UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESIGN Silvia Sasaoka Relações entre Design, Moda e Artesanato na Contemporaneidade: estudos de caso no segmento de vestuário a rigor e acessórios de couro no eixo centro-oeste e noroeste no interior de São Paulo Bauru 2017 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESIGN Silvia Sasaoka Relações entre Design, Moda e Artesanato na contemporaneidade: estudos de caso no segmento de vestuário a rigor e acessórios de couro no eixo centro-oeste e noroeste no interior de São Paulo Dissertação apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Design, no Programa de Pós-Graduação em Design da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Bauru, linha de pesquisa de Planejamento de Produto. Orientadora: Prof.a Dr.a Mônica Moura Bauru 2017 Sasaoka, Silvia. Relações entre design, moda e artesanato na contemporaneidade: estudos de caso no segmento de vestuário a rigor e acessórios de couro no eixo centro-oeste e noroeste de São Paulo / Silvia Sasaoka, 2017 189 f. Orientadora: Mônica Cristina de Moura Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2017 1. Design. 2. Moda. 3. Artesanato. 4. Contemporaneidade. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. II. Título. Banca examinadora: Prof.ª Dr.ª Mônica Moura Orientadora e presidente da banca (PPG Design/UNESP) Prof.ª Dr.ª Marizilda dos Santos Menezes Membro interno (PPG Design/UNESP) Prof.ª Dr.ª Suzana Helena de Avelar Gomes Membro externo (PPG Têxtil e Moda EACH/USP) Bauru 2017 Agradecimentos Gostaria de expressar o mais profundo agradecimento a todos que contribuíram para a realização deste trabalho e me apoiaram nesta longa trajetória. À minha orientadora, professora doutora Mônica Moura, pela dedicação, pelo carinho e amizade. E ao Laboratório de Design Contemporâneo por abrir espaço para a discussão do tema artesanato por meio desta pesquisa. Às professoras doutoras Marizilda dos Santos Menezes e Suzana Helena de Avelar Gomes, que aceitaram o convite para participar da banca examinadora. Aos professores, por suas aulas que contribuíram para o desenvolvimento da pesquisa com as leituras e reflexões nos trabalhos disciplinares: Eduardo Romero de Oliveira, Luiz Carlos Paschoarelli, Marizilda dos Santos Menezes, Olympio José Pinheiro e Paula da Cruz Landim. Aos funcionários do Departamento de Pós- Graduação em Design da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC) e a Sérgio Komori, do Laboratório de Design Contemporâneo, por toda a atenção. Às queridas amigas e colegas de mestrado Caroline Gomes e Lilian Lago pelas trocas, dicas e apoio mútuo ao longo desta jornada. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência financiadora desta pesquisa (processo 00.889.834/0001-08). Agradeço a Marlene Brandão, Heloísa Brandão, Rita Brandão, Maísa Antonieta de Camargo, Abílio Paschoalinotte, Oliva Maria Bassetto, Abílio Paschoalinotte Júnior, Ademilson Aparecido Antunes, Lucélia Antunes e José Carlos Cavazzo pela especial atenção nas entrevistas concedidas. À Fabiana Biscaro por toda a paciência e dedicação na revisão, e à Thania Lopez pelo apoio nas transcrições das entrevistas. À Luciana Retz por me acolher em sua casa em Bauru durante as disciplinas noturnas. Aos amigos Luiz Carlos Santos Junior e Luiza Medeiros por dedicarem horas de leitura sobre a pesquisa e pelas observações. À todos os amigos que contribuíram com suas experiências: Ewerton Moraes, Gabriel Fernandes dos Santos, Julia Maia, Marcela Sanz, Márcio Sattin, Marlon Mercaldi, Sylvia Rodrigues e Yuka Amano. Aos meus filhos Pablo Kadji Yuba e Thomas Len Yuba pelas palavras precisas, às suas respectivas companheiras, Kyoko Hirano e Renata Matsuoka, e à minha enteada, Lorena Pazzanese, pela torcida silenciosa. À Celso Pazzanese, o Pôla, meu marido e companheiro de vida, que dedicou grande parte de suas melhores energias me mostrando a importância desta pesquisa. Sou profundamente grata. Por fim, agradeço e dedico este trabalho aos meus pais que sempre mostraram que a resistência é uma virtude e o tempo, um valor. RESUMO O artesanato brasileiro está no cerne do debate social, econômico e cultural desde a modernidade até os dias atuais. Pensar a relação entre design, moda e artesanato é uma possibilidade que emerge no cenário contemporâneo. A presente pesquisa se propõe a estudar a produção artesanal têxtil relacionada ao design e à moda, na contemporaneidade, com foco nas experiências de dois núcleos têxteis do eixo centro-oeste e noroeste do interior paulista, o Ateliê Marlene Brandão (Araçatuba-SP) e a Confecção Prata Couro (Pratânia-SP). O objetivo é examinar seus processos criativos, produtivos e de capacitação de recursos humanos, observando e inquirindo como ocorrem e se estabelecem as relações desses núcleos com o design e com a moda. E averiguar as estratégias e dinâmicas que tenham contribuído para sua permanência no mercado da moda por mais de 50 anos. Esta investigação, de abordagem qualitativa, pauta-se na revisão de literatura e na pesquisa documental e de campo com aplicação de entrevistas semiestruturadas, observação dos processos e vivência nos locais das empresas estudadas. Com base nos resultados obtidos, é realizada uma análise comparativa entre o Ateliê Marlene Brandão e a Confecção Prata Couro, averiguando-se se esses questionamentos são capazes de apontar estratégias inovadoras nos contextos social, estético e econômico para o artesanato, mesmo a partir de práticas há muito estabelecidas. Palavras-chave: design, moda, artesanato, contemporaneidade. ABSTRACT From modernity to the present day, Craft is the essence matter of the social, economic and cultural debate in Brazil. Due to the contemporary scenario is possible to establish a connection between design, fashion and craft. The purpose of this research is to study artisanal textile productions related to design and fashion in contemporary times, focusing on the experiences of two textile cores of the center-west axis and northwest of the inner part of São Paulo State, named as Marlene Brandão Atelier of Fashion (Araçatuba-SP) and the Prata Couro Leather Couture (Pratânia-SP). The aim of this study is to investigate the two company’s approaches in creative process, productive, human resources training by means of observing and questioning how these processes are set by design, and fashion links. Find out the strategies and dynamics that have contributed to their permanence in the fashion market for over 50 years. The methodology based on qualitative approach is guided in the review of literature, documental and field research with application of semi-structured interviews, observation and experience of local processes. Given the results achieved from case study on Marlene Brandão Atelier of fashion and the Prata Couro Leather couture, a comparative analysis is carried out, considering the identification of common obstacles and success factors. In order to examine whether these issues can point out innovative strategies in the social, aesthetic and economic contexts of the craft, even from established practices before. Key words: design, fashion, craft, contemporaneity. LISTA DE FIGURAS Figura 1. Localização dos municípios de Araçatuba e Pratânia no estado de SP ................ 23 Figura 2. Diagrama da relação entre design, moda e artesanato contemporâneo brasileiro proposta neste trabalho ....................................................................................................... 25 Figura 3. Diagrama da interseção entre DMA ...................................................................... 26 Figura 4. Diagrama de autores pesquisados para o tema contemporaneidade .................... 27 Figura 5 . Diagrama de autores pesquisados sobre o tema design ...................................... 27 Figura 6. Diagrama de autores pesquisados sobre o tema moda ........................................ 28 Figura 7. Diagrama com autores pesquisados sobre o tema artesanato .............................. 28 Figura 8. Diagrama com autores pesquisados sobre o tema design contemporâneo........... 29 Figura 9. Knotted Chair, 1996, de Marcel Wanders. Feita de carbono, fibra de aramida e epóxi .................................................................................................................................... 64 Figura 10. Knitted Lamp, 1996, de Hella Jongerius. Protótipo, de PMMA e fibra de vidro .... 65 Figura 11. Poltrona Vermelha, criada e produzida pelo Estúdio Campana em 1993 e, desde 1998, produzida pela EDRA/Itália ........................................................................................ 66 Figura 12. Cadeira Multidão ou Paraíba, do Estúdio Campana, 2002 .................................. 67 Figura 13. Bonecas de pano da Casa de Boneca Esperança/PB (s/d)................................. 68 Figura 14. Mestre Espedito costurando superfície vazada de couro .................................... 69 Figura 15. Coleção Cangaço, de móveis de couro e vime, assinada por Espedito Seleiro, Humberto e Fernando Campana.......................................................................................... 71 Figura 16. Humberto Campana, Espedito Seleiro e Fernando Campana ............................. 71 Figura 17. Objetos de bambu criados por Dries Wagenberg, Eduardo Nakayama e Takeshi Sumi, 2007 .......................................................................................................................... 72 Figura 18. Produtos de bambu com técnicas desenvolvidas originalmente pelo artesão Eduardo Nakayama na Oficina Kotybambu, 2007 ................................................................ 73 Figura 19. Pesquisa e desenho de Dries Wagenberg para desenvolvimento de mobiliário no projeto Straat bambu, 2007 .................................................................................................. 74 Figura 20. Pesquisa técnica com bambu e resina acrílica desenvolvida por Dries Wagenberg na Oficina Kotybambu, 2007 ................................................................................................ 77 Figura 21. Pesquisa técnica de envergamento do bambu que deu origem ao cabide de Takeshi Sumi no projeto Straat bambu, 2007 ...................................................................... 78 Figura 22. Cabide de bambu de Takeshi Sumi, 2007 ........................................................... 79 Figura 23. Dries Wagenberg, Eduardo Nakayama e Takeshi Sumi no jardim do Museu da Casa Brasileira, 2007 ........................................................................................................... 80 Figura 24. Detalhe da renda irlandesa tradicional ................................................................ 83 Figura 25. Fita Divina em diversas cores ............................................................................. 84 Figura 26. Vestido de renda renascença tingida e a criação de padronagem geométrica para a renda renascença ............................................................................................................. 87 Figura 27. Ficha técnica do desfile SPFW Inverno 2016 de Fernanda Yamamoto ............... 88 Figura 28. Mulheres não modelos convidadas para desfilar vestindo as roupas da coleção Histórias Rendadas. A terceira, a partir da esquerda, é a rendeira Genilda Marques da Silva, ao lado de Fernanda Yamamoto .......................................................................................... 89 Figura 29. Preparação para o desfile no CEU Jaraguá ........................................................ 89 Figura 30. Empresa e loja Prata Couro ................................................................................ 96 Figura 31. Exterior e interior da Casa do Sapateiro, no parque Taquara-poca, em Pratânia 97 Figura 32. O ator Slim Pickens, parceiro de John Wayne, em visita à sapataria dos Lucchese, em El Paso, no Texas ......................................................................................... 99 Figura 33. Artistas da Jovem Guarda, em ilustração de Douglas do Amaral extraída do livro Jovem Guarda – moda, música e juventude, de Maíra Zimmermann, 2013 ....................... 100 Figura 34. Jaquetas e casacos em exposição na loja Prata Couro .................................... 101 Figura 35. Moldes de roupas de couro na oficina da Prata Couro ...................................... 102 Figura 36. Desenhos e moldes de roupas de couro de Oliva Paschoalinotte ..................... 103 Figura 37. Oliva Maria Bassetto Paschoalinotte, na fachada da loja Prata Couro .............. 104 Figura 38. Abílio Paschoalinotte Júnior e Abílio Paschoalinotte ......................................... 105 Figura 39. Diagrama da gestão da sapataria de Angelino Paschoalinotte .......................... 106 Figura 40. Diagrama da gestão da Prata Couro de 1958 até 2004 .................................... 106 Figura 41. Diagrama da gestão atual da Confecção Prata Couro ...................................... 107 Figura 42. Interior da loja Prata Couro ............................................................................... 108 Figura 43. Fachada e interior da antiga fábrica Prata Couro .............................................. 109 Figura 44. Oficina e interior da loja Prata Couro ................................................................ 111 Figura 45. Mesa de trabalho do sapateiro Angelino Paschoalinotte ................................... 113 Figura 46. O sapateiro Ademilson operando sua máquina balancim para corte de sola..... 114 Figura 47. Partes de bota confeccionada por Ademilson Aparecido Antunes..................... 115 Figura 48. Sela de couro confeccionada por artesãos de Pratânia .................................... 119 Figura 49. Fachada do Ateliê Marlene Brandão ................................................................. 122 Figura 50. Marlene Brandão em sua casa mostrando vestidos antigos .............................. 123 Figura 51. Bolero de tecido de organza com bordado rechilieu e miçangas ....................... 124 Figura 52. Vestidos de festa Marlene Brandão em catálogo de coleção (s/d) .................... 128 Figura 53. Coleção Linha Pura e Marlene Brandão............................................................ 129 Figura 54. Interior da loja Marlene Brandão ....................................................................... 130 Figura 55. Diagrama do sistema de gestão Ateliê MB nos primeiros anos de gestão ........ 131 Figura 56. Diagrama do sistema de gestão da empresa desde a década de 80 até os dias atuais ................................................................................................................................. 131 Figura 57. Colocação de botões bombê forrados com tecido e strass ............................... 132 Figura 58. Cinto sendo bordado à mão com pedraria (vidrilhos e cristais) ......................... 132 Figura 59. Tabela promocional de vestidos de festa Marlene Brandão .............................. 133 Figura 60. Detalhe de molde de forro para vestido............................................................. 134 Figura 61. Detalhes do mural de coleções de vestidos criados por Heloísa Brandão ......... 135 Figura 63. Renda importada tipo chantilly, bordada com pedraria...................................... 136 Figura 63. Detalhe de bordado de pedraria feito à mão sobre tule de paetê ...................... 137 Figura 64. Vestido de tule criado por Heloísa Brandão ...................................................... 138 Figura 65. Detalhes de forro de vestido de festa ................................................................ 139 Figura 66. Detalhes de drapeado em vestido de festa Marlene Brandão ........................... 140 Figura 67. Detalhe de vestido com plissado e arranjo floral ............................................... 141 Figura 68. Mostruário de tecidos e técnicas da coleção Marlene Brandão ......................... 142 Figura 69. Oficina de Heloísa Brandão com grupo de bordadeiras .................................... 143 Figura 70. Bordadeira recebendo um vestido Marlene Brandão......................................... 143 Figura 71. Fluxograma da cadeia produtiva do setor coureiro calçadista ........................... 160 LISTA DE QUADROS Quadro 1. Conceituações sobre artesanato por três organizações brasileiras ..................... 61 Quadro 2. Resumo da visão das três organizações ............................................................. 62 Quadro 3. Definição de design, moda e artesanato ............................................................. 68 Quadro 4. A ideia de contemporâneo no DMA ..................................................................... 71 Quadro 5. Planejamento para coleta de dados .................................................................. 102 Quadro 6. Características das entrevistas ......................................................................... 104 Quadro 7. Etapas de confecção de uma bota na Dê Sapataria .......................................... 115 Quadro 8. Análise descritiva das empresas ............................. Erro! Indicador não definido. LISTA DE ABREVIATURAS ARTESOL: Artesanato Solidário CEU: Centro de Artes e Esportes Unificados CNPC: Conselho Nacional de Política Cultural DAE: Design Academy Eindhoven DMA: design, moda e artesanato EUA: Estados Unidos da América FAUUSP: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo FENIT: Feira Nacional da Indústria Têxtil FIEMG: Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais FRANCAL: Feira Internacional da Moda em Calçados e Acessórios IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBOT: Instituto Botucatu IPEA: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPHAN: Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MCB: Museu da Casa Brasileira MEI: Microempreendedor Individual MG: Minas Gerais MinC: Ministério da Cultura NOB: Noroeste do Brasil ONG: organização não governamental ONU: Organização das Nações Unidas OSCIP: organização da sociedade civil de interesse público PAB: Programa do Artesanato Brasileiro PB: Paraíba PME: pequena e média empresa PMMA: polimetilmetacrilato (acrílico) RJ: Rio de Janeiro SE: Sergipe SEBRAE: Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SIES: Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária SINDITÊXTIL: Sindicato das Indústrias Têxteis SP: São Paulo SPFW: São Paulo Fashion Week UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNESP: Universidade Estadual Paulista SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 16 1.1 Contextualização e PROBLEMATIZACÃO ............................................................ 17 1.2 QUESTÃO DE PESQUISA .................................................................................... 19 1.3 OBJETIVOS .......................................................................................................... 20 1.3.1 Objetivo geral ................................................................................................. 20 1.3.2 Objetivos específicos ...................................................................................... 20 1.4 JUSTIFICATIVA..................................................................................................... 21 1.5 METODOLOGIA ADOTADA .................................................................................. 22 1.6 ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO......................................................................... 30 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .................................................................................... 31 2.1 CONTEMPORANEIDADE ..................................................................................... 31 2.2 DESIGN ................................................................................................................. 35 2.2.1 Definições de design ...................................................................................... 36 2.2.2 O design e a configuração do objeto............................................................... 38 2.3 MODA .................................................................................................................... 40 2.3.1 Definições de vestuário................................................................................... 41 2.3.2 Conceito de moda........................................................................................... 42 2.4 ARTESANATO ...................................................................................................... 45 2.4.1 Definições de artesanato ................................................................................ 46 2.4.2 O artesanato como ofício e sua condição no Brasil ........................................ 48 2.4.3 Políticas públicas de apoio ao artesanato brasileiro ........................................ 49 2.4.4 O artesanato contemporâneo ......................................................................... 56 3 RELAÇÃO entre DESIGN, MODA E ARTESANATO NA CONTEMPORANEIDADE: UMA REFLEXÃO ................................................................................................................. 59 3.1 RELAÇÃO ENTRE DESIGN, MODA E ARTESANATO NA CONTEMPORANEIDADE: CINCO REFERÊNCIAS aplicadas ......................................... 62 3.1.1 Droog Design: quebra de paradigmas nos anos 1990 .................................... 63 3.1.2 Irmãos Campana e Espedito Seleiro............................................................... 66 3.1.3 Straat bambu: trocas técnicas e culturais em intercâmbio estudantil internacional ................................................................................................................. 73 3.1.4 Renato Imbroisi e as rendeiras de renda irlandesa de Divina Pastora: parceria criativa entre designer e artesãs para geração de renda .............................................. 81 3.1.5 Fernanda Yamamoto e as rendeiras do Cariri paraibano: integração entre design e artesanato no campo da moda ....................................................................... 85 4 MATERIAIS E MÉTODOS ............................................................................................ 92 5 DESCRIÇÃO E ANÁLISES DOS DOIS ESTUDOS DE CASO: ATELIÊ MARLENE BRANDÃO E CONFECÇÃO PRATA COURO ..................................................................... 95 5.1 PRATA COURO .................................................................................................... 96 5.1.1 Novos rumos da empresa e os processos de criação ..................................... 98 5.1.2 Processos de produção e gestão .................................................................. 105 5.1.3 Matérias-primas e gestão de produção ......................................................... 107 5.1.4 Crise e mudança de rumo ............................................................................. 108 5.1.5 Transmissão de conhecimento e responsabilidade social ............................. 112 5.1.6 Mercado atual ............................................................................................... 118 5.1.7 Público-alvo .................................................................................................. 120 5.2 ATELIÊ MARLENE BRANDÃO ............................................................................ 121 5.2.1 História ......................................................................................................... 121 5.2.2 Artesanato, costura e modelagem ................................................................ 124 5.2.3 Desenvolvimento empresarial ....................................................................... 127 5.2.4 Produção e gestão........................................................................................ 130 5.2.5 A metodologia de Marlene Brandão .............................................................. 134 5.2.6 Os detalhes .................................................................................................. 136 5.2.7 Transmissão de conhecimento e responsabilidade social ............................. 142 5.2.8 Público e mercado atual ............................................................................... 146 6 RESULTADOS OBTIDOS: ANÁLISE COMPARATIVA DAS EMPRESAS MARLENE BRANDÃO E PRATA COURO SOB A ÓTICA DO DESIGN-MODA-ARTESANATO .......... 147 6.1 RESULTADO DA ANÁLISE COMPARATIVA ...................................................... 150 6.1.1 Aspectos das empresas................................................................................ 151 6.1.2 O espaço físico das empresas ...................................................................... 153 6.1.3 Processos de criação ................................................................................... 154 6.1.4 Prática projetual ............................................................................................ 155 6.1.5 Formação e capacitação (artesanato, costura) ............................................. 156 6.1.6 Processos de produção e gestão .................................................................. 158 6.1.7 Mercado e circulação .................................................................................... 166 7 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 171 8 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 174 9 APÊNDICE ................................................................................................................. 186 16 INTRODUÇÃO O artesanato é uma prática cultural e um processo de produção de artefatos relacionado à produção humana desde suas origens. O vocábulo artesanato passou a ser usado, no entanto, após a industrialização, configurando a separação entre projeto e execução, com a consequente fragmentação das etapas de trabalho compreendidas entre a concepção e a produção até a comercialização. Na contemporaneidade vimos ocorrer a reintegração de conceitos e saberes e o rompimento das fronteiras entre diversas áreas do conhecimento, permitindo abrir novos caminhos para os campos do design, da moda e do próprio artesanato. Por outro lado, são tempos nos quais ocorre a descontinuidade dos processos de aprendizagem da artesania, do saber fazer, provavelmente impulsionados pelo ritmo acelerado das mudanças tecnológicas e da abrangência global do mercado de produtos artesanais e utilitários em um sistema econômico que desloca o produtor do consumidor em distâncias díspares. No Brasil contemporâneo, o artesanato não pode ser compreendido em um único ideário, visto que é criado e produzido de formas diversas e dispersas por diferentes grupos sociais, geográficos e culturais. E nesse cenário, em constante mudança, cresce uma cultura complexa, submersa pelos meios de difusão de informação pulverizada em um mundo globalizado. Da ocorrência da produção do objeto artesanal em vários campos no Brasil, emerge também a discussão sobre o lugar do artesanato na sua relação com o design e a moda na contemporaneidade. O artesanato começa a ocupar espaço como elemento artístico de discurso e de inovação ampliando sua presença e sendo capaz de dialogar com outras áreas. O reconhecimento da relação entre design, moda e artesanato nessa pesquisa move-se na direção de uma busca de referências para a construção da autonomia profissional de criadores e produtores/artesãos. 17 1.1 CONTEXTUALIZAÇÃO E PROBLEMATIZACÃO O artesanato na contemporaneidade passa por um processo de ressignificação nas relações ligadas às suas tradições. Passa a adquirir características que podem ser aplicadas, em qualquer localidade, a sistemas de valores formados por criadores individuais ou coletivos, e não necessariamente por uma comunidade ou um grupo pertencente a uma mesma cultura. Por sua vez, as comunidades tradicionais são continuamente desafiadas a adequar seus processos de criação, aprendizagem, produção e circulação, o que causa um desajuste em seu tempo e espaço que as lança a um lugar insólito. Em contrapartida, o artesão sem uma educação profissionalizante formal não desenvolve noções básicas para interpretar mudanças no seu contexto social, cultural e econômico e no de seus consumidores, tendo grande dificuldade para adaptar-se à passagem de uma atividade produtiva de subsistência para uma atividade produtiva de maior porte, ou sequer para estabelecer alguma intersecção virtuosa entre ambas. A competência de uso desse entendimento é, hoje, atribuída a designers, estilistas, artistas, arquitetos, curadores, representantes comerciais, entre outros profissionais que idealizam coleções temáticas de produtos ou objetos feitos por artesãos. O artesão qualificado e tradicional vem sendo, nessa conjuntura, substituído por trabalhadores em pequenas manufaturas, tais como ateliês de moda e design, confecções têxteis e de acessórios e adereços e tecelagens. À medida que o fazer manual é visto e entendido por muitos como atividade menos dignificante, o potencial criativo da cultura artesanal tende a permanecer limitado ou, sob certos aspectos, praticamente extinto. Nesse sentido, o artesanato, enquanto processo material que contém memória e identidade, enfrenta os desafios pouco compreendidos da contemporaneidade que, caracterizada pela vigência de uma sociedade de cultura de consumo passageiro, impõe mudanças em sua concepção e em seu mercado. O artesanato se confunde com a produção de massa nos mercados turísticos, de feiras, de suvenires, de moda, entre outros. Nota-se certa estagnação e ausência de inovação nos produtos utilitários e decorativos, a maioria restringindo-se a repetições de modelos e padrões pré-determinados. Assim, o artesão tem se limitado a reproduzir mecanicamente algo já estabelecido. 18 De modo paralelo, observa-se a crescente promoção do artesanato enquanto passatempo decorrente do interesse, e do prazer pelo trabalho manual, de pessoas que aprendem técnicas em revistas especializadas, tutoriais de artesanato e programas televisivos, além de websites e blogues criados por artesãos de todas as partes do mundo. Realizados como ocupação secundária, esses trabalhos costumam ser igualmente descomprometidos de raízes culturais, identidade ou manifestação artística. Trata-se do fenômeno do “tudo feito à mão”, incentivado e sustentado pela grande indústria vinculada ao mercado de matérias-primas e de publicações especializadas em trabalhos manuais com finalidade utilitária ou decorativa. Segundo o Ministério do Turismo (2013), o artesanato no Brasil é cotado como o quinto melhor negócio na América Latina; estima-se que cerca de 8,5 milhões de brasileiros fazem do artesanato seu pequeno negócio, movimentando mais de R$ 50 bilhões anuais. Os artesãos têm se beneficiado de políticas públicas que incentivam o pequeno empreendedor, como o programa Microempreendedor Individual (MEI), que, em pouco mais de seis anos, tirou da informalidade 5 milhões de pessoas que trabalham por conta própria com faturamento anual inferior a R$ 60 mil (PORTAL DO EMPREENDEDOR, 2015). Além disso, em 2012, o Ministério da Cultura (MinC) instaurou a Secretaria da Economia Criativa, que fomenta a inovação (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2011). Essas políticas públicas abriram oportunidades de representatividade e institucionalização da profissão de artesão em todo o país. No entanto, é preciso considerar que a conquista do bem-estar social não se sustenta somente em sua dimensão produtiva. O desenvolvimento cultural é instrumento e alicerce da transformação de todo cidadão, aprimora a criatividade e contribui para refletir seu pensamento na sua produção. A produção artesanal, em tal contexto, passa a depender de uma cultura de consumo para manter-se “viva”, mas também de aspectos valorizados na contemporaneidade, tais como produtos manufaturados, a peça única, a autoria e a revitalização do artesanal, seja por meio da mídia de massa, seja por programas institucionais ou pelo terceiro setor. Logo, como pode o artesão recuperar o controle sobre seu processo? Na busca por emancipação, os produtores precisam conhecer os códigos de comunicação, cultura e sociedade que envolvem as novas necessidades dos indivíduos e a relação com as coisas, bem como seus valores simbólicos, os quais se encontram particularmente desenvolvidos nos campos do 19 design e da moda, áreas com que têm, historicamente, mantido relações de proximidade, produção, desenvolvimento e comercialização. Sem incorporar esses códigos, os artesãos encontram alternativas de subsistência individual e coletiva no atendimento a mercados específicos, no entanto em expansão, de brindes corporativos, artigos para turistas e outros, na tentativa de gerar produtos similares aos da indústria. Mas o foco na produtividade em tal escala e diversidade de produtos, para viabilizar ganhos, constitui uma falsa solução para a conquista de autonomia e sustentabilidade do artesão, nos termos de seu desenvolvimento criativo. Diante desse cenário, é urgente a busca de novas referências tanto para o artesanato quanto para artesãos. O artesanato tem como desafio recuperar seu significado original de prática ou objeto como valor cultural de um local e de um grupo social, compreendendo e inserindo autonomamente em seus processos esses paradigmas em relação ao mercado e à sociedade de consumo. Já para os artesãos, espera-se encontrar referências para a conquista de sua autonomia plena na elaboração e distribuição de seus trabalhos. 1.2 QUESTÃO DE PESQUISA A presente pesquisa norteia-se, então, pelo seguinte questionamento: de que maneira a relação entre moda, design e artesanato pode contribuir para o desenvolvimento de um processo de produção artesanal contemporâneo de qualidade, capaz de consolidar todas as etapas técnicas e estéticas, de criação, capacitação, infraestrutura, confecção e comercialização, diante do cenário de profundas mudanças vivenciadas atualmente no Brasil? E como a Confecção Prata Couro e o Ateliê Marlene Brandão, no interior paulista, encontraram saídas para adequar o artesanato às suas linhas de produção, que têm, respectivamente, 82 e 51 anos de atividade? 20 1.3 OBJETIVOS 1.3.1 Objetivo geral Compreender a relação entre design, moda e artesanato para a construção de modelos visando à melhoria das condições de criação e da produção artesanal no contexto da contemporaneidade, a partir de estudos de caso em dois núcleos produtivos no segmento têxtil que adotam procedimentos artesanais, considerando o cenário de mudanças vivenciadas no Brasil e no mundo. 1.3.2 Objetivos específicos 1) Analisar as características e as linguagens do artesanato, do design e da moda, assim como seus entrelaçamentos, no contexto da contemporaneidade brasileira; 2) Analisar, por meio de observação, as atividades e elementos que favoreceram a consolidação no mercado do Ateliê Marlene Brandão, em Araçatuba, e da Confecção Prata Couro, em Pratânia contribuindo para o fomento de práticas de inserção e valorização do artesanato no mercado atual. 3) Analisar o desenvolvimento e a evolução dos processos de criação, produção, capacitação qualificada em artesanato, bem como de circulação de produtos nas empresas estudadas, à luz das questões da contemporaneidade; 4) Discutir as inter-relações entre artesanato, design e moda a partir dos casos investigados, evidenciando a contribuição da prática artesanal à moda e ao design, bem como destes à qualificação e à valorização daquela atividade; 5) Ampliar a reflexão e o conhecimento sobre a relação entre moda, design e artesanato no âmbito da produção micro empresarial do setor de vestuário no Brasil contemporâneo. 21 1.4 JUSTIFICATIVA São Paulo é reconhecido por seu perfil industrial, destacando-se, dentre outros segmentos, os setores têxtil, de produtos e de serviços. O estado concentra um grande número de feiras de negócios nas áreas da moda, do design e do artesanato, com ampla divulgação tanto para o público específico quanto para o público em geral. Mas sua produção artesanal, ao contrário das demais, não é amplamente estudada, sistematizada e divulgada. Muito se explora, discute e estuda a respeito da produção da capital paulista, entretanto, existe produção relevante também fora da metrópole. Assim, o estudo dos casos aqui abordados possibilitará melhor compreensão do conjunto das informações a respeito de núcleos produtivos têxteis distantes da capital, valorizando ações criativas e produtivas no centro-oeste e no noroeste do estado, a partir de observações e práticas, cobrindo, dessa maneira, parte da ausência de informações e documentação. A pesquisa também se faz necessária pela carência de estudos brasileiros a respeito do envolvimento entre as áreas de artesanato, moda e design, especialmente no entrelaçamento de seus processos criativos. O trabalho pode, nesse sentido, contribuir para identificar novos elos nessa relação, propor uma reflexão sobre os conteúdos interdisciplinares como método de trabalho e como estratégia para o desenvolvimento da pesquisa e, por meio da tríade dialogal design- moda-artesanato, compatibilizar saberes relacionados aos processos criativos e modos de produção e de comunicação no contexto da contemporaneidade. Pretende-se, assim, contribuir com a comunidade científica das áreas do design, da moda e do artesanato e com os laboratórios universitários de pesquisa em design e artesanato, em especial o Laboratório de Pesquisa em Design Contemporâneo: Sistemas, Objetos e Cultura. A partir da disseminação dos resultados desta pesquisa, pretende-se também contribuir com recomendações para os setores de design e de moda em suas relações com o artesanato e com a sociedade representada por núcleos, organizações não governamentais (ONGs), comunidades e cooperativas que atuem no âmbito das relações do foco deste estudo. A análise sistemática dos processos e métodos de criação e produção aplicados pelas empresas também tem relevância para os próprios processos 22 criativo-produtivos em si. Assim como os dois núcleos de produção têxtil investigados incorporam técnicas e procedimentos artesanais, as comunidades de artesãos podem ter como referência a sistematização desse conhecimento para adaptá-lo à sua realidade ou aplicá-lo diretamente em suas estratégias futuras. Essa pesquisa pode fornecer elementos para a disseminação de um modelo de gestão e capacitação, bem como para a elaboração de políticas públicas voltadas ao artesanato nas diversas regiões do país. Pode, ainda, colaborar na definição das ações de ONGs que apoiem a atividade. Assim sendo, o trabalho pretende chegar a propostas para orientação e recomendação de ações concretas e estratégias futuras que promovam transformações e/ou fortaleçam atividades a serem implantadas ou que estejam em andamento. Cabe ainda destacar, como justificativa pessoal, que o interesse nesse tema surgiu da prática profissional, no contexto de programas de fomento envolvendo design, moda e artesanato realizados, desde 2000, em comunidades de artesãos de diversos estados do Brasil – primeiro através do projeto Design Solidário d’A Casa- Museu de Artes e Artefatos Brasileiros (hoje A Casa-Museu do Objeto Brasileiro), posteriormente por meio da organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) Artesanato Solidário (ARTESOL) e, nos últimos anos, através do Programa de Intercâmbio Tudo a Mão, do Instituto Botucatu (IBOT). Esses programas encarregavam-se de melhorar as condições para geração de renda de artesãos buscando as ferramentas do design para o desenvolvimento de produtos e sua inserção no mercado do design e da moda, sendo que as distâncias entre culturas e modos de vida dos agentes dos projetos e dessas áreas apresentam sucessivos desafios na conquista de espaços autônomos de criação e produção. 1.5 METODOLOGIA ADOTADA Esta investigação, de abordagem qualitativa, pauta-se na revisão de literatura e na pesquisa documental e de campo com aplicação de estudos de caso, entrevistas semiestruturadas, vivência e observação dos processos e locais das empresas estudadas. Os dois estudos de caso são explorados segundo uma 23 perspectiva crítica e comparativa entre ambos – o Ateliê Marlene Brandão, estabelecido há 51 anos em Araçatuba, no noroeste paulista, e a Confecção Prata Couro, constituída há 82 anos em Pratânia, no centro-oeste do estado de São Paulo, indicados no mapa da Figura 1. Figura 1. Localização dos municípios de Araçatuba e Pratânia no estado de SP Fonte: elaborado por Ewerton Moraes, 2016 Esses núcleos têxteis artesanais foram escolhidos como objeto de estudo porque o modus operandi de seu processo produtivo incorpora o artesanato em diversos níveis da manufatura de vestuário e de acessórios. Além disso, ambos têm em comum sua permanência no mercado de design e de moda com criação própria, desenvolvimento de processos produtivos singulares, gestão de pequena a grande escala e desenvolvimento de metodologias de capacitação técnica dentro de suas especificidades, formando mão de obra local qualificada em artesanato têxtil. Essas empresas têm características peculiares em sua trajetória, que vai da origem como oficina individual de produção a pequena e média empresa (PME), constituindo a combinação entre processo artesanal e produção manufaturada. Em seu início, 24 contavam com recursos escassos, enfrentavam a falta de acesso a conhecimentos especializados e tinham limitadas oportunidades de impacto no mercado. O quadro inaugural e a história dos empreendedores da Prata Couro e do Ateliê Marlene Brandão servem de referência para aqueles artesãos que têm como perspectiva transformar seu trabalho em negócio e empresa no futuro, corroborando na construção da autonomia profissional desses atores. Nesse sentido, a relação dos modos e processos de produção das duas empresas com suas localidades, no âmbito das referências culturais, sociais e econômicas locais, diante do atual contexto brasileiro na globalização, são particularidades a serem compreendidas, assim como sua longevidade frente às instabilidades econômicas ocorridas historicamente no Brasil. Para isso, é imprescindível a construção de um panorama de referência sobre produtos e processos desenvolvidos no contexto atual, face ao anterior, tendo em vista as grandes transformações tecnológicas, políticas, de relações de trabalho, de capital e institucionais, entre outras, nos domínios local e global. É a partir dessa contextualização que ambos os núcleos são investigados, estabelecendo-se contrapontos com seu passado, seu processo criativo e sua prática projetual, de produção, de gestão e capacitação e de circulação de produtos. Nesse cenário, as relações entre as práticas do design, da moda e do artesanato tornam-se complexas, estética e socialmente. Cabe esclarecer que a moda não será tratada, nesta pesquisa, sob a perspectiva de tendências ou sazonalidade (entendidas como técnicas mercadológicas), mas, sim, de seus aspectos sociais, culturais, econômicos e de comunicação no cenário brasileiro contemporâneo. Para desenvolver essa leitura, propõe-se um enfoque interdisciplinar, o qual preconiza a transferência de métodos de uma disciplina a outra, como no caso dos diversos aspectos das inter-relações entre as três áreas, design, moda e artesanato, doravante grafadas como DMA. A partir das questões envolvidas na pesquisa de campo, e à luz da fundamentação teórica, adota-se uma dinâmica de análise sintetizada na forma de diagrama, apresentado na Figura 2, no qual as inter-relações entre DMA são representadas por três áreas dispostas sobre um mesmo espaço ao fundo, relacionado ao campo da contemporaneidade. O diagrama diz respeito à estrutura da pesquisa bibliográfica, cuja estratégia foi aproximar as áreas para estabelecer relações. A partir de um amplo levantamento 25 bibliográfico, foram selecionados autores que abordam, em seus horizontes conceituais, temas que permitem o diálogo entre DMA. O enfoque foi disciplinar, primeiro buscando uma chave de leitura da contemporaneidade para introduzir a discussão dos campos DMA. O resultado desta pesquisa se estabelece no campo central em comum formado pelas inter-relações e intersecções das três áreas. No sentido em que apontam as setas, para o exterior do campo central, estão os desdobramentos de cada área na direção exterior ao campo do contemporâneo. Figura 2. Diagrama da relação entre design, moda e artesanato contemporâneo brasileiro proposta neste trabalho Fonte: elaborado pela autora desta pesquisa, 2016 Em termos de procedimento, a investigação compreende pesquisa bibliográfica, de campo e documental. A pesquisa bibliográfica que dá suporte à fundamentação teórica versa sobre os temas DMA e a inter-relação entre esses campos na contemporaneidade, utilizando como referencial teórico os conceitos e análises de autores como Agamben (2009), Avelar (2011), Lina Bo Bardi (1980), Bonsiepe (2011), Bomfim (2014, Bürdek (2006), Cardoso (2008), Calefato (2004), Castilho (2008 e 2013), Crane (2013), Deforge (1996), Heskett (2018), Lipovetsky 26 (1989), Lipovetsky e Sebastien (2004), Harvey (1989), Featherstone (1995), Moura (2003, 2012, 2013) e Schneider (2010), além de bibliografias complementares de autores como Franco Junior (2001), Ingold (1993), Paula (2006), Risatti (2007) e Sennett (2009), entre outros. Os autores selecionados indicam temas que preconizam uma discussão entre DMA, representada nas áreas de interseção entre design e artesanato, moda e artesanato e design e moda. No centro encontra-se a área comum desse triálogo, conforme mostra o detalhe do diagrama da Figura 3. Figura 3. Diagrama da interseção entre DMA Fonte: elaborado pela autora desta pesquisa, 2016 O pano de fundo deste estudo e da relação DMA é a contemporaneidade, tema explorado a partir de três conceitos – contemporâneo, pós-moderno e hipermoderno – e dos respectivos autores estudados, de acordo com o diagrama da Figura 4. 27 Figura 4. Diagrama de autores pesquisados para o tema contemporaneidade Fonte: elaborado pela autora desta pesquisa, 2016 Para explicar o design foram selecionados os autores que têm em seus horizontes conceituais temas que permitem a aproximação com o artesanato e a moda, conforme mostra o diagrama da Figura 5. Muitos aspectos do design ficaram fora dessa discussão devido ao foco estabelecido nesta pesquisa. Figura 5 . Diagrama de autores pesquisados sobre o tema design Fonte: elaborado pela autora desta pesquisa, 2016 Da mesma forma é feito o estudo do termo moda, conforme apresenta a Figura 6. Foram selecionados autores que abordam temas que permitem o diálogo com o design e o artesanato. Nesta pesquisa, buscou-se explorar, nos termos vestuário, roupa e moda, a questão dos significados. 28 Figura 6. Diagrama de autores pesquisados sobre o tema moda Fonte: elaborado pela autora desta pesquisa, 2016 Conforme mostra a Figura 7, mantém-se o mesmo procedimento com o termo artesanato, partindo-se da seleção de autores e conceitos propostos por organizações de políticas públicas, cujos temas tratados permitem a aproximação com o design e a moda. A discussão sobre artesanato instiga uma abordagem a respeito de questões antropológicas ou sociais, mas nesta pesquisa focam-se os aspectos do artesanato no contemporâneo, o que dirige a discussão para a ressignificação do termo no contexto atual, auxiliando no diálogo com o design e a moda. Figura 7. Diagrama com autores pesquisados sobre o tema artesanato Fonte: elaborado pela autora desta pesquisa, 2016 A etapa a seguir trata do design contemporâneo, área que representa a interseção dos campos DMA, onde se observam as características que os 29 aproximam e os distinguem, conforme apresenta a Figura 8. A configuração diversa do design contemporâneo revela-se num campo criado a partir do triálogo entre as áreas, rompendo fronteiras e idealizando realidades transdisciplinares. Figura 8. Diagrama com autores pesquisados sobre o tema design contemporâneo Fonte: elaborado pela autora desta pesquisa, 2016 A relação DMA na contemporaneidade é representada por meio de cinco referências de práticas contemporâneas. Essas experiências abrangem diferentes estratégias, servem a finalidades distintas e reúnem diversas formas de inserção do artesanato como discurso no design e na moda: 1. Anos 1990 e a quebra de paradigmas no design; 2. Irmãos Campana, o processo no Brasil; 3. Intercâmbio cultural e trocas técnicas; 4. Parceria criativa entre designer e artesãos para geração de renda; 5. Integração entre design e artesanato no campo da moda. O detalhamento relativo aos estudos de caso encontra-se no capitulo 4, materiais e métodos, visando facilitar a leitura e a sequência de informações, tendo em vista que no capítulo 5 estão as descrições e as análises referentes aos estudos de caso: Confecção Prata Couro e Ateliê Marlene Brandão. 30 1.6 ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO Capítulo 1: refere-se à introdução, constituída por contextualização e problematização, questão de pesquisa, objetivos, justificativa e metodologia adotada; Capítulo 2: abrange a fundamentação teórica utilizada no desenvolvimento da dissertação. É composto por quatro subcapítulos principais: contemporaneidade, design, moda e artesanato; Capítulo 3: a fundamentação teórica se desenvolve nesse capítulo, que trata, também, da relação tríade DMA apresentada por meio de cinco referências de práticas contemporâneas; Capítulo 4: engloba os materiais e métodos, com pesquisa de campo e documental. Inclui o método da coleta de dados por meio de entrevistas semiestruturadas; Capítulo 5: é referente à descrição e às análises dos dois estudos de caso, Ateliê Marlene Brandão e Confecção Prata Couro. Reúne a apresentação do conteúdo e argumentos que auxiliam na reflexão dos resultados finais e no cruzamento de dados levantados nas duas empresas; Capítulo 6: apresenta os resultados – a análise comparativa das duas empresas estudadas (Marlene Brandão e Prata Couto) sob a ótica do design, da moda e do artesanato. A análise é apresentada de forma dissertativa, através de imagens, quadros, tabelas e textos, focalizando processos de criação, produção, práticas projetuais, métodos de capacitação e mercado; Conclusão: reúne as conclusões obtidas no decorrer da investigação e a proposição de contribuições para a comunidade científica e comunidades artesãs têxteis. 31 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA O referencial teórico aqui apresentado visa a subsidiar o entendimento da inter-relação DMA à luz da contemporaneidade. Nesse sentido, busca-se, inicialmente, construir uma chave de leitura da contemporaneidade propriamente dita, de modo a introduzir a discussão dos campos estudados, DMA, primeiro individualmente e, em seguida, de forma correlacionada. Reconhece-se que há escassez de bibliografia aprofundada com esta última abordagem. 2.1 CONTEMPORANEIDADE Esse tema será explorado a partir de três conceitos identificados na literatura especializada: contemporâneo, pós-moderno e hipermoderno. Agamben (2009, p. 69) observa que a contemporaneidade se fundamenta na relação do tempo presente com sua origem. Não a origem situada no passado cronológico, mas aquela que se apresenta como um devir histórico e se processa continuamente no tempo. O autor ilustra essa relação entre tempo e espaço ao referir-se à existência de “uma criança que continua a agir na vida psíquica do adulto” ou daquele embrião que “não cessa de operar agindo nos tecidos do organismo maduro”. Tais imagens evocam o significado de evolução, no qual não se ignora o início de um processo e a partir do qual ocorrem transformações ao longo do tempo, dando origem ao novo que é manifesto no contemporâneo. O autor dirige o pensamento sobre a contemporaneidade ancorado na obra de Nietzsche (1874), e conclui que aquele que é realmente contemporâneo e pertence ao seu tempo não se ajusta a ele: Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 59). 32 Compreende-se que sucede um desajuste do indivíduo, do tempo e espaço, conformando um lugar incógnito. Nessa perspectiva, Favaretto (2012, p. 5) considera que é preciso configurar e decifrar a “paisagem desconhecida, indeterminada” da contemporaneidade. Para tanto, é necessário um “mergulho no heteróclito e na diferença, aí procurando inventar um ponto estratégico para fazer face à indeterminação”. Pode-se concluir que esse espaço inexplorado tem marcas de transformações que ocorrem nas esferas políticas e econômicas e nas práticas culturais que regem o mundo e ainda precisam ser dimensionadas para que se entendam as sociedades atuais. Para compreender a pós-modernidade, busca-se em Jameson (1985) uma reflexão a respeito dos sintomas da nossa época, que o autor revela estar associada à modificação sistêmica do capitalismo em si. Jameson (1985) aponta que um dos reflexos da pós-modernidade, que chama de “pastiche”, está associado à estilização esvaziada pela transformação do passado histórico, em que tudo pode ser mercadorizado e consumido. O autor faz comparações entre a condição moderna e a pós-moderna, e revela que o modernismo ensinado em escolas e universidades é colocado agora como um cânon, o que “esvazia” o movimento “de todo velho potencial subversivo” (JAMESON, 1985, p 17). No modernismo acreditava-se na possibilidade de transformação das zonas da natureza arcaica ou velha pelo trabalho. Já no pós- modernismo, perde-se o sentido de qualquer distinção entre a realidade e a cultura. Jameson aponta que a pós-modernidade construiu-se na alienação histórica da realidade, baseada no processo de mercantilização e do puro consumo gerado da ampliação dos valores dos commodities e da “lógica cultural do capitalismo tardio”. (JAMESON, 1985, p. 17) Já na visão de Harvey (1989), as mudanças culturais que caracterizam o mundo complexo contemporâneo afetam a vida dos indivíduos através de novas percepções e experiências decorrentes desse período histórico, definido como tempos pós-modernos. O autor observa, a partir da reflexão sobre o termo pós- moderno, que essas transformações significaram uma ruptura artística, cultural e política progressista, impulsionada pelo próprio modernismo: [...] não é mudança de paradigma, é um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições de um período já 33 existente. Entre 1968 e 1972 o movimento pós-moderno surge após libertar-se dos movimentos antimodernistas dos anos 60. É na arquitetura urbana que o pós-modernismo se manifesta no seu sentido amplo como uma ruptura com a ideia modernista de que o planejamento e o desenvolvimento devem concentrar-se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolitano, tecnologicamente racionais e eficientes, sustentados por uma arquitetura despojada. (HARVEY, 1989, p. 256). A vida pós-moderna está marcada pela experiência de compressão do espaço e do tempo gerada pelo encolhimento do mapa do mundo por meio das inovações tecnológicas nos transportes e comunicações, levando a uma sociedade global sem fronteiras e à aceleração do tempo aplicado na produção, na troca e no consumo (HARVEY, 1989, p. 256). O autor ressalta que os pensamentos reprimidos submetidos às ideologias do modernismo podem se manifestar e prevalecer no período seguinte, denominado pós-modernismo (HARVEY, 1989, p. 49). Essa constatação é reforçada à luz do pensamento de Nietzsche, a partir do qual Harvey observa “que não há como afinar-se ou lidar com o caos da vida moderna com o pensamento racional” (HARVEY, 1989, p. 49). Enfatizando o sentido do termo pós-moderno e sua relação com as mudanças culturais nas práticas do cotidiano das sociedades contemporâneas, Featherstone esclarece que moderno e pós-moderno são termos genéricos, e que o prefixo pós refere-se ao rompimento com o moderno, ao qual se contrapõe. O autor entende que o termo pós-moderno ainda é “relativamente indefinido, uma vez que estamos apenas no limiar do alegado deslocamento” (FEATHERSTONE, 1995, p. 32). Nesse sentido, afirma que o pós-modernismo foi significativo para as artes e as disciplinas de humanidades, centrais na cultura contemporânea (FEATHERSTONE, 1995, p. 29). Harvey revela que o pós-modernismo abandona a ideia de progresso, “todo sentido de continuidade e memória histórica”, e, ao contrário, “desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a história e absorver tudo o que nela classifica como aspecto do presente” (HARVEY, 1989, p. 57-58). Outro ponto de vista, que complementa e contribui para o entendimento do fenômeno estudado, está no discurso de Lipovetsky e Sebastien (2004): Em minha mente, o pós-moderno implicava descontinuidade e continuidade, um estágio decerto pós-revolucionário, pós-disciplinar, pós-autoritário, mas ele também se inseria entre os corolários da 34 lógica laica democrática e individualista – donde a ideia de “segunda revolução individualista”. (LIPOVETSKY; SEBASTIEN, 2004, p. 113). Os autores apontam que a noção de pós-modernidade surgiu na década de 1970 e que o conceito foi desenvolvido por alguns intelectuais a fim de explicar a cultura da sociedade da época. Para eles, o neologismo pós-moderno definia as transformações sociais e culturais no contexto da expansão do consumismo e da comunicação de massa, contudo, o termo tornou-se ambíguo e vago nos tempos atuais. Hoje, esse conceito está em desuso e já não pode sustentar os fenômenos culturais, econômicos e sociais do aqui-agora (LIPOVETSKY; SEBASTIEN, 2004, p. 51-52). Segundo os mesmos autores, hipermodernidade é o que se segue à pós- modernidade. Esse tempo é caracterizado pelo hiperconsumo, hipernarcisismo, hipermodernização do mundo técnico-científico, desregulamentação econômica e individualismo extremo levado à busca incessante dos desejos de prazer e à realização individual (LIPOVETSKY; SEBASTIEN, 2004, p. 53). Diante dessas múltiplas explicitações, constata-se que as questões da contemporaneidade se encontram inconclusas, o que, portanto, nos permite refletir sobre sua complexidade e, a partir desta, suas possibilidades, perspectivas, interseções e trocas entre conjuntos de conhecimentos. Pensar a relação DMA é uma possibilidade que emerge nesse cenário, em que fronteiras são diluídas, o que permite levantar questionamentos capazes de estabelecer estratégias inovadoras nos contextos social, estético e econômico, mesmo a partir de práticas tradicionais ou há muito estabelecidas. Há que se destacar que, diante das mudanças e da complexidade contemporânea, o capitalismo exacerbado gera o consumismo, e as mídias da comunicação de massa, nos meios impressos, eletrônicos e digitais, concentram aspectos determinantes para as áreas de design, moda e artesanato. Conforme aponta Featherstone, na cultura contemporânea, o usuário adota condutas e procedimentos a fim de adequar e promover sua classificação visível do mundo social, em que economias de prestígio convivem com bens escassos que classificam o status de seu portador. A denominada “cultura do consumo” usa imagens, signos, e bens simbólicos de sonhos, desejos e fantasias que sugerem realização emocional, o prazer narcísico. A estetização na vida cotidiana se dá por meio do 35 rompimento de barreiras e fronteiras entre o real e a imagem, entre a vida e a arte diante das novas experiências culturais e modos de significação que são produzidos e engendrados em todas as esferas que povoam o cotidiano (FEATHERSTONE, 1995, p.123). A seguir, serão discutidos o significado e o papel do design na sociedade atual, delineando o olhar adotado neste trabalho. 2.2 DESIGN O conceito de design é desenvolvido por diversos autores, sob perspectivas variadas que vão desde a etimologia do termo até relações ideológicas, políticas, econômicas, sociais e culturais. Nesta pesquisa, pretende-se explorar o design como processo cultural do homem frente às mudanças da sociedade, abordando o conteúdo da interdisciplinaridade e o design contemporâneo como o campo que compatibiliza vários saberes relacionados aos processos criativos e modos de produção e de comunicação. O design é essencial para a qualidade de vida das pessoas, é inerente ao ser humano e tem a qualidade de elemento propulsor de mudança. Para moldar o mundo e solucionar necessidades, constituem-se formas e estruturas dando sentido às nossas vidas, segundo Heskett (2008, p.13-14). Fazer design é uma capacidade consequente da evolução do cérebro humano e do aperfeiçoamento do fazer com as mãos para transformar o mundo e seu meio, adaptando-se “simultaneamente às muitas mudanças tecnológicas, organizacionais e culturais” (HESKETT, 2008, p.14). Nesse sentido, observam Stout e Chaminade (2009, p. 85) que o evento da pedra lascada como ferramenta existiu em quase todas as sociedades humanas nos últimos 2,5 milhões de anos. Os autores consideram-no um protótipo da habilidade humana que demonstra sua capacidade para planejar e solucionar problemas ao coordenar funções motoras e perceptivas de forma pragmática e colaborativa. Essa atividade em constante evolução consiste na criação de objetos com funções designadas: vestir, adornar, transportar, abrigar, armazenar, cozer, etc. Esse repertório de objetos e usos é modificado simultaneamente pelas implicações e 36 influências das culturas e sociedades (MOURA, 2003, p. 11). O contexto em que se inserem os objetos é determinante para conformar seu uso e valor. 2.2.1 Definições de design Para Schneider (2010, p. 197), é impraticável a busca de uma definição única para o termo design, uma vez que ao longo da história, desde o “disegno” utilizado no Renascimento italiano até hoje, seu sentido se altera e seu campo de aplicação expande-se de modo contínuo. Atualmente, o design não se restringe apenas a objetos concretos. Sua prática engloba “programas de computador, sistemas de organização e serviços, forma de apresentação de empresas”, entre outros exemplos. O vocábulo denomina, ainda, diferentes etapas de trabalho – de procedimentos (o ato ou atividade de projetar) a resultados (um design, um esboço, um plano ou modelo) – e também produtos (por meio do design de objetos). Além disso, o design é aplicado para fazer uma comunicação apropriada e cuidar dos vários aspectos do projeto de um produto. Cardoso (2008, p. 20) busca a definição do termo design na etimologia da palavra originada do inglês, referindo-se à ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à configuração, ao arranjo e à estrutura. No verbo em latim designare, encontra os sentidos “de designar e de desenhar”. Com base nesses significados, observa-se que o termo é ambíguo desde sua origem mais remota. Por um lado, indica o ato de projetar, conceber e atribuir; por outro, o de configurar, registrar e formar. O autor conclui que a maioria das definições explica “o design como uma atividade que gera projetos” e atua na união dos dois âmbitos conferindo “forma material a conceitos intelectuais” (CARDOSO, 2008, p. 20). Encontra-se, nas reflexões de Bomfim (2004), design como práxis e forma de produção do saber, cuja relação é intrínseca a outras áreas que se caracterizam pela interdependência ideológica. Seu ponto de vista se dá a partir de um estudo comparativo entre diversas definições de design. O autor conclui que essa atividade é designada à configuração de objetos de uso e sistemas de informação. É uma prática embasada em teorias que têm duas funções: fundamentação e crítica, e teoria e prática fazem parte de um mesmo processo em que o desdobramento, pré- 37 determinado por valores que aspiram a uma utopia, visa a atingir uma situação ideal. O design depende de decisões das instituições que operam no poder sobre a sociedade, por meio de alinhamentos de ordem “política, ideológica, social econômica, etc. determinados por partidos políticos, sindicatos, associações de classe” (BOMFIM, 2004, p. 17-18). Bonsiepe (2011, p. 29) pondera que o design nem sempre é uma ferramenta de dominação; pode ser usado por interesses hegemônicos, mas não necessariamente. O autor se dedica a pensamentos que envolvam problemas projetuais específicos ao desenvolvimento do design, seus aspectos culturais, econômicos, sociais e a relações entre projeto e política em suas obras. Para Bonsiepe (2011, p. 13), o conceito de “projeto” e o termo “design” têm diferentes conotações: enquanto “projeto” se refere ao que cria e produz “artefatos materiais e simbólicos” dentro de um contexto cultural, político, econômico e social, “design significa um modo da atividade projetual do capitalismo tardio”, que se difundiu globalmente a partir dos anos 1970. O autor se refere ao design como “discurso projetual” e adverte que há uma escassez de debates, atualmente, a respeito dessa “atividade projetual”, em contraposição ao que ocorre com a popularização da palavra design. Segundo o autor, “simultaneamente à expansão semântica horizontal há um estreitamento e redução semântica vertical”. Para acentuar sua crítica à estetização da mercadoria, Bonsiepe (2011, p. 17) ainda nomeia e elabora uma vasta lista que denuncia como as “palavras da moda”, que tomaram lugar do conceito original do termo. São elas: branding, liderança, competitividade, globalização, vantagens competitivas, life-style design, diferenciação, design estratégico, design emocional, design divertido, (fun design), design de experiências, design inteligente, entre outros. Bonsiepe (2011, p. 29) reforça sua crítica ao discurso “harmonizador”, bastante utilizado pelo marketing, sobrepondo-se ao discurso projetual. O autor também declara que a prática projetual lida inevitavelmente com contradições, como, por exemplo, os recursos ambientais versus a satisfação de necessidades. Esses problemas não se resolvem dentro do escopo de design sustentável, ou a lógica de recursos, mas é urgente expandir o conceito à demanda da sustentabilidade social ou de inovação social. É necessário esclarecer essa “crítica discursiva projetualmente”. Segundo o autor: 38 A contradição mais forte à qual a atividade projetual está exposta jaz na distância entre o que é socialmente desejável, tecnicamente factível, ambientalmente recomendável, economicamente viável e culturalmente defensível. (BONSIEPE, 2011, p. 29). 2.2.2 O design e a configuração do objeto Deforge (1996, p. 21) aponta que é inerente a qualquer objeto de natureza técnica produzido pelo ser humano ter duas funções: a utilitária e a simbólica. O autor afirma que essas funções podem ser alteradas de diversas formas. Especificamente sob o ponto de vista do consumidor, o objeto pode ter grande utilidade e pouco valor simbólico, ou aquilo que é utilitário pode ter valor simbólico e vice-versa. O significado de utilitário por si pode ganhar outros sentidos, como o de pureza, perfeição e completude. Pode também ser aplicado aos objetos não utilitário, objetos decorativos e estéticos (DEFORGE, 1996). Se o objeto de design está alicerçado nos valores dados pelos usuários, por outro lado ele se caracteriza por sua aparência. Forma e conteúdo são os elementos integrados que essencialmente constituem o objeto de uso ou o sistema de informação. Bomfim e Portinari (2014, p. 122) definem forma como a configuração dos elementos da percepção (cor, superfície, proporção, textura, entre outros) e conteúdo como a essência e o caráter do objeto. Essa unidade depende dos processos de produção (custos, possibilidades tecnológicas de fabricação, materiais, estoque, embalagem, distribuição, atendimento a leis e direitos de propriedade, etc.) e de sua utilização (funcionamento técnico, adaptação ao uso, possibilidades de manutenção, conservação, reciclagem, etc.). Bürdek (2006, p. 258) amplia a discussão da configuração do objeto afirmando que não se trata apenas da forma, mas da configuração de contextos e da compreensão dos significados das coisas em substituição ao modo como elas são feitas. Já Löbach (2011, p. 26) destaca outro aspecto, anterior à criação do objeto. O autor explica a “necessidade” como estado de insuficiência que impulsiona o ser humano a buscar soluções para eliminar condições não desejadas de falta. Afirma, ainda, que a satisfação é a principal “motivação de atuação do homem”. 39 Ao contrário das necessidades, as “aspirações” não se originam das carências, mas surgem em decorrência de pensamentos ou fluxo de ideias de forma natural e espontânea e podem ser satisfeitas por um objeto que, como tal, passa a ser desejado. O autor conclui que é possível alcançar a satisfação tanto para atender às necessidades humanas quanto para a realização de aspirações por meio do uso de objetos (LÖBACH, 2011, p. 27). Ele reconhece que o sentido da satisfação das necessidades não se encerra apenas na utilidade física do objeto, mas pode servir às necessidades estéticas, proporcionando a saúde psíquica (LÖBACH, 2011, p. 35). Bomfim (2014, p. 17) argumenta que os produtos se prestam como instrumentos para a realização de utopias, por um lado, como um ideal distante de ser alcançado, por outro, como o real possível. Fazem parte da relação entre indivíduos, sociedade e contexto material e temporal (meio ambiente). Juntos formam um conjunto de valores, incorporados aos objetos usados por indivíduos. Esses objetos são avaliados por sua eficiência, por meio de qualidades (útil, prático, etc.). Critérios éticos (o bem e o mal) também podem fazer parte da avaliação dos atos e atividades que envolveram o objeto, da mesma forma como critérios estéticos (o belo, o trágico, etc.) podem qualificar os objetos. Nesse sentido, o autor aponta os riscos e possibilidades que surgem dos diferentes interesses de grupos distintos da sociedade após a legitimação de uso de objetos e fatos que logo são transformados em leis, normas ou critérios para conduzir o trabalho da sociedade. Em Moura (2012), o design é observado como campo de produção de produtos, sistemas e estilos de vida, mas também como ação contemporânea de linguagem. Moura (2011, p. 8-10) aponta que o design contemporâneo se caracteriza pela composição de diferentes saberes e conceitos, fusão de diversas áreas e rompimento de dogmas e fronteiras. Cardoso (2012, p. 93) atenta para o fato de que, no contemporâneo, “são múltiplos os modos de criar correspondências entre design, memória e identidade”. Ainda dentro da perspectiva da contemporaneidade, destaca-se, na visão de Cardoso (2012, p. 159), o ciclo de vida do objeto. A ideia de produto, segundo o autor, refere-se somente a uma fração da existência dos artefatos que corresponde ao “período de vida útil que vai da fabricação até o descarte”. Da mesma forma, o termo mercadoria, adotado pelos economistas, descreve tão somente o artefato no curto período em que ele está à venda. “Ambas são visões essencialmente 40 centradas no proveito que pode ser tirado do artefato, seja em termos do seu aproveitamento pelo uso ou sua realização como lucro.” Mas, diante dos problemas ambientais da atualidade, o artefato deve ser visto “como cultura material, ou seja: o vestígio daquilo que somos como coletividade humana. [...] O conjunto de todos os artefatos que produzimos reflete o estado atual de nossa cultura”. 2.3 MODA A conceituação do termo moda vem sendo fundamentada por pensadores de diferentes áreas, como arte, design, economia, sociologia, comunicação, filosofia, psicanálise e psicologia social. Como discurso, a moda é abordada por vários pensadores, entre eles psicólogos, filósofos e sociólogos, tanto em seus aspectos históricos, no âmbito das sociedades, a partir do final da Idade Média do Ocidente, quanto em suas manifestações contemporâneas, como fenômeno sociocultural e socioeconômico mundial. A moda pressupõe o contexto de uma sociedade de recursos abundantes, como na Europa do início do Renascimento, em que se estabelecia um desenvolvimento econômico considerável, criando condições para mudanças culturais e com uma lógica de mudanças relativamente rápidas nos modos de vestir das pessoas, segundo Svendsen (2010, p. 23). Para o autor: A moda não é universal. Não é um fenômeno que exista em todas as partes e em todos os tempos. Suas raízes não estão nem na natureza nem em mecanismos de grupos em geral. Mas desde que surgiu pela primeira vez em uma sociedade, levou um número cada vez maior de outras sociedades e áreas sociais a seguirem sua lógica. (SVENDSEN, 2010, p. 22). Segundo Crane (2013 p. 43), a moda tem o atributo de gerar “constantemente novos significados aos artefatos” e de “redefinir identidades sociais”. Ela permite introduzir novos estilos e forjar as diferenças que residem na tensão das fronteiras sociais. De acordo com Houaiss (2009), a definição do termo moda parte de seu significado etimológico, proveniente do francês mode (modo ou costume), que 41 provém do latim modus (modo ou medida). Tem relação com escolhas feitas a partir de critérios objetivos e subjetivos associados ao gosto individual e coletivo. Ainda que esteja geralmente relacionado a vestuário, tecidos e adornos, o conceito de moda pode ser aplicado de maneira geral a tendências repetitivas de uso de qualquer objeto ou produto, bem como a condutas e maneiras (HOUAISS, 2009). Segundo Crane (2013, p. 29) focaliza em sua teoria que a moda permite a todas as pessoas que se apropriem de estilos e expressem sua identidade incorporando os padrões e usos oferecidos pelas empresas do vestuário. O estudo de moda propõe um exame de seus vários aspectos. Busca-se aqui, incialmente, explorar os significados de vestuário, roupa e moda e o contexto em que os conceitos se fundem ou se separam. Mais adiante, são aprofundados os aspectos que definem a ideia de moda na contemporaneidade. 2.3.1 Definições de vestuário De acordo com Houaiss (2009), a etimologia do termo “vestuário” vem originalmente do latim medieval, vestuarius, que significa traje, roupa ou um conjunto de roupas acompanhadas de complementos e acessórios que compõem o traje. Segundo Mello e Saback (2008, p. 36), o vestuário está associado a roupas e adornos que cobrem os corpos dos indivíduos. Observa-se, em Houaiss (2009), que o vocábulo “vestuário” contempla, em seu significado, o termo “roupa”, definido como peça ou conjunto de peças de vestir, traje, qualquer tecido que sirva para adorno, cobertura, etc., qualquer peça de tecido de uso doméstico, e “vestimenta”, que significa peça de roupa que serve para vestir qualquer parte do corpo; vestidura. Desde sua origem os seres humanos desenvolveram a vestimenta desde, quando servia apenas para resguardar o corpo do ambiente, até que ela se transformasse em vestuário, “demonstrando o desenvolvimento social, cultural e econômico das civilizações”, de acordo com Italiano (2012, p. 2). Na concepção de Gilligan (2010, p. 17), para os primeiros seres humanos, o vestuário era uma forma de isolamento do ambiente e servia de proteção primária à pele, auxiliando na regulação térmica do corpo. Pressupõe-se que vestir um abrigo, nos tempos primordiais, implicava nas primeiras percepções que os seres humanos tiveram de 42 si, em relação a outras coisas do entorno, e da forma como os corpos interagem com o mundo. Ainda que não esteja dentro do conceito de moda, para as sociedades não ocidentais e pré-industriais o vestuário tem diferentes sentidos, e em diferentes graus pode expressar riqueza e status, segundo Maynard (2013). Para o autor, mesmo que não esteja ligado à renovação constante de formas, nunca é estilisticamente estático, mas, pelo contrário, pode incorporar novos elementos e ligeiras mudanças de estilo. Assim, observa-se na história do vestuário um atributo intrínseco ao ser humano de seu desejo de representação e de forma de expressão identitária. A partir dessa perspectiva, de acordo com Svendsen (2010, p. 22), “o impulso para se enfeitar não é em absoluto um fenômeno recente da história humana, mas as coisas com que as pessoas se enfeitavam no mundo pré-moderno nada tinham a ver com a moda”. A evolução das roupas, da proteção à moda, passou por formas complexas, adquirindo funções sociais e representações simbólicas. Essa transição pode ser compreendida em Dorfles (1979, p. 22), ao citar o caso da modificação artificial do corpo, em que as tatuagens e adornos usados antes em rituais com finalidade de magia e de higiene passam a ser disseminados em grupos sociais como adorno, a fim de destacar a individualidade em meio à multidão e ao anonimato numa sociedade contemporânea. Conclui-se que o vestuário foi transformado em moda quando elementos essencialmente funcionais passam a ser utilizados com motivação estética e como símbolo de status. 2.3.2 Conceito de moda De modo geral, quando se fala em moda, a associação imediata e mais comum é com a ideia de vestuário e, consequentemente, de roupas, vestimenta. Segundo Avelar (2011, p. 27), o primeiro entendimento do termo “moda” em seu sentido sociológico está associado à “dinâmica social de imitação e de especificação” que surge no período do Renascimento, no século XV, vinculada à ascensão da burguesia, que procurava reproduzir as vestimentas e os hábitos da 43 aristocracia. Segundo as observações de Svendsen (2010. p. 26), ancoradas na obra de Kant, “a ideia do novo é uma característica da moda e a novidade torna a moda sedutora”. Avelar (2011, p. 170) sustenta que a “novidade” é um atributo da moda que surge no contexto de uma crescente sociedade de consumo, dinâmica que se exacerbou com sua apropriação pela indústria da moda. Outros aspectos que definem moda são introduzidos por Crane (2013, p. 21), ao direcionar a discussão para a função social da moda, reconhecendo-a como um conjunto de normas e códigos que participam da construção da identidade do indivíduo. Para Lipovetsky (1989, p. 11), a moda adquiriu identificação como sistema, com suas metamorfoses incessantes e extravagantes, no final da Idade Média, com a ascensão dos valores e significações culturais modernas que marcariam o Renascimento, exaltando o novo e a expressão da individualidade. Esse contexto é, segundo o autor, o berço do sistema da moda tal como o conhecemos hoje. A partir dessa perspectiva, observa Lipovetsky (1989, p. 24), a renovação das formas se tornou algo corriqueiro na alta sociedade; transformar é regra permanente. A moda vai além do vestuário, articula-se com o mobiliário, com os objetos decorativos, com a linguagem, as maneiras, os gostos e as ideias. Svendsen (2010, p. 12) relaciona esse fenômeno com a questão da predileção do indivíduo, pois, ao referir-se à moda como “um mecanismo, uma lógica ou uma ideologia geral”, enfatiza que o termo moda não está relacionado somente a roupas e que sua extensão vai muito mais além. A partir da obra do filósofo Adam Smith, o autor observa que a moda “se aplica antes de tudo a áreas em que gosto é um conceito central” (SVENDSEN, 2010, p. 14). A lógica da moda tratada como um elemento do modo de vida de um indivíduo é que culmina na percepção de moda como fenômeno cultural. Seguindo esse raciocínio, Cidreira (2010, p. 242) aponta que a moda está, de fato, relacionada com o modo de ser de um indivíduo “pois ela é quem oferece ao ser a sua possibilidade concreta de apresentação, aparição encarnada num corpo”. Para a autora, a aparência corporal é mais que um subproduto da vida social. A moda está ligada à construção de identidade, faz parte de uma dinâmica social e é geradora de cultura. Crane (2013, p. 22) endossa essa ideia: “as roupas, como artefatos, ‘criam’ 44 comportamentos por sua capacidade de impor identidades sociais e permitir que as pessoas afirmem identidades sociais latentes”. Conclui-se que, desde sua origem, a moda cumpriu a função de indicar status social e foi se transformando junto com as mudanças nas estruturas sociais, econômicas e culturais. No contexto das sociedades contemporâneas, Lipovetsky aponta que a moda ocupa lugar de domínio, pois: A sedução e o efêmero tornaram-se, em menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna; vivemos em sociedades de dominante frívola, último elo da plurissecular aventura capitalista-democrática-individualista. (LIPOVETSKY, 1989, p. 12). O autor esclarece que a soberania do processo de moda se manifesta na “sociedade de consumo”, tão marcada pela contemporaneidade nos modos de produção e consumo de massa sob a “lei da obsolescência”. Pode-se reconhecer esse quadro, por meio “da abundância das mercadorias e dos serviços, culto dos objetos e dos lazeres, moral hedonista e materialista” (LIPOVETSKY, 1989, p. 159). Assim, compreende-se que, no contexto contemporâneo, organiza-se uma nova lógica da moda mais voltada à aparência, à identidade, ao prazer, à sedução, submersos nos objetos instrumentados por informação, mídia, tecnologia, etc. A diversidade de possibilidades de leitura desses fatos, em constante transformação, que ocorrem no mundo exige, portanto, um estudo aprofundado sobre os discursos neles contidos. A moda como uma das expressões soberanas da contemporaneidade é um dos meios dessa pluralidade de discursos, e para entendê- la é preciso decodificar suas linguagens. Moura e Castilho (2013, p. 15) explicam a moda enquanto linguagem, definindo-a como portadora de um discurso construído por elementos próprios, gerados em distintos contextos, como ritos, técnicas, costumes e significados. O discurso também pode expressar desejos, segundo elucidam Castilho e Vicentini (2008, p. 133) ao ilustrar que, quando nos vestimos, construímos uma aparência e articulamos uma imagem para o outro. Por esse mesmo caminho, Calefato (2004, p. 8) acrescenta que as “roupas são portadoras de significados e valores que dão forma a um sistema de objetos nos quais o corpo encontra espaço para identidades concretas e complexas”. A autora também analisa a moda contemporânea e explica que há uma diferença estrutural entre traje e moda. O primeiro se caracteriza por sua estabilidade e uniformidade, 45 estabelecendo uma relação de aproximação entre o indivíduo e sua comunidade, e se concretiza em oposição ao universo vertiginoso e metafórico da moda, em que uma peça de vestuário está ligada a uma condição cosmopolita. Já o segundo se faz num sistema próprio, incluindo a mediação entre o gosto e a mensagem recebida e filtrada através da relação entre signo, discurso e mundo sensível. Particularmente, a moda oscila entre uma orientação frente ao novo e a comunicabilidade imediata deste, como algo socialmente aprovado, provendo-lhe o valor de uma estética absoluta (CALEFATO, 2004, p. 9). 2.4 ARTESANATO O artesanato enfrenta, atualmente, um conjunto de desafios trazidos, sobretudo, pela influência da mídia de massa, que atua em todos os meios de comunicação, com informações pulverizadas e sem compromisso estético ou cultural. Observa-se que, no Brasil contemporâneo, o artesanato é criado e produzido de formas diversas e por diferentes grupos sociais e culturais. Tem sido há décadas uma alternativa de renda para muitos produtores de artesanato que já participaram de programas de incentivo à geração de renda promovidos por organizações não governamentais e por políticas públicas ou pela iniciativa privada. A arquiteta Lina Bo Bardi e o designer Aloísio Magalhães já se envolviam, em meados do século passado, em propostas que buscavam criar alternativas para a inserção da produção artesanal tradicional no cenário moderno. De acordo com Anastassakis (2007), ambos buscavam construir pontes entre as produções industrial e artesanal, ela sugerindo que o design brasileiro buscasse raízes autênticas no artesanato tradicional, ele estimulando a criação de políticas públicas para o desenvolvimento do artesanato com respeito às características locais. As reflexões desses dois pensadores, segundo Anastassakis (2014, p. 35), estão associadas a uma visão antropológica, isto é, ambos defendem que as práticas profissionais no país devem estar comprometidas com os contextos culturais a partir de onde se realiza o trabalho. Muitos intelectuais se utilizam desse pensamento na 46 criação e na condução de políticas públicas ligadas às questões do artesanato, à arte, ao patrimônio cultural, à arquitetura e ao design no Brasil, e esse tem sido tema recorrente de debates entre diversos pensadores. 2.4.1 Definições de artesanato Artesanato é resultado da relação entre homem e trabalho. Compreende modos de fazer com as mãos, habilidades, técnicas de execução e conhecimento. É um ofício intrinsecamente ligado à dedicação de tempo e a um modo de fazer que se expressa no domínio do detalhe. Também está relacionado ao domínio de todo o processo envolvido no desenvolvimento de uma peça ou objeto. Sennett (2009, p. 19) refere-se à “habilidade artesanal” como impulso intrinsecamente humano e básico em que se realiza o trabalho bem-feito e bem capacitado por si mesmo. O autor define a expressão sob um aspecto amplo que compreende o trabalho realizado por qualquer profissional como, por exemplo, o médico, o artista, o programador de computador, e não somente pelo artesão. Segundo Ingold (1993, p. 433), habilidade é forma de conhecimento e uma forma de prática, ou seja, é conhecimento prático e prática de conhecimento. Lima endossa que o artesanato está associado à cultura da humanidade: Durante milênios foi o único modo que se tinha de fazer objetos. O mundo humano foi feito à mão. Se pensarmos no volume de objetos que já se produziu, manualmente, percebemos que é uma coisa impressionante e incalculável mesmo, porque acompanha o tempo da própria humanidade. (Lima, 2003 p. 189). Compreendemos, portanto, que artesanato no sentido da práxis está ligado ao surgimento dos primeiros objetos artesanais, como os utensílios feitos de lascas de pedra, ossos ou madeira, usados para caça ou proteção, e remonta à Era Paleolítica. A palavra “artesanato” tem significado e associações complexas. É necessário esclarecer as diferentes compreensões do termo, à medida que sua leitura varie nos contextos contemporâneo ou tradicional. Nesse sentido, é importante o estudo etimológico, que ajuda a identificar a utilização da palavra em realidades (supostamente) distintas. 47 Segundo Houaiss (2009), “artesanato” deriva da soma das formas radicais “artesan” + “ato”. Enquanto “artesan” está ligado a artesão, “ato” vem do latim actus,us que significa movimento, impulso, etc., no sentido “daquilo que se faz ou se pode fazer”. Já a palavra “artesão” vem do italiano “artigiano”. Nos dicionários italianos, “artigiano” é aquele que pratica uma arte manual por sua própria conta em sua oficina. Trabalha sozinho ou com membros da família e ajudantes (ALDO, 2015). Constata-se que apesar de “artigiano” ser a origem italiana da palavra artesão, elas têm significados diferentes quando contextualizadas em diferentes países. Houaiss (2009) define artesanato como um trabalho de “arte e técnica” feito por um artesão de maneira não industrializada “que escapa à produção em série” cujo objetivo é utilitário e artístico. O mesmo autor define o artesão como a pessoa que “pratica arte ou ofício que dependem de trabalhos manuais”. Assim, podemos considerar que artesanato é associação entre o saber e o fazer e reafirma a ligação arte-artifício. O sentido também pode ser explorado por meio da definição de produtos artesanais, adotada, por exemplo, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em documentos elaborados em 1997, nas Filipinas. Segundo a instituição, produtos artesanais são: [...] os produzidos por artesãos, totalmente à mão ou com a ajuda de ferramentas manuais, ou, ainda, com a utilização de meios mecânicos, desde que a contribuição manual direta do artesão seja o componente mais importante do produto acabado. São produzidos sem limitação de quantidade e utilizam matérias-primas procedentes de recursos sustentáveis. A natureza especial dos produtos artesanais se baseia em suas características distintivas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas, criativas, vinculadas à cultura, decorativas, funcionais, tradicionais, simbólicas e significativas religiosa e socialmente. (UNESCO, 1997, p. 7). Na visão de Lima (2003), o artesanato é referência cultural de resistência importante para um país e portador das habilidades tradicionais e técnicas que revelam e, por vezes, sustentam uma cultura local ou regional. Seus saberes, práticas, conhecimentos, capacidades, habilidades e técnicas são ligados ao modo de fazer e viver, intrínsecas às condições sociais, econômicas, culturais e ao acesso às informações de determinada comunidade. Segundo Leite (2003), caracteriza-se por sua forma de trabalhar e de solucionar problemas para a realização da produção, da escolha de materiais e matérias-primas à funcionalidade dos objetos e à capacidade de articulação com um mercado. A partir das perspectivas 48 apresentadas torna-se necessária a reflexão sobre as relações do artesanato com áreas afins, buscando reconfigurações que possam melhor aclimatá-lo para o desenvolvimento de suas aptidões, mais adequadas aos tempos atuais. 2.4.2 O artesanato como ofício e sua condição no Brasil Franco Junior (2001, p. 54), em um estudo aprofundado sobre a Idade Média, introduz na história das corporações de ofício a ideia de artesanato como conhecimento e técnica de artesãos. Chamados apenas de ofícios – “Métiers na França, Ghilds na Inglaterra, Innungen na Alemanha, Arti na Itália” – esses grupos se formavam por questões religiosas, econômicas ou político-sociais. As corporações mais antigas eram de comerciantes; as de artesãos generalizaram-se depois do ano de 1120 e foram mais marcantes na economia mercantilista da Época Moderna que propriamente na Idade Média. De acordo com Franco Junior (2001), uma corporação constituía-se de várias oficinas que produziam com exclusividade uma determinada mercadoria, sem que fosse permitida a concorrência. Cada oficina pertencia a um mestre. A seu lado trabalhavam um ou dois adolescentes aprendizes, que pagavam por aprendizado, alojamento e comida, além de jornaleiros (ou companheiros), que eram pagos, viviam em sua casa e podiam tornar-se mestres com o consentimento da corporação, desde que tivessem capital para montar a própria oficina e fossem aprovados na chamada prova de obra-prima – a partir do fim do século XIII, no entanto, a condição de mestre tornou-se hereditária, devido a questões econômicas. O autor ressalta que mesmo aqueles artesãos que não eram engajados em corporações oficiais organizavam-se em grupos para defender seus interesses. O artesanato na perspectiva de uma organização social, como é o caso das corporações de ofício, nunca existiu no Brasil, segundo Lina Bo Bardi. A autora percorreu o país, em especial o Nordeste, onde trabalhou entre as décadas de 1950 e 1960, e, por meio de objetos coletados, imagens, artigos escritos, exposições e depoimentos, revelou o Brasil ancestral e popular. Qualificados como “fartura cultural”, “riqueza antropológica única”, os achados da pesquisadora carregavam a marca de sua história, de fatos “trágicos e fundamentais”. Tais objetos foram 49 denominados de pré-artesanato, conceito que se aplica a objetos feitos artesanalmente com material de descarte, utilizando técnicas tradicionais diversas, para suprir as necessidades básicas do próprio artesão, como, por exemplo, as roupas costuradas com retalhos. Para a autora, esse artesanato representava uma rica matriz antropológica e também uma importante referência para o desenvolvimento do design brasileiro (LINA BO BARDI, 1980, p. 13). A imposição de valores exóticos, primeiramente pela história da coroa portuguesa e depois pela modernidade e pela industrialização globalizada, prejudicou a consolidação de uma estrutura cultural popular que fosse capaz de afirmar um desenvolvimento da cultura artesanal autêntica e autóctone no Brasil. A partir de um contexto contemporâneo latino-americano, observa-se um paralelo nas reflexões de Canclini (1989) sobre as condicionantes ligadas à cultura popular. O autor afirma que “o popular” é excluído. É aquele que não possui patrimônio e não é reconhecido pela sociedade. Como os artesãos que não se tornam artistas, o indivíduo que não faz parte do mercado de bens simbólicos legítimos ou o público da cultura de massa que permanece marginal aos âmbitos universitários e de museus, não é capaz de ler e compreender a chamada alta cultura porque desconhece a história do conhecimento e dos estilos (CANCLINI, 1989, p. 192). Magalhães (1985, p. 177-181) compartilha dessa visão, mas aponta também para outra perspectiva no que concerne à capacidade de criação, e afirma que é justamente da ausência de valores consolidados pela tradição que vem a disponibilidade do artesão brasileiro para a “invenção” arraigada em um fazer popular. O autor explica que, entre a ideia e sua concretização, o artesão cria seu trabalho de forma direta e espontânea, e que essa atitude demonstra que há um caminho e uma necessidade de evolução no sentido de aprimorar sua formação estética a fim de que se obtenham resultados mais bem-sucedidos. Observa-se que, há algumas décadas, programas de apoio de políticas públicas e de organizações não governamentais buscam formas para compensar esse tipo de disparidade. 2.4.3 Políticas públicas de apoio ao artesanato brasileiro 50 Muitos países têm programas e ações de fomento ao artesanato, seja para proteger seu patrimônio cultural imaterial, seja para promover a geração de renda. Diante da diversidade e complexidade do tema, as organizações do setor precisam se balizar em convenções que fundamentem a formulação de seus programas e projetos. Com base na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial reconhecida pela comunidade internacional em 2003, estabeleceu-se o reconhecimento dos saberes e fazeres artesanais como patrimônio cultural e imaterial protegido por lei. No Brasil, segundo IPHAN (2009), 30 bens culturais já foram registrados como Patrimônio Cultural, sob a proteção do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Entre eles está o Modo de Fazer Renda Irlandesa, que tem sua origem vinculada à aristocracia, mas na segunda metade do século XX surgiu como alternativa de trabalho, ocupando hoje mais de uma centena de artesãs de Divina Pastora/SE. A atividade foi inscrita no Livro de Registro dos Saberes do IPHAN, em 2009. Noutra direção, foram elaboradas políticas que visam, em especial, a geração de renda através do artesanato. Para operacionalizar essas ações, foram estabelecidas diferentes formas de classificação do artesanato, relacionadas a aspectos específicos da criação, da técnica, do modo de fazer e dos materiais, bem como ao contexto no qual se inserem. Os variados critérios criados pelas organizações conformam suas políticas de atuação e o decorrente resultado das atividades em campo, os produtos e os objetivos atingidos. A seguir, é apresentada a definição e/ou classificação de artesanato adotada pelas seguintes organizações: agência nacional do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE Nacional), ARTESOL e Programa do Artesanato Brasileiro (PAB). A autora desta pesquisa contatou as três organizações em 2016 para verificar a quantidade de artesãos atendidos por seus respectivos programas, mas nenhuma pôde oferecer dados atualizados. Uma delas justificou que há uma carência para o acesso a dados oficiais atualmente. O SEBRAE Nacional atua em diversos estados e regiões do país, por meio do Programa Sebrae de Artesanato, e toma como base a “pluralidade da produção artesanal brasileira”, de acordo com SEBR