EDITORIAL A pesquisa em ensino de Ciências e Matemática no Brasil As décadas de sessenta e setenta do século passado parecem ter sido propícias para que pesquisadores brasileiros das áreas de Ciências Exatas e Naturais, apoiados por colegas da Educação, Psicologia, História e Filosofia da Ciência, bem como outras áreas do conhecimento, passassem a se preocupar em estudar mais sistematicamente o ensino e a aprendizagem das Ciências e da Matemática, conforme mostram estudos que vêm sendo divulgados em diversas instâncias (NARDI, 2005, 2007; NARDI; ALMEIDA, 2004). Os fatores que contribuíram para a constituição da área de Ensino de Ciências e Matemática no Brasil, bem como as origens e características da pesquisa que se faz nesta área, têm sido estudados com base em vários enfoques e referenciais e com o uso de diversas meto- dologias. O vasto conhecimento acumulado na área, fruto de trabalho de matemáticos, físicos, químicos, biólogos e outros profissionais que têm estudado academicamente essas questões, vem sendo sistematicamente mapeado e analisado por diversos autores (FERES, 2001, 2010; KAWAMURA; SALEM, 2008; LEMGRUBER, 1999; MEGID NETO, 1990, 2014; NARDI; ALMEIDA, 2004, 2007; NARDI; GONÇALVES, 2014; SCHENETZLER, 2002; SLONGO, 2004; TEIXEIRA, 2012). Esses pesquisadores têm interlocução mediante representatividade em secretarias, seções de ensino ou comissões específicas de importantes sociedades científicas tradicionais – como, por exemplo, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Sociedade Brasileira de Física (SBF), Sociedade Brasileira de Química (SBQ), Sociedade Brasileira de Astronomia (SBA). E órgãos financiadores, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CA- PES); a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e fundações de amparo à pesquisa de diversos estados brasileiros, como é o caso da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP), que têm dedicado apoio e financiamento regular para o desenvolvimento de projetos de pesquisa e extensão nessa área. As características inter ou multidisciplinares que esse tipo de pesquisa demanda fizeram entender, logo cedo, que conhecer profundamente apenas os conteúdos das disciplinas de Ciên- cias e Matemática não bastava para se avançar no estudo das particularidades que os processos de ensino e de aprendizagem das Ciências demandam. Essa preocupação foi logo sentida por grupos de pesquisadores, que entenderam a necessidade de se dedicarem integralmente a esses estudos, oportunizando o surgimento, nas décadas de oitenta e noventa, de associações espe- cíficas de ensino, como a Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), a Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia (SBenBio) e a Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec). Desde o início também, alguns dilemas rondam pesquisadores e professores que atuam na área: devemos estudar ciências, matemática e tecnologias para formar novos cientistas ou para ‘alfabetizar’ ou ‘aculturar cientificamente’ cidadãos que fazem uso da ciência em seu cotidiano? A pesquisa nessa área deve ser realizada, ou definida, na academia, ou com o envolvimento de DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1516-731320150020001 I II professores em exercício nas diversas instâncias de ensino? E deve ser realizada em institutos específicos de ciências, em faculdades de educação ou em outras instâncias? Como considerar resultados da pesquisa no ensino de sala de aula, tendo em vista a formação de professores que atuam no ensino superior e na educação básica e as condições de trabalho que lhes são oferecidas? Essas discussões vêm sendo contempladas em publicações, como, por exemplo, For- mação da área de ensino de ciências no Brasil: fatores que contribuíram para a constituição e consolidação da pesquisa e suas características segundo destacados pesquisadores brasileiros, de Nardi e Almeida (2014), resultante de estudo organizado com base em respostas dadas a questões formuladas pelos autores a pesquisadores brasileiros, considerados por seus pares como importantes na consti- tuição dessa área no Brasil. Este estudo mostra, também, que um dos fatores considerados importantes na consti- tuição da área, foi a instituição de sua pós-graduação. Diversos autores mostram essa trajetória, iniciada com dois dos primeiros programas de pós-graduação na área de Ensino de Ciências e Matemática que surgiram no país nessa época, ao lado, por exemplo, dos programas de En- sino de Física implantados nos institutos de Física da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O primeiro desses programas, relatado por D’Ambrosio (2014), no capítulo intitulado Uma síntese do programa experimental de mestrado em ensino de ciências e matemática da UNICAMP/OEA/MEC (1975 a 1984) mostra sua experiência como coordenador deste programa, ocorrido entre 1974 e 1984 na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Outro desses pioneiros, cujas memórias são relatadas por Bicudo (2014) sob o título A pós-graduação em educação matemática de Rio Claro: historiando sua trajetória, é o Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista (UNESP), um dos primeiros nesta área no país, cuja história contabiliza hoje cerca de trinta anos de existência, com centenas de mestres e doutores formados e atuando no Brasil e no exterior. A expressiva contribuição da pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática para a educação no Brasil, em todos os níveis, também é analisada a partir de referenciais teóricos específicos. Em Origens e desenvolvimento do campo de pesquisa em educação em ciências no Brasil, Megid Neto (2014) discute o que chama de ‘elementos fundantes’ do campo de conhecimento em Educação em Ciências no Brasil, procurando mostrar seu desenvolvimento até os dias atuais. O estudo destaca o impulso da pesquisa, com a criação da área (46) de Ensino de Ciências e Matemática da CAPES, em setembro de 2000. Em outro estudo, intitulado Educação em ciências no Brasil: uma análise de sua constituição e institucionalização sob o aporte da teoria de Bourdieu, Feres (2010) busca elementos da teoria de Bourdieu e de outros autores para explicar a constitui- ção e institucionalização da área no Brasil. Com base em pesquisas e estudos realizados nos últimos anos, infográficos mostram a evolução da pós-graduação em Ensino de Ciências. Os gráficos procuram ilustrar o “movimento dos pesquisadores em torno de ações importantes para a constituição e institucionalização da área, marcando o período de 2000 como a década correspondente à consolidação e expansão de programas de pós no país” (FERES, 2010, p. 74). A análise da distribuição geográfica dos programas e cursos de pós-graduação existentes até então chama a atenção para um problema, não só desta área, mas também de quase todas as pós-graduações brasileiras: a concentração de programas e de cursos na região sudeste do país. O levantamento de eventos ocorridos desde décadas anteriores e a apresentação de linhas de pesquisa e áreas de concentração de programas e grupos de pesquisa no país são contem- plados neste estudo, que se mostra bastante completo e importante para as memórias da área. Em recente publicação, intitulada Avaliação dos programas de pós-graduação na área de ensino de ciências e matemática no triênio 2007-2009, Nardi e Gonçalves (2014) procuram resumir e interpretar dados sobre o avanço dos programas nesse período, destacando a evolução da área desde sua institucionalização na CAPES, no ano 2000. Coordenada por esses docentes e III produzida conjuntamente por uma equipe formada por 18 pesquisadores, então coordenado- res de programas de pós-graduação espalhados por todas as regiões do país, a avaliação trienal desse período gerou e divulgou relatório minucioso, importante para situar o avanço da área e projetar o futuro da pesquisa em Ensino de Ciências e Matemática. Essa avaliação trienal, conforme consta do relatório da CAPES, [...] foi uma etapa conclusiva de um processo de avaliação continuada que se iniciou no começo do triênio, em 2007, e cujas etapas interme- diárias constituíram-se de diversas reuniões com coordenadores de pós-graduação, avaliações realizadas por comissões designadas para estratificar periódicos, livros e eventos, bem como consultas perma- nentes às comunidades docente e discente que integram os programas da área. (NARDI; GONÇALVES, 2014, p. 317) O texto apresenta dados importantes como, por exemplo, que a área de Ensino de Ciências e Matemática, instituída no ano 2000, evoluiu de sete para sessenta programas de pós-graduação e 78 cursos no final de 2009. E, ainda, que a análise desses dados pode opor- tunizar importantes reflexões sobre a pesquisa na área, subsidiando tomadas de decisões para as próximas décadas. O avanço que a pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática no país experi- mentou neste período parece ter sido importante para que a CAPES, a partir de 2010, tenha ampliado a área 46 de avaliação, que passou a ser chamada de Área de Ensino. A forma com que foi conduzido esse processo, entretanto, suscitou intensos debates entre pesquisadores e associações da área e os reflexos dessa decisão ainda precisam ser analisados com mais profun- didade pela comunidade de pesquisadores. Outra questão a ser estudada pela comunidade de pesquisadores na área refere-se aos efeitos das políticas de governo que recentemente implantaram mestrados profissionais nacionais em rede, como os primeiros, na área de ensino de Matemática (ProfMat) e de ensino de Física (Profis), bem como outros já anunciados. No caso específico da Física, as comissões de ensino e de pesquisa promoveram amplo debate, sem aparentemente chegarem a consenso sobre as questões da natureza, da abrangência e da interferência desses programas em outros já estabelecidos anteriormente em diversas universidades brasileiras. Dentre vários outros pontos que vêm sendo questionados, no caso específico do ensi- no da Física, um deles baseia-se em estudos que têm mostrado que os professores licenciados em Física, em serviço na educação básica, concluintes de mestrados profissionais em ensino de Física, acabam por abandonar o magistério para ingresso na pós-graduação, em nível de doutorado acadêmico, ou ingressam no magistério superior. Estudo realizado por Kussuda (2012) mostra que as condições de trabalho na educação básica, a remuneração acanhada e outros fatores, são apontados como causas desse problema. Este fato é agravado quando se constata que a crônica falta de professores de Física na educação básica não tem sido resol- vida nas últimas décadas. Dessa forma, uma agenda de estudos de avaliação dessas políticas educacionais, tanto as específicas sobre a pós-graduação, bem como as de caráter mais geral, sobre a educação no país, mostra-se urgente. Embora possam aparentemente ser importantes, medidas isoladas não devem ser tomadas desvinculadas de outras políticas públicas; precisam ser pensadas em conjunto. O acúmulo de conhecimento produzido pela pesquisa acadêmica, bem como a expe- riência de ações de extensão derivadas da pesquisa junto aos ambientes educacionais e outros não-formais devem ser respeitados na implementação dessas políticas públicas. Desconsiderar os resultados dessa produção, ou tomar medidas a partir de opiniões de leigos pode se constituir em ‘recomendações vazias’, conforme argumenta Almeida (2012), cujas consequências pouco têm contribuído para a melhoria do ensino no país. Roberto Nardi Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Universitário, Vargem Limpa, Caixa Postal 473, CEP. 17.033-360, Bauru, SP, Brasil. E-mail: Referências ALMEIDA, M. J. P. M. Meio século de educação em ciências: foco nas recomendações ao professor de física. 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