UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Campus de Rio Claro A EXPERIÊNCIA COMO FATOR DETERMINANTE NA REPRESENTAÇÃO ESPACIAL DO DEFICIENTE VISUAL Sílvia Elena Ventorini Orientadora: Profa.Dra Maria Isabel Castreghini de Freitas Co-Orientador: Prof. Ms. José Antônio dos Santos Borges Dissertação de Mestrado elaborada junto ao Curso de Pós-Graduação em Geografia Área: Organização do Espaço para obtenção do Título de Mestre em Geografia Rio Claro (SP) 2007 910 Ventorini, Silvia Elena V466e A experiência como fator determinante na representação espacial do deficiente visual / Silvia Elena Ventorini. – Rio Claro : [s.n.], 2007 2 v. : il., quadros, fots. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Orientador: Maria Isabel Castreghini de Freitas Co-orientador: José Antônio dos Santos Borges 1. Geografia. 2. Percepção geográfica. 3. Percepção espacial. 4. Representação espacial de deficientes visuais. 5. Cego. 6. Baixa visão. 7. Maquetes táteis. I. Título. Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP Campus de Rio Claro/SP Comissão Examinadora Profa. Dra. Maria Isabel Castreghini de Freitas Profa. Dra. Katia Regina Moreno Caiado Profa. Dra. Rosangela Doin de Almeida Silvia Elena Ventorini Aluno (a) Rio Claro, 17 de maio de 2007 Resultado_____________________________________________ Ao terminar este documento, ficou em mim a confirmação: as palavras escritas nas dissertações e teses não expressam todos os sentimentos bons e ruins e a aprendizagem que o trabalho acadêmico proporciona aos indivíduos. De tudo o que foi realizado, em minha concepção restou a certeza: não fiz mais do mesmo. Sílvia Elena Ventorini DEDICATÓRIA À minha família, em especial a minha mãe e ao meu irmão Celo, como pedido de desculpas por tantos momentos de ausências. AGRADECIMENTOS À Pró- Reitoria de Extensão Universitária da Unesp (PROEX); à Fundação para o Desenvolvimento da Unesp (FUNDUNESP); e a Fundação de Amparo às Pesquisas do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro e suportes concedidos. Aos profissionais do Centro de Análise e Planejamento Ambiental – CEAPLA pelo espaço físico, equipamentos e apoio recebido durante o desenvolvimento da pesquisa. Ao Núcleo de Computação Eletrônica - NCE - da UFRJ pelo apoio e equipamentos para a realização de workshops entre as equipes da Unesp e UFRJ. À direção, à coordenação e aos professores da EE. Heloisa Lemenhe Marasca, pelo apoio e confiança. À direção, à coordenação e aos professores da EMIEE Maria Aparecida Muniz Michelin - José Benedito Carneiro – Deficientes Auditivos e Deficientes Visuais- DV/DA, em especial à vice-diretora Sueli Furlan, pela ajuda, confiança, liberdade e amizade para realizar o estudo. Às professoras da escola especial Flávia Denardi Cavallari Surreição e Ivete Franzini Monteiro, pela amizade, incentivo e confiança no trabalho realizado. À Profa Dra Rosangela Doin de Almeida por me incentivar a buscar em outros caminhos os fundamentos que sustentassem as hipóteses levantadas em minha trajetória de pesquisadora. À Profa Dra Claudia Megale Adametes pela paciência, amizade e entusiasmo expressados durante a leitura e correção ortográfica do trabalho, bem como pela sensibilidade e cuidado de manter no texto o rigor científico necessário, sem mascarar a emoção que as palavras escritas podem ocasionar ao leitor. Aos Prof. Dr. José Antônio dos Santos Borges e Ms. Diego Fugio Takano por tornarem real o sonho de elaborar maquetes sonoras. À Profa Dra Maria Isabel Castreghini de Freitas, minha eterna orientadora, por ter aceitado trilhar um caminho novo e diferente, oscilando suas funções - ora a orientadora, ora a aprendiz - demonstrando sempre humildade, respeito, incentivo, sabedoria e apoio. A Juliene Queiróz Schimpl Lararini pela amizade e auxílio para resolver os tramites burocráticos. Aos amigos Larissa, Du, Adriano, Pierre, Graciele, Claudia e Luciana, que foram os anjos tortos durante a minha trajetória de mestrado. A todos os alunos que participaram da pesquisa, demonstrando que são especiais não por necessitarem de educação especial, mas por terem a humildade de aprenderem ao mesmo tempo em que ensinam e porque sem suas participações, este trabalho não teria sentido ou valor. 8 9 RESUMO Este trabalho discute a utilização do Sistema Maquete Tátil/Mapavox por três grupos de alunos: cegos, de baixa visão e normo-visuais, sob a perspectiva de análise não comparativa de resultados. Os objetivos do trabalho foram investigar como as pessoas deficientes visuais organizam os objetos no espaço e que estratégias usam para constituir suas representações. No embasamento teórico dialoga-se com autores que realizaram pesquisas sobre os desenvolvimentos motor e cognitivo de crianças cegas e suas relações com o espaço partindo do próprio cego, sem compará-lo às pessoas dotadas de visão. Os resultados indicam que os sujeitos deficientes visuais organizam os objetos no espaço de forma diferente das pessoas normo-visuais e que a adaptação de material didático de Cartografia para este público não consiste simplesmente em substituir cores por texturas, efetuar contornos em relevo e/ou inserir informações em braille e em escrita convencional ampliada. Indicam ainda que, as abordagens de conteúdos geográficos e cartográficos não podem ter como referencial a percepção e organização espacial de pessoas que enxergam. A análise dos resultados aponta que as formas de organização do espaço nos sujeitos deficientes visuais trazem as marcas de suas experiências. Por isso, organizam o espaço expressando rotas ou ambientes que possuem significativa vivência. Palavras-chaves: cego, baixa visão, maquetes táteis, representação espacial 10 ABSTRACT This paper discusses the use of the Tactile Model System /Mapavox by three groups of students: the blind; the visually impaired and the students with normal vision, under the perspective of an analysis of non comparative results. The goals of the work went investigate as the blind and visually impaired organize the objects in the space and that strategies use to constitute its representations. The theoretical basis brings authors who performed researches on the motor and cognitive development of blind children as well as their relation to space without comparing it to that of people with no visual impairment. The results obtained indicate that the blind and visually impaired subjects have a different spatial organization than those with normal vision and the adaptation of Cartographic didactic materials for the visually impaired does not consist of just substituting colors for texture, or using contoured relieves and or inserting information in Braille and amplified conventional writing. Thus, the content approach of both Geography and Cartography cannot have as a referential the perception and spatial organization of individuals with normal vision. The analysis of the results aims that the forms of organization of the space subjects bring the marks of its experiences. Word-keys: blind, visually impaired, tactile models, space representation 11 ÍNDICE DE FIGURAS FIGURA 1: REPRESENTAÇÃO ELABORADA POR UM GRUPO DE ALUNOS NORMO-VISUAIS...63 FIGURA 2: REPRESENTAÇÃO ELABORADA POR UMA ALUNA CEGA DE 14 ANOS DE IDADE...64 FIGURA 3: EXEMPLO DE DISTÂNCIA FUNCIONAL.................................................................................65 FIGURA 4: EXEMPLO DE DISTÂNCIA EUCLIDIANA...............................................................................65 FIGURA 5 : ESQUEMA DE FUNCIONAMENTO DOS PRODUTOS CARTOGRÁFICOS TÁTEIS......70 FIGURA 6: MAQUETES DAS SALAS DE AULAS DA ESCOLA ESPECIAL...........................................100 FIGURA 7: REPRESENTAÇÃO DO ALUNO JOÃO ANTES DA CONSTRUÇÃO DA MAQUETE......101 FIGURA 8: REPRESENTAÇÃO DO ALUNO DEPOIS DA CONSTRUÇÃO DA MAQUETE................101 FIGURA 9: IMAGEM MENTAL DO QUARTO ELABORADO PELO ALUNO JOÃO...........................103 FIGURA 10: PARTE DA ÁREA CENTRAL DE ARARAS-SP.....................................................................105 FIGURA 11: IMAGEM MENTAL DA PRAÇA CENTRAL DE ARARAS-SP............................................106 FIGURA 12: IMAGEM MENTAL DA ALUNA LAURA...............................................................................109 FIGURA 13: REPRESENTAÇÃO MENTAL DO ALUNO HORÁCIO......................................................109 FIGURA 14: REPRESENTAÇÃO MENTAL DO ALUNO PEDRO............................................................110 FIGURA 15: ORDEM QUE DEVE SER ATRIBUÍDA AS MICRO-CHAVES............................................117 FIGURA 16: ESQUEMA DA TRAMA DE MICRO-CHAVES PARA MAQUETES SONORAS..............118 FIGURA 17: ESQUEMA DE SOLDAGEM DOS FIOS NO DB 25................................................................118 FIGURA 18: DETALHE DO DB25 E DA ORDEM DE SOLDAGENS DOS FIOS.....................................118 FIGURA 19: TESTES REALIZADO COM O SISTEMA MAQUETE TÁTIL/MAPAVOX......................123 12 SUMÁRIO 13 INTRODUÇÃO O que me tranqüiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição. Clarice Lispector Este trabalho reúne resultados obtidos em uma pesquisa com maquetes táteis em duas unidades escolares em períodos distintos, realizada ao longo de seis anos (de 2000 a 2006). De agosto de 2000 a dezembro 20041, o estudo envolveu alunos cegos e de baixa visão que freqüentavam aulas nas Escolas Municipais Integradas de Educação Especial “Maria Aparecida Muniz Michelin - José Benedito Carneiro - Deficientes Auditivos e Deficientes Visuais - DA/DV”, localizada no município de Araras, interior do Estado de São Paulo. O nome da escola está no plural, mas trata-se de uma única unidade escolar que atende a alunos cegos, de baixa visão e surdos. No ano letivo de 2005, participaram do trabalho alunos normo-visuais2 de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental da Escola Estadual Heloisa Lemenhe Marasca, localizada no município de Rio Claro, interior de São Paulo. Na unidade especial, a pesquisa objetivava compreender como um grupo de alunos cegos e de baixa visão organiza os objetos no espaço, bem como averiguar como a utilização de material cartográfico tátil, em especial modelos em três dimensões (3D) representando ambientes do local vivido destes educandos, poderiam auxiliá-los na ampliação de seus conhecimentos geográficos. Este estudo foi desenvolvido com base na perspectiva não comparativa de resultados, ou seja, os resultados obtidos com os alunos cegos não eram comparados e/ou analisados com os obtidos com os alunos de baixa visão. Sendo assim, as 1 Este trabalho foi realizado durante o meu período de graduação no curso de Licenciatura em Geografia da Unesp- Campus de Rio Claro e teve como suporte de apoio os seguintes projetos: Elaboração de Material Didático de Geografia e Cartografia para Alunos Deficientes Visuais, realizado de agosto de 2000 a dezembro de 2002- sob a coordenação da Profa Dra Maria Isabel C. de Freitas –Unesp- Órgão de fomento: PROEX; Desenvolvimento de Dispositivos Robóticos integrando o Estudo de Cartografia Tátil e Geração de Material Didático para Portadores de Deficiência Visual, realizado de março de 2003 a dezembro de 2004, sob a coordenação do Prof. Dr João Vilhete D’Abreu da Unicamp- Órgão de fomento: FAPESP; Integração de Cartografia Tátil e o Sistema DOSVOX na Geração de Maquetes, realizado de março de 2003 a dezembro de 2004, sob a coordenação da Profa Dra Maria Isabel C. de Freitas –Unesp- Órgãos de fomento: FAPESP e FUNDUNESP. 2 O termo “normo-visual” (usado por Dias, 2005) é adotado para se referir às pessoas que não possuem significativas alterações na acuidade visual. 14 atividades na escola especial tiveram, desde seu início, dois eixos norteadores: o sistema sensorial de apreensão do mundo pelas crianças cegas e o sistema sensorial de apreensão do mundo pelas crianças de baixa visão. Por meio destes eixos, partiu-se da coleta e análise dos dados verificando se os conjuntos didáticos e as atividades desenvolvidas respeitavam as diferenças de percepção, organização do espaço, níveis de conhecimento escolar, maturação, idade em que adquiriram a deficiência e necessidades educacionais especiais dos alunos, ao mesmo tempo em que lhes ofereciam experiências diversificadas. As atividades e conjuntos didáticos também deveriam contribuir para a compreensão de como os alunos cegos e de baixa visão organizam os objetos no espaço, bem como proporcionar a valorização de suas habilidades, sem compará-los; gerar situações que contribuíssem para a ampliação de seus conhecimentos sobre o local vivido e promover momentos de integração entre estes educandos dentro da escola especial. O grupo de alunos da escola especial possuía características muito distintas relacionadas à idade, grau de escolaridade e de maturação, memória visual e idade em que adquiriram a deficiência. Portanto, primeiramente as atividades com maquetes eram aplicadas individualmente e depois coletivamente. Desde o início do trabalho na escola especial, buscou-se compreender e respeitar as distintas características dos alunos, procurando desenvolver material didático e atividades que atendessem às necessidades dos educandos, sem compará-los. Deve-se destacar o longo tempo destinado ao trabalho com este grupo de alunos: este fato permitiu conhecer detalhes de suas necessidades e habilidades, bem como os seus fatores geradores. O trabalho na escola especial durou 4 anos e 6 meses, nos quais acompanhei as aulas dos alunos cegos e de baixa visão 2 vezes por semana, em um total de 8 horas semanais. Em decorrência das características distintas dos alunos, o trabalho realizado teve como foco principal a flexibilidade, ou seja, as atividades e/ou material tátil gerado (principalmente maquetes) eram alterados em função dos resultados obtidos e das dificuldades e necessidades expressas pelos alunos ao longo do seu desenvolvimento e aplicação. Sempre que um aluno novo ingressava no projeto, eram desenvolvidas atividades com maquetes visando sua participação na pesquisa e sua integração com os colegas de classe. Havia ainda, em relação ao novo aluno, um trabalho de coleta de dados com os professores, coordenadora e direção da escola referentes às causas da perda da visão, às necessidades especiais do aluno, questões psicológicas, trabalho de mobilidade e reabilitação para o desenvolvimento de atividades da 15 vida diária como ler, escrever, caminhar, dentre outras. Dentre o material didático tátil gerado neste estudo, destaca-se a trama de micro- chaves para material didático e o software Mapavox, compatível com o Windows 95 ou superior, desenvolvido através de uma parceria entre pesquisadores do IGCE – Unesp, Rio Claro e do Núcleo de Computação Eletrônica (NCE) da UFRJ, Rio de Janeiro. A trama e o software formam um sistema denominado Maquete Tátil/Mapavox3, que permite inserir e disponibilizar informações sonoras em conjuntos didáticos, sejam estes táteis ou não. No contexto da pesquisa descrita, este sistema foi utilizado para inserir e disponibilizar informações sonoras em maquetes táteis. A trama, que pode conter no máximo 32 micro- chaves, foi distribuída em pontos específicos em duas maquetes táteis. Esta distribuição permitiu inserir e disponibilizar informações sonoras sobre objetos representados no entorno destes pontos. As informações eram emitidas ao serem apertadas as micro-chaves. Neste sentido, por meio da conexão da trama de micro-chaves a um computador equipado com o programa Mapavox, pode-se acionar os comandos necessários para a emissão de informações sonoras. A inovação deste sistema consiste no baixo custo da tecnologia empregada, na facilidade de operação do software Mapavox, nos métodos de construção e inserção dos circuitos sonoros nas maquetes e na quantidade de informações que podem ser inseridas e disponibilizadas em uma maquete sem saturá-la, principalmente se esta for destinada a alunos cegos. Os testes realizados com este sistema comprovaram que a curiosidade do individuo é aguçada: ao ouvir as informações disponibilizadas pelo acionamento da primeira micro-chave, este se sente estimulado a descobrir quais informações podem ser acionadas pelas outras micro-chaves. Outro fato importante é que o Programa permite a edição de sons, como voz humana e efeitos sonoros (barulho de chuva, animais, carro, etc.). A experiência adquirida com o sistema Maquete Tátil/Mapavox poderia ficar restrita ao meio acadêmico e à escola especial em questão se os métodos de construção da trama de micro-chaves e o programa Mapavox não fossem compatíveis com a realidade das escolas regulares. Esta hipótese foi elaborada com base no fato das maquetes táteis, a trama de micro- chaves e a gravação dos sons no programa Mapavox terem sido construídos pelos seus idealizadores em laboratórios da Unesp - Campus de Rio Claro e UFRJ e utilizados por alunos cegos e de baixa visão sob minha orientação. Outro fato importante que motivou a realizar o 3 O esquema detalhado de funcionamento do sistema Maquete Tátil/Mapavox está no CD que acompanha esta Dissertação. 16 trabalho em uma escola regular foi a reestruturação da função da escola especial, deixando de ser escola de reforço e passando a ser escola de Ensino Fundamental. Ao se tornar escola de Ensino Fundamental, não pode mais atender alunos de outros níveis de ensino. Neste sentido, havia a necessidade de verificar a viabilidade de desenvolvimento e uso deste sistema por alunos e professores de uma escola regular para que ele não ficasse restrito à academia. Por este motivo, foi desenvolvido um trabalho de construção de maquetes táteis munidas de micro- chaves conectadas ao Mapavox com alunos de 5ª e 6ª séries da EE. Heloisa Lemenhe Marasca, localizada no município de Rio Claro-SP, cujo objetivo foi verificar se os procedimentos de construção das micro-chaves, do uso do programa Mapavox e dos materiais usados na trama de micro-chaves e nas maquetes táteis eram compatíveis com a realidade de nossas escolas públicas. Embora este trabalho envolvesse maquetes táteis e um sistema inicialmente avaliado por alunos cegos e de baixa visão, não se objetivava aplicar na escola regular os mesmos métodos usados com o grupo de alunos cegos e de baixa visão para ampliação de seus conhecimentos geográficos. Este procedimento se justifica pelo fato dos grupos usarem formas distintas para organizarem os objetos no espaço e, embora possam usar material didático em conjunto em aulas integradas, estes se distinguem entre si na forma de explorar, conhecer e adquirir conhecimentos geográficos. Nesse sentido, o trabalho de maquetes sonoras com os alunos normo-visuais teve como eixo norteador o sistema sensorial de apreensão do mundo pelas crianças normo-visuais. Por meio deste eixo, partiu-se da coleta e análise dos dados obtidos na escola regular, verificando se o sistema Maquete Tátil/Mapavox e se as atividades desenvolvidas estavam de acordo com a forma de organização espacial do grupo de alunos, com seus níveis de conhecimento escolar e maturação e se o sistema era compatível com a realidade de trabalho desta unidade escolar. Observou-se, assim, a facilidade de acesso ao material necessário para a construção das maquetes e da trama e se o uso do programa Mapavox era compatível com os computadores disponibilizados na sala de informática da escola regular, bem como se os conteúdos abordados durante o trabalho de construção das maquetes estavam de acordo com o planejamento do professor e, principalmente, com a forma dos alunos utilizarem o conhecimento adquirido e as etapas de construção das maquetes para ampliarem seus conhecimentos. 17 Neste sentido, o objetivo central desta Dissertação de Mestrado é apresentar a experiência adquirida em duas unidades escolares, com públicos distintos, utilizando um mesmo sistema: Sistema Maquete Tátil/Mapavox. Destacam-se, ainda, os seguintes objetivos específicos: a) Apresentar uma discussão sobre como o cego, congênito ou não, utiliza mecanismos diferentes das pessoas normo-visuais e de baixa visão para organizar os objetos no espaço; b) Apresentar um referencial teórico sobre etapas dos desenvolvimentos motor e cognitivo de crianças cegas, tendo como base autores que realizaram seus estudos partindo do próprio sujeito cego, sem compará-lo às pessoas dotadas de visão; c) Discutir o fato de que a adaptação de material didático de Cartografia para pessoas cegas, ou de baixa visão, não consiste simplesmente em substituir cores por texturas, efetuar contornos em relevo e/ou inserir informações em braille e em escrita convencional ampliada, assim como a abordagem de conteúdos de Geografia e Cartografia não podem ter como único referencial a percepção e a organização espacial de pessoas que enxergam. Este documento é composto por 5 capítulos e um Volume II. No primeiro, apresenta- se um léxico que permita a identificação de alguns termos específicos relacionados à Nomenclatura Oftalmológica e aos conceitos educacionais sobre deficiência visual. Neste capítulo também, discute-se a idéia de que não há uma compreensão clara e definida do que sejam pessoas com baixa visão e de suas reais necessidades e de como percebem e organizam os objetos no espaço. Ao final, apresentam-se considerações a respeito de opiniões de autores consagrados na área da Psicologia, sobre a análise comparativa de resultados do desenvolvimento físico, psíquico, social, dentre outros, de pessoas cegas com pessoas normo- visuais ou de baixa visão. No segundo capítulo, desenvolve-se uma discussão sobre os quatros sentidos utilizados pelos cegos, bem como os desenvolvimentos motor e cognitivo de crianças cegas congênitas. Procura-se deixar de lado o “visuocentrismo” e discutir o desenvolvimento do cego e sua relação com o espaço a partir da própria cegueira. Neste sentido, a discussão teórica é 18 complementada com trechos de relatos de experiências práticas vivenciadas por pessoas cegas. No terceiro capítulo, abordam-se considerações sobre representações espaciais, os estudos sobre a produção de documentos cartográficos táteis e as pesquisas sobre linguagem gráfica tátil. Apresentam-se, assim, dados sobre uma importante pesquisa realizada por Rowell e Ungar (2003a e 2003b) que buscaram coletar informações sobre os objetivos, perpectivas, materiais, finalidades, símbolos e produção de mapas táteis em âmbito internacional. Em relação à produção e uso de documentos cartográficos táteis no Brasil, apresenta-se o levantamento realizado das publicações nacionais na temática. No quarto capítulo, apresenta-se a caracterização da escola especial e do grupo de alunos deficientes visuais que participou da pesquisa. Apresenta-se os materiais, as técnicas, os métodos, os resultados e as análises do estudo sobre a organização espacial dos alunos deficientes visuais que participaram da pesquisa. Neste capítulo discute-se, ainda, a utilização de maquetes das salas de aula para a descentralização do corpo dos alunos cegos como referência para se localizarem e se deslocarem no ambiente, assim como as atividades estimularam os educandos a elaboraram representações por Organização Configuracional e/ou por Organização de Rotas, contendo informações de aspectos pessoais e comuns. O quinto capítulo apresenta-se as ferramentas disponibilizadas no programa Mapavox, os materiais e métodos de construção da trama de micro-chaves, que permitem a conexão de conjuntos didático a um computador equipado com o programa. Apresenta-se, ainda, os materiais, os métodos, os resultados e as analises da experiência obtida com a utilização do Sistema Maquete/Tátil Mapavox por alunos cegos, de baixa visão e normo- visuais e como esta experiência indicou que o sistema de apreensão de pessoas deficientes visuais se difere das normo-visuais. Além disso, esta Dissertação é composta de um Volume II denominado A vivência em uma escola para deficiente visuais, cujo objetivo é mostrar algumas das atividades e material didático tátil observados na escola especial de Araras-SP. O conteúdo apresentado refere-se a métodos, atitudes, informações e material didático destinados ao alunos deficientes visuais da escola em questão. Neste sentido, este volume complementa algumas das informações discutidas neste trabalho. 19 Finaliza-se esta introdução com a ressalva de que este trabalho não pretende questionar ou criticar os motivos de educadores e pesquisadores na busca de procedimentos e material didático tátil que auxilie as pessoas cegas a desenvolver e organizar suas percepções do mundo. Pretende-se aqui apresentar uma discussão que englobe relatos de atividades práticas vividas em dois ambientes distintos com um fundamento teórico que permita a reflexão sobre como os deficientes visuais organizam suas percepções de mundo. 20 Cap.I. DEFICIÊNCIA VISUAL: esclarecimentos e reflexões 1. Cegueira O tema discutido neste trabalho requer, primeiramente, um léxico que permita a identificação de alguns termos específicos relacionados à Nomenclatura Oftalmológica e a conceitos educacionais sobre deficiência visual. O termo deficiência visual engloba pessoas cegas e pessoas de baixa visão. A identificação dos deficientes visuais baseia-se no diagnóstico oftalmológico e consiste na acuidade visual medida pelos oftalmologistas (Amiralian, 2004). Acuidade visual é a capacidade de discriminação de formas, medida por Oftalmologistas por meio de apresentações de linhas, símbolos ou letras em tamanhos diversificados. A pessoa com baixa acuidade visual apresenta dificuldades para perceber formas, seja de perto, longe, ou em ambas as situações (SOUZA, et al., 2005). O conceito médico de cegueira centra-se na capacidade visual apresentada pelo sujeito depois de aplicados todos os métodos de tratamentos cirúrgicos e correções ópticas possíveis. Até a década de 70, o encaminhamento para o ensino pelo método braille tinha como base o diagnóstico médico, entretanto a constatação de que muitos alunos considerados cegos utilizavam a visão e não o tato para lerem o braille, ocasionou uma reformulação do conceito de cegueira. Neste sentido, além do diagnóstico médico, atualmente especialistas da área da Educação, Psicologia, dentre outras, analisam como o sujeito utiliza a sua acuidade visual para perceber o mundo e qual sentido adota para a leitura em braille. Desta forma, são considerados “cegos” aqueles que não conseguem ler o braille por meio da visão e para quem o tato, o olfato e a sensibilidade cutânea4 são os sentidos primordiais na apreensão do mundo externo (AMIRALIAN 1997). As pessoas cegas apresentam acuidade visual, geralmente, igual ou menor que 20/200 (0,1) – ou seja, enxergam a 20 pés de distância aquilo que o sujeito com visão “normal” enxerga a 200 pés - no melhor olho, com a melhor correção óptica. Dias (1995), ressalta que 4 Sensibilidade cutânea são sentidos cujos receptores se encontram situados na pele. 21 de 0,1 até 0,0 há uma linha contínua que se denomina “cegueira legal”. Neste intervalo, podem-se distinguir os seguintes tipos de cegueira: � Percepção luminosa: distinção entre a luz e o escuro; � Projeção luminosa: distinção da luz e do lugar donde emana; � Percepção de vultos: visão de dedos; � Percepção de formas e cores: visão de dedos. O Ministério da Educação (MEC) no documento Séries Atualidades Pedagógicas 6 - Deficiência Visual - Volume I, ressalta que, do ponto de vista educacional, deve-se evitar o conceito de cegueira legal, devendo este ser utilizado apenas para fins sociais, por não revelar o potencial visual útil para execução de tarefas da “vida diária” como ler, cozinhar, caminhar na rua, dentre outros. Neste documento, o MEC destaca ainda como possuidoras de cegueira, as pessoas que apresentam desde ausência total de visão até a perda da projeção de luz e cujo processo de aprendizagem ocorre por meio dos sentidos tato, audição, olfato e paladar e que utilizam o Sistema Braille como principal meio de comunicação escrita. Em 1992, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Conselho Internacional de Educação de Deficientes Visuais (ICEVI) salientaram que o desempenho visual é mais um processo funcional do que simples expressão numérica da acuidade visual, propondo o termo “baixa visão” para se referir aos sujeitos que possuem significativa alteração da capacidade funcional da visão e que não são considerados cegos. Neste sentido, este termo é definido como o comprometimento do funcionamento visual em ambos os olhos, mesmo após tratamento e ou correção de erros refracionais comuns, guardando as seguintes classificações: � acuidade visual inferior a 0,3 até percepção de luz; � campo visual inferior a 10º do seu ponto de fixação; � capacidade potencial de utilização da visão para o planejamento e execução de tarefas (MEC, sd). Ainda segundo o Ministério da Educação os critérios visuais incluídos nessa definição seguem a Classificação Internacional das Doenças (CID), por isso não devem ser utilizados para elegibilidade de educação ou reabilitação sem incluir dados de avaliação de outras 22 funções visuais consideradas importantes, como sensibilidade aos contrastes e adaptação à iluminação. Neste sentido, o MEC recomenda uma avaliação clínico-funcional realizada por oftalmologistas e pedagogos especializados em baixa visão, levando em consideração a avaliação clínica da acuidade visual para perto e longe, do campo visual, da sensibilidade aos contrastes, diagnóstico e prognóstico, visão de cores e a prescrição e orientação de recursos ópticos especiais. Amiralian (2004) destaca que até a década de 70 no Brasil, o termo “visão reduzida” era utilizado para se referir às pessoas com baixa visão. Este termo foi adotado com o intuito de mudar o foco da cegueira para a visão, demonstrando uma valorização do resíduo visual pelos especialistas. Com o passar do tempo, especialistas propuseram a utilização do termo “visão subnormal” em substituição ao termo “visão reduzida”. Esta terminologia é uma tradução do termo “low vision” usado por Barraga (1964) e é muito utilizada inclusive em documentos oficiais, no entanto, para a autora, esta terminologia está em processo de transformação. Os especialistas preferem utilizar o termo “baixa visão”, por acreditarem que este minimiza o preconceito que o termo visão subnormal pode provocar. Outra dificuldade da terminologia ocorre em referência às pessoas que não possuem significativa alteração da capacidade funcional da visão. Estas pessoas são consideradas com acuidade visual suficiente para a apreensão do ambiente e alfabetização em escrita convencional com pouca ou nenhuma dificuldade. O termo usualmente encontrado na literatura em questão é “vidente”. No entanto, deve-se destacar que no dicionário da Língua Portuguesa a palavra “vidente” refere-se à pessoa que tem visões sobrenaturais das coisas divinas ou que pretende ter um poder supranormal de conhecer acontecimentos passados ou futuros e descobrir coisas ocultas. Ventorini, Freitas, Borges e Takano (2005, 2006), para evitarem a ambigüidade deste termo, utilizam os termos “visão normal” e “pessoa que enxerga”. A palavra “normal”, geralmente, é apresentada entre aspas para minimizar interpretações preconceituosas que possa ocasionar. Dias (2005), em sua obra denominada Ver, Não Ver e Conviver, utiliza o termo “normo-visual” para se referir às pessoas que não possuem significativas alterações na acuidade visual. Diante da falta de um termo específico no Brasil para designar este grupo de pessoas, optou-se neste trabalho por utilizar o termo “normo-visual” para designar os sujeitos que não possuem alterações significativas de acuidade visual. 23 2. Baixa visão Como já definido, são consideradas pessoas com baixa visão aquelas que possuem significativa alteração da capacidade funcional do canal visual, que não pode ser corrigida por tratamentos clínicos e/ou correções ópticas convencionais. Para Carvalho et al. (2002), funções visuais como acuidade visual, adaptação à luz e/ou ao escuro, campo visual e percepção de cores, podem ser comprometidas em sujeitos de baixa visão. O comprometimento destas funções depende do tipo de patologia apresentada, isto é, do tipo de estrutura ocular que possui a lesão. As patologias podem ser: a) Congênitas: catarata, glaucoma, atrofia, etc; b) Adquiridas: degeneração senil de mácula, traumas oculares, dentre outras. Os problemas visuais geram dificuldades para locomoção e orientação espacial, bem como para a realização de tarefas da “vida diária” como ler, assistir televisão, cozinhar, caminhar na rua, operar computador, brincar com jogos eletrônicos visuais (videogame, jogos para computadores, etc.), dentre outras. A função visual para a realização destas tarefas pode ser melhorada por meio do uso de auxílios ópticos ou não-ópticos como adequação de luz, aumento do contraste de cores, ampliação de letras, etc. (Carvalho et al. 2002). O comprometimento das funções visuais, os métodos e aparelhos utilizados para o melhoramento da visão afetam, muitas vezes, o desenvolvimento psíquico do sujeito, com ênfase ao desenvolvimento afetivo-emocial. Este fato é gerado, principalmente, pela maneira como a pessoa de baixa visão é tratada pela sociedade. Os aparelhos ópticos utilizados por pessoas de baixa visão, quase sempre, se diferem também na sua forma, estrutura, tamanho, dentre outras características, dos óculos convencionais, o que contribui para que a criança tenha dificuldades de se relacionar com outras pessoas. Para Amiralian (2004), a falta de identificação dessas crianças como sujeitos de baixa visão e o deslocamento de seu déficit visual para outras áreas, dificultam sua educação e a formação de sua personalidade. Para a autora, as pessoas com baixa visão, às vezes, são tratadas com pessoas cegas e em outros momentos como pessoas normo-visuais. Neste 24 sentido, ainda não há uma compreensão clara e definida do que sejam pessoas com baixa visão, quais as suas reais necessidades e de como estas pessoas percebem e organizam os objetos no espaço. A baixa visão é considerada uma dificuldade visual de graus variáveis, que causa incapacidade funcional e diminuição do desempenho visual. [...] esta incapacidade não está relacionada apenas aos fatores visuais, mas é influenciada pela reação das pessoas à perda visual, e aos fatores ambientais que interferem em seu desempenho. Esses conceitos, embora clinicamente claros e concisos, não informam como a criança vê o mundo. Falam sobre os limites do que considerar como visão subnormal, mas não conduzem a uma compreensão clara de como a criança enxerga, ou seja, de que maneira as pessoas com baixa visão apreendem o mundo externo e de que maneira essas pessoas organizam ou reorganizam a sua percepção. A falta de clareza sobre o que realmente significa enxergar menos leva a uma fragilidade do conceito que identifica o que é e como se constitui a pessoa com baixa visão (AMIRALIAN, 2004 p. 21). O ingresso do aluno com baixa visão na escola regular exige que providências específicas sejam tomadas por parte da direção e professores a fim de lhe fornecer condições adequadas com suas necessidades para aprendizagem. Geralmente estes alunos, para lerem e escreverem, precisam usar recursos diferentes dos demais alunos, necessitam de ações pedagógicas específicas, precisam de adaptações e complementações curriculares, tais como a adequação do tempo, espaço, modificação do meio e de procedimentos metodológicos e didáticos. Os processos de avaliação também devem ser preparados de acordo com as suas necessidades (FANELLI, 2003). Para Carvalho et al. (2002), os principais fatores que dificultam a integração de um aluno com baixa visão na escola são a aceitação e a flexibilidade, por parte de professores, das suas reais necessidades, limitações e habilidades. A falta de informações sobre as diversas características que podem apresentar pessoas com baixa visão, leva pais e professores, quase sempre, a classificá-los como cegos ou como normo-visuais, ignorando assim sua verdadeira capacidade visual. A ausência da identificação em um grupo específico pode ocasionar dificuldades de construção da personalidade por parte destes sujeitos. Esta ausência de identidade provoca os seguintes questionamentos: quem sou eu?; sou cego?; mas eu enxergo?; sou normo-visual?; mas por que outros são capazes de perceber coisas que eu não percebo? (AMIRALIAN, 2004). A incerteza sobre si mesma leva a criança a desenvolver uma auto-imagem negativa, 25 uma dependência do ambiente e das pessoas à sua volta e a um alto nível de ansiedade. O fato de suas necessidades nem sempre serem satisfeitas pela sociedade é um elemento a mais colaborando para dificultar sua identidade pessoal. O fato central que deve ser compreendido por todos é que, na realidade, elas não são nem cegas nem pessoas normo-visuais, são crianças que precisam construir uma identidade como pessoas com baixa visão (AMIRALIAN, 2004). As necessidades educacionais de locomoção e orientação espacial e para a realização de atividades da vida diária de que uma pessoa de baixa visão precisa dependem do tipo de patologia que possui. Neste sentido, estas necessidades não são iguais para todos os indivíduos deste grupo. Carvalho et al. (2002), ressaltam que sensibilidade à luz (fotofobia), dor de cabeça constante, estrabismo (caolho), nistagmo (dificuldade para fixar os olhos em um ponto devido ao tremor dos olhos), franzir de pálpebras, lacrimejamento, desatenção em classe, constantes tropeços e trombadas com objetos, hábito de aproximar-se exageradamente de cadernos e livros, pender da cabeça para o lado para realizar leituras e dificuldade para distinguir cores ou enxergar na lousa, são sinais que indicam que uma pessoa pode ter problemas visuais. Para os autores, pais e professores devem observar estas características nas crianças e, ao perceberem algum destes sinais, devem procurar auxílio de um oftalmologista para verificar se a criança apresenta baixa visão. No livro Visão Subnormal: orientações ao professor do Ensino Regular, Carvalho at al. (2002) sugerem atitudes por parte de professores, adaptações em salas de aula e materiais que podem contribuir para amenizar as dificuldades visuais de alunos com baixa visão. Para os autores, os principais fatores que dificultam a integração de um aluno de baixa visão na escola são: a não aceitação, o não reconhecimento e a não flexibilidade do professor à limitação visual do aluno. Há atitudes simples por parte deste profissional que podem contribuir significativamente para a integração destes alunos no ambiente escolar como: a valorização e estimulação verbais em relação aos acertos do aluno, já que as expressões faciais e gestos, à distância, nem sempre são vistos por ele, busca de informações sobre o tipo de auxilio óptico que o aluno usa e estímulo ao seu uso, estar ciente de que, para algumas patologias que afetam o canal visual, o uso de recursos ópticos são inúteis e que, nestes casos, se devem buscar material e adequações no ambiente, que auxiliem o aluno. Sobre as adequações no ambiente, Carvalho et al. (2002) ressaltam que estas podem ser obtidas por meio do controle da luz, por exemplo, aumentando-se a iluminação com focos 26 luminosos para leitura, realizando a transmissão da luz com o auxílio de lentes absortivas e filtros que diminuem o ofuscamento e aumentam o contraste. Outras recomendações dos autores referem-se à leitura na lousa, leitura de perto e escrita. Em relação à leitura na lousa, os autores recomendam que o aluno esteja na primeira carteira na fileira do centro, isto é, bem em frente à lousa. No entanto, se o aluno enxerga menos de um olho, deverá sentar-se mais à direita ou à esquerda da sala, dependendo do olho que enxerga menos. Se o aluno usar algum aparelho óptico para longe, deverá sentar-se a uma distância fixa da lousa - esta distância é recomendada geralmente pelo oftalmologista que receitou o recurso óptico. O professor também deve permitir que o aluno se levante e se aproxime da lousa sempre que necessário. Cada pessoa tem sua própria distância focal, que está diretamente relacionada com o nível de acuidade visual e o tipo de auxílio óptico utilizado. Neste sentido, a aproximação do material de leitura dos olhos não prejudica a visão, apenas possibilita uma ampliação do tamanho da imagem. Deve-se ressaltar que quanto maior for o grau da lente, menor a distância focal, por isso mais próxima deverá ser para a distância de leitura. No mercado, há suportes de leitura do tipo prancheta, que elevam o material a distância e posição adequadas, permitindo uma postura para a leitura e escrita não prejudicial à saúde (por exemplo podendo evitar problemas de coluna) (CARVALHO, et al., 2002). Amiralian (2004), ressalta que muitos estudos e pesquisas vêm sendo desenvolvidos nas áreas médica e educacional sobre o tema baixa visão. Para a autora, a partir da década de 80, são encontrados diversos trabalhos acadêmicos com questões referentes ao melhor uso do resíduo visual e sobre a educação das crianças com baixa visão. Constata-se, assim, que houve, por parte dos especialistas, uma tentativa de mudança do foco da cegueira para o da possibilidade de ver. Todavia, verifica-se que o desenvolvimento de trabalhos e pesquisas ficou centrado nas áreas dos conhecimentos médico, pedagógico e tecnológico. Estudos e pesquisas sobre os efeitos dessa condição no desenvolvimento psíquico do ser humano, sobre as dificuldades afetivo-emocionais, desenvolvimento cognitivo e de como apreendem o mundo externo e organizam ou reorganizam a sua percepção de mundo, ainda carece de reflexões. Estas pesquisas não podem ter como referenciais pessoas normo-visuais, bem como cegos - faz-se necessário desenvolver estudos a partir da pessoa de baixa visão, considerando seu grau de perda visual, a patologia que a causou, suas necessidades ópticas, educacionais e de adequação de ambientes. É importante ressaltar que as questões abordadas neste tópico foram observadas ao 27 longo da experiência na escola especial de Araras-SP. O fato, por exemplo, dos alunos de baixa visão ora serem tratados como normo-visuais, ora como cegos resultando, muitas vezes, no não atendimento de suas necessidades para a realização de atividades da vida diária, gerou o interesse pelo aprofundamento das discussões aqui contidas. No entanto, na busca de referencial teórico sobre como estes sujeitos percebem e organizam os objetos no espaço, notou-se a escassez de estudos sobre este tema. Neste sentido, é necessário que sejam realizadas pesquisas que tenham como ponto de partida a compreensão dos desenvolvimentos motor e cognitivo, considerando as reais necessidades e habilidades destes sujeitos, assim como os tipos de patologias5 e danos por elas geradas. Destaca-se, ainda, que muitas pesquisas, na Psicologia, sobre deficiência visual são, muitas vezes, desenvolvidas sob o enfoque comparativo: compara-se o desempenho e/ou desenvolvimentos motor e cognitivo dos deficientes visuais com os de sujeitos normo-visuais. Por isso, faz-se necessário apresentar uma discussão sobre tendências e investigações comparativas. 3. Tendências de investigações Na literatura pesquisada observa-se uma tendência de investigações comparativas, isto é, compara-se o desempenho e/ou desenvolvimento de crianças cegas ao de crianças normo- visuais. De acordo com esta abordagem, os indivíduos cegos aparecem, quase sempre, em desvantagem. Outra questão é a elaboração de condições experimentais delimitadas, que geram resultados mensuráveis em que se propõem aos sujeitos tarefas a serem executadas em situações de teste e re-teste, com resultados analisados quantitativa e qualitativamente. Na análise comparativa é comum vendar os olhos dos sujeitos com visão (total ou parcial) para comparar seus desempenhos com sujeitos totalmente desprovidos de visão, como se apenas a venda nos olhos tornasse um indivíduo cego (SILVA LEME, 2003, AMIRALIAN, 1997, WARREN 1994, SANTIN E SIMMONS, 1996). Neste sentido, faz-se necessário, antes de discorrer sobre as etapas dos desenvolvimentos sensório motor e cognitivo de crianças cegas, tecer algumas considerações a respeito das reflexões de autores respeitados da área da 5 Mais detalhes sobre as patologias constam no volume II desta Dissertação 28 Psicologia sobre a análise comparativa de resultados relativos aos desenvolvimentos físico, psíquico, social, dentre outros, da pessoa cega. Os estudos sobre os desenvolvimentos sensório-motor e cognitivo e a relação destes com a percepção, organização e representação espacial por crianças normo-visuais têm como fatores de influência principal a pesquisa de Jean Piaget. Deve-se ressaltar que o intuito não é apresentar uma discussão aprofundada sobre o trabalho deste autor - a referência a ele ocorre em decorrência de trabalhos na área da Psicologia que indicam a necessidade de estudos mais aprofundados para a compreensão do desenvolvimento da criança cega. Este alerta ocorre com base na afirmação de que a Teoria do autor foi elaborada a partir de estudos envolvendo crianças normo-visuais, o que atribui ao canal visual suma importância, o que confere grandes desvantagens aos cegos. Para Vigotski (2000), os trabalhos de Piaget estabeleceram uma nova abordagem no estudo do desenvolvimento da teoria da linguagem e do pensamento infantil, quando se opõem às tendências antes dominantes. Enquanto a Psicologia tradicional caracterizava negativamente o pensamento infantil enumerando sua lacuna e deficiências, o autor buscou apresentar aspectos positivos deste pensamento. No entanto, os estudos de Piaget foram realizados com crianças normo-visuais e o canal visual desenvolve papel fundamental em sua pesquisa. A respeito disto, Silva Leme (2003, p. 13) afirma: Observa-se que o referencial teórico que norteia as pesquisas, de maneira geral, são as concepções de Piaget, como assinalado por Amiralian (1995). Esta autora salienta que a teoria piagetiana foi elaborada a partir da observação de crianças normais, com a função visual preservada, e atribuiu à visão importância fundamental na construção das estruturas cognitivas; assim, com base nesse referencial, a ausência visual impõe, além da limitação perceptiva, restrições motoras, o que constituiria limitação muito grave e talvez insuperável. Tendo em vista esse referencial, muitos estudos investigaram o desempenho de crianças cegas em tarefas de conservação, classificação, permanência do objeto, constituição de imagens mentais (Paivio & Okovita, 1971; Marmor & Zaback, 1976; Johnson, 1980; Anderson, 1984; Wagner-Lampl & Oliver, 1988; Tait, 1990; Bigelow, 1990; Hoz & Alon, 2001). Parte das pesquisas relata atrasos das crianças cegas em comparação às videntes, outras não encontram resultados que sugiram essa conclusão. Em sua pesquisa sobre a representação espacial em crianças cegas congênitas, Silva Leme (2003) adota uma perspectiva de análise não comparativa entre crianças cegas, normo- visuais e de baixa visão. A autora ressalta que a Teoria de Vygotsky apresenta fatores 29 positivos nos estudos de crianças cegas, por desenvolver a idéia de que a cegueira, assim como outras deficiências, pode promover uma reorganização completa no funcionamento psíquico. Neste sentido, os atrasos nos desenvolvimentos sensório-motor e cognitivo de crianças cegas não ocorrem devido à cegueira, mas por falta de experiências diversificadas que permitam ao cego ter acesso a aspectos importantes da cultura na qual se insere. Como exemplo, cita-se o braille que permite ao cego o acesso à linguagem escrita. Para Vygotsky, as fontes da compensação para o cego estão na linguagem, na experiência social e na relação com os normo-visuais. Por meio da linguagem, o cego pode ter acesso às significações da cultura e participar das práticas sociais. Assim, as relações sociais são de fundamental importância para a criança cega superar o impedimento orgânico e seguir o curso de seu desenvolvimento cultural. Silva Leme (2003), destaca, ainda, a importância fundamental que as interações sociais têm nas fases do desenvolvimento nos primeiros anos da infância, como estas ocorrem de forma rápida e podem misturar-se ou alternar-se sem seguir necessariamente uma seqüência pré-determinada. A pesquisadora tem como base para esta afirmação o trabalho de Wallon (1968). Para o autor, no início do período sensório-motor, o comportamento da criança é principalmente dirigido às outras pessoas e a emoção desempenha, nesta fase, papel fundamental, na medida em que promove reações convergentes e complementares entre a criança e as pessoas à sua volta. A atenção da criança é dirigida para as pessoas e ao mesmo tempo suas expressões emocionais, como o sorriso e choro atraem a atenção do meio. Aos seis meses de idade o bebê já tem todo o sistema das principais emoções e se integra ao ambiente no sentido em que expressa emoções, estabelecendo assim um elo, uma fusão, com esse ambiente (SILVA LEME, 2003). A importância social destacada por Vygotsky e a importância das relações emocionais ressaltada por Wallon, apresentam grande afinidade com a teoria de David Warren, autor de suma importância no estudo do desenvolvimento de crianças cegas. Este autor realizou revisões de literatura importante sobre o tema (1977 , 1994) realizando uma abordagem “sob uma perspectiva inovadora em relação à pesquisa mais tradicional”. (SILVA LEME, 2003) As considerações de Silva Leme sobre as teorias de Vygotsky e de Wallon6 vêm ao encontro também das afirmações de Veiga (1983), Cutsforth (1969), Dias (1995), Santin e 6 Neste trabalho não foi aprofundada a discussão sobre a utilização das teorias de Wallon e Vygotsky para estudar os desenvolvimentos sensório-motor e cognitivo de crianças cegas, por acreditar que este estudo demandaria uma pesquisa aprofundada das obras destes autores. 30 Simmons (1977), Amilarian (1997), Caiado (2003) e Soler (1999), dentre outros, que atribuem fundamental importância às relações emocionais, sociais e culturais para o desenvolvimentos sensório-motor e cognitivo de crianças cegas. Estes autores também ressaltam que os atrasos em etapas deste desenvolvimento ocorrem por falta de experiência e não por causa da cegueira, gerando assim uma abordagem positiva em relação ao desenvolvimento das crianças. Apesar de Piaget não ter realizado estudos com crianças cegas, Gottesman (apud AMILARIAN, 1997 p. 39), indica que em uma conferência na Universidade de Colômbia, Piaget afirmou: Bebês cegos, têm grande desvantagem por não poderem fazer a mesma coordenação no espaço que as crianças normais são capazes durante os dois primeiros anos de vida; assim, o desenvolvimento da inteligência sensório-motora e a coordenação das ações neste nível são seriamente impedidos na criança cega. Por esta razão, achamos que há um grande atraso em seu desenvolvimento no nível do pensamento representacional, e a linguagem não é suficiente para compensar a deficiência na coordenação das ações. O atraso, é naturalmente, posteriormente compensado, mas ele é significante e muito mais considerável do que o atraso no desenvolvimento da lógica nas crianças surdas mudas (p. 94). Sobre esta afirmação de Piaget, Amiralian (1997) ressalta que não se pode esquecer que a teoria do autor foi elaborada a partir da observação de crianças normo-visuais. A autora destaca, ainda, que estudos, trabalhos e pesquisas desenvolvidos sobre o enfoque piagetiano procuraram compreender como a criança cega apreende o mundo, constrói a realidade, adquire os conceitos de objeto, causalidade, espaço e tempo e que, apesar da grande contribuição que trouxeram, deve-se considerar que foram realizadas nas referidas perspectivas: Nas pesquisas piagetianas, o procedimento mais comum foi a constituição de grupos experimentais e de controle: grupos de cegos congênitos, videntes e videntes vendados, pareados quanto à idade, sexo, condições socioeconômicas e familiares. Os resultados do desempenho dos três grupos foram comparados e analisados. As pesquisas tiveram por objetivo analisar o desenvolvimento das crianças cegas congenitamente quanto ao desempenho em tarefas de conservação, classificação, formação e desenvolvimento de imagens mentais, e conceituação de objetos. Enquanto alguns destes estudos encontravam resultados que apontam para um atraso dos cegos nestas atividades, outros divergiram quanto a estas conclusões AMIRALIAN, 1997, p 41). 31 A análise da autora indica que os resultados destas pesquisas, embora apontem que a função cognitiva das crianças cegas desenvolve-se lentamente, podendo levar a alguma quebra no desenvolvimento entre os aspectos operacional e simbólico do seu pensamento, demonstram divergências nos resultados dos diferentes pesquisadores, o que ocasiona dúvidas quanto a afirmativa acima. Destaca-se ainda que, embora as pesquisas dentro do referencial piagetiano - que trabalham dentro de um construto teórico e pesquisam o pensamento lógico, utilizando uma perspectiva comparativa entre o desempenho de cegos e normo-visuais de olhos vendados, como se o processo de ambos fossem idênticos - tragam ricas contribuições pelas análises efetuadas, não parecem ser suficientes para a compreensão dos sujeitos cegos. Ochaíta e Espinosa (2004) também abordam as questões sobre a utilização da teoria piagetiana para o estudo de crianças cegas. As autoras citam as pesquisas de Bigelow (1986), Rogers e Puchalsky (1988). Estes autores estudaram o desenvolvimento da apreensão de objetos físicos nos cegos por meio da adaptação da teoria piagetiana às características destas crianças: As diferenças perceptivas entre o sistema visual, por um lado, e os sistemas tátil e auditivo, por outro, não aconselham a análise do desenvolvimento dos cegos de perspectivas visuocentristas. Quando a visão falta ou está gravemente prejudicada, é difícil para as crianças elaborar um universo de objetos permanentes, sobretudo daqueles que não estão em contanto com sua mão. Portanto, as crianças cegas, construirão, em primeiro lugar, a permanência dos objetos táteis e serão capazes de procurar os objetos com os quais tenham tido uma experiência tátil suficiente. Somente a partir do segundo ano de vida, uma vez que consigam alcançar com as mãos os objetos sonoros, começarão a coordenar as imagens táteis e auditivas e, conseqüentemente, a procurar os objetos pelo som que emitem (Ochaíta e Espinosa, 2004, p. 157). David Warrem - que em sua obra intitulada Blindness and Early Childhood Development (1977 e 1984, 2 ed.) analisa o desenvolvimento da criança cega sob uma perspectiva comparativa com o desenvolvimento de crianças normo-visuais - revê, em 1994, sua posição por meio do livro Blindness and Children: an individual differences approach. Nesta obra, o autor assume uma crítica em relação às pesquisas que avaliam o desempenho de crianças cegas pela média, tendo como referência a norma para crianças normo-visuais. No prefácio desta obra o autor comenta: 32 Ten years have passed since 1984, when my previous book on blindness and children, Blindness and Early Childhood Development, was published. Those ten years have seen a welcome surge of research on children with visual impairments, and that is reason enough to write a sequel. But Blindness and Children: an individual differences approach is not a sequel. It takes an entirely different approach to analyzing the research literature. As the title suggests, this analysis and summary of the literature is based on the premise that it is the variation within the population of children with visual impairments that we should be studying, not the norm. I believe that a truly useful body of research-based knowledge about this population must focus not on the norm, or the usual, but on the unusual. It should focus on children whose development is unusually advanced and on those whose development is unusually delayed. It should focus on the factors in those children’s experience that have caused their development to vary in a positive or negative direction. Only with that kind of knowledge base will we be prepared to intervene in the live of children with visual impairments in order to allow them to achieve their optimal potential. Assim como Warren que revê sua posição, outros estudos nos âmbitos nacional e internacional dentro da Psicologia vêm indicando que, se ocorrem atrasos no período sensório-motor de bebês cegos congênitos em relação aos normo-visuais, estes são gerados pelos diferentes estímulos que cada grupo recebe para se desenvolver e/ou pelas condições em que foram realizadas as pesquisas. Nesse sentido, os estudos apontam que os estudos sobre os diversos temas que envolvem os sujeitos cegos devem ter como referência as características que os envolvem e não as características das pessoas normo-visuais. Neste sentido, os estudos destes dois grupos dependem das condições de coleta e análise de dados, sendo que os resultados podem indicar atrasos, desenvolvimento igual e/ou desenvolvimento distinto em um dos dois grupos,. O intuito até aqui foi monstrar que quando o pesquisador opta pelo estudo comparativo, obterá resultados diversos dos de quem optou pelo estudo não-comparativo: um poderá encontrar, nos resultados do outro, argumentos para sustentar sua “tese”. Esta afirmação tem como fundamento a constatação de que na área da Psicologia, há significativas pesquisas nestas duas linhas. Deve-se destacar também que se optou por não apresentar neste documento uma discussão aprofundada sobre este assunto. Para tanto sugere-se a consulta dos trabalhos de Amiralian (1986, 1997), Warren (1977, 1984, 1994), Santin e Simmons (1977), Caiado (2003) Silva Leme (2005), Ochaíta e Espinosa (2004), Rosa e Ochaíta (1993, org.), Dias (1995) e Soler (1999). Como discutido nesse tópico, na análise não comparativa, as relações sociais são 33 fundamentais para os desenvolvimentos motor e cognitivo dos deficientes visuais, assim como para a sua integração na sociedade. Os sentidos tato, audição, olfato e paladar desenvolvem um papel importante nas relações sociais dos cegos e, conseqüentemente, nos seus desenvolvimentos motor e cognitivo. Neste sentido sobrevalorizar o canaL visual atribui aos cegos grandes desvantagens, assim como a sobrevalorização do tato e da audição pode gerar a falsa idéia de que a ausência da visão é passível de compensação pelos outros sentidos. A discussão deste tema apóia-se na idéia de Didática Multisensorial, que valoriza o uso de todos os sentidos pelos deficientes visuais e normo-visuais nos contextos social, emocional, histórico e cultural. 34 Cap. II . OS SENTIDOS E AS EXPERIÊNCIAS 1. Os sentidos: tato, olfato, paladar e audição O cego explora, percebe e organiza os objetos no espaço, assim como se comunica, por meio de todos os seus sentidos - sobrevalorizar o canal visual, como se fosse auto- suficiente, significa menosprezar sua capacidade de percepção. O normo-visual também usa o tato, olfato, paladar e a audição juntamente com a visão para observar e perceber os objetos. Os sentidos se comunicam entre si e abrem-se à estrutura da coisa. Vemos a rigidez e a fragilidade do vidro e, quando ele se quebra com um som cristalino, este som é trazido pelo vidro visível. Vemos a elasticidade do aço, a maleabilidade do aço incandescente, a dureza da lâmina em uma plaina, a moleza das aparas. A forma dos objetos não é seu contorno geométrico: ela tem uma certa relação com sua natureza própria e fala a todos os nossos sentidos ao mesmo tempo em que fala com a visão. (PONTY, 1994, p. 308) Soler (1999) concorda que a excessiva valorização do canal visual atribui ao sujeito a falsa idéia de auto-suficiência. Em sua obra, intitulada Didáctica Multisensorial de las Ciecias: un nuevo método para alumnos ciegos, deficientes visuales, y tambiém sin problemas de visión, o autor discute a importância da utilização dos sentidos para a exploração e conhecimento das disciplinas relacionadas às “Ciências Naturais”, como às Biológicas, Geográficas, Geológicas, Geomorfológicas, Ecológicas e Ambientais; além disso, apresenta métodos e atividades que valorizam o uso dos sentidos para a o estudo de conceitos referentes a estas ciências. A utilização de todos os sentidos para a abordagem de conteúdos relacionados às Ciências Naturais é denominada Didática Multisensorial. Esta didática pode e deve ser utilizada desde o ensino infantil até o superior: La enseñanza de las ciencias naturales o experimentales, desde los primeros cursos escolares hasta los niveles medios y superiores, está recibiendo un tratamiento didáctico enfocado única y exclusivamente desde una perspectiva puramente visual (SOLER, 1999 p. 17). 35 Para o autor, esta valorização do que se chama de “visuocentrismo” nas didáticas escolares resulta: a) Em perda de uma grande quantidade de informação científica; b) Na apresentação dos conhecimentos relacionados às “Ciências Naturais” aos alunos cegos, de baixa visão e normo-visuais de forma pouco estimulante, o que pode gerar dificuldades de compreensão dos conteúdos abordados; c) Em uma percepção reduzida do lugar vivido pelo sujeito, ocasionando uma interpretação fracionada dos fenômenos naturais que ocorrem na Terra; d) Em uma visão muito reduzida da observação científica: o estudo de um fenômeno natural ocorre por meio de todos os sentidos e não exclusivamente pela visão. A Didática Multissensorial não significa a valorização orgânica dos sentidos, mas a valorização destes nos contextos social, emocional, histórico, e cultural em que cada indivíduo está inserido. Também não se trata da defesa de que a ausência de um sentido pode ser compensada pelo desenvolvimento dos outros sentidos remanescentes. Por isso, deve-se alertar para a não interpretação da utilização dos sentidos como uma retomada ao período biológico ingênuo. Segundo Caiado (2006) este período é próprio do iluminismo e tem sua origem marcada num momento de grande desenvolvimento da ciência, no qual o homem é tratado como “centro do universo”, dono do tempo e da razão natural e não mais divina. No iluminismo, a educação deveria ser estendida a todos, inclusive aos considerados deficientes7. Com base nas idéias do filósofo John Locke (1621-1704), que concebe a mente humana como uma folha de papel em branco que gradativamente é preenchida pelos dados da experiência e permanecendo a única fonte das idéias, interpretada como síntese entre sensação e reflexão, estudiosos do desenvolvimento humano “anormal” supõem que a ausência de um órgão sensorial pode ser compensada com o aumento do funcionamento dos outros órgãos 7 Como exemplo de educação para pessoas com necessidades educacionais especiais no período do iluminismo cita-se: Jacob Pereira (1715-1780) - que desenvolve uma metodologia para ensinar linguagem a surdos - Jean Marc Itard (1774-838) - desenvolve um trabalho inédito com um menino que viveu sozinho na floresta, sem atividades intelectuais e por isso apresentava sérios problemas de desenvolvimento – e Valentin Hauy (19745-1822) que organizou a instrução do deficiente visual em instituições especializadas na França e na Rússia. O ponto comum entre estes três educadores é acreditarem na capacidade de aprendizado da pessoa deficiente e também que esta aprendizagem ocorre com o auxilio e a estimulação dos sentidos remanescentes (CAIADO, 2006). 36 sensoriais. Entretanto, não é isso que ocorre, como se pode observar em Caiado (2006), para quem a compensação deve ser compreendida como um processo social e não orgânico. Neste sentido, compreende-se que a limitação biológica gera um conflito: por um lado o processo de humanização impulsiona o indivíduo para o convívio social, por outro lado, as limitações biológicas de mobilidade e de recepção visual dificultam os processos sociais. É necessário, portanto, que se realizem e aprofundem estudos para que haja uma política educacional e social que amenize ou elimine este conflito, considerando a importância dos sentidos na socialização das pessoas cegas. Tendo em vista estas questões, a discussão apresentada a seguir sobre os quatros sentidos utilizados pelos cegos fundamenta-se no trabalho de Soler (1999), pela importância de sua obra e está divida em tópicos apenas com o intuito de fornecer ao leitor uma leitura didática. Estes não devem, ser considerados separadamente, bem como não se restringem ao ensino dos alunos que apresentam perdas visuais graves. Tato Segundo Soler (1999), o tato é o sentido que oferece ao cérebro humano uma gama de tipologias de informações dos meios externo e interno. Os receptores táteis estão distribuídos ao longo de toda a superfície cutânea e estão conectados às vias nervosas que enviam ao córtex cerebral um amplo espectro de sinais codificados. Para o autor, a identificação de objetos por meio do tato não se realiza simplesmente ao tocá-los e explorá-los - faz-se necessário desenvolver uma sensibilidade tátil para percebê-los e/ou conhecê-los. Neste sentido, as pessoas cegas devem ser estimuladas a desenvolver sua sensibilidade tátil desde o início do diagnóstico médico, que indica a gravidade da perda visual. Esta estimulação deve ser realizada com o manuseio de diversos objetos de texturas, tamanhos e formas distintas e adequadas à inspeção, por meio de tato, e também ao grau de maturação da pessoa. Para desenvolver a sensibilidade tátil devem ser considerados os seguintes aspectos: a) Discriminação de Texturas: para a estimulação tátil são importantes a utilização e o incentivo da exploração de materiais agradáveis ao toque, que não ofereçam risco de 37 acidentes, como objetos quentes, cortantes, ásperos, dentre outros; b) Tamanhos e Formas: Os objetos utilizados para o desenvolvimento tátil devem ser adequados para o tato: suas proporções dependem do objetivo das atividades. Ressalta-se que, o tato não fornece a compreensão global e sintética que o canal visual possibilita, quase que instantaneamente - o tato compõe a imagem do objeto analiticamente como a montagem de um quebra-cabeça, ou seja, a formação de imagem mental de um objeto pelo tato ocorre por meio da organização e montagem de “peça” por “peça”. Por isso, as formas dos objetos não devem ser complexas, ou seja, ricas em detalhes. (CUTSFORTH, 1969). Assim, por exemplo, uma bolsa feminina com diversas repartições, zíperes e detalhes decorativos contém formas demasiadamente complexas e desestimulantes a exploração via tato, no entanto, um porta-níqueis, com uma única repartição e formato, estimula a exploração pelo tato. Para a realização da estimulação tátil do cego, deve ser-lhe fornecida uma gama de objetos pequenos, com formas variadas, porém simples (formas geométricas simples com círculos, quadrados, retângulos, etc). A complexidade das formas de objetos para a estimulação tátil necessita ser gradual e estar de acordo com a idade, grau de maturidade e experiência do sujeito. Custsforth (1969) destaca que a apresentação de objetos de padrões muito complexos, ou sem variedade de formas, podem resultar em desestímulo à exploração por meio do tato; c) Estética Tátil: O tato não contempla a beleza dos objetos da mesma forma que a visão. Neste sentido, o objeto que possui uma beleza estética tátil é aquele que tem textura, forma e tamanho adequados à exploração tátil. Para Soler (1999), a preocupação com a estética tátil deve ser iniciada desde os primeiros meses de idade da criança cega. Além disso, é um erro grave considerar que todas as texturas e formas provocam sensações agradáveis e positivas. Para Custsforth (1969, p17) as crianças cegas apreciam os objetos de formas e contornos mais simples como garrafas, caixas de papelão, sapatos, bolas, dentre outros, “e tentar desenvolver a apreciação de objetos mais complexos, é introduzir confusão perceptiva e irrealidade, com seus resultados desastrosos”; d) Componente Afetivo: O tato é o sentido que permite as sensações por meio do contato direto com plantas, animais e pessoas, “Cuando los padres abrazan al niño o éste les 38 abraza a ellos, se está produciendo uma transmisión de afecto em las dos direcciones em la que el tacto juega um papel muy importante”(SOLER, 1999, p 65). Para o autor, a estimulação adequada do afeto por meio do tato nas pessoas cegas ou normo-visuais repercutirá, em sucessivas etapas de suas vidas, em dois níveis principais: � Nível Humano: A pessoa será capaz de expressar mais facilmente seus afetos a outras pessoas; � Nível cognoscitivo: A aprendizagem produzida por via tátil em matérias relacionadas à exploração do meio ambiente serão melhor assimiladas e compreendidas . Audição A audição funciona como um receptor sempre atento a qualquer estímulo oriundo do ambiente, captando informações em todas as direções. Em determinadas circunstâncias a audição detecta informações sobre objetos antes do canal visual, por exemplo em uma curva de uma estrada onde se escuta o barulho do carro, antes de visualizá-lo (VEIGA, 1983). Por meio da audição, o ser humano capta todos os tipos de estímulos sonoros involuntariamente e sem precisar mover a cabeça em determinada direção. Neste sentido, as pessoas ouvem os sons mesmo sem desejá-los, diferentemente dos olhos, cujos movimentos da cabeça e de abrir e fechar as pálpebras podem selecionar cenas que o indivíduo deseja visualizar. Ao cérebro é designada a função de filtrar as informações sonoras desejáveis e julgadas importantes, bem como as indesejáveis e julgadas sem importância pelo sujeito (VEIGA, 1983). Para o autor, o cego, privado dos estímulos visuais, rejeita com menor intensidade os estímulos auditivos do que as pessoas normo-visuais, por isso utilizam este sentido com maior precisão para reconhecer as particularidades das vozes humanas, diferenças de ruídos, som dos próprios passos e dos passos de outras pessoas, notas musicais, dentre outros. Existem “sensações auditivas” agradáveis e desagradáveis e que estas geram experiências do mesmo estilo: 39 Todos hemos podido experimentar lo que sentimos al escuchar una música que nos gusta y al escuchar otra que no soportamos; los sentimientos generados son de signo bien diferenciado. Debemos procurar que los niños, desde pequeños, tengan más sensaciones auditivas de carácter positivo, pues estarán más predispuestos al aprendizaje auditivo de las ciencias experimentales y de la natureza. Además, serán personas que sabrán escuchar a los otros, percibirán más facilmente los componentes acústicos del medio ambiente, cuidarán su tono de voz al hablar, conocerán más las personas por el tono de voz com que les hablan, disfrutarán escuchando música, tendrán una mayor estética musical, etc. (SOLER, 1999, p 97). Desta forma, faz-se necessário desmistificar a idéia de que o cego possui uma acuidade auditiva melhor do que as dos normo-visuais. O desenvolvimento da acuidade auditiva passa pelo mesmo processo nos dois grupos. No entanto, o cego desenvolve certas habilidades auditivas, como reconhecer com mais precisão as diferenças dos tons de vozes e dos sons dos passos das pessoas, os diversos sons da natureza artificial ou natural, dentre outros, devido a maior utilização dos estímulos auditivos. Olfato A capacidade olfativa é realizada pelas mucosas olfativas, pequenos órgãos que se localizam na parte final superior das mucosas nasais e são constituídas por uma série de células sensitivas especializadas em captar variações de concentração de certas substâncias químicas. Neste sentido, estas células funcionam como quimiorreceptores que decifram códigos do tipo químico e traduzem a informação percebida (SOLER, 1999). Para Veiga (1983) e Soler (1999), o olfato também contribui para a ampliação do conhecimento das pessoas cegas sobre o seu local vivido e as relações sociais estabelecidas em seu dia-a-dia. Os odores do caminho por onde se deslocam ajudam-nas a conhecer quais objetos compõem este lugar. Assim como o aroma bom ou ruim emitido por um perfume, o cheiro de limpeza ou de sujeira das roupas utilizadas ajudam os cegos a identificarem as pessoas que estão ao seu redor: 40 Si una persona ha gozada de una buena educatión de su olfato, no trendrá problemas en observar olfativamente todas las situaciones de su vida: estéticas, estudios de la natureza, análisis de experiencias, sociatión de olores típicos e sus ambientes correspondientes, reconocimiento de sustancias por el olfato, etc. En este sentido, puede, resultar curioso saber que una persona ciega con una buena educación del olfato puede localizar en un local a otra por el rastro de su perfume (SOLER, 1999 p 134). Assim como o tato e a audição, o olfato auxilia as pessoas, cegas ou não, a perceberem, (re)conhecerem e estudarem os diversos objetos que compõem a paisagem de um local, seja esta natural ou artificial. Por meio dele, percebe-se os distintos perfumes e odores de flores e plantas, o cheiro emitido pela terra seca ao receber as primeiras gotas de chuva, os cheiros agradáveis e desagradáveis emitidos pelas indústrias alimentícias, químicas, assim como por estabelecimentos comerciais como padarias, restaurantes, perfumarias, etc. Paladar O paladar, como os demais sentidos, é muito importante para o ser humano, principalmente nas relações sociais e culturais. Por meio deste sentido as pessoas degustam o sabor agradável ou desagradável da culinária e das bebidas de diversas partes de distintos países e se sentem estimuladas a realizarem encontros sociais e profissionais em ambientes alimentícios (bares, restaurantes, lanchonetes, etc). A degustação de comidas e bebidas, quase sempre, permeia conversas que permitem que as pessoas conheçam um pouco dos gostos das outras, assim como possibilita que elas expressem os seus gostos pessoais: [...] contribuye al desarrolo y evolución de las culturas culinarias, proporciona estímulos agradables que refuerzan el bienestrar em muchas situaciones relajadas de encuentros con amigos, dessarrola una estética gustativa propia de cada persona que influirá en su alimentación y, además, es importante en el aprendizaje de las ciencias naturales (SOLER, 1999 p 144). Nas fases dos desenvolvimentos motor e cognitivo da criança, seja esta deficiente ou não, segundo o autor, o paladar, assim como os outros sentidos, desenvolve um papel importante. O paladar inicia-se com a amamentação, que é um 41 dos principais contatos físicos e afetivos da relação Mãe/Bebê em seus primeiros dias de vida. Posteriormente, iniciam-se as descobertas dos sabores de outros alimentos por meio de papinhas. Por meio destas práticas a criança inicia a formação do seu paladar pessoal, explorando e conhecendo, inclusive, as características dos objetos por meio do paladar: La niños quieren conocer su entorno también empleando el órgano del gusto, por lo que chupan muchos objetos de su alrededor. Muchos padres y personas adultas en general que están a su cuidado tiende a prohibir dicha acción: esto é um error. Al reprimir dicho acto estamos frenando el dessarrollo de la percepción gustativa, pues el conocimiento del medio por esta técnica supone também una etapa psicosensorial que hay de superar (SOLER, 1999, p. 145). Neste sentido, diante do exposto neste tópico, reforça-se a afirmação de que o uso dos sentidos não deve ser considerado isoladamente. Também não se deve atribuir maior valor a um ou dois sentidos e desprezar a importância dos outros. Cada sentido tem sua função e cada pessoa, cega ou não, utiliza-o de acordo com seus objetivos e estímulos recebidos do meio em que se insere e das pessoas com quem convive. Deve-se ressaltar novamente, a importância das relações sociais para que a estimulação dos sentidos, seja de pessoas cegas ou não, não seja interpretada como uma retomada ao período biológico ingênuo. Para Caiado (2006), os sentidos têm um papel fundamental na apropriação do empírico, do real. No entanto, estes não devem ser entendidos como “puro aparato biológico individual”, mas devem ser compreendidos como sentidos sociais, visto que o homem enxerga, ouve e sente aquilo que outro homem lhe apontar para ver, ouvir e sentir, dentre outras possibilidades do seu tempo e lugar social. Neste sentido, para a autora a construção dos sentidos é tarefa histórica, cultural e social. Por isso, a Didática Multisensorial das ciências, destacada por Soler (1999), pode contribuir significativamente para que os alunos com ou sem necessidades educacionais especiais obtenham uma aprendizagem mais completa. A informação visual no caso dos alunos normo-visuais e de baixa visão associada às informações sonoras, auditivas, olfativas e gustativas contribui para um estudo mais concreto das Ciências Naturais. Ressalta-se ainda que a não valorização de um sentido auxilia nos desenvolvimentos motor e cognitivo e na integração de pessoas com necessidades educacionais especiais por não excluir ou 42 desvalorizar os sentidos utilizados por eles para perceber, conhecer, estudar e compreender os objetos e fenômenos do mundo. 2. Os sentidos e o desenvolvimento motor O período sensório-motor abrange desde a data de nascimento do bebê até ele atingir, aproximadamente, a idade de dois anos. Os graus positivo ou negativo (atrasos) neste período tem relação direta com os estímulos recebidos para movimentar as partes de seu corpo. O bebê normo-visual, por meio da visão, recebe muito mais estímulos para movimentar as partes de seu corpo - braços, pernas, cabeça, etc - do que o bebê cego congênito. Privado do estímulo visual para se movimentar, o bebê cego poderá viver quase imóvel nos cincos primeiros meses. Este fato pode ocasionar falta de plasticidade nos gestos, nos movimentos e no andar de muitas crianças cegas (VEIGA, 1983). A este respeito Dias (1995, p.26) afirma que, Quanto ao desenvolvimento motor, a visão desempenha um papel crucial, que a audição só poderá suprir, e apenas parcialmente, a partir dos dez meses, embora o desenvolvimento postural seja semelhante ao da criança normo-visual. A nível da mobilidade a criança cega, segundo (Adelson e Freiberg 1977 ) e ( Scholl 1984 ) por falta de estímulos do mundo exterior experimenta dificuldades tanto no gatinhar como no início da marcha. Embora muitos autores concordem com o fato de que a audição não supre a função visual no estímulo para o desenvolvimento motor, Warren (1994) chama a atenção para a escassez de pesquisas sobre as diferentes reações dos bebês cegos à voz humana. Segundo o autor, as pesquisas sobre as reações dos estímulos sonoros dos bebês cegos são freqüentemente realizadas utilizando objetos sonoros (noise-marking-object), não o som das 43 vozes humanas. O bebê realiza ou não um determinado movimento da cabeça, dos membros ou sorri ao ouvir um som de um objeto que, em um determinado momento anterior, o estimulou. Em 1994 Warren já alerta sobre a escassez de estudos referentes às reações dos bebês às vozes humanas em seus primeiros meses de vida. Sobre as reações dos bebês cegos às vozes, o autor afirma que o bebê cego sorri ou mexe partes do corpo ao escutar a voz da pessoa que cuida dele, mas não tem a mesma reação para as vozes de estranhos. Para o autor, Overall, there are simply too few data reported to reach reliable empirical conclusions about the infant’s capability to discriminate among various nonvoice stimuli. Logically, it is fair to argue that the subtleties of differences among human voices are at least as fine as those that differentiate other sounds, and so if the infant can discriminate between subtly differing voices, presumably he or she can also discriminate among other sound-making-sources. (WARREN, 1994, p 16). Ochaíta e Espinosa (2004) comentam sobre a importância da pesquisa realizada por Leonhart (1997, 1998) e seus colaboradores, em que se demonstra que o bebê cego, desde as primeiras semanas de vida, presta uma atenção seletiva à voz da pessoa que cuida dele. Esta atenção é expressada por meio do giro da cabeça ou do corpo para a fonte do som. Ressaltam, além disso, que o bebê distingue claramente entre a voz da mãe e a de uma pessoa estranha, já que gira para a direção de onde vem a voz da mãe. No que se refere às fases do desenvolvimento da postura do cego congênito, estas se cumprem dentro dos limites considerados normais, porém o progresso nos movimentos de estender as mãos, engatinhar e caminhar pode apresentar atrasos (ADELSON; FRAIBERG, apud SANTIN; SIMMONS 1996). Warren (1977) realizou uma análise comparativa dos resultados obtidos por Adelson e Fraiberg (1968, 1969, 1974) e por Norris, Spaulding e Brodie (1957) e concluiu que, no desenvolvimento motor, os atrasos em crianças cegas congênitas se concentram em áreas que necessitam de orientação para a exploração do meio externo, como esticar os membros do corpo para tocar e/ou agarrar objetos, engatinhar e andar. Para estes autores, assim como para Veiga (1983), Dias (2004), Santin e Simmons (1996), dentre outros, os atrasos do desenvolvimento motor ocorrem por falta de experiências e não por causa da cegueira. Os autores ressaltam que o atraso no desenvolvimento dos movimentos é compreensível, já que o bebê cego tem que aprender a conhecer seu ambiente por estímulos fornecidos pela audição e pela sensibilidade cutânea Estes pesquisadores concordam inclusive que se o bebê receber estimulação adequada para o seu desenvolvimento 44 motor, realizará todas as etapas deste estágio dentro do período considerado padrão. A ausência da visão não possibilita que a criança se sinta estimulada a movimentar as partes de seu corpo para um espaço além do que é ocupado por ela. O estímulo para que a criança normo-visual movimente pernas, braços, cabeça e tronco, é gerado pelos aspectos visuais de objetos como luzes, cores e movimentos. Por não ter estes estímulos, o bebê cego ficará restrito à observação e exploração do espaço do seu corpo e dos objetos em contato como cobertor, roupas, chupeta, mamadeira, limite do berço. Nesta fase, a pessoa que cuida do bebê cego desempenha um papel fundamental para que ele se desenvolva adequadamente à idade e maturação. A este respeito o Professor José Espínola Veiga, que ficou cego antes dos dois anos de idade, exemplifica muito bem este papel no seguinte trecho de seu livro intitulado O que é Ser Cego (VEIGA 1983, p. 4): Num berço onde falta luz, o movimento escasseia. Não vendo as coisas que o rodeiam, a criancinha não estende as mãos para apanhá-las. A mãe não lhe mostra nada, porque sabe que é inútil. Não lhe chega os objetos, para vê-la estender a mãozinha. Não enfeita o berço, porque o filhinho não bate com os pés e nem sacode as mãos ante os estímulos da cor. Pobre mãe... Pouco lhe fala mesmo, para fugir à tristeza de ver que não volve para ela os olhos. Assim, o “cego de nascença” vive quase petrificado nos cinco primeiros meses. Aí uma das razões da falta de plasticidade nos gestos, nos movimentos e no andar de muitos cegos. Só do quinto mês em diante começa a criancinha a associar suas experiências auditivas com as sensomotoras. Só daí por diante começa a estender as mãos na direção de onde parece vir o som. Mas é vagaroso esse desabrochar de movimentos. Precipitá-lo seria aplicação de princípios de psicologia especializada, desconhecidos do comum das mães. Na cultura ocidental, o canal visual é extremamente valorizado nas interações comunicativas precoces, por isso muitos pais podem apresentar muitas dificuldades para interpretar os sinais emitidos pelas crianças cegas para expressar suas preferências quanto aos familiares mais próximos. Nesse sentido, faz-se necessário que os pais aprendam a interpretar as formas que seus filhos cegos utilizam para se relacionarem com eles (OCHAÍTA; ESPINOSA, 2004). Para essas autoras, a partir dos cinco ou seis meses, o bebê cego, sem deixar de ter interesse prioritário pelas pessoas à sua volta, começa a demonstrar mais atenção aos objetos físicos e começa a se dedicar mais ao exercício de seu esquema sensório-motor em 45 relação a tais objetos. A partir do início de sua mobilidade, a marcha e posteriormente o andar, se estimulada por uma pessoa, a criança cega passa a ter domínio da sua postura e o som se torna um elemento mais concreto. Esta estimulação pode ser feita, por exemplo, rolando-se um objeto sonoro para frente, trás e lados da criança, esticando-se suas mãozinhas na direção do objeto, para que, gradativamente, ela associe o som ao objeto. Neste sentido, o som se torna um elemento de atração para a exploração do espaço (Dias, 1995). Para Almeida (2003, p. 36-37), o domínio da postura corporal é uma das aquisições mais significativas do primeiro ano de vida da criança, sendo que “[...] a postura influi na apreensão das informações sobre o entorno. Desta forma estabelecem-se, desde o início da vida humana, referências espaciais com relação ao próprio sujeito”. Estas referências espaciais em relação ao próprio sujeito são mais importantes ainda para as pessoas cegas, pois independente da idade, grau de maturação e experiências vividas, o seu corpo sempre será um importante referencial para a exploração e percepção de um novo ambiente. Em crianças normo-visuais, a consciência do corpo constrói-se lentamente até a adolescência. É na adolescência que o indivíduo elabora completamente “o esquema corporal” em função do amadurecimento do sistema nervoso, da relação eu-mundo e da representação que a criança faz de si mesma e do mundo em relação a ela” (Almeida, 2003, p 37). A respeito da relação eu-mundo no sujeito cego, Porto (2005, p. 35) afirma: “o mundo é para mim como eu vejo e, para o cego como ele o vê e esta percepção é própria e individual. Falar sobre a percepção que o cego tem do mundo, somente ele pode falar, pois somente ele pode percebê-lo pelo seu corpo”. Entre o final do primeiro ano de vida e o início do segundo, inicia-se a etapa dos desenvolvimentos simbólico e comunicativo na criança. Nesta fase, as crianças devem incorporar os objetos em sua interação com as pessoas, método que alguns autores chamaram de triangulação, por envolver ao mesmo tempo a criança, o objeto e o mediador (OCHAÍTA; ESPINOSA, 2004). Para as autoras, esta fase não se compõe apenas de interações criança-adulto, mas depende de que a primeira seja capaz de iniciar conversas não verbais ou protoconversas em relação a objetos e de estabelecer mecanismos de atenção compartilhada para poder se comunicar com outros. Neste sentido, não há ainda pesquisas que permitam responder à 46 seguinte pergunta: “Como as crianças cegas incorporam os objetos em suas conversas não- verbais com os adultos?”. Uma criança normo-visual, quando quer chamar a atenção de um adulto para um objeto, o aponta com o dedo, depois olha para o adulto e em seguida ambos olham o mesmo objeto. No entanto, a criança cega tem grandes dificuldades para saber que existem objetos, se não tocá-los. Ochaíta e Espinosa (2004) levantam a hipótese de que a criança cega utiliza vocalizações para poder comunicar-se com um adulto sobre um objeto que não está tocando, mas que sabe que existe. As autoras salientam a importância da realização de pesquisas sobre este tema. As autoras ressaltam também a carência de pesquisas sobre o jogo simbólico com crianças cegas. O jogo simbólico refere-se à atribuição, por parte da criança, de sentidos novos a objetos do cotidiano, tendo como base as imitações das ações observadas no dia-dia (REILY, 2006). Muitos autores da área da Psicologia estudam a importância do jogo simbólico no desenvolvimento de crianças normo-visuais, no entanto, os estudos sobre este jogo em crianças cegas são escassos. No desenvolvimento de pesquisas sobre este tema é importante também deixar de lado o “visuocentrismo” e desenvolver e analisar os trabalhos a partir da própria cegueira. Não se pode esperar que as crianças cegas reproduzam (imitem) do mesmo modo que os normo-visuais, as cenas da vida diária. Muitas vezes a imitação de gestos pelo cego só é possível por meio de experiências mediadas. Esta mediação se realiza no ato de levar a mão da criança ao rosto do mediador e lhe explicar verbalmente os significados e diferenças das expressões faciais, ao mesmo tempo em que a criança observa por meio do tato, as modificações no rosto do mediador. O mesmo se refere às expressões corporais: a criança necessita vivenciá-las por meio de experiências práticas. Nos dois casos, a imitação contribui para que a criança explore o espaço por meio de seu corpo. Nos ensaios da peça A loja da Alegria, encenada no Instituto Benjamin Constant - IBC e relatados por Moraes (2005), exemplifica-se como atividades práticas são importantes para a criança cega explorar o espaço e entender os conceitos de expressões corporais e faciais, que são aprendidos por imitação. Nesta peça, uma menina cega congênita de 11 anos de idade representaria uma bailarina. No entanto, a menina não sabia o que era um corpo de bailarina com seus movimentos e leveza. A primeira medida tomada pela professora foi explicar verbalmente para 47 a criança que “uma bailarina demonstra leveza, dança na ponta dos pés, levanta os braços”. A autora ressalta que esta explicação era muito abstrata para a criança e quando solicitado que realizasse os movimentos de uma bailarina, a criança não se mexia e dizia: “[...] mas eu não sei o que fazer, o que significa esta leveza? [...] dança como? Como é que as mãos fazem?”(MORAES, 2005, p 8). Uma série de atividades foi planejada para que a criança entendesse o que era ser uma bailarina. Primeiramente, a criança tateou, cheirou e alisou uma saia de plumas e uma de tecido grosso, depois colocou a roupa de plumas ao som de dois tipos de músicas, valsa e Música Popular Brasileira, para sentir como a saia poderia ser movimentada no corpo, ao som de cada ritmo. Com os movimentos começaram a surgir as perguntas, seguidas das respostas realizadas pela própria criança: “[...] como se dança na ponta dos pés? [...] a bailarina dança e anda na ponta dos pés, com passos de formiga que quer guardar um segredo, anda sem fazer barulho”.(MORAES, 2005, p. 9). A questão da leveza ainda não havia sido compreendida pela criança, por isso a professora optou por usar um balão cheio de gás com um pouco de arroz dentro. Ao movimentar o balão o arroz produzia um som suave. A primeira atividade foi articular os movimentos do balão aos de uma bailarina: [...] as coordenadoras diziam para a menina cega: “a bailarina abraça este balão na frente do corpo, depois o levanta até o alto da cabeça, depois o leva para o lado”. Com estes movimentos do balão, a menina ia construindo os movimentos dos braços da bailarina que sobem ao ar arqueados, depois descem para um lado e depois para o outro. Todas as crianças, inclusive as videntes, fizeram estes movimentos. A segunda atividade com o balão consistiu em colocá-lo sobre um enorme lençol que era segurado pelas coordenadoras. As crianças ficaram sob o lençol e empurravam o balão. Esta experiência produziu comentários: “como a bola é leve, ela voa alto, basta um toquinho e ela já voa”, foi o que disse uma menina com baixa visão. Ao final destas experiências a menina cega concluiu: “a bola é leve e a bailarina também é leve” e em seguida disse: “meu corpo pode ficar leve como esta bola” (Moraes, 2005, p. 10). A história relatada por Moraes indica como a imitação é importante para a exploração do espaço e compreensão dos conceitos de expressões corporais e faciais. Uma criança normo-visual visualizaria facilmente os movimentos de uma bailarina por meio de fotos, ilustrações, filmes, dentre outros e imitaria estes movimentos. A criança cega necessitou vivenciar estes movimentos, sendo a descrição verbal insuficiente para que ela compreendesse o conceito de leveza dos movimentos do corpo. 48 É recorrente na literatura a idéia da importância da descrição verbal para que o cego compreenda o que é conhecido pela visão, no entanto o caso da menina bailarina demonstra que apenas a descrição verbal de um objeto/ambiente pode resultar em incompreensão sobre o objeto descrito. Este caso também demonstra que alguns movimentos, como saltar, se deslocar e mover o corpo levemente, que são apreendidos por meio da imitação, precisam ser ensinados às crianças cegas por meio de experiências práticas. Estes movimentos, são necessários para que a criança adquira um bom controle e coordenação muscular e corporal, para que não apresente problemas de postura, equilíbrio e atraso psico-motor. No entanto, estes movimentos devem ser ensinados para as crianças cegas, pois a limitação visual a impede de aprendê-los por imitação. Ressalta-se que as atividades ensinadas devem estar de acordo com a maturação física e cognitiva da criança, bem como devem ser tomados os devidos cuidados para que ela não se machuque. Nos relatos de Moraes (2005) constata-se que a palavra bailarina só tem significado para a menina cega quando ela compreendo os contextos objetivos e subjetivos em que se insere a palavra. A menina cega só conheceu o que é Ser Bailarina quando relacionou o conceito às suas experiências sensoriais. Portanto, faz-se necessário discutir, a seguir, o papel da palavra para as pessoas cegas conhecerem os objetos no espaço. 3. Linguagem: a palavra para os cegos As primeiras relações criança-mediador são fundamentais em todo o processo de aquisição da linguagem, principalmente durante a interação mãe-bebê (OLIVEIRA; MARQUES, 2005). A linguagem é a função humana primordial e condição importante no desenvolvimento (AMIRALIAN, 1997). Para Caiado (2006, p. 118), a linguagem é o sistema simbólico básico desenvolvido e utilizado em todos os grupos humanos para representar a realidade. Para a autora, a linguagem concentra em si os conceitos generalizados e elaborados pela cultura humana e permite “ao ser humano operar com objetos, situações e eventos ausentes ou distantes” , iniciando processos de abstração e generalização com a formação de 49 conceitos e maneiras de ordenar o real, garantindo a comunicação entre homens, o que possibilita a preservação, transmissão e assimilação de informações e experiências acumuladas pela humanidade, ao longo de sua história. Para Luria (1986, p. 27), “o elemento fundamental da linguagem é a palavra; a palavra designa as coisas, individualiza suas características; designa ações, relações e reúne objetos em determinados sistemas”. Ao atribuírem significados às palavras, as crianças conseguem isolar objetos no espaço e começam a perceber o mundo não somente pela visão, mas também através da fala. Obtém-se como resultado, o imediatismo da percepção “natural” por processo complexo de mediação: “a