UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ÁREA DE ENSINO E APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA E SEUS FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-CIENTÍFICOS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS RIO CLARO – SP 2022 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CRÍTICA PERMEANDO CAPÍTULOS DE GEOMETRIA EM LIVROS DIDÁTICOS: ENTRE DIRECIONAMENTOS, CONTEXTOS E ENUNCIADOS DOUGLAS RIBEIRO GUIMARÃES UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro DOUGLAS RIBEIRO GUIMARÃES EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CRÍTICA PERMEANDO CAPÍTULOS DE GEOMETRIA EM LIVROS DIDÁTICOS: ENTRE DIRECIONAMENTOS, CONTEXTOS E ENUNCIADOS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Matemática. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rúbia Barcelos Amaral Schio Rio Claro – SP 2022 G963e Guimarães, Douglas Ribeiro Educação matemática crítica permeando capítulos de geometria em livros didáticos : entre direcionamentos, contextos e enunciados / Douglas Ribeiro Guimarães. -- Rio Claro, 2022 267 p. : il., tabs. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro Orientadora: Rúbia Barcelos Amaral-Schio 1. Livro didático. 2. Educação matemática crítica. 3. Geometria. 4. Análise documental. 5. PNLD. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. DOUGLAS RIBEIRO GUIMARÃES EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CRÍTICA PERMEANDO CAPÍTULOS DE GEOMETRIA EM LIVROS DIDÁTICOS: ENTRE DIRECIONAMENTOS, CONTEXTOS E ENUNCIADOS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação Matemática, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Matemática. Comissão Examinadora Prof.ª Dr.ª Rúbia Barcelos Amaral Schio (UNESP) – orientadora Prof.ª Dr.ª Amanda Queiroz Moura (IFRS) Prof.ª Dr.ª Cristiane Azevêdo dos Santos Pessoa (UFPE) Resultado: Aprovado. Rio Claro/SP, 21 de dezembro de 2022. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Neuma e Sérgio, que me incentivaram a sempre estudar e compreenderam a minha ausência enquanto estava dedicado à realização deste trabalho. Obrigado por me oportunizarem a vinda para Rio Claro! Aos meus irmãos, Barbara, Nicolas e Sofia, por mostrarem preocupações quanto às mudanças de São Paulo para Rio Claro, sempre apoiando as decisões tomadas por mim. À minha orientadora, professora Rúbia, por ter desempenhado a orientação com dedicação e amizade. Rúbia, agradeço-a ou por sua compreensão e olhar atencioso durante todo o mestrado, mostrando-se mais do que uma orientadora. Às professoras Amanda e Cris, por comporem a banca de qualificação e defesa. Vocês me provaram que para realizar uma pesquisa científica o rigor acadêmico é imprescindível, mas, ao mesmo tempo, ele pode ser leve e descontraído. À Beatriz Litoldo e ao Lucas Mazzi por aceitarem serem membros suplentes da banca de defesa. Bia, você é uma pessoa rara que consegue ser firme nos argumentos e generosa nas contribuições. Mazzi, agradeço ainda pela proposta em compor um grupo de estudos sobre a Educação Matemática Crítica, que certamente contribuiu para a realização deste trabalho. À Ana Paula, parceira de pesquisa e amiga para todas as horas. Ana, muito obrigado por seu companheirismo e generosidade. Estivemos juntos nos momentos de alegria e tristeza, e reconheço você como uma pessoa inspiradora. Que venham mais parceiras, a fila de produções precisa andar! Ao grupo de pesquisa teorEMa, pelas leituras cuidadosas de todos os materiais que enviei para discussão. Agradecimento especial para Figas (Luis) e Luciana, pessoas que me mostraram outros olhares para a pesquisa e a trajetória no PPGEM. Vocês dois são muito iluminados, obrigado por estarem nesse caminho trilhado! Aos professores e professoras do PPGEM, que contribuíram direta ou indiretamente para esta pesquisa, além de ministrarem disciplinas importantes para minha formação enquanto professor e pesquisador: Ana Paula Malheiros, Fabiane Mondini, Heloisa da Silva, Maitê Zampieri, Marcelo Borba, Miriam Penteado, Ole Skovsmose, Roger Miarka e Rosana Miskulin. Aos colegas do PPGEM, cоm quem convivi intensamente durante os últimos anos, pela troca de experiências que me permitiram crescer não só como pessoa, mas também como pesquisador. Agradecimento especial para Katyane e Letícia, professoras, pesquisadoras e mulheres fortes que estão sempre dispostas a ajudar. Aos colegas da graduação que seguiram no PPGEM: Melão (Guilherme), Igor, Jéssica e Nathalia. À Elisa e Inajara, funcionárias do departamento e do PPGEM que se mostraram disponíveis a ajudar em todas as horas. Também aos funcionários da Seção Técnica de Pós- Graduação e da Biblioteca, pessoas que deram apoio na caminhada pelo Mestrado. A todos aqueles que contribuíram de alguma forma para a realização deste trabalho. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Por fim, agradeço também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio na realização do trabalho. RESUMO Os livros didáticos de Matemática são materiais que fazem parte do cotidiano escolar e evidenciam aspectos advindos de contextos sociais e culturais, além dos educacionais. Eles ainda podem ser vistos enquanto recursos passíveis de análise, no âmbito de investigações científicas. Sendo assim, assumindo uma perspectiva crítica da Educação Matemática para a pesquisa trazida nesta dissertação, objetivamos compreender como a Educação Matemática Crítica (EMC) permeia duas coleções de livros didáticos do Ensino Médio, no horizonte da Geometria. Para atender esse objetivo, alguns ‘conceitos’ da EMC foram colocados em discussão, seguindo a abordagem proposta por Ole Skovsmose. Logo, vemos ‘conceitos’ como expressões que dão conta de explicitar significados e qualificar interpretações sobre os dados, não conferindo um arcabouço teórico rígido para caracterizar a EMC. Dentre alguns desses, elegemos: a democracia e o papel sociopolítico da Educação Matemática; a ideologia da certeza; a matemacia; e os ambientes de aprendizagem. No que tange aos materiais analisados, escolhemos os capítulos destinados à abordagem da Geometria em livros didáticos de Matemática aprovados no edital de 2018 do Programa Nacional do Livro e do Material Didático. O recorte dado à Geometria nesses recursos deu-se pela falta de estudos identificada na revisão de literatura, quando os livros são tomados à luz da EMC, bem como devido ao escopo do nosso grupo de pesquisa, que possui como uma das preocupações investigar a presença da Geometria nesses materiais. Em termos metodológicos, foi adotada uma abordagem de investigação qualitativa com o delineamento da análise documental. Diante dessa conjuntura, e pensando em formas de apresentar os resultados da investigação, três eixos temáticos emergiram da análise, quais sejam: ‘livro didático de Matemática como direcionador da prática do professor e da aprendizagem dos alunos’; ‘Geometria como fonte de produção de contextos’; e ‘o papel dos enunciados sobre Geometria nos livros didáticos: do determinismo à formatação’. Como resultados, identificamos que entre direcionamentos, contextos e enunciados, o que se revelou nos dados evidencia um permear da EMC nos capítulos de Geometria dos materiais perquiridos, tanto diante de aspectos positivos, quanto de negativos. Tais aspectos foram compreendidos, por um lado, enquanto força que (re)produz uma ideologia da certeza matemática, fundamentada na perspectiva fechada que submete os alunos a ordens e que amarra o professor na limitação de outras formas de abordar conteúdos geométricos. Por outro lado, houve passagens nesses materiais que possibilitaram um desenvolvimento inicial da matemacia, considerada importante para a cidadania crítica e a competência democrática, além de fornecer situações em que investigações, diálogos e críticas sejam bases para reflexões sobre o conteúdo, suas aplicações, bem como suas implicações em aspectos sociais. Consideramos, a partir do exposto, que a pesquisa trouxe contribuições ao campo da Educação Matemática, em particular para a análise de livros didáticos e discussões teóricas alusivas aos conceitos da EMC utilizados. Ademais, vemos que preocupações voltadas aos processos de ensino e de aprendizagem de Matemática com qualidades críticas e reflexivas podem se tornar um meio para levar professores, estudantes e autores de livros didáticos a considerar e (re)pensar suas perspectivas. Palavras-chave: Livro didático; Educação matemática crítica; Geometria; Análise documental; PNLD. ABSTRACT Mathematics textbooks are materials that are part of everyday school life and show aspects arising from social and cultural contexts, in addition to educational ones. They can still be seen as resources that can be analyzed in the context of scientific investigations. Thus, assuming a critical perspective of Mathematics Education for the research presented in this dissertation, we aim to understand how Critical Mathematics Education (CME) permeates two collections of high school textbooks, in the horizon of Geometry. In order to meet this objective, some CME ‘concepts’ were discussed, following the approach proposed by Ole Skovsmose. Therefore, we see ‘concepts’ as expressions that explain meanings and qualify interpretations of data, not providing a rigid theoretical framework to characterize CME. Among some of these, we chose: democracy and the sociopolitical role of Mathematics Education; the ideology of certainty; mathemacy; and milieus of learning. With regard to the analyzed materials, we chose the chapters intended to approach Geometry in Mathematics textbooks approved in the 2018 public notice of the National Textbook and Teaching Material Program. The cut given to Geometry in these resources was due to the lack of studies identified in the literature review, when the textbooks are taken in the light of the CME, as well as due to the scope of our research group, which has as one of its concerns to investigate the presence of Geometry in these materials. In methodological terms, a qualitative research approach was adopted with the outline of documental analysis. Faced with this situation, and thinking about ways to present the results of the investigation, three thematic axes emerged from the analysis, namely: ‘Mathematics textbook as a guide for teacher practice and student learning’; ‘Geometry as a source of production of contexts’; and ‘the role of statements about Geometry in textbooks: from determinism to formatting’. As a result, we identified that between directions, contexts and statements, what was revealed in the data shows a permeation of CME in the Geometry chapters of the surveyed materials, both in terms of positive and negative aspects. Such aspects were understood, on the one hand, as a force that (re)produces an ideology of mathematical certainty, based on the closed perspective that submits students to orders and that binds the teacher in limiting other ways of approaching geometric contents. On the other hand, there were passages in these materials that enabled an initial development of mathemacy, considered important for critical citizenship and democratic competence, in addition to providing situations in which investigations, dialogues and criticisms are bases for reflections on the content, its applications, as well as its implications in social aspects. We consider, based on the above, that the research brought contributions to the field of Mathematics Education, in particular for the analysis of textbooks and theoretical discussions alluding to the concepts of CME used. In addition, we see that concerns related to the teaching and learning processes of Mathematics with critical and reflective qualities can become a means to lead teachers, students and authors of textbooks to consider and (re)think their perspectives. Keywords: Textbook; Critical mathematics education; Geometry; Documental analysis; PNLD. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Estrutura conceitual adotada na investigação. ........................................................ 88 Figura 2 – Exemplo de menções às páginas do livro do aluno na ‘Assessoria Pedagógica’.. 143 Figura 3 – Esquema que organiza as diferentes posições relativas entre duas retas. ............. 150 Figura 4 – ‘A medida da tela de um equipamento eletrônico’ presente em uma das seções ‘Como funciona’. .................................................................................................................... 155 Figura 5 – ‘A Matemática e as chuvas’ presente em uma das seções ‘Troque ideias’. .......... 158 Figura 6 – ‘GPS’ presente em uma das seções ‘Como funciona’. ......................................... 161 Figura 7 – Conceito de ‘Área da superfície de uma pirâmide’. .............................................. 169 Figura 8 – Atividade resolvida e atividade aos estudantes sobre o tópico ‘Área da superfície de uma pirâmide’. ................................................................................................................... 169 Figura 9 – Conceito de equação reduzida da circunferência. ................................................. 171 Figura 10 – Exemplos que mostram aplicações de equações reduzidas da circunferência. ... 172 Figura 11 – Escrita da equação reduzida da circunferência em exercícios resolvido e proposto. ................................................................................................................................................ 173 Figura 12 – ‘Conceito, exercício resolvido e exercício proposto’ por meio de representações geométricas. ............................................................................................................................ 174 Figura 13 – Exercícios resolvido e proposto que têm possibilidades de resoluções diferentes. ................................................................................................................................................ 175 Figura 14 – Possibilidade de exercício que rompe com a ideologia da certeza. .................... 175 Figura 15 – Exposição dos elementos ‘Pense nisto’ e ‘Quadro com múltiplas aplicações’, no livro do aluno das coleções. .................................................................................................... 178 Figura 16 – Possibilidade de convite à reflexão por meio de ‘Quadro com múltiplas aplicações’. ............................................................................................................................. 179 Figura 17 – Possibilidade de convite à reflexão por meio de boxe ‘Pense nisto’. ................. 179 Figura 18 – Páginas de abertura da unidade ‘Poliedros’. ....................................................... 182 Figura 19 – Páginas de abertura da unidade ‘Geometria Espacial’. ....................................... 185 Figura 20 – Subseção que rompe o padrão ‘conceito, exemplo e exercício’. ........................ 187 Figura 21 – Exercícios propostos que usam as ideias de acessibilidade. ............................... 188 Figura 22 – Boxes ‘Pense nisto’ presentes no decorrer da exposição sobre declividade e razões trigonométricas. ........................................................................................................... 189 Figura 23 – Rampa de acesso em atividade proposta aos alunos. .......................................... 191 Figura 24 – Cálculo de volume a partir de uma casquinha de sorvete. .................................. 193 Figura 25 – Cálculo de área superficial a partir de uma fatia de queijo. ................................ 194 Figura 26 – Modelo geométrico que representa posições relativas entre duas retas. ............. 203 Figura 27 – Modelo geométrico que representa procedimentos matemáticos. ...................... 205 Figura 28 – Exercícios propostos semelhantes ao foco do exemplo inicial. .......................... 206 Figura 29 – Modelo geométrico para o cálculo de área. ........................................................ 207 Figura 30 – Modelo geométrico para a confecção de um plano cartesiano. .......................... 207 Figura 31 – Uso de exemplo numérico para substituição de coeficientes. ............................. 213 Figura 32 – Uso de exemplo para reconhecimento de elementos em sólidos. ....................... 214 Figura 33 – Exercício resolvido em Matemática: Ciência e Aplicações com uso do verbo ‘determine’.............................................................................................................................. 215 Figura 34 – Atividade resolvida em Matemática: interação e tecnologia com uso do verbo ‘determine’.............................................................................................................................. 215 Figura 35 – Exercícios resolvidos em Matemática: Ciência e Aplicações com uso do ‘formato de pergunta’. ........................................................................................................................... 216 Figura 36 – Atividade resolvida em Matemática: interação e tecnologia com uso do ‘formato de pergunta’. ........................................................................................................................... 217 Figura 37 – Mudança de ambiente (4) para (6). ..................................................................... 228 Figura 38 – Mudança de ambiente (2) para (6). ..................................................................... 228 Figura 39 – Enunciado com uma cadeira ‘possivelmente real’ em situação puramente matemática. ............................................................................................................................. 230 Figura 40 – Enunciado com um balanço ‘possivelmente real’ e seu esquema puramente matemático.............................................................................................................................. 230 Figura 41 – Ampliação das referências usadas pelos ambientes de aprendizagem. ............... 231 Figura 42 – Exemplo de tarefa proposta para ser trabalhada ‘em grupo’. .............................. 233 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Tópicos e subtópicos das resenhas das obras de Matemática, aprovadas pelo PNLD 2018. .............................................................................................................................. 48 Quadro 2 – Ambientes/Milieus de aprendizagem..................................................................... 84 Quadro 3 – Capas dos livros didáticos analisados. ................................................................. 131 Quadro 4 – Estrutura organizacional dos dados da pesquisa.................................................. 134 Quadro 5 – Elementos textuais da coleção Matemática: Ciência e Aplicações. .................... 138 Quadro 6 – Elementos textuais da coleção Matemática: interação e tecnologia. ................. 141 Quadro 7 – Contexto ou pretexto da Geometria nos livros didáticos. .................................... 196 Quadro 8 – O verbo ‘determine’ nos enunciados voltados ao paradigma do exercício. ........ 219 Quadro 9 – Diferentes enunciados que indicam cenários para investigação em tarefas propostas. ................................................................................................................................ 223 Quadro 10 – Tarefas da semirrealidade. ................................................................................. 225 Quadro 11 – Periódicos investigados para busca de artigos científicos. ................................ 256 Quadro 12 – Análise do capítulo ‘Geometria Espacial’ da coleção Matemática: interação e tecnologia. .............................................................................................................................. 259 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Total de Teses e Dissertações encontradas. ............................................................ 90 Tabela 2 – Quantitativo de livros didáticos de Matemática no PNLD 2018, por ordem decrescente de distribuição. .................................................................................................... 129 Tabela 3 – Distribuição de exemplos e exercícios resolvidos e propostos na coleção Matemática: Ciência e Aplicações. ........................................................................................ 147 Tabela 4 – Distribuição de exemplos e atividades resolvidas e propostas na coleção Matemática: interação e tecnologia. ...................................................................................... 148 Tabela 5 – Quantitativo de tarefas resolvidas à luz dos ambientes de aprendizagem na coleção Matemática: Ciência e Aplicações. ........................................................................................ 212 Tabela 6 – Quantitativo de tarefas resolvidas à luz dos ambientes de aprendizagem na coleção Matemática: interação e tecnologia. ...................................................................................... 212 Tabela 7 – Quantitativo de tarefas propostas à luz dos ambientes de aprendizagem na coleção Matemática: Ciência e Aplicações. ........................................................................................ 218 Tabela 8 – Quantitativo de tarefas propostas à luz dos ambientes de aprendizagem na coleção Matemática: interação e tecnologia. ...................................................................................... 218 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 Justificativa da pesquisa ........................................................................................................ 17 Objetivos da investigação ....................................................................................................... 19 Estrutura da dissertação ........................................................................................................ 20 1 COMPREENSÕES SOBRE O LIVRO DIDÁTICO ............................................... 22 1.1 Livro didático .............................................................................................................. 22 1.2 Manual do professor ................................................................................................... 28 1.3 Livro didático de Matemática enquanto objeto de estudo ...................................... 33 1.4 Algumas das políticas públicas educacionais ........................................................... 37 1.4.1 Objetivos de cada documento ....................................................................................... 38 1.4.2 Proposta de organização curricular ............................................................................ 39 1.4.3 Compreensões sobre o ensino de Matemática .............................................................. 40 1.4.4 Papel dos materiais didáticos ....................................................................................... 42 1.5 Programa Nacional do Livro e do Material Didático .............................................. 43 1.5.1 Edital de convocação de obras didáticas ..................................................................... 44 1.5.2 Guia dos Livros Didáticos ............................................................................................ 46 1.5.3 Mudanças no PNLD: algumas reflexões ...................................................................... 49 1.6 Considerações do capítulo .......................................................................................... 51 2 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CRÍTICA ............................................................... 52 2.1 Do início: por que e para que Educação Matemática Crítica? .............................. 52 2.2 A democracia e o papel sociopolítico da Educação Matemática ............................ 59 2.3 Ideologia da certeza .................................................................................................... 66 2.4 Matemacia ................................................................................................................... 73 2.5 Ambientes de aprendizagem: paradigma do exercício e cenários para investigação ............................................................................................................................. 80 2.6 Considerações do capítulo .......................................................................................... 88 3 ENTRELAÇANDO A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CRÍTICA COM A ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS: uma revisão da literatura .................................... 89 3.1 Teses e Dissertações .................................................................................................... 89 3.1.1 Descrição das pesquisas ............................................................................................... 90 3.1.2 Aproximações e distanciamentos ................................................................................ 105 3.2 Artigos em periódicos ............................................................................................... 109 3.2.1 Descrição das pesquisas ............................................................................................. 109 3.2.2 Aproximações e distanciamentos ................................................................................ 111 3.3 Trabalhos em eventos ............................................................................................... 113 3.3.1 Descrição das pesquisas ............................................................................................. 114 3.3.2 Aproximações e distanciamentos ................................................................................ 116 3.4 Tecendo articulações: considerações a respeito dos achados na literatura ......... 118 4 METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS ............................................................ 122 4.1 Abordagem qualitativa ............................................................................................. 122 4.2 Análise documental ................................................................................................... 124 4.3 Escolhas da etapa escolar e seleção das coleções .................................................... 128 4.4 Procedimentos de análise: os passos que foram trilhados .................................... 132 5 ANÁLISE DOS DADOS: entre direcionamentos, contextos e enunciados ......... 136 5.1 Análise preliminar das obras ................................................................................... 136 5.2 Livro didático de Matemática como direcionador da prática do professor e da aprendizagem dos alunos ..................................................................................................... 148 5.3 Geometria como fonte de produção de contextos .................................................. 181 5.4 O papel dos enunciados sobre Geometria nos livros didáticos: do determinismo à formatação ............................................................................................................................. 211 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS: retomada da pesquisa, alguns resultados e sugestões de novas perguntas............................................................................................... 237 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 246 APÊNDICE A – LISTA DE PERIÓDICOS REVISADOS .............................................. 256 APÊNDICE B – EXEMPLO COM QUADRO DE ANÁLISE DOS DADOS ................ 259 13 INTRODUÇÃO O texto que se materializa nesta dissertação decorre de confluências entre minhas 1 perspectivas de estudo no âmbito da Educação Matemática e da orientação que venho recebendo desde o momento que tive a aprovação no processo seletivo de 2020, para ingresso no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (PPGEM), da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Câmpus de Rio Claro, ainda no ano de 2019. Da minha parte havia o grande interesse por estudar sobre a Educação Matemática Crítica (EMC), principalmente segundo as ideias de Ole Skovsmose. Na graduação (Licenciatura em Matemática, pela UNESP, Câmpus de Rio Claro), participei do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência 2 (Pibid), durante os anos de 2016 e 2018, e lá tive o primeiro contato com essa perspectiva da Educação Matemática. Naquela época, diante de atividades desenvolvidas no Ensino Médio, na escola que o Pibid atuava, iniciei as leituras sobre a EMC, por meio da orientação 3 da Prof.ª Dr.ª Célia Regina Roncato, que na época estava realizando seu doutorado no PPGEM, sob a orientação do professor Ole Skovsmose. As leituras iniciais envolveram de modo mais aprofundado a noção de cenários para investigação (SKOVSMOSE, 2000). Essa noção foi utilizada para o desenvolvimento de algumas ações na escola, com foco em explorações e explicações de conceitos matemáticos sobre matrizes, bem como suas operações (adição, subtração e multiplicação) e, também, sobre área e volume de sólidos geométricos, na particularidade de peças confeccionadas com materiais recicláveis. Ainda durante esse período, sempre que tive oportunidade de realizar trabalhos nas disciplinas da graduação eu optava por trazer a EMC. Esse foi o caso, por exemplo, de conseguir uma entrevista, à distância e de forma apenas escrita, com o professor Ole, quando 1 Em grande parte do texto vou utilizar a conjugação verbal na primeira pessoa do plural, por compreender que a dissertação é um trabalho colaborativo, que envolve minhas perspectivas, as de minha orientadora e, de modo indireto, meu grupo de pesquisa. Contudo, nesta Introdução e em alguns poucos momentos no restante do texto, opto por fazer a apresentação na primeira pessoa do singular, por entender que são visões e experiências apenas minhas. 2 Esse programa visa oportunizar aos alunos dos cursos de licenciatura uma aproximação com o cotidiano e o contexto de escolas públicas da Educação Básica. Para mais informações veja: https://www.gov.br/capes/pt- br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/educacao-basica/pibid/pibid. Acesso em: 17 jul. 2022. 3 Apesar de não ser uma orientação prevista no âmbito do Pibid, visto que esse Programa congrega um professor coordenador do projeto e alguns professores supervisores da escola, em nosso subprojeto havia a articulação entre alunos do PPGEM e os alunos participantes do Pibid. Desse modo, as orientações ocorriam com o professor coordenador e os supervisores, bem como com algum aluno do PPGEM, de modo que pudéssemos ter mais noções sobre a área da Educação Matemática e das linhas de pesquisa que os mestrandos e/ou doutorandos estavam seguindo. https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/educacao-basica/pibid/pibid https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/educacao-basica/pibid/pibid 14 cursei a disciplina de ‘História e Sociologia da Educação: questões da Educação Matemática’, com o objetivo de conhecer mais sobre sua perspectiva, num viés histórico. Diante desse interesse, ao buscar alternativas para minha formação enquanto professor, mas também com uma ideia de iniciar na pesquisa acadêmica, refleti sobre a possibilidade de ingressar no Curso de Mestrado do PPGEM. Ao observar os itens obrigatórios para prestar o processo seletivo, notei que havia a necessidade de escrita de um projeto de pesquisa. Naquele momento, não tinha a mínima noção do que era esse projeto e nem de como iniciar a sua escrita. A partir de algumas conversas com professores que estavam oferecendo vagas, procurei a Prof.ª Dr.ª Rúbia Barcelos Amaral Schio, que lecionou disciplinas durante minha graduação e sempre se mostrou uma pessoa e professora muito aberta ao diálogo. Ao explicitar meu interesse pelo processo seletivo do PPGEM, indaguei à professora Rúbia sobre quais temáticas ela vinha trabalhando nesse tempo e recebi o retorno sobre as pesquisas com livros didáticos de Matemática e a presença da Geometria nesses materiais. Assim, procurei escrever algum projeto alinhado com essa temática e que pudesse trazer os estudos desenvolvidos sobre a EMC. Nesse sentido, a pergunta de pesquisa presente no projeto era: como a EMC se faz presente nas tarefas contextualizadas de Geometria nos livros didáticos de Matemática do Ensino Médio? A EMC era considerada restrita aos cenários para investigação. À época, eu não tinha muitas leituras sobre estudos que estavam relacionados com o projeto que escrevi, ou seja, não havia realizado uma revisão da literatura que fosse pertinente ao objeto de estudo que me propunha a investigar. Após ter a aprovação para ingresso no PPGEM, muitos acontecimentos ocorreram durante a jornada do mestrado e o projeto foi sendo modificado em algumas etapas do percurso, de maneira que pudesse ser mais coerente e pertinente frente aos novos estudos e leituras. As disciplinas cursadas foram importantes para essa modificação uma vez que faltava clareza quanto aos procedimentos metodológicos, à constituição de um referencial teórico e o desenvolvimento da análise dos dados. Da mesma forma, a busca por pesquisas relacionadas com a temática do projeto inicial foi importante para readequar a proposta, que foi apresentada durante uma atividade do PPGEM, passados oito meses do ingresso no mestrado. Naquele momento, em agosto de 2020, a pergunta estava assim descrita: como a EMC se faz presente em duas coleções de livros didáticos do Ensino Médio? Nessa pergunta, a EMC levava em consideração outros ‘conceitos’ além dos cenários para investigação, como a democracia e o papel sociopolítico 15 da Educação Matemática, a ideologia da certeza e a matemacia, que foram observados a partir do estudo de Bennemann e Allevato (2012). Ainda nessa pergunta que estava sendo formulada, havia ampliação de questões metodológicas, uma vez que mantive os livros didáticos como objeto de estudo, mas a Geometria não estava mais presente de maneira explícita e a análise dos dados iria além das tarefas contextualizadas, ou seja, os livros seriam investigados a partir de todos os seus elementos, como os conteúdos e os exemplos apresentados. Diante de contribuições a partir da análise do projeto apresentado na atividade do PPGEM, retornei às reuniões de orientação e do grupo de pesquisa, onde pude me lançar em novas leituras, de maneira que o projeto não ficasse tão amplo, visto que o tempo do mestrado é curto e a análise dos livros por completo poderia se tornar um empecilho para a finalização da pesquisa. No final de 2020 e durante o ano de 2021, dois aspectos foram fundamentais para a reelaboração da pergunta de pesquisa: realização de uma revisão da literatura e constituição de um grupo de estudos sobre a EMC, liderado pelo Prof. Dr. Lucas Carato Mazzi. A revisão de literatura estava dirigida às pesquisas que analisaram livros didáticos e que trouxeram como aporte teórico a EMC. Nessa revisão, que será apresentada no texto, não encontrei pesquisas que se debruçaram em olhar para a Geometria, o que fez com que essa temática retornasse para meu horizonte de investigação. O grupo de estudos estava focado na leitura e aprofundamento das obras de Skovsmose, a saber: ‘Educação matemática crítica: a questão da democracia’ (SKOVSMOSE, 2001), ‘Educação crítica: incerteza, matemática, responsabilidade’ (SKOVSMOSE, 2007) e ‘Desafios da reflexão em educação matemática crítica’ (SKOVSMOSE, 2008). Não tenho dúvidas de que todas essas leituras foram primordiais para a compreensão sobre ‘conceitos’, noções e termos que Skovsmose apresenta sobre a EMC, bem como as discussões pelos membros do grupo tornaram essa tarefa mais prazerosa e envolvente. Desse modo, a pergunta de pesquisa que se coloca nesta investigação é: como conceitos da Educação Matemática Crítica permeiam livros didáticos do Ensino Médio, no âmbito da Geometria? Assim sendo, mantive novamente os livros didáticos como objeto de estudo e os ‘conceitos’ da EMC já mencionados, mas retornei com a Geometria como pano de fundo para a análise dos dados. Destaquei em aspas simples a palavra ‘conceitos’, pois cabe ponderar sobre ela antes de seguir na escrita. Seu uso está relacionado com o estudo oriundo da obra ‘Um convite à Educação Matemática Crítica’ (SKOVSMOSE, 2014). Nesta obra, o professor Ole traz alguns 16 conceitos que o auxiliam na exposição de suas ‘preocupações’ em torno da Educação Matemática e explica: Da maneira como eu concebo a educação matemática crítica, ela não se reduz a uma subárea da educação matemática; assim como ela não se ocupa de metodologias e técnicas pedagógicas ou conteúdos programáticos. A educação matemática crítica é a expressão de preocupações a respeito da educação matemática. Preocupações que podem ser expressas mediante o emprego de alguns poucos termos que pretendo apresentar. A frágil rede que esses conceitos formam não chega a constituir uma doutrina sólida e estabelecida da educação matemática crítica. Seria exagero pensar assim. Ainda que essa rede seja rudimentar e frágil, as preocupações mostram-se abrangentes e profundas (SKOVSMOSE, 2014, p. 11, grifos meus). Nesse sentido, busco seguir uma linha semelhante quando questiono por ‘conceitos’ que podem permear os livros didáticos, no que tange os capítulos de Geometria. Eles não são tomados como únicos para estabelecer toda a compreensão sobre a EMC, no entanto, colaboram para um entendimento mais claro sobre o que está sendo adotado na pesquisa. Compreendo que essa introdução mostrou alguns dos caminhos pelos quais trilhei na busca por apresentar uma pergunta de pesquisa que estivesse mais adequada frente ao que gostaria de investigar, mas também que mostrasse consonância com as perspectivas da minha orientadora e, implicitamente, do grupo de pesquisa que faço parte. Como trazem Araújo e Borba (2019), a constituição da pergunta passa por diversas mudanças, sendo necessário um aprofundamento por parte do pesquisador. Coaduno a essa visão dos autores, uma vez que mencionam sobre a importância do autor de um texto divulgar esse complexo caminho até apresentar uma pergunta de pesquisa mais bem formulada. Desse modo, a pergunta que se apresenta é uma síntese da longa jornada experienciada por mim, como pesquisador, e que ela mesma faz parte do processo de sua própria construção (ARAÚJO; BORBA, 2019). Assim sendo, considero que apresentar esse caminhar da pesquisa por meio de mudanças na redação da pergunta que se propõe a investigar – não apenas em relação às palavras que a constituem, mas sim nos diferentes significados que ela carrega em termos teóricos, metodológicos e analíticos da pesquisa, – é importante para que haja reflexões sobre a construção realizada e que é materializada no presente texto. Expostos esses argumentos iniciais e inserindo agora perspectivas que coadunam à troca na escrita para a 1ª pessoa do plural, nas próximas seções apresentamos, respectivamente, a justificativa da pesquisa, seus objetivos e a estrutura do texto. Esperamos responder alguns questionamentos pertinentes quanto à pesquisa que foi desenvolvida, como, por exemplo, a relevância e a pertinência da investigação, as discussões teóricas assumidas e os objetos de estudo analisados. 17 Justificativa da pesquisa Os livros didáticos são considerados materiais importantes no que tange o ensino e a aprendizagem de alguma área do conhecimento ou disciplina escolar. Por vezes, a depender da localidade, acabam sendo os únicos materiais utilizados por professores e alunos para o planejamento e desenvolvimento das aulas. Nesse sentido, estudar esses objetos é relevante de um ponto de vista social, cultural e educacional. Ao tomar os livros didáticos como objetos de estudo, na pesquisa científica, há uma gama de possibilidades sobre o que olhar nessas obras: desde seu conteúdo propriamente exposto até seu papel enquanto um produto cultural. No que se refere às escolhas metodológicas, também existe uma diversidade de abordagens e procedimentos que se descortinam a quem pretende iniciar alguma investigação. Além disso, optar por algum referencial teórico, por vezes, acaba sendo uma tarefa bastante complexa, uma vez que é importante sua articulação com a metodologia escolhida. Por exemplo, se olharemos para a forma com que o conteúdo é apresentado, quais quadros conceituais são pertinentes para interpretar esses dados? Diante do exposto, explicitar o objeto de estudo, a metodologia e o referencial teórico da pesquisa é um aspecto que consideramos pertinente ao buscar as justificativas que argumentam, favoravelmente, ao desenvolvimento de nossa investigação. Sendo assim, de modo sintético, em nossa pesquisa essa trinca é formada por livros didáticos de Matemática do Ensino Médio, analisados em uma abordagem qualitativa à luz de conceitos da EMC. Os livros didáticos de Matemática do Ensino Médio escolhidos fazem parte da lista de obras aprovadas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), no edital de 2018. Esse programa tem abrangência em todo o território brasileiro e impacta fortemente os materiais que chegam até as salas de aula das escolas públicas do país. Assim, justificamos que analisar livros que fazem parte do PNLD é relevante para contribuir com o fortalecimento dessa política pública educacional. A escolha por esse edital e não um mais atual decorreu porque o inicio da investigação foi em 2020. Nessa época, o novo edital do PNLD, que seria o primeiro com obras para o Novo Ensino Médio estava sendo elaborado. Com a pandemia de Covid-19 houve a ampliação do tempo de uso dos livros do PNLD 2018 até o ano de 2021. No universo de livros aprovados, ou seja, oito coleções para a área de Matemática, a opção foi por analisar duas delas. Elas foram selecionadas partindo de alguns critérios: predominância/ausência da coleção em outros editais do PNLD; mais/menos distribuídas às 18 escolas; e o acesso disponibilizado por meio de doações de escolas e/ou professores 4 . Desse modo, as coleções analisadas na pesquisa são: Matemática: Ciência e Aplicações de Iezzi et al. (2016a; 2016b; 2016c), que foi a mais distribuída pelo PNLD 2018, estando presente em outros editais; e Matemática: interação e tecnologia de Balestri (2016a; 2016b; 2016c), que abarca obras ainda não figuradas em outros editais do PNLD, além de ter sido a segunda coleção menos distribuída em 2018 (não tivemos acesso a outras obras menos distribuídas). Em termos metodológicos, assumimos a abordagem qualitativa com os procedimentos advindos da análise documental. Essa escolha ocorreu por compreendermos que a pergunta de pesquisa elaborada no decorrer da investigação é aderente a essa abordagem. Assim, temos uma preocupação com descrições e interpretações de dados que são majoritariamente qualitativos, tais como textos, figuras e enunciados. Em relação ao referencial teórico, ele está em consonância com as perspectivas trazidas anteriormente. Dentre os variados conceitos que a EMC abarca, os selecionados para compor nosso referencial vieram, primeiramente, a partir do estudo de Bennemann e Allevato (2012), que realizaram uma análise nas obras de Skovsmose (2001; 2007; 2008). Em seguida, foram estruturados a partir das reflexões no grupo de estudos e ampliados a partir de outros escritos, tais como Alrø e Skovsmose (2010), Borba e Skovsmose (2001) e Skovsmose (1994; 2000; 2014; 2021a; 2021b). Sendo assim, os conceitos que fazem parte do nosso referencial são: a democracia e o papel sociopolítico da Educação Matemática, a ideologia da certeza, a matemacia e os ambientes de aprendizagem, compostos pelo paradigma do exercício e os cenários para investigação. Apesar desse recorte, outros conceitos, termos e noções vão sendo discutidos ao longo do texto, sobretudo no capítulo destinado ao referencial. Cabe enfatizar que a escolha por esses conceitos ocorreu, sobretudo, devido ao estudo realizado no grupo citado anteriormente, em que se desvelou a pertinência deles diante da defesa por assumir a EMC ao analisar os livros didáticos. Nessa linha, justificamos que eleger a EMC como o referencial teórico da pesquisa está atrelado ao que entendemos em relação ao ensino e à aprendizagem de Matemática, ao papel da Educação Matemática na sociedade, à formação dos professores e dos alunos num viés crítico e reflexivo e à elaboração de livros e materiais didáticos que possam apoiar e subsidiar práticas pedagógicas que considerem esses mesmos elementos. Assim, vemos que essas justificativas indicam nossas ‘preocupações’ diante do que se busca compreender nos 4 Destacamos que os livros didáticos destinados ao PNLD não são comercializáveis e, como resultado, nem todas as obras aprovadas pelo Programa são acessíveis aos pesquisadores. 19 dados, sendo que os conceitos escolhidos colaboram para essa exposição, bem como para a interpretação subsequente ao que é analisado/compreendido. Extrapolando a trinca apresentada, é importante fazer outra consideração que justifique o recorte nos dados: o olhar para os capítulos de Geometria. Esse recorte decorreu da revisão de literatura realizada que identificou, entre outros conteúdos matemáticos, que a Geometria não foi objeto de discussão pelos pesquisadores. Ademais, essa escolha tornou-se importante devido às pesquisas que nosso grupo vem desenvolvendo, o que contribui com o debate sobre os dados produzidos e analisados por nós, no que se refere à Geometria. Consideramos que diante dos argumentos apresentados, a pesquisa se justifica pela articulação entre os objetos de estudo escolhidos, a metodologia empregada e o referencial teórico assumido, bem como pela relevância em investigar a presença da Geometria nesses materiais, uma vez que não foram encontrados estudos nessa vertente. Objetivos da investigação Diante da nossa pergunta de pesquisa, a saber: ‘como conceitos da Educação Matemática Crítica permeiam livros didáticos do Ensino Médio, no âmbito da Geometria?’, estabelecemos como objetivo geral da investigação compreender como a Educação Matemática Crítica permeia duas coleções de livros didáticos do Ensino Médio, no horizonte da Geometria. Esse objetivo geral desdobra-se em dois objetivos específicos, quais sejam:  Caracterizar quais e de que forma conceitos da Educação Matemática Crítica perpassam em capítulos de Geometria, a partir de conceitos matemáticos, situações, exemplos, exercícios (propostos e resolvidos) e demais atividades;  Compreender se e como as orientações didáticas, contidas no manual do professor de Matemática, estão em consonância com conceitos da Educação Matemática Crítica. Assim sendo, o propósito da investigação é realizar a análise de livros didáticos de Matemática, especificamente os capítulos de Geometria, na busca por compreender conceitos da EMC no que tange aspectos estruturais e do conteúdo desses materiais, identificando-os tanto no que é apresentado aos estudantes do Ensino Médio, quanto ao professor de Matemática que venha a utilizar essas obras didáticas. 20 Estrutura da dissertação Organizamos o texto que é oriundo da pesquisa desenvolvida no mestrado em seis capítulos, sem contar com a presente Introdução. Nesta, apresentamos alguns dos caminhos trilhados por meio das diferentes perguntas de pesquisa, além de justificar o que nos propomos a investigar, bem como delimitar o objetivo geral e os objetivos específicos. O primeiro capítulo é intitulado “Compreensões sobre o livro didático”, em que objetivamos situar o livro didático frente algumas discussões teóricas presentes na literatura, da mesma forma que apresentar o manual do professor como objeto de estudo relevante por ser um recurso de formação para o docente. Além disso, procuramos especificar o livro didático de Matemática como um material passível de análise; trazer alguns documentos que abrangem políticas públicas educacionais; e apresentar o Programa Nacional do Livro e do Material Didático. O segundo capítulo, “Educação Matemática Crítica”, aborda nosso referencial teórico de acordo, principalmente, com os estudos de Ole Skovsmose. Trazemos nossa compreensão dessa perspectiva, explicitando brevemente a respeito da trajetória dessa vertente no campo da Educação Matemática e pontuamos os conceitos que fundamentam a estrutura teórica que foi utilizada como lente para a análise dos livros didáticos. Nesse capítulo são discutidos a democracia e o papel sociopolítico da Educação Matemática, a ideologia da certeza, a matemacia e os ambientes de aprendizagem. No terceiro capítulo, “Entrelaçando a Educação Matemática Crítica com a análise de livros didáticos: uma revisão da literatura”, o foco está na apresentação de pesquisas que coadunam com a nossa, ou seja, investigações que analisaram livros didáticos à luz da Educação Matemática Crítica. Nessa revisão da literatura foram encontrados textos no formato de dissertações, artigos científicos oriundos de revistas da Educação Matemática e/ou áreas afins, bem como trabalhos publicados em eventos representativos do campo, como o Encontro Nacional de Educação Matemática. Trazemos, no quarto capítulo, “Metodologia e procedimentos” da investigação. A intenção deste é mostrar a abordagem qualitativa de pesquisa como a assumida, bem como explicitar características e procedimentos metodológicos, sobretudo a análise documental enquanto uma forma procedimental para realizar a pesquisa. Nesse capítulo também são descritos os livros didáticos que foram nosso objeto de estudo, como foram escolhidos e de que forma organizamos e analisamos os dados. 21 O quinto capítulo é destinado à “Análise dos dados: entre direcionamentos, contextos e enunciados”, em que descrevemos características preliminares dos livros didáticos e depois mostramos por meio dos eixos temáticos que emergiram da análise, nossa interpretação dos dados à luz dos conceitos da Educação Matemática Crítica e, também, das pesquisas revisadas e das discussões teóricas sobre o livro didático. No sexto e último capítulo apresentamos as “Considerações finais: retomada da pesquisa, alguns resultados e sugestões de novas perguntas”, em que sintetizamos o desenvolvimento da investigação, destacamos resultados e inserimos novos questionamentos para futuros estudos. Ao final deste capítulo são trazidos a lista de referências bibliográficas e os apêndices, um com o rol das revistas perquiridas para parte da revisão de literatura e o último contendo um quadro que exemplifica a interpretação diante dos dados analisados, considerando sua pertinência para contribuir com a pesquisa sobre livros didáticos. 22 1 COMPREENSÕES SOBRE O LIVRO DIDÁTICO A partir do exposto anteriormente, este capítulo terá como foco as compreensões sobre o livro didático à luz das discussões trazidas na literatura. Mostraremos um olhar além do livro usado pelos estudantes, incluindo os manuais do professor. A proposta de situar o livro didático de Matemática como objeto de estudo, bem como trazer as vertentes curriculares e de documentos oficiais também é importante, visto que aborda um tema central na presente investigação. Assim, o capítulo está estruturado com as seguintes seções: livro didático, manual do professor, livro didático de Matemática enquanto objeto de estudo, algumas das políticas públicas educacionais, Programa Nacional do Livro e do Material Didático e, por fim, considerações do capítulo. Acreditamos que a pertinência de analisar o livro didático se justifica não apenas pela característica de ser um material que faz parte da prática pedagógica, mas por evidenciar aspectos relacionados com políticas públicas, visões econômicas, sociais, educacionais, culturais e éticas presentes na sociedade, além dos processos, em geral, de ensino e aprendizagem e, em particular, de Matemática. 1.1 Livro didático Identificamos na literatura uma ampla discussão sobre livro didático. Desde aspectos de elaboração, produção, distribuição e comercialização até a utilização em sala de aula. Da mesma forma, são encontradas perspectivas com olhares para as políticas curriculares, os períodos históricos ou as funções que esse tipo de material didático possui. Assim, sem pretensão de esgotar as compreensões a respeito do livro didático, apresentamos algumas reflexões para embasar nossa visão sobre esse recurso 5 . Para Lajolo (1996), por exemplo, os livros são um dos elementos mais essenciais que influem de modo direto na aprendizagem. Apesar de a autora fazer uma distinção entre livros didáticos e não-didáticos, ela compreende que ambos “[...] são centrais na produção, circulação e apropriação de conhecimentos, sobretudo dos conhecimentos por cuja difusão a escola é responsável” (LAJOLO, 1996, p. 4). Cabe dizer que o livro não-didático, na visão dela, dispensa seus leitores da ultrapassagem da leitura individual, apesar dessa leitura ser 5 Não fazemos distinção entre material, material didático, recurso, entre outros termos para se referir ao livro didático. Assim, usamos termos diferentes de modo que repetições sejam evitadas. 23 entendida de modo amplo, como a possibilidade de alteração e produção de significados de quem lê o livro. O livro didático, por sua vez, é aquele “[...] que vai ser utilizado em aulas e cursos, que provavelmente foi escrito, editado, vendido e comprado, tendo em vista essa utilização escolar e sistemática” (LAJOLO, 1996, p. 4). A autora ainda destaca a importância desse material no cenário educacional brasileiro, em que a precária situação “[...] faz com que ele acabe determinando conteúdos e condicionando estratégias de ensino, marcando, pois, de forma decisiva, o que se ensina e como se ensina o que se ensina” (LAJOLO, p. 4, grifos da autora). Mesmo reconhecendo que outros materiais estão presentes nas práticas escolares, a autora considera que o livro pode ter um papel decisivo na qualidade da aprendizagem. Outra questão que concordamos com Lajolo (1996) refere-se ao processo de leitura das informações que os livros apresentam, mas de modo atrelado com a realização das atividades. Em outras palavras, não basta que os alunos leiam o que os autores escrevem nas páginas dos livros, eles também precisam desenvolver as atividades que são inerentes às informações, ilustrações, tabelas, diagramas, entre outros elementos ali colocados, contribuindo para a aprendizagem dos conteúdos, dos valores e das atitudes, num processo de participação coletiva em sala de aula. Compreendemos que além desse papel importante do livro didático frente aos processos educacionais, questões éticas precisam de reflexões, assim, [...] um livro didático não pode construir seus significados a partir de valores indesejáveis. Não pode, por exemplo, endossar discriminação contra certos grupos sociais, nem propor a lei do mais forte como estratégia para solucionar diferenças. Em hipótese alguma um livro didático pode endossar, nem mesmo de maneira indireta, comportamentos inspirados em tais valores ou aplaudir atitudes que os reforcem ou incentivem, porque tais comportamentos e valores não fazem (e nem devem fazer) parte do alicerce ético da sociedade brasileira (LAJOLO, 1996, p. 6-7, grifo da autora). Desse modo, assumimos a relevância do livro didático no contexto do ensino e da aprendizagem de determinada disciplina, considerando que esse material é de uso cotidiano em sala de aula, auxiliando o professor em sua ação docente e oportunizando aos alunos experiências que, juntas com as que eles possuem, podem levar a outros significados sobre o processo de produção de conhecimento na sociedade, incluindo as reflexões sobre a ética inerente a esse processo. Outro autor que discute sobre os livros didáticos é Machado (1996), que traz a análise de quatro pontos em torno desses materiais, a saber: qualidade, quantidade, custo e atualização. A qualidade dos livros pode estar ligada com a sua forma de utilização e com os 24 eventuais erros que estariam neles contidos. Para o autor, afirmações generalizadas de que todos os livros são de má qualidade precisam ser evitadas. Segundo ele, o papel dos livros frente aos outros materiais disponíveis para o professor deve ser redimensionado, visto que muitos atribuem livros didáticos como os instrumentos mais importantes para a prática docente. No que tange à quantidade, o autor não esconde sua crítica ao elevado número de livros que são distribuídos aos estudantes. Para Machado (1996, p. 37), a distribuição “[...] deveria visar fundamentalmente às escolas e não aos alunos [...]”, caracterizando um processo mais estável para a reposição de materiais às bibliotecas. Apesar disso, ele reconhece que as questões econômicas têm impacto para que isso não seja possível, uma vez que as editoras possuem seus interesses comerciais. Não há dúvidas de que as vendas de exemplares no âmbito do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), por exemplo, o qual explicaremos na seção 1.5, fornecem altos lucros para o mercado editorial brasileiro, haja vista a movimentação grandiosa de dinheiro na aquisição das obras aprovadas pelos editais do Programa. Em relação ao custo, também ligado com a quantidade de exemplares, há a necessidade de reflexões. Machado (1996) faz ponderações sobre as qualidades gráficas dos livros didáticos que visam apenas um modo ‘supérfluo’, recorrendo aos tipos de papel mais sofisticados e ao uso de cores diversas. A respeito dessas últimas afirma que muitas “[...] páginas coloridas o são de modo perfunctório e artificioso, funcionando, na melhor das hipóteses, como cenários de fogos de artifícios, com idêntica fugacidade, e em muitos casos, como mera poluição visual” (MACHADO, 1996, p. 34). Ele defende, assim como ocorre em alguns países, a possibilidade de reduzir o custo da produção desses materiais, mas sem perder a qualidade. No tocante à atualização dos livros didáticos, Machado (1996, p. 38) considera que a desatualização desses materiais “[...] efetivamente existe, mas não se refere, em geral, aos conteúdos tratados nas diversas áreas do conhecimento, nem aos recursos formais para a elaboração do livro enquanto objeto [...]”. Para ele, a questão da concepção de conhecimento (geralmente cartesiano) em relação aos temas que as disciplinas se ocupam parece indicar o maior problema, uma vez que tal concepção vai de encontro com, por exemplo, as perspectivas do mundo do trabalho. Nesse sentido, a hierarquização, os pré-requisitos, a linearidade, a ordenação, entre outros aspectos subjacentes ao modo de organizar os livros, são conflituosos com a proposta do espaço extraescolar. 25 Parece-nos claro que os quatro pontos trazidos por Machado (1996) estão intimamente conectados. Discutir qualidade, quantidade, custo e atualização de livros didáticos indica que questões colocadas há mais de vinte anos continuam sendo importantes. Citamos, por exemplo, a visão de conhecimento presente nos materiais que permanece semelhante, as dificuldades de algumas escolas possuírem livros suficientes ou outras que recebem materiais em excesso, além da dependência desses recursos para a prática docente, que se configuram como os únicos em sala de aula (GONÇALVES, 2022). Como trazem, por exemplo, Ribeiro e Amaral (2016), ao analisar Objetos Educacionais Digitais (OED 6 ) presentes em livros didáticos, foi constatada uma baixa interatividade nas propostas trazidas pelos autores desses materiais, bem como limitando o uso dos OED ao método tradicional de exposição de conteúdo seguido por exercícios. Esse dado é relevante visto que a análise decorreu em livros recentes, dentre os utilizados nos Anos Finais do Ensino Fundamental, o que traz à tona os pontos de custo e atualização abordados por Machado (1996) anos atrás. Ou seja, são mobilizados recursos “[...] pelo seu caráter lúdico, estético e atrativo [...]” (RIBEIRO; AMARAL, 2016, p. 67), mas são mantidas as concepções de conhecimento que limitam a atuação docente ao tradicionalismo. Outra contribuição da literatura pode ser vista com o trabalho de Choppin (2004), que, a partir de estudos históricos, descreve funções essenciais sobre os livros didáticos. Essas funções ocorrem de modo conjunto ou não, pois dependem do nível de ensino em que os livros são destinados, da época em que foram produzidos, do ambiente sociocultural, das formas de utilização e dos métodos ali contidos. As funções são nomeadas como referencial, ideológica e cultural, instrumental e documental. A função referencial (curricular ou programática) existe em decorrência de um programa de ensino. Dessa forma, o livro “[...] constitui o suporte privilegiado dos conteúdos educativos, o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo social acredita que seja necessário transmitir às novas gerações” (CHOPPIN, 2004, p. 553). Nesse sentido, podemos dizer que a função referencial do livro didático está atrelada com um currículo oficial posto por determinado grupo, em algum tempo histórico particular. Segundo Choppin (2004, p. 553), a função ideológica e cultural é a mais antiga, pois “[...] o livro didático se afirmou como um dos vetores essenciais da língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes”. Nessa função, o autor ressalta que o livro assume a forma de ‘símbolo da soberania nacional’, contribuindo para um papel político e para a constituição de 6 Os OED são objetos que devem ser complementares e estarem articulados com o conteúdo proposto pelos autores dos livros didáticos (RIBEIRO; AMARAL, 2016). 26 certo sujeito, de sua identidade. Ademais, percebemos que esse entendimento também é mencionado por Lajolo (1996), visto que além dos conteúdos a serem aprendidos, há valores e atitudes presentes nesse material. A função instrumental “[...] põe em prática métodos de aprendizagem [...]” (CHOPPIN, 2004, p. 553), que dependendo do contexto, ajudam na apreensão de competências, habilidades e métodos de análise para a resolução de problemas, assim como apresentam propostas de atividades e exercícios. Compreendemos que essa função está ligada com o uso do livro em sala de aula, por exemplo, por professor e alunos. Nesse caso, contribuindo para o planejamento e organização da prática escolar, mostrando quais e de que forma os conteúdos podem ser trabalhados. Já a função documental do livro didático “[...] pode fornecer um conjunto de documentos, textuais ou icônicos, cuja observação ou confrontação podem vir a desenvolver o espírito crítico do aluno” (CHOPPIN, 2004, p. 553). O autor destaca que essa função é recente e que pode ser identificada, com exceções, nos ambientes em que os alunos são levados à autonomia. Além disso, essa função poderia ser associada com a prática de investigação, no sentido de que os estudantes busquem alguns saberes e, cabendo ao professor, uma elevada formação para conduzir esse processo. Apesar dessas funções indicarem um papel relevante para os livros didáticos, Choppin (2004), assim como Lajolo (1996), compreende que outros materiais didáticos, sejam impressos ou produzidos com diferentes suportes (audiovisuais, internet, softwares etc.), também compõem o rol de instrumentos utilizados no ensino e na aprendizagem de alguma disciplina escolar. Desse modo, o livro “[...] não tem mais existência independente, mas torna- se um elemento constitutivo de um conjunto multimídia” (CHOPPIN, 2004, p. 553). O autor ainda considera que no decorrer da ‘vida’ de um livro, partindo da concepção de quem o escreveu até o momento de descarte pelo professor (embora veja como ideal a conservação desse material), diversos agentes estão envolvidos: além dos já citados, temos os pais, as associações, os sindicatos, os técnicos, os bibliotecários, entre outros parceiros (CHOPPIN, 2004). Isso nos mostra que aquele livro didático que está em sala de aula, muitas vezes armazenado em armários da escola ou nas casas dos estudantes e do professor, possui uma história e um papel de importância no contexto de sua “[...] elaboração (documentação, escrita, paginação, etc.), realização material (composição, impressão, encadernação, etc.), comercialização e distribuição [...]” (CHOPPIN, 2004, p. 554). A discussão do livro didático enquanto uma mercadoria (comercialização) também encontra amparo na literatura, visto que não é possível “[...] abstrair do livro – e do livro 27 didático – a determinação de que ele é, antes de tudo, produzido para o mercado [...]” (MUNAKATA, 2012a, p. 184). Tal afirmação se faz relevante, visto que no cenário brasileiro, em que os livros são distribuídos para os estudantes das escolas públicas por meio das políticas, a movimentação do mercado editorial na compra de materiais pelo Estado é grande, passando da ordem de um bilhão de reais 7 . Essa situação faz com que cada vez mais as editoras, no Brasil, busquem “[...] se adequar às exigências do governo, que se traduzem em Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e nas determinações específicas de cada edital do PNLD, além das idiossincrasias dos avaliadores [...]” (MUNAKATA, 2012b, p. 62). Desse modo, livros aprovados no âmbito do PNLD, por exemplo, costumam sofrer poucas alterações entre um edital e outro (AMARAL-SCHIO, 2018). Conforme dados da Câmara Brasileira do Livro, ao longo da série histórica de 2006 a 2018 sobre produção e vendas do setor editorial brasileiro, a compra dos livros didáticos pelo Estado variou, em média, entre 40% e 50%, ou seja, no decorrer desse período o Estado adquiriu quase metade dos livros que eram produzidos. Os exemplares vendidos, com exceção de 2006, passaram de 100 milhões de obras a cada ano. Além disso, o faturamento, ajustado pela variação acumulada do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) de 2018, ficou sempre acima de um bilhão de reais ao ano (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, [2018]). Apesar disso, as editoras em si não dependem, exclusivamente, do Estado. Vender os livros diretamente para os consumidores e as livrarias pode ser um negócio, também, proveitoso (SILVA, 2010). Isso se deve ao fato de que os livros comprados pelo Estado custam menos, quando comparados com os exemplares vendidos fora dessa esfera (MACHADO, 1996). Atrelado com esse papel de mercadoria, ou seja, com os interesses econômicos, está a própria configuração de uma influência política em torno do livro didático. Conforme apontado por Silva (2010), além de o Estado comprar os livros, por meio do PNLD, ele também faz a regulação e a avaliação das obras, “[...] configurando-se assim como o elemento chave de todo o processo” (SILVA, 2010, p. 56). Discorreremos mais sobre o PNLD enquanto política sobre os livros didáticos na seção 1.5. Essa influência política, que entendemos se relacionar com a função referencial, visto que parte de um currículo oficial proposto por grupos que estão no poder, também está 7 Essa constatação pode ser vista no próprio site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que aponta os gastos com a aquisição de obras didáticas, nos últimos anos, no âmbito do PNLD. Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/programas-do- livro/pnld/dados-estatisticos. Acesso em: 04 set. 2021. https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos 28 direcionada pela função ideológica e cultural, uma vez que há valores e atitudes disseminados por meio do livro didático. Assim, ter um olhar também mais crítico e reflexivo sobre esse tipo de material didático, não apenas pelos conteúdos que são elencados, mas pela forma como são propostos e pelas relações ou situações criadas, precisa ser considerado como ponto de discussão. Diante do exposto e articulando a literatura frente ao que foi trazido, consideramos o livro didático um material elaborado e concebido por seus autores diante de perspectivas curriculares situadas em certo período histórico, distribuído e comercializado segundo uma visão econômica por parte do mercado editorial, para ser utilizado como um instrumento da prática pedagógica dos professores e contribuindo com os processos de aprendizagem dos estudantes. Não obstante, ele se configura como um vetor de identidades, colocando valores e atitudes para a formação de certo aluno e conduzindo, em determinada medida, para visões que levem a reflexões sobre alguma situação que ocorre na sociedade. Uma consideração importante, no entanto, deve ser feita com relação ao manual do professor e isso será tratado na próxima seção. Não apenas o livro didático enquanto objeto para uso na prática de sala de aula, destinado aos estudantes, mas o caráter de compor um tipo de ‘formação complementar’ ou ‘continuada’, que se configura no manual do professor, precisa ser um ponto de atenção. 1.2 Manual do professor Diferentemente de um manual com instruções sobre a instalação de um equipamento ou de um receituário que objetiva a elaboração de algum prato culinário, o manual do professor 8 , no âmbito de alguma disciplina, precisa ser composto por elementos que vão além da resolução de exercícios propostos aos estudantes e das pequenas frases, geralmente em cor diferente do texto, ao longo do livro do aluno. Nesse sentido, Lajolo (1996) argumenta que os livros (manuais) do professor devem manter uma interação com o seu leitor, ou seja, um diálogo frente ao objetivo que têm em comum: o processo de ensino que visa beneficiar o estudante. Não obstante, a autora pontua que os autores precisam ‘pôr as cartas na mesa’, isto é, devem dizer ao professor quais as 8 Aqui estamos adotando o mesmo termo que o PNLD se refere. Outros nomes também são encontrados quando dizemos sobre o manual do professor, por exemplo: livro do professor, livro do mestre, orientações ao professor, exemplar do professor, caderno de orientações pedagógicas, manual pedagógico, assessoria pedagógica, guia e recursos didáticos, suplemento do professor ou apoio didático (NOGUEIRA, 2018; PAULILO, 2012). 29 concepções de educação, quais os pressupostos teóricos e qual a fundamentação da disciplina que assumem, estando conectadas com as questões educacionais e de aprendizagem. Essa visão também se complementa com a de Silva (2010), que compreende, além das sugestões para o trabalho docente e a utilização do manual, que as bases teóricas consideradas, as concepções didáticas e os embasamentos usados na produção do material estejam presentes para o conhecimento do professor. Mesmo Silva (2010, p. 75) afirmando que os professores deveriam “[...] assumir a iniciativa de buscar essas informações e conhecimentos diretamente nas fontes ou, ao menos, nas macro-referências legais [...]”, o manual precisa se encarregar dessa tarefa, uma vez que foram avaliados segundo esses aspectos curriculares. Lopes (2009) também faz ponderações sobre o manual do professor, situando questões importantes em torno desse material e de sua utilização: Tem acontecido que, pela formação deficitária do professor, pelas condições precárias de trabalho – incluindo baixo salário, excesso de horas de trabalho dentro e fora da escola, número excessivo de aluno em sala e heterogeneidade social e cultural dos alunos – e ainda pela falta de uma boa política de formação continuada, o livro didático torna-se a solução, decidindo o conteúdo a ser trabalhado, formulando os exercícios e problemas a serem resolvidos e orientando o professor através do manual do professor ou do livro do professor, em que se encontram sugestões para as aulas e também as respostas ou soluções dos exercícios. Nessas circunstâncias, o autor do livro didático passa a exercer funções até então exclusivas do professor, assumindo, de certa forma, a responsabilidade pelas atividades docentes, o que, aliás, os próprios professores passam a esperar dele (LOPES, 2009, p. 37, grifos do autor). Costa (2008) traz na composição de sua pesquisa de mestrado, uma perspectiva dos manuais relacionados com a pesquisa em Educação Matemática e a formação continuada de professores: [...] Para que o professor esteja qualificado a tal ponto [de instigar no aluno o interesse pela aprendizagem da Matemática] é necessário que ele continue incessantemente em busca de aperfeiçoamento. Muitas vezes, esta formação continuada é feita de modo autodidata e, muitos dos Manuais de Professores produzidos atualmente, auxiliam o professor nesta tarefa, pois, ao explicitarem seus referenciais teóricos, alguns autores atuam como agentes de divulgação, de maneira bem simplificada, dos resultados mais recentes das pesquisas em Educação Matemática, mantendo o professor atualizado (COSTA, 2008, p. 18, inserção nossa). Considerando essas premissas e a perspectiva da transposição didática, a investigação de Costa (2008) envolveu o papel do manual na visão de professores de Matemática dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Os resultados evidenciaram que a maioria desses profissionais não utilizam os manuais, apontando, assim, empecilhos relacionados com o impedimento das discussões em Educação Matemática (presentes em alguns manuais) chegarem até a sala de aula. Dentre os empecilhos que os professores pontuaram temos: “[...] falta de base; 30 indisciplina; desinteresse e desmotivação dos alunos; uma realidade de sala de aula bem diferente da proposta teórica do Manual do Professor” (COSTA, 2008, p. 135). O referido autor trouxe uma separação dos participantes da pesquisa em grupos com professores mais experientes e menos experientes. Ele constatou que professores com menos experiência (até 15 anos de docência) tiveram pouco ou nenhum contato com os manuais no período de formação inicial, ou seja, nos momentos de prática de ensino para preparação de aulas em estágio. Ainda, “[...] todos os professores foram enfáticos em afirmar que a formação privilegiou muito mais o aspecto dos conteúdos, deixando a desejar os aspectos didáticos e metodológicos [...]” (COSTA, 2008, p. 141). Tal situação gerou para o único professor que utilizou pouco o manual, na busca de exercícios e em conhecer os objetivos das sequências apresentadas, sem preocupação com as orientações metodológicas. Já em relação aos professores com mais experiência (pelo menos 15 anos de docência), mesmo não sendo questionados sobre a formação inicial, consideram que os manuais são importantes para os professores iniciantes. Esses mesmos professores afirmaram que os manuais foram mudando ao longo do tempo: das simples resoluções dos exercícios, os novos (alguns) manuais agora contam com orientações metodológicas, sugestões de leitura e aprofundamento, além de dicas em atividades propostas. Apesar disso, esses professores não utilizam os manuais, como pôde ser visto anteriormente em relação aos empecilhos identificados. Diante desses relatos, Costa (2008, p. 150) afirma que “[...] o Manual do Professor é pouco e mal utilizado pelos professores o que, certamente, inviabiliza a presença dos avanços teóricos da Educação Matemática nas salas de aula”. Sem dúvidas esses resultados nos mostram que, apesar de mudanças em relação ao conteúdo dos manuais, indo além das resoluções dos exercícios, os estudos da área podem não estar chegando até os professores, por meio do manual. Aqui, não vemos que o manual é o único recurso disponível para que as discussões da área cheguem até o professor, mas consideramos esse material como uma possibilidade para isso. Na visão de Paulilo (2012), que discute os manuais como fonte de pesquisa no campo do ensino de História, esses materiais vão além do aspecto editorial, atendendo “[...] prescrições do poder público quanto à acepção e à organização dos dispositivos dos textos que lhe devem caracterizar [...]” (PAULILO, 2012, p. 182). O autor explica que a partir do papel do PNLD, principalmente, visto que exige a presença dos manuais para o conhecimento do professor, as discussões editoriais e políticas suscitam diversas questões. Um exemplo disso seria, no caso dos manuais de História, a tipificação que o Guia dos Livros Didáticos no 31 PNLD 2008 fez com esses materiais. Assim, propostas temáticas, integradas, intercaladas ou convencionais do conteúdo são formas de tipificar os manuais enquanto um instrumento que complementa o trabalho do professor. Apesar da influência do PNLD, Nogueira (2018) destaca que a presença obrigatória do manual nos livros didáticos e a própria estrutura desses materiais não são aspectos inerentes aos livros e sim fatores construídos ao longo da história, diante de diferentes contextos políticos, econômicos e educacionais. Como elucidado pela autora, ao final da década de 1960 há uma consolidação do manual como um anexo ao livro didático no caso brasileiro, que mantém a estrutura e as funções desses materiais com o que temos atualmente. Nogueira (2018) também comenta sobre alguns contrapontos em relação ao manual do professor, visto que além da organização dos objetivos e dos conteúdos, bem como o planejamento das aulas e o papel de auxiliar na formação continuada dos professores, [...] a análise histórica dos diversos interesses e atores que participaram do processo de consolidação deste produto permite entrever que este material também pode ser utilizado como instrumento de controle sobre a ação docente, oferecendo roteiros e prescrições minuciosamente detalhadas a respeito das práticas e dos conteúdos a serem seguidos pelos professores (NOGUEIRA, 2018, p. 57). Compreendemos que tais situações precisam de reflexões, uma vez que não concordamos com o fato do material servir como ‘controle sobre a ação docente’. Acreditamos, tão somente, que o manual pode colaborar com a prática pedagógica, oportunizando discussões para os professores sobre pertinência, relevância, justificativa etc., de conteúdos e de objetivos de aprendizagem, mas que mantenham um diálogo com o docente e não uma imposição ou controle do que deve fazer ou dizer em sala de aula. A pesquisa de mestrado de Nogueira (2018), além de situar historicamente o manual do professor, investigou o papel que o editor desempenha no processo de edição desse material. A autora entende o editor, de modo geral, como aquele que tem como atividades ‘dar à luz’ ao livro e, também, publicá-lo, tornando-o reconhecido. Dentre as atribuições do editor, Nogueira (2018) destaca as funções de escolher (qual o foco e quais os segmentos que a editora irá atuar), fabricar (processo de produção do livro, transformando o original em um produto comercializável) e distribuir (disponibilizar o livro no mercado), mas reconhece que elas não são únicas e nem devem ser as funções desempenhadas por todos os editores, visto que há uma variação do trabalho editorial no caso brasileiro. Em relação aos editores de livros didáticos, algumas particularidades foram identificadas como o atendimento do que é exigido pelas autoridades escolares; a influência do PNLD sobre as tarefas desses profissionais; a criação de novas obras ou coleções; o 32 cronograma de produção, que pode influenciar, também, no conteúdo dos livros, em decorrência dos prazos do PNLD; e o retorno das avaliações das obras feitas pelo referido Programa, elas sendo aprovadas ou não (NOGUEIRA, 2018). No que tange aos procedimentos metodológicos da pesquisa, Nogueira (2018) colheu os depoimentos, por meio de questionário e entrevista, de editores das duas maiores editoras de livros didáticos do Brasil, analisando o perfil, as atribuições, as percepções sobre o manual do professor e os aspectos (internos e externos) que influenciavam o trabalho desses profissionais. Também foram analisados os atores envolvidos, as etapas editoriais, o papel do editor em cada etapa e a importância do material, na visão dos editores entrevistados. No total, 28 editores responderam ao questionário e duas editoras foram entrevistadas. Dentre alguns resultados, destacamos o fato dos editores terem como responsabilidades principais a coordenação e orientação do trabalho de “[...] preparadores, revisores, diagramadores e editores de arte, seguidas das funções ligadas à etapa específica da edição de texto, como a negociação das alterações propostas com o autor e a avaliação e a organização do conteúdo deste material [...]” (NOGUEIRA, 2018, p. 128). Ademais, em alguns casos, os editores podem reescrever trechos do manual ou, ainda, ter a autoria integral do texto. Em relação às funções de escolher, fabricar e distribuir, a autora afirma que a principal relatada pelos editores foi a de fabricar, sendo que as outras duas são secundárias. Concordamos com a autora quando se posiciona sobre o papel do editor na edição do manual do professor, mostrando um ponto de atenção extremamente importante: [...] ainda que a participação ativa no desenvolvimento do conteúdo do Manual do Professor seja uma característica própria dos editores de livros didáticos, é necessário estar atento para que esta particularidade não seja utilizada como justificativa para eliminar progressivamente a função do autor, atribuindo cada vez mais ao editor não apenas a responsabilidade pela edição do Manual do Professor, mas também por sua autoria, como uma estratégia articulada para reduzir os custos de produção deste material, ainda que em detrimento de sua qualidade (NOGUEIRA, 2018, p. 128-129). Essa reflexão resgata não apenas considerações sobre o papel do editor, que muitas vezes se encarrega de funções variadas, mas confere ao autor um reconhecimento de que é sua atribuição escrever o manual, visto que ele concebeu e elaborou um livro destinado aos alunos e que precisa manter um diálogo com o professor, para que o uso do livro atenda às expectativas curriculares, teóricas, metodológicas, avaliativas, entre outras bases para a construção do material didático. Outro ponto que trazemos da investigação de Nogueira (2018), atrelado com a edição do manual por um profissional diferente do autor do livro didático, refere-se aos dados 33 produzidos a partir de um campo para preenchimento do questionário que era livre. Nesse campo, entre outras considerações que os editores respondentes fizeram, estavam as funções de selecionar e pesquisar textos que tratassem de fundamentação teórica para serem incluídos no manual, bem como escrever, para o professor, textos informativos e orientações pedagógicas para o trabalho com atividades dispostas no livro dos alunos. Dessa forma, Nogueira (2018) considera que, por serem dados citados voluntariamente, eles reforçam o ponto sobre a importância que os editores atribuem à reescrita e à autoria de algumas partes do manual. Diante do que encontramos ao longo da discussão sobre o manual do professor, bem como sua relação com o que já foi dito sobre o livro didático, compreendemos que diversas etapas e processos podem ser identificados até esses materiais chegarem aos alunos e, em particular, do manual chegar às mãos do professor. Desde a concepção dos autores, até o processo de editoração, embasada, principalmente, por implicações do PNLD, o manual constitui um instrumento que informa o docente sobre a proposta teórico-metodológica da obra, os pressupostos e bases assumidos, a visão de educação considerada, as concepções didático-pedagógicas, assim como as resoluções e sugestões de atividades, a organização do trabalho em sala de aula e a proposta de avaliação da aprendizagem. Tudo isso num processo que precisa ser dialógico e de troca com o professor, sem imposições ou obrigações de cima para baixo. 1.3 Livro didático de Matemática enquanto objeto de estudo Frente ao que pontuamos, compreendemos que um movimento semelhante poderia ser dado ao livro didático de Matemática, ou seja, ancorado pelos processos de elaboração e concepção (autores), distribuição e comercialização (mercado e Estado) e utilização e contribuição (professor e alunos). Da mesma forma, em relação ao manual do professor, no âmbito da Matemática, com fundamentações, concepções, pressupostos etc., próprios dessa disciplina e, também, da Educação Matemática. Contudo, temos a intenção, agora, de situar esses materiais enquanto objetos de estudo. Vamos assumir o ‘livro didático de Matemática’, a partir deste momento, como o objeto que é usado pelos estudantes (livro do aluno) e pelo docente (manual do professor), de modo a mostrar sua relevância para a prática de pesquisa. Munakata (2012a), por exemplo, traz diversos exemplos de temas que envolvem as pesquisas sobre livros didáticos. Apesar do foco do autor estar nas temáticas relacionadas com a história, consideramos pertinente apontar algumas delas, como a produção do livro didático 34 (edição e editoração ou, ainda, os sujeitos que participam dessa empreitada), distribuição desses materiais por meio do Estado, interesses do mercado editorial, avaliação, legislação, escolha do professor, análise de disciplinas escolares, análise de conteúdos e a utilização por professores e alunos. [...] O livro didático é uma fonte privilegiada dessas indagações [por exemplo, como os conteúdos são selecionados e organizados em cada disciplina, como são pensadas as metodologias, quais são os tipos de exercícios propostos e qual o objetivo das avaliações], na medida em que contém, por extenso, os conteúdos de cada disciplina e, eventualmente, as atividades e os exercícios. Na impossibilidade de observação direta das situações de ensino de outrora, o livro didático pode conter elementos que mais se aproximam dos programas curriculares então efetivados (MUNAKATA, 2012a, p. 190, inserção nossa). Que essas indagações são amplas e que apenas uma pesquisa dê conta de todas parece tarefa impossível. Assim, consideramos que mostrar o livro didático de Matemática enquanto objeto de estudo, partindo das concepções dos autores e da própria pesquisa em Educação Matemática, pode ser um caminho possível, e não o único, no diverso campo que envolve os mais variados temas de pesquisa sobre os livros didáticos. No âmbito de nossa investigação, um olhar mais específico das pesquisas que coadunam com esta será apresentado no capítulo 3, destinado à revisão de literatura. Desse modo, temos a perspectiva de mostrar, aqui, possibilidades sobre o que seria a análise do livro didático de Matemática, trazendo as compreensões das investigações de nosso grupo de pesquisa teorEMa 9 e, também, de outras pesquisas nacionais e internacionais. Esse movimento não implica em uma revisão única do tema e nem em mostrar procedimentos metodológicos, que terá seu espaço reservado no capítulo 4. Optamos, somente, por situar como compreendemos e justificamos essa análise visto que, de maneira inerente, compõe nosso modo de pensar. Talvez Fan (2013) e Fan, Zhu e Miao (2013) sejam as referências mais comuns para situar a pesquisa em livros didáticos de Matemática. Fan (2013) mostra, por exemplo, que há uma possibilidade do nascimento de um campo destinado a essa discussão, indo da análise do livro em si para um olhar sobre os fatores que afetam (por exemplo, o desenvolvimento dos livros, o papel de matemáticos e educadores matemáticos nesse processo de desenvolvimento etc.) ou que são afetados (uso do livro pelos professores e alunos, por exemplo) por esses materiais. 9 teorEMa – Interlocuções entre Geometria e Educação Matemática é um grupo de pesquisa coordenado pela Prof.ª Dr.ª Rúbia Barcelos Amaral Schio do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, da UNESP, Câmpus de Rio Claro. Para mais informações sobre o grupo veja em: https://sites.google.com/view/grupoteorema. Acesso em: 29 jul. 2022. https://sites.google.com/view/grupoteorema 35 Apesar disso, como trazido por Fan, Zhu e Miao (2013), a análise do livro didático, olhando-o como objeto de estudo, recebe muita atenção no âmbito da investigação internacional em Educação Matemática. Os autores trazem um levantamento de pesquisas sobre o livro didático de Matemática e identificaram que mais da metade das investigações se dedicou à análise do livro e comparação (63%), sendo que apenas a análise representou um terço da produção total (34%). Dentre as pesquisas sobre uso do livro, 25% das investigações foram assim classificadas. Já 12% dos estudos (classificados como ‘outros’) tinha foco em livros eletrônicos e na relação entre o desempenho dos estudantes e os livros didáticos. De fato, a análise do livro representa uma expressiva quantidade de investigações. Tanto é que na pesquisa de Fan, Zhu e Miao (2013) alguns aspectos foram identificados ao longo dos estudos dessa categoria, relacionados com: conteúdo e tópicos de Matemática; cognição e pedagogia; gênero, etnia, equidade, cultura e valor; comparação de diferentes livros didáticos; e, conceituação e questões metodológicas. Não necessariamente cada estudo se debruçou em um desses aspectos, como o caso de pesquisas comparativas que podem olhar para um conteúdo ou tópico matemático. Diante de diferentes frentes de análise desse objeto de estudo, podemos perceber que o campo sobre a pesquisa em livros didáticos de Matemática pode alcançar perspectivas e possibilidades diversas (PEROVANO; GUIMARÃES; LITOLDO, 2022). Assim, vemos o caso da comunidade de Educação Matemática organizar eventos científicos que tomam atenção nesse tipo de investigação. Um evento que citamos é a Conferência Internacional em Pesquisa e Desenvolvimento de Livros Didáticos de Matemática (ICMT 10 ), que já contou com quatro edições que ocorreram no Reino Unido (2014), no Brasil (2017), na Alemanha (2019) e na China (2022). Realizamos, por exemplo, uma investigação nos trabalhos publicados na terceira edição do ICMT. Encontramos frentes de atenção específicas que, ampliando o estudo de Fan, Zhu e Miao (2013), podem contribuir para um movimento de observar lacunas e evidenciar tendências de pesquisa. Na pesquisa de Guimarães e Perovano (2021), três categorias foram identificadas nos trabalhos: livro digital, uso do livro e outros. Esta última inclui pesquisas sobre distribuição dos livros e a sua escrita, olhares filosóficos sobre os livros e as relações com práticas inclusivas, além de estudos do tipo meta-análise. Assim, o que Fan, Zhu e Miao (2013) enquadraram em sua categoria outros, como os livros eletrônicos (que podemos entender, de modo análogo, como os livros digitais), ganhou 10 Sigla em inglês de International Conference on Mathematics Textbook Research and Development. 36 uma nova categoria específica, indicando ampliações nessa discussão. A respeito do uso do livro, além de estudos que se detiveram na utilização pelo professor ou pelos alunos, encontramos um que olhou para ambos. Desse modo, essa poderia ser outra frente de atenção nas novas investigações. Já no estudo de Perovano, Guimarães e Litoldo (2022), que também tinha como objeto de estudo a terceira edição do ICMT, o foco estava nas investigações que eram, exclusivamente, referentes à análise do livro didático de Matemática. Os autores perceberam que os estudos variaram em relação aos sujeitos que analisam os livros, indo além dos pesquisadores, como o caso de professores e alunos em formação ou autores de livros didáticos; ainda encontraram diferenças metodológicas, como os estudos comparativos de coleções diferentes; e, também, no foco dado a conteúdos específicos, como frações, noções de geometria e proporcionalidade. Diante dos achados, compreendem que a análise do livro como objeto de estudo pode colocar em evidência as especificidades de conteúdos e procedimentos da Matemática escolar; destacar características relacionadas com o ensino e a aprendizagem da disciplina; indicar lacunas entre o que autores dos livros propõem com o que é preconizado nos documentos oficiais; além de possibilitar as discussões das pesquisas em Educação Matemática nos materiais (PEROVANO; GUIMARÃES; LITOLDO, 2022). Também notamos um aumento de investigações brasileiras em eventos como o Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM) e o Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática (SIPEM). O ENEM, por exemplo, diante do mapeamento feito por nosso grupo de pesquisa (LIMA et al., 2022), já contou com 173 trabalhos, na modalidade de comunicação científica, que olharam para os livros didáticos ao longo de suas 13 edições, com forte tendência de alta nos estudos das últimas quatro edições: 26, 32, 47 e 46 produções em 2010, 2013, 2016 e 2019, respectivamente. Esses dados revelam que tomar o livro como objeto de estudo vem sendo um movimento constante nas pesquisas em Educação Matemática. Particularmente, a análise desses materiais é justificada, tomando como exemplo as investigações de Gentil (2020) e de Litoldo (2021), pelo papel de importância/amplitude do livro para os processos de ensino e de aprendizagem de Matemática, mas, também, pelo impacto que o investimento do Estado causa no cenário político e econômico do Brasil. Assim, olhares atentos aos conteúdos, às metodologias e aos resultados que as pesquisas em Educação Matemática mostram, constituem frentes de investigações pertinentes para a análise do livro didático de Matemática. 37 No que tange o manual do professor, especificamente, Costa (2008) e Nogueira (2018) compreendem que uma análise do material também é relevante, visto que ele pode conter alguns equívocos frente às orientações metodológicas assumidas. Da mesma forma, eleger o manual como objeto de estudo se faz importante, “[...] pois o conhecimento a respeito dos atores e das práticas envolvidas em sua produção pode favorecer um melhor entendimento sobre a prática pedagógica vigente e a criação de estratégias mais adequadas para intervir nesta prática” (NOGUEIRA, 2018, p. 21). Diante dessas discussões, compreendemos a relevância de eleger o livro didático de Matemática como um objeto de estudo, visto seu papel para os processos de ensino e de aprendizagem de Matemática, bem como para verificar os resultados das investigações em Educação Matemática possivelmente presentes nesses materiais. Do mesmo modo, os altos investimentos públicos na aquisição e distribuição dos livros para as escolas públicas brasileiras, assim como as perspectivas curriculares em vigência no momento desses materiais serem elaborados, constituem justificativas importantes para empregar esse tipo de investigação. 1.4 Algumas das políticas públicas educacionais Discutimos aqui algumas das políticas voltadas para a área educacional, não com o objetivo de apresentar uma compreensão densa sobre elas, mas mostrar perspectivas legais e curriculares que, de certo modo, podem respaldar a elaboração de materiais didáticos, como os livros didáticos, que serão disponibilizados aos estudantes da Educação Básica, em particular, para o Ensino Médio. Optamos por essa etapa de ensino visto que os livros escolhidos para análise em nossa investigação pertencem a ela. A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), apresenta, por exemplo, o desenvolvimento do educando em termos de prepará-lo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. No caso específico do Ensino Médio, este tem como finalidades: I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; 38 IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (BRASIL, 1996, p. 27.837). Notamos que tais finalidades são amplas e não se restringem ao desenvolvimento de uma disciplina ou uma área de conhecimento e sim apresentam objetivos relacionados à formação do jovem, compreendendo tanto a continuidade dos estudos do Ensino Fundamental, passando pelo preparo frente ao que está no mundo e possibilitando as progressões educacionais e trabalh