p.110). Porém, sua origem remonta a tempos mais pretéritos da colônia brasileira com a chegada de Afonso Sardinha no Morro de Araçoiaba em busca de metais preciosos, como o ouro não foi encontrado da maneira desejada pelos colonizadores o lugar acabou ficando no ostracismo dos interesses portugueses e permanecem sem grande importância no panorama colonial. Durante muito tempo a futura cidade sobreviveu com a mão-de-obra indígena capturada pelos bandeirantes paulistas e esta foi a atividade que manteve a cidade viva e respirando em tempos difíceis para os paulistas. Será com Baltazar Fernandes que a vila nascerá oficialmente em 1661 levando o nome inicial de Nossa Senhora da Ponte. Para Straforini (2001) sua criação teve uma função estratégica para a ocupação da região sul e consolidação da influencia lusitana na região. 36 Apesar de toda esta participação nas primeiras atividades paulistas será com o tropeirismo que Sorocaba ganhará importância ao se inserir de modo contundente na dinâmica econômica colonial. Desde o início do sucesso da mineração, Sorocaba já despontava como uma das principais rotas pelas quais os animais eram conduzidos do sul à região das minas gerais, tanto que as primeiras tropas a cruzar a cidade são datadas de 1773. Sorocaba se encontrava em um ponto estratégico na rota tropeira, recebendo uma grande quantidade de viajantes que movimentavam a economia e a vida social da cidade. Esta ficou responsável pela cobrança dos registros, o imposto cobrado pelos animais que por ali passavam, e que se tornara uma rentável fonte de divisas para a Coroa. Este imposto começou a ser cobrado em 1838, e o tropeiro era obrigado a pagá-lo logo após a passagem da ponte sobre o rio Sorocaba. Será com a feira de muares que a cidade terá um enorme desenvolvimento econômico, estrutural e de importância. Não há exatidão sobre a data em que ocorreu a primeira feira em Sorocaba, Straforini (2001) aponta que provavelmente tenha surgido entre 1750 e 1790. Ela não tinha uma data fixa para “estourar” (como se chamava o início da feira). Ocorria principalmente nos meses de abril, maio e junho, pelo fato de o clima e a umidade serem favoráveis, quanto mais pessoas presentes na feira maior era o sucesso desta. Este extraordinário comércio fazia convergir para Sorocaba comerciantes de diversas partes do território transformando a paisagem e o dinamismo sorocabano nos períodos em que ocorria. Não só comércio e trocas aconteciam nas grandes feiras sorocabanas, mas todo um enorme espetáculo por lá se armava, confluindo toda a importância da Colônia para Sorocaba: A arraia miúda que sem sair da cidade fazia seu comércio de prata, ouro e quinquilharia, armarinhos, os taverneiros, os jogadores, os bolantins e palhaços, os caixeiros viajantes da corte, os simples espectadores, havia-os e de longe a atulhar os cômodos dos parentes e amigos – iam-se divertindo á larga e não tinham pressa (ALMEIDA, 1981, p.57). O ápice do tropeirismo, em meados do século XIX, trouxe um maior fluxo de animais na feira de muares de Sorocaba, bem como aumentou significativamente o capital circulante na cidade com o aumento do preço do muar nas feiras e dos impostos pagos nos registros. O intenso fluxo refletirá também no surgimento de inúmeras cidades e vilas nas rotas das tropas que cortavam o interior do estado de São Paulo e da região sul. 37 O declínio das feiras sorocabanas se dará no fim do século XIX com um grande surto de febre amarela que assolou a cidade. Este período também será o derradeiro declínio tropeiro agravado com a construção de ferrovias pelo Brasil afora. O transporte de muares gradativamente foi sendo substituído pelos vagões de trens, além dos bondes elétricos presentes nas maiores cidades e linhas férreas que ligavam a produção cafeeira do Vale do Paraíba aos portos do Rio de Janeiro e Santos. A função de tropeiro perdurou por mais algum tempo em áreas aonde as locomotivas não chegavam. Seu verdadeiro fim veio na década de 1950 com a chegada de carros e caminhões que percorriam grande parte do país pelas estradas de rodagem, findando esta atividade que durante muito tempo transportou a civilização pelo território colonial nos lombos das mulas. Encerrava-se assim mais uma significativa parte da história paulista e brasileira deixando enormes contribuições para a formação territorial e cultural de nosso país. O empreendedorismo tropeiro foi o responsável pela ocupação da porção meridional brasileira além de estabelecer rotas e estradas que ligando pontos diversos do país conferiu-lhe um esboço de unidade. 1.4. O Desabrochar da Cultura Caipira Os homens que desbravaram o sertão brasileiro: monçoneiros, bandeirantes e tropeiros têm uma extraordinária importância para a consolidação do território brasileiro e para a formação e difusão de uma cultura. Consigo levavam não somente produtos, armas e alimentos, mas também uma bagagem imaterial, um modo de ser, que implicará na constituição da cultura que posteriormente será chamada de caipira, tão fundamental para este trabalho. Como afirma Antonio Cândido: Da expansão geográfica dos paulistas, nos séculos XVI, XVII e XVIII, resultou não apenas incorporação de território às terras da Coroa portuguesa na América, mas a definição de certos tipos de cultura e vida social, condicionados em grande parte por aquele grande fenômeno da mobilidade […] Basta assinalar que em certas porções do grande território devassado pelas bandeiras e entradas – já denominado significativamente Paulistânia – as características iniciais do vicentino se desdobraram numa variedade subcultural do tronco português, que se pode chamar de “cultura caipira” (CÂNDIDO, 2001, p. 45). 38 Muitos dos costumes e tradições que atualmente persistem no interior paulista são oriundos das práticas realizadas por estes conquistadores paulistas. Encontramos um pouco de cada um deles no modo de se alimentar, cantar, rezar e se vestir da população do Médio Tietê. A fusão dos grupos étnicos (o colonizador ibérico, o indígena e o negro africano) envolvidos na consolidação do paulista formou uma cultura muito ampla e rica. Se a cultura caipira foi difundida pelos sertanistas ela se assenta derradeiramente em solo paulista e em suas áreas de abrangência com o trabalho dos agricultores, nas fazendas de café, algodão milho e outros cultivos. Na roça não eram adubados somente o “fruto da terra”, mas também o fruto desta cultura, tanto que a viola e a festança são partes integrantes desse povo. Como aponta Nepomuceno (1998, p.98): “Qualquer que fosse o tipo e a qualidade do caipira, ele era doido por festa e cantoria. Não economizava botina para ir atrás de um. Nem que fosse nos cafundós, morada de saci-pererê ou mula sem cabeça”. A religiosidade do caipira normalmente é acompanhada pela música e pela festa, aliás, “reza e farra sempre andaram juntas por aqui” (NEPOMUCENO, 1999, p.63). Inúmeras tradições caipiras surgem deste amálgama, desta fusão entre o sagrado e o profano, entre a contribuição das mais variadas vertentes étnicas que formaram o nosso povo, cada uma com sua particularidade, porém com elos em comum. A difusão desta cultura pelos sertanistas paulistas tem na viola caipira seu instrumento essencial, como no cateretê ou catira que é uma das primeiras formas a surgir da música caipira e tem na influência indígena sua característica primordial. Ela foi muito utilizada na catequização indígena e posteriormente difundida pelos sertanistas paulistas, pois, desde sua chegada ao Brasil o colonizador encontrou na música uma forma de cativar os índios no processo de catequização, influenciando assim, de modo contundente a formação cultural brasileira, bem como as identidades regionais, como no caso da região paulista em questão (HOLLER, 2005). Ela consiste em uma adaptação a uma dança indígena (chamada de caateretê) (NEPOMUCENO, 1999, p.58) é acompanhada pelo som da viola caipira, onde o bater das palmas e as solas dos pés dos “palmeiros” dita o ritmo da música. É inevitável associar a catira ou cateretê com as danças indígenas, nas quais os nativos se manifestam batendo seus pés (às vezes munidos de uma espécie de guizo que intensifica o som dos passos) e palmas, celebrando suas festas. Na catira paulista os passos normalmente são dados em um tablado de madeira, emitindo um som bem específico desta tradição caipira, como na fotografia da figura 39 4. Quando não há o tablado, por vezes é colocado um couro de boi seco no chão para aumentar o som das batidas dos pés. A viola caipira acompanha a dança fazendo uma batida chamada de “recortado”, um ritmo típico deste instrumento que é utilizado em outras músicas caipiras, como na “moda de viola” e no “pagode de viola”. A catira é bem difundida e presente em muitas festas caipiras como a de Santa Cruz, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora e São Gonçalo (NEPOMUCENO, 1999). Figura 4 – Os movimentos da Catira, no seu bater de pés e mãos, é fruto da herança musical indígena. Fonte: Disponível: . Acessado em: 02 jul. 2014. Algumas das cidades banhadas pelo rio Tietê e seus afluentes possuem uma bonita tradição caipira chamada de “encontro das canoas” ou “encontro de batelões”, ela é muito presente em cidades como Anhembi, Conchas, Piracicaba, Tietê e Laras (distrito de Laranjal Paulista) e ocorre no encerramento da Festa do Divino, no último sábado do ano. A figura 5 registra tal tradição. Este evento é uma clara menção à época das monções. O termo batelão se refere a uma embarcação utilizada no período e as festividades faziam parte da saída e chegada dos monçoneiros. Ela surgiu em um período que a febre amarela assolava a população ribeirinha do Tietê, por tal razão é dotada de grande religiosidade e devoção por parte dos participantes. Menções a este período estão registradas em alguns versos cantados e presentes no CD “O folião e os dois meninos – Coleção Turma Caipira” (2013) e que aqui pinçamos um trecho: 40 Esta viagem tão santa, foi por um grande pedido Foi por um grande milagre, foi feita no tempo antigo êêê… Foi feita no tempo antigo, foi lá na grande capela Pra acabar com a epidemia, a triste febre amarela Essa doença malvada, o Divino consumiu Tirando da nossa terra, levou pra água do rio êêê… (O FOLIÃO E OS DOIS MENINOS, 2013). O evento é acompanhado pela população local que observa a Irmandade do Divino (grupo responsável pelo evento) conduzir as canoas em sentidos opostos (algumas subindo e outras descendo o rio) tentando se encontrar ao som dos rojões e dos tiros ensurdecedores dos bacamartes soltados das margens do rio. Figura 5 – Batelão repleto de canoeiros é preparado para o evento tradicional sob as águas do rio Tietê em Anhembi-SP Fonte: Disponível em: . Acessado em: 02 jul. 14 A Festa do Divino também é acompanhada de inúmeras manifestações musicais nas quais a viola caipira é um instrumento imprescindível, tais musicalidades como o Cururu e os batuques, bem como o movimento das canoas podem ser percebidas no poema intitulado de “A Festa do Divino em Tietê” de Cornélio Pires publicado em 1910: 41 Do Tietê magestoso, as margens silenciosas, que pareciam ser inhospitas, desertas, parecem-nos agora alegres, populosas, e um sussurro de festa há nas casas abertas. Onde poisa o Divino há folganças ruidosas entre o povo que traz, respeitoso, as offertas… Requebram no batuque as pretas mais dengosas e saltitam no samba as morenas espertas. Fremente, o cururú não falta no folguedo… Resôa pela matta o estrondo da roqueira, assustado na grota a caça e ao passaredo. E ao romper da manhã, á dúbia claridade, nas canoas, de novo, a comitiva inteira, parte alegre a cantar em rumo da cidade (PIRES, 1910). A Festa do Divino não tem origem brasileira, foi trazida para cá pelos lusitanos e para Andrade (1992) os três fatores primordiais para a fixação da Festa do Divino no Brasil são: a chegada de Franciscanos no Brasil, o estabelecimento ao longo do Médio Tietê de portugueses e a necessidade de apego à religião frente aos obstáculos surgidos no sertão. Existem inúmeras semelhanças entre a Festa do Divino brasileira e aquela observada em Portugal e nos Açores, tais como: a religiosidade (com realização e pagamentos de promessas ao Divino Espírito Santo), elementos comuns ligados à realeza, preocupação com pobres e doentes e a utilização dos mesmos símbolos como o cetro, a coroa e a pomba. Outra semelhança entre as festas é a presença de cantadores e improvisadores. Em Portugal eles cantam loas pelas ruas e em solo paulista o Cururu é fator primordial nas Festas e Pousos do Divino. O cantador possui grande importância não só na diversão daqueles presentes, mas também na função religiosa, sendo o cururueiro uma espécie de intercessor entre as pessoas e o plano divino, podendo ele ajudar nesta ligação. Outra manifestação cultural típica do caipira do Médio Tietê e que tem uma clara alusão ao período de interiorização brasileiro é o fandango de chilena. O fandango é 42 observado em inúmeras localidades do Brasil, mas da forma como este acontece é específico desta região paulista. O fandango de chilena tem origem ibérica e era muito praticado pelos tropeiros nos momentos de diversão (tanto que em alguns lugares é conhecido como dança tropeira), os lenços e as botas utilizadas pelos participantes desta tradição são referências ao tropeirismo. As chilenas são esporas grandes e não dentadas (ao contrário das esporas “cortadeiras” utilizadas para domar os animais) que tem a função de marcar os passos com seu tilintar metálico. Os participantes fazem inúmeras danças com temáticas que lembram o cotidiano tropeiro ao som da viola caipira que faz uma batida semelhante a do catira e do cateretê, ou seja, faz um “recortado”. O maior representante atual do fandango de chilena em solo paulista é o grupo dos Irmãos Lara em Capela do Alto, fotografados na figura 6, que firmemente mantém esta tradição viva. Figura 6 – Grupo dos Irmãos Lara mantém viva esta tradição caipira se apresentando em inúmeras cidades paulistas Fonte: Disponível em: < http://img.cruzeirodosul.inf.br/img/2014/06/15/media/153285_1.jpg >. Acessado em: 02 jul. 14. As tradições aqui descritas são manifestações típicas da região do Médio Tietê e podem ser consideradas as sementes que formaram o gênero chamado de música caipira. Com a gravação a música caipira muda significativamente seu rumo e sua forma, difundida pelas ondas do rádio a locais distantes. Ela se expande, conquista territórios, funde- se a outros ritmos e por vezes é obrigada a se alterar para poder se enquadrar às necessidades de audiência exigidas pelo mercado. Se por um lado a música se distancia de suas matrizes 43 originais, por outro atinge outras regiões, difundindo fortemente a cultura caipira por outras “praças”. 1.5. O Caipira no Disco: “Registros de uma Tradição” A tradição oral era o principal modo de difusão e perpetuação da cultura caipira, não havendo registro desta tradição. A passagem dessa cultura se dava (e ainda se dá em algumas situações geográficas) de maneira hereditária, de avô para neto, de pai para filho. Com o passar do tempo e a não concretização deste ciclo, muitos toques de viola, canções e folclores perderam-se, ou encontram-se encobertos em algum rincão deste Brasil. Muitas músicas que eram cantadas faziam parte do repertório do folclore popular, não havendo um dono específico. Eram cantadas nos mais variados lugares, com algumas variações. Não se sabia ao certo de quem era sua autoria, certamente quem a ouvia reproduzia de uma maneira particular, somando, retirando e transformando alguns trechos. Este fato começa a ser mudado com as gravações das músicas caipiras em discos no ano de 1929 com a canção “Jorginho do Sertão” interpretada pela dupla Caçula e Mariano. Desde as primeiras gravações se estabelece a fórmula da música caipira de estúdio: duplas cantando “em terças” (o casamento dos tons vocais dos cantores) e o acompanhamento da viola e do violão (posteriormente outros instrumentos foram sendo somados às gravações). Diversas duplas surgiram neste ímpeto musical, tais como: Raul Torres e Serrinha (posteriormente Florêncio), Zé Carreiro e Carreirinho, Sulino e Marrueiro, Vieira e Vieirinha (RIBEIRO, 2006). Tonico e Tinoco (fotografados na figura 7) atingiram enorme sucesso com a divulgação das canções caipiras feitas pelo rádio, sendo denominados de dupla “Coração do Brasil”. O mentor deste projeto e grande difusor da cultura caipira pelos meios urbanos foi Cornélio Pires. Este tieteense foi músico, jornalista, pesquisador, poeta e compositor e o responsável pela consolidação da música caipira e de sua expansão pelo interior do estado de São Paulo e posteriormente para outras áreas do país. Cornélio pode ser considerado o maior incentivador e difusor da cultura cabocla a partir da década de 1930, levando-a para os diversos cantos do país. Foi ele quem bancou as primeiras gravações caipiras e saiu em turnê com diversos artistas pelo interior do país, vendendo discos e apresentando espetáculos, elevou a cultura caipira para outro patamar, aproveitando-se do clima ufanista que pairava sobre o país durante a “antropofagia modernista” A figura 8 registra imagens destes artistas. 44 Nas festas e tradições caipiras as músicas eram cantadas durante um longo tempo, podendo durar noites inteiras (como os Cururus trovados nas Festas do Divino). Esse fato teve que ser alterado para que a canção coubesse em um disco no momento de sua gravação. Esta limitação transformou a composição destes homens, passaram a reduzir as toadas e consequentemente a extensão de seus “causos”, ou seja, houve uma transformação nas “composições” originais, alterando o cerne desta tradição: as longas toadas que narravam a história paulista e de seu povo gradativamente foram sendo substituídas por trechos resumidos destas obras atendendo assim a uma necessidade fonográfica. Muitos ritmos, ritos e tradições da matriz cultural caipira foram mantidos pelos artistas em suas gravações. Alguns cantores, inclusive acabaram registrando cantigas caipiras de domínio público no próprio nome, não por intencionalidade mercadológica, mas por uma falta de referência. Logo, quem primeiro gravava podia afirmar que a autoria da música era sua, visto que não havia documentos que comprovassem o oposto. No decorrer do tempo, outros ritmos e instrumentos musicais foram incorporados a este estilo por mais que o nome caipira fosse mantido. Atualmente, a música denominada de sertaneja nada tem de sertão, utilizando-se de instrumentos musicais tais como a guitarra, o baixo elétrico e a bateria estão muito mais próximas do country norte americano, do pop e do rock internacional do que de qualquer tradição musical brasileira. Atualmente, o termo música caipira é utilizado para diferenciar o estilo musical raiz, ou seja, aquele que guarda suas origens, da música sertaneja que nos remete a um estilo mais moderno e que quase nada (ou nada) mantém de sua origem. Como canta Zé Mulato (da dupla Zé Mulato e Cassiano) na música “Navegantes das Gerais”: Se me chamam de caipira, fico até agradecido Mas falando sertanejo, eu posso ser confundido (MULATO, 1999). Como almejamos compreender a relação do homem com a música de seu lugar (no caso aqui específico a região do Médio Tietê) manteremos o foco nos rastros deixados pelos sertanistas em solo paulista e seguindo a rota do rio Tietê interior adentro, procuramos chegar às tradições musicais verdadeiras. 45 Figura 7 – Duplas como Tonico e Tinoco fizeram enorme sucesso com a difusão e gravação da música caipira através dos discos e ondas de rádio Fonte: Disponível em: . Acessado em: 10 jun. 2013 Figura 8 – A Turma Caipira de Cornélio Pires. Da esquerda para a direita, em pé: Ferrinho, empunhando a "puíta", Sebastião Ortiz de Camargo (Sebastiãozinho), Caçula, Arlindo Santana; sentados: Mariano, Cornélio Pires e Zico Dias Fonte: Disponível em: . Acessado em: 1 ago. 2013. 46 2. CURURU E VIOLAS: TRADIÇÕES CAIPIRAS O Cururu e a viola de dez cordas são considerados símbolos da cultura caipira, muito significantes para a população da região do Médio Tietê. Suas origens são remotas e longínquas tendo suas raízes fincadas em solo ibérico trazidas para cá pelas mãos dos colonizadores. Em nosso país estes elementos europeus se fundem com a cultura indígena e negra, originando novas formas e readaptações da cultura originária. A viola que chega pelas mãos do português em nossa terra logo é incorporada pela população paulista se tornando parte da identidade cultural desta região. Ela se expande por outras partes do Brasil pelas mãos dos bandeirantes, monçoneiros e tropeiros que adentraram o interior e contribuíram enormemente para a formação territorial brasileiro. Em solo nacional a viola assume diferentes formas e afinações nas regiões em que se achega. É um instrumento que se transforma com facilidade às especificidades da cultura de cada local. O Cururu atual se difere um pouco daquele surgido nos tempos da colonização. Atualmente ele é um evento no qual cantadores se desafiam através de versos improvisados em uma mesma rima ao som da viola caipira e alguns instrumentos percussivos como o pandeiro e o reco-reco. Sua difusão pela região paulista do Médio Tietê também se deu graças ao trabalho dos desbravadores paulistas, homens que nas suas andanças também formavam e levavam a cultura hoje chamada de caipira. Este amálgama étnico que formou a cultura brasileira e especificamente a cultura paulista do Médio Tietê dificulta apontar com exatidão quais fatores foram decisivos na formação do Cururu, consequentemente, não há consenso entre os diversos pesquisadores sobre sua origem. Neste capítulo pretendemos apontar as diversas vertentes sobre o tema, procurando elucidar melhor a formação desta tradição caipira. 47 2.1. As Sementes do Cururu O Cururu é uma tradicional manifestação cultural paulista da região do Médio Tietê. Um evento com o mesmo nome é encontrado nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Porém, nestes lugares ele é dançado, não havendo o desafio cantado do Cururu paulista, e o instrumento de acompanhamento é a viola de cocho e não a viola caipira. Fruto da fusão de inúmeros elementos étnicos e culturais distintos, além de ter sido formado em um passado distante, o Cururu tem como característica explanatória uma enorme interrogação. Diversas teorias divergem sobre a formação desta tradição caipira. Uma versão muito frequente sobre sua origem é aquela que afirma que ele surgiu como uma adaptação a uma dança indígena, transformando-se em um canto religioso utilizado pelos portugueses no processo de colonização. Cascudo (1979) afirma que os principais defensores desta teoria são os pesquisadores Alceu Maynard Araújo, Renato de Almeida e Mário de Andrade que garante: […] os processos coreográficos desta dança têm tal e tão forte sabor ameríndio, pelo que sabemos das danças brasílicas com a cinematografia atual, que não hesito em afirmar ser o cururu uma primitiva dança ameríndia, introduzida pelos jesuítas nas suas festas religiosas, fora (e talvez dentro) do templo. E esse costume e dança permanecem vivos até agora (ANDRADE apud CASCUDO, 1979, p. 275) Baseando-se nesta vertente, podemos então afirmar que o Cururu original é uma espécie de dança cantada do caipira paulista, onde vários cantadores em roda versam sobre temas religiosos acompanhados de viola, reco-reco e pandeiro (CANDIDO, 1964; VILELA PINTO, 1999; AMARAL PINTO, 2008). No qual a mistura da cultura ibérica com as tradições indígenas moldou completamente o Cururu. A tradição musical dos índios, nos seus ritos e festas, é marcada pelas danças com forte ênfase rítmica no bater das mãos e pés. Essa característica foi importante na formação do Cururu, juntamente com a viola de dez cordas, instrumento trazido para cá com os portugueses. Foi utilizada para facilitar a catequização dos índios (visto que a música era do agrado dos sil