ALINE DE LIMA RODRIGUES UMA DISCUSSÃO SOBRE OS CONCEITOS DE FRONTEIRA E TERRITÓRIO NO ENSINO FUNDAMENTAL, ANOS INICIAIS, DE GEOGRAFIA Presidente Prudente 2015 2 ALINE DE LIMA RODRIGUES UMA DISCUSSÃO SOBRE OS CONCEITOS DE FRONTEIRA E TERRITÓRIO NO ENSINO FUNDAMENTAL, ANOS INICIAIS, DE GEOGRAFIA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente da UNESP, para a obtenção do Título de Doutor em Geografia. Área de concentração: Produção do Espaço Geográfico. Orientador: Prof. Dr. Marcos Aurélio Saquet Presidente Prudente 2015 3 FICHA CATALOGRÁFICA Rodrigues, Aline de Lima. R611d Uma discussão sobre os conceitos de fronteira e território no ensino fundamental, anos iniciais, de Geografia / Aline de Lima Rodrigues - Presidente Prudente : [s.n.], 2015 183f. : il. Orientador: Marcos Aurélio Saquet Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Fronteira. 2. Território. 3. Ensino de Geografia. I. Saquet, Marcos Aurélio. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. 4 Termo de aprovação scaneada 5 Dedico este estudo ao meu Miguel, filho amado que torna a minha vida leve e feliz. O seu sorriso é o meu maior incentivo. 6 AGRADECIMENTOS Ninguém escapa ao sonho de voar, de ultrapassar os limites do espaço onde nasceu, de ver novos lugares e novas gentes. Mas saber ver em cada coisa, em cada pessoa, aquele algo que a define como especial, um objeto singular, um amigo – é fundamental. Navegar é preciso, reconhecer o valor das coisas e das pessoas, é mais preciso ainda. Antoine de Saint-Exupéry A realização deste trabalho só foi possível graças à colaboração direta de muitas pessoas. Manifestamos nossa gratidão a todas elas e, de forma particular: A Deus, que por sua presença, luz e força sempre me abençoa e capacita para tudo aquilo que ele me destina. Ao orientador da pesquisa, Prof. Dr. Marcos Aurélio Saquet, pelas contribuições pertinentes que auxiliaram na condução e realização da pesquisa, pela disponibilidade em ler o trabalho sempre com muita atenção e dedicação, e pela compreensão durante a minha gravidez e nos primeiros meses de vida do meu filho, mostrando-se, acima de tudo, muito humano. À Faculdade de Ciências e Tecnologia/Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FCT/UNESP/Presidente Prudente), por proporcionar um estudo gratuito e de qualidade, que possibilitou a realização do doutoramento em Geografia. À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP e aos professores do Curso de Pós Graduação em Geografia da UNESP/Presidente Prudente, pelas contribuições teóricas e práticas no âmbito da Ciência Geográfica, auxiliando no debate de diversos temas dentro de um cenário tão amplo, como se caracteriza o objeto de estudo dessa ciência, o espaço geográfico. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação em Geografia da FCT/UNESP, Ivonete, André, Cinthia e Aline, pela atenção e eficiência em atender nossas necessidades técnicas decorrentes do doutoramento. Aos colegas do Curso de Geografia, do Campus do Pantanal (UFMS), pela flexibilidade nos horários de aula durante os últimos 04 anos, e aos acadêmicos das disciplinas de Prática de Ensino, pelas discussões sobre as questões teóricas e práticas 7 que envolvem o ensino de geografia e compreenderam a minha ausência nos momentos que se fizeram necessário. Em especial, dedico meu agradecimento aos acadêmicos do grupo PIBID – Geografia/CPAN, que durante o ano de 2014 contribuíram com suas experiências sobre o ambiente escolar e nos debates sobre o papel da Geografia na formação dos alunos. Agradeço em especial àqueles que sempre me apoiaram e incentivaram, que apostaram em mim mais do que ninguém e que certamente são os que mais compartilham da minha alegria: minha amada família! Obrigada ao meu pai João, à minha mãe Regina, pelo apoio incondicional, à minha irmã Flávia e seus filhos Gabriel e Henrique, pelo carinho de sempre, e à minha sogra Maria de Lourdes, por sempre estar disposta a me ajudar e acreditar nos meus sonhos. Aos meus fiéis companheiros, Marcelo e Miguel. Marcelo, obrigada por me apoiar e não medir esforços para me ajudar, aceitando minha ausência em tantos momentos e a ansiedade que tanto me consumiu nos últimos tempos. Obrigada por ter compartilhado tudo isso com o seu bom humor de sempre. Miguel (que nasceu durante a realização da tese), desculpe a mamãe pelos momentos de ausência, meu tempo será seu agora! As minhas amigas, Helena Brum Neto, Zalusia Almeida Camargo e Daniele Cardoso Pedroso, o meu agradecimento pelos nossos longos anos de amizade verdadeira, que se fortalece com o tempo, rompendo a distância física que, com o auxílio da tecnologia, permite nossos encontros virtuais diários. Obrigada por sempre estarem do meu lado, dispostas a me ajudar e torcendo por mim. Vocês, com certeza, fazem a diferença na minha vida. Aos colegas de doutorado, pelos momentos compartilhados durante o cumprimento das disciplinas e, um agradecimento muito especial, às colegas que se tornaram amigas, Aline S. Weber, Priscila V. da Silva e Michele Souza, que me acolheram, deixando a vida em Prudente mais alegre. Muito obrigada pelos momentos de amizade e companheirismo vividos juntos. Aline, obrigada também pela força em Paris! Aos professores componentes da banca examinadora Profa Dra. Silvana de Abreu, Prof Dr. Marcio José Catelan, Prof Dr. Eliseu Savério Spósito e Prof Dr. Leonardo Dirceu Azambuja, por todas as críticas e sugestões que tiveram o intuito de enriquecer o trabalho. 8 Enfim, também agradeço às Escolas municipais de Corumbá, Luiz Feitosa e Barão do Rio Branco, que junto com a Secretaria Municipal de Educação de Corumbá, disponibilizaram, de forma muito cordial, as coleções analisadas durante a pesquisa, permitindo a realização e concretização da mesma. À colega Ângela Varela pela correção de português, sempre me atendendo prontamente e de forma gentil. ALINE DE LIMA RODRIGUES 9 “Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo”. (MALALA, 2013) 10 Uma discussão sobre os conceitos de fronteira e território no ensino fundamental, anos iniciais, de Geografia. RESUMO: Os conceitos norteadores da Ciência Geográfica passaram por revisões teórico-metodológicas significativas ao longo da história do pensamento geográfico. No entanto, no ensino de geografia, a abordagem dessas mudanças é ainda recente e necessita, em alguns casos, de aprofundamento teórico para uma análise mais adequada. Na presente pesquisa, realizamos uma análise dos conceitos de fronteira e território em 04 coleções de livros didáticos, selecionadas pelo PNLD (2011), destinadas ao ensino fundamental – anos iniciais, de Geografia. Os objetivos centrais que nortearam a pesquisa foram: (a) discutir o significado de fronteira e território, diante das transformações da organização do espaço geográfico e, (b) analisar as concepções adotadas e os significados de fronteira e território no ensino fundamental, séries iniciais de Geografia. Em termos metodológicos a pesquisa realizou-se nas seguintes etapas: Primeiramente, realizou-se a estruturação e a operacionalização dos conceitos centrais, através da leitura de obras especializadas na temática sobre fronteira e território. Posteriormente, realizou- se a pesquisa das concepções de fronteira e território nas coleções selecionadas: Novo interagindo – com a Geografia (Editora do Brasil), Projeto Prosa – Geografia (Editora Saraiva Livreiros Editores), Porta Aberta – Geografia (Editora FTD) e Projeto Eco – Geografia (Editora Positivo). A análise final dos resultados orientou-se através da abordagem teórica da temática, tanto no que se refere à evolução etimológica dos conceitos de fronteira e território como sua abordagem nos livros didáticos de Geografia para o ensino fundamental. Portanto, não se pode deixar de observar que esses conceitos mudaram. A fronteira não é mais considerada somente um limite físico ou político, desprovido de sujeitos e relações, da mesma forma que o território, não é mais compreendido somente como uma demarcação espacial, dotado de características físicas e sociais. As práticas sociais, as relações, as ações políticas (Estado) e as redes passam a ser fundamentais na interpretação contemporânea de fronteira e território. Palavras-chave: Território – Fronteira – Ensino de Geografia 11 Discussion about the concepts of border and territory in basic education, early grades of Geography. Abstract: The guiding concepts of Geographical Science have been submitted to significant theoretical and methodological reviews throughout the history of geographical thinking. However, regarding geography teaching, discussing these changes is still recent and it requires, is some cases, theoretical knowledge for a more adequate analysis. The present research is focused in analyzing the concepts of border and territory in basic education – early grades of Geography, understanding the relations of power and sovereignty that define territories and national borders as something beyond a simple political-administrative limit. Hence, concepts of border and territory were analyzed in didactic books, which were selected by the PNLD (Brazilian National Textbook Program) (2011), seeking to: (a) discuss the meaning of border and territory, facing transformations in the organization of the geographical space, and (b) analyze the concepts adopted and the meanings of border and territory in basic education, early grades of Geography. Structurally, the research was performed in stages. First, structuring and operation of core concepts were executed through the reading of specialized works. Later, a research was carried out on the concepts of border and territory in the collections selected: Novo Interagindo – com a Geografia, Projeto Prosa, Porta Aberta – Geografia, and Projeto Eco, all collections from 2011. The final analysis of the results was led by the theoretical approach of the theme, regarding both the etymological evolution of border and territory concepts and the approach in didactic Geography books for basic education. Keywords: Territory – Border – Geography Teaching. 12 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Síntese da Coleção - Novo Interagindo – Geografia 86 Quadro 2 - Síntese da Coleção - Projeto Prosa – Geografia 116 Quadro 3 - Síntese da Coleção - Porta Aberta – Geografia 140 Quadro 4 - Síntese da Coleção - Projeto Eco – Geografia 165 13 LISTA DE SIGLAS EPCN = Economia, Política, Cultura, Natureza IBGE = Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística OTAN = Organização do Tratado do Atlântico Norte PCN’s = Parâmetros Curriculares Nacionais PNLD = Programa Nacional do Livro Didático T-D-R = Territorialidade, Desterritorialidade, Reterritorialidade 14 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................. 15 2 RESGATE DOS CONCEITOS FRONTEIRA E TERRITÓRIO 19 3 PCN’S E PNLD: A CONSTRUÇÃO DO LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA 38 3.1 Os Parâmetros Curriculares Nacionais 42 3.2 O Programa Nacional do Livro Didático 55 4 FRONTEIRA E TERRITÓRIO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL – ANOS INICIAIS DE GEOGRAFIA 64 4.1 Coleção Novo Interagindo – com a Geografia 64 4.1.1 Novo Interagindo – com a Geografia 2º ano 68 4.1.2 Novo Interagindo – com a Geografia 3º ano 69 4.1.3 Novo Interagindo – com a Geografia 4º ano 74 4.1.4 Novo Interagindo – com a Geografia 5º ano 79 4.2 Projeto Prosa – Geografia 87 4.2.1 Projeto Prosa - Geografia 2º ano 90 4.2.2 Projeto Prosa - Geografia 3º ano 98 4.2.3 Projeto Prosa - Geografia 4º ano 105 4.2.4 Projeto Prosa - Geografia 5º ano 108 4.3 Porta Aberta – Geografia 116 4.3.1 Porta Aberta – Geografia 2º ano 119 4.3.2 Porta Aberta – Geografia 3º ano 125 4.3.3 Porta Aberta – Geografia 4º ano 130 4.3.4 Porta Aberta – Geografia 5º ano 133 4.4 Projeto Eco – Geografia 140 4.4.1 Projeto Eco – Geografia 2º ano 144 4.4.2 Projeto Eco – Geografia 3º ano 147 4.4.3 Projeto Eco – Geografia 4º ano 152 4.4.4 Projeto Eco – Geografia 5º ano 159 5 TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES 167 REFERÊNCIAS ................................................................................... 176 15 1 Introdução Os conceitos norteadores da Ciência Geográfica passaram por revisões teórico- metodológicas significativas ao longo da história do pensamento geográfico. No entanto, no ensino de geografia, a abordagem dessas mudanças é ainda recente e necessita, em alguns casos, de aprofundamento teórico para uma análise mais adequada. Nesta pesquisa nos deteremos na análise dos conceitos de fronteira e território no ensino fundamental – anos iniciais de Geografia, entendendo as relações de poder e soberania que definem os territórios e as fronteiras nacionais como algo além de um simples limite político-administrativo. A escolha dos anos iniciais está embasada no número reduzido de trabalhos acadêmicos e científicos que tenham como preocupação central a abordagem dos conceitos e elementos geográficos nesse ciclo escolar, que muitas vezes privilegia o estudo da língua portuguesa e da matemática em detrimento das demais áreas do conhecimento. Além disso, desde muito cedo fazemos geografia sem saber, com noções de lateralidade, de orientação, de localização, que não vêm com o título de geografia, mas são noções e conceitos fundamentais para se entender o espaço geográfico. Desta forma, construir desde os anos iniciais esse aprendizado pode contribuir para um entendimento mais significativo dos conteúdos geográficos nos anos finais do ensino fundamental. Não se pode deixar de observar que esses conceitos mudaram. A fronteira não é mais considerada somente um limite físico ou político, desprovido de sujeitos e relações, da mesma forma que o território não é mais compreendido somente como uma demarcação espacial, dotado de características físicas e sociais. As práticas sociais, as relações, as ações políticas (Estado) e as redes passam a ser fundamentais na interpretação contemporânea de fronteira e território. A Geografia não se resume a uma disciplina descritiva e empírica, em que os dados sobre a natureza, a economia e a população são apresentados linearmente. Com as novas tecnologias da informação, os avanços na Ciência e as transformações do território, o ensino de Geografia torna-se fundamental para a percepção do mundo. O ensino de Geografia precisa, portanto, incorporar novos temas e novas concepções no 16 cotidiano escolar. A importância do ensino de Geografia assenta-se nas múltiplas possibilidades de orientar a formação de um cidadão capaz de conviver e aprender a ser, reconhecendo as contradições e os conflitos no mundo. (PCN’s, 2011). Desta forma, nosso objetivo principal é analisar as abordagens dos conceitos de fronteira e território no ensino fundamental – anos iniciais de Geografia, através da análise de livros didáticos, selecionados pelo Programa Nacional do Livro Didático – 2011. Especificamente, orienta-se para: (a) discutir o significado de fronteira e território, diante das transformações da organização do espaço geográfico e, (b) analisar as concepções adotadas e os significados de fronteira e de território no ensino fundamental - anos iniciais de Geografia. A fronteira é um conceito que, na maioria das vezes, é confundido com a noção de limite. Considera-se, nesses casos, que a fronteira é uma linha imaginária, ou um marco histórico ou geográfico que separa duas ou mais nações. Para Hissa (2002), o limite estimula a ideia sobre a distância e a separação, enquanto a fronteira movimenta a reflexão sobre o contato e a integração. Ainda segundo Hissa (2002), a reflexão sobre limites e fronteiras é, também, uma discussão sobre o poder, na medida em que fronteiras e limites servem para estabelecer domínios e demarcar territórios. O limite é também uma noção significativa para a compreensão de território, principalmente aquela noção que aproxima o conceito de território à área de ação dos Estados Nacionais, espaço de exercício das políticas governamentais, da apropriação e das estratégias de proteção das fronteiras. No entanto, a noção de limite torna-se mais abstrata quando se entende o conceito de território com maior complexidade, como campo de ação das relações sociais. Sack destaca a relação de limite e território: “os limites dos territórios não são imutáveis, mudam de acordo com as estratégias e recursos de controle e delimitação do espaço”. (1986, p.19) Assim, definir etimologicamente os conceitos de fronteira e território é fundamental para posterior análise da abordagem feita nos livros didáticos de Geografia do Ensino Fundamental - anos iniciais, conforme já mencionamos. A presente pesquisa está estruturada em etapas. No primeiro momento, realizou-se a estruturação e a operacionalização dos conceitos centrais, etapa fundamental para a 17 construção desta pesquisa, uma vez que se busca refletir acerca da relação fronteira, território e o ensino de Geografia. Para tanto, partiu-se de um levantamento bibliográfico, procurando estabelecer o referencial teórico-metodológico da pesquisa, através de obras especializadas sobre a temática central. A discussão sobre fronteira e território está baseada nos debates sobre esses conceitos, entendendo-os como complexos na dinâmica atual da sociedade contemporânea. Posteriormente, realizou-se a pesquisa das concepções de fronteira e território nas coleções do ensino fundamental – anos iniciais de Geografia. A escolha dos livros baseia-se nas indicações do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2011, no qual constam 23 coleções que foram encaminhadas às escolas brasileiras e puderam ser escolhidas pelos professores para serem utilizadas pelos seus alunos nos próximos quatro anos. No entanto, para a pesquisa foram selecionadas 04 coleções, seguindo apenas o critério de constar no PNLD 2011, e, portanto, passíveis de serem usadas nas escolas públicas brasileiras. As coleções selecionadas são: Novo Interagindo – Com a Geografia, 4ª edição, autores Lilian Sourient, Roseni Rudek e Rosiane de Camargo, Editora do Brasil, 2011; Projeto Prosa, 2ª edição, autores Maria Ângela Gomes Rama e Marcelo Moraes Paula, Editora Saraiva Livreiros Editores, 2011; Porta Aberta – Geografia, nova edição, autora Mirna Lima, Editora FTD, 2011 e Projeto ECO - Geografia, 1º edição, autor Laércio de Mello, Editora Positivo, 2011. Para identificar e analisar as distintas concepções de fronteira e território nas coleções escolhidas, durante o período estudado organizaram-se quadros comparativos, contando com: autor(es), ano da obra, concepções de fronteira e território, temas trabalhados vinculados à fronteira e ao território, principais referências utilizadas e a concepção teórica de Geografia que fundamentou a organização e a definição conceitual de cada coleção. A análise dos resultados foi orientada através da abordagem teórica da temática, tanto no que se refere à evolução etimológica dos conceitos de fronteira e território, como sua abordagem nos livros didáticos de Geografia para o ensino fundamental. 18 No que se refere à etimologia dos conceitos de fronteira e território, a pesquisa bibliográfica foi realizada com a finalidade de verificar as distintas concepções de fronteira e território diante das opções dos autores de cada coleção. A partir dos objetivos propostos e da metodologia estabelecida, o presente trabalho organiza-se da seguinte forma: 1 Introdução; 2 Resgate dos conceitos de fronteira e território; 3 PCN’s e PNLD: a construção do livro didático de Geografia; 4 Fronteira e Território nos livros didáticos do ensino fundamental – anos iniciais de Geografia, no qual estão dispostos os quadros demonstrativos das abordagens desses conceitos nos livros didáticos; 5 Tecendo algumas considerações finais, em que procurou-se demonstrar o alcance dos objetivos propostos e sintetizar as principais contribuições da pesquisa; Referências, em que elencou-se todo o material bibliográfico utilizado diretamente no desenvolvimento da pesquisa. 19 2 Resgate dos conceitos de fronteira e território. As mudanças sociais, econômicas e políticas redesenham o mapa do mundo, ora com expansão e anexação territorial, ora retraindo seus limites, mas não suas relações. Nesse movimento de delimitação de territórios e seus domínios é que a concepção de fronteira ganha significado. Cataia (2007, p. 08) destaca: “o século XX foi pródigo na criação de novos compartimentos: no início do século o mundo possuía aproximadamente cinqüenta territórios nacionais, hoje esse número passa de duzentos. Assim, o surgimento de díades ou fronteiras também é função do tempo”. É a partir da edificação dos Estados Nacionais que o conceito de fronteira, como prática espacial, torna-se imprescindível, para garantir estabilidade, segurança e soberania ao Estado. (STEIMAN e MACHADO, 2002). Com o surgimento dos Estados Modernos, ou seja, da definição do Estado-Nação, a preocupação com a delimitação dos espaços de domínio e de exercício da soberania se consagra, reforçando a relação território e poder. Para Raffestin (1993), o Estado existe quando uma população ocupa determinado território e exerce soberania e poder sobre ele. O autor ainda destaca que, para caracterizar um Estado, é indispensável à análise da população, do território e da autoridade. No debate da definição das fronteiras nacionais para exercício do poder dos Estados e da soberania, destaca-se também o conceito de território, pois o poder é exercido por sujeitos num certo espaço, definido por fronteiras historicamente construídas. Assim como o conceito de fronteira acompanhou as transformações da sociedade, o conceito de território teve momentos de maior e menor destaque na Ciência Geográfica, passando por mudanças significativas no seu sentido epistemológico, evoluindo da noção naturalista de Ratzel para uma noção de relações de poder (social e do Estado) sobre uma determinada porção do espaço geográfico, a partir da concepção de Claude Raffestin. Ratzel trouxe o debate sobre território para a Geografia, definindo-o como estrato geográfico sobre o qual o Estado exercia seu poder, na forma de ocupação e 20 apropriação dos recursos naturais e sociais e, consequentemente, na proteção de suas fronteiras. Segundo Saquet (2007, p. 30): “A sociedade se transforma em Estado para garantir a posse e proteção dos recursos de que necessita, como o solo, a água e os alimentos. Ratzel corresponde, a grosso modo, sociedade e homem com território e solo.” Não descartando a noção de Raztel, surge um dos debates mais significativos sobre o território, com Claude Raffestin. Este continua considerando fundamental a atuação do Estado na definição do conceito de território, porém, este não é definido única e exclusivamente pelo poder do Estado. Existe outro “poder” fundamental, que são as práticas e as relações cotidianas da sociedade exercidas sobre uma determinada porção do espaço geográfico que, para o autor, podem ser traduzidas pelo poder (com a inicial minúscula), sugerindo suprimir expressões como “influência” e “autoridade”. O poder é muldimensional, manifestando-se numa relação de força, troca ou comunicação, entre sujeitos diferentes, gerando campos de poder. Ao Poder (com iniciais maiúsculas), recai a noção de ser resultado da ação do Estado, por meio de suas políticas governamentais, sociais e econômicas e de suas instituições. O Poder é unidimensional e se assenta num ponto central do qual origina-se a soberania dos Estados (RAFFESTIN, 1993). A difícil definição de poder/Poder resulta da diferença das relações que se estabelecem sob um dado território, podendo resultar de forças instáveis e múltiplas, sendo o poder, ou originar-se de uma centralidade institucional e/ou estatal, sendo o Poder. A definição de fronteira, na Constituição Federal do Brasil (1988), corresponde a uma “faixa de fronteira”, ou seja, espaço de controle e uso restrito: “...de até cento e cinqüenta quilômetros de largura ao longo das fronteiras terrestres...considerada fundamental para a defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas por lei” (Artigo 20, parágrafo 2°). Na Constituição Federal, a fronteira é a delimitação do Estado Nacional, ou seja, espaço de atuação e jurisprudência do Brasil, compreendendo o território como área de apropriação e dominação, definido por fronteiras historicamente estabelecidas. Nessa concepção, território e fronteira não ocorrem separadamente. 21 No decorrer do século XX, as fronteiras eram vistas sob a ótica da segurança nacional, no Brasil, especialmente durante o governo militar. Para o governo daquela época, a política de fronteira deveria ser pautada na vigilância e proteção, para garantir o crescimento demográfico e econômico do País. O conceito de fronteira não se distancia da concepção defensiva, porém, com as transformações do espaço geográfico mundial, com o ingresso do sistema capitalista em sua fase de globalização, a fronteira passa a ter uma importância mais econômica vinculada aos processos de maior integração regional (CASTROGIOVANNI, 2010). As fronteiras tradicionais estão sendo rompidas na geopolítica atual, como, por exemplo, a partir da Organização Mundial do Comércio, que tenta mundializar ‘os espaços econômicos nacionais’, bem como com base no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, além – em outra escala- das alianças, dos acordos e da construção dos chamados blocos econômicos (NEVES, 2000). Esse mesmo autor, porém, ressalta que as fronteiras tradicionais devem persistir em virtude das diferenças potenciais. Seguindo essa perspectiva, Ianni (2007) afirma que, ao se globalizar, o mundo se regionaliza pelas suas particularidades naturais e culturais, além de responder de forma diferenciada a esse processo. As contradições e ambigüidades do capitalismo globalizado, financeirizado, neoliberal, científico e informacional trazem à reflexão situações espaciais distintas em um momento espaço-temporal nunca antes visto. (CASTROGIOVANNI, 2010). Castrogiovanni (2010, p.12) faz indagações pertinentes sobre a questão da fronteira no século XXI: “elas estão caindo ou se reerguendo? Estão permanecendo ou estão se transformando? Estão na mesma escala ou em processo de estabelecimento em outra escala? Elas geram articulações transfronteiriças ou estão se defendendo?” Assim, a discussão sobre fronteiras torna-se cada vez mais complexa, justamente pela complexidade das relações sociais, econômicas e políticas, que constituem a geopolítica das alianças e dos blocos econômicos, pautada na instantaneidade das informações e das comunicações em geral. O conceito de território também acompanhou as mudanças do mundo contemporâneo, principalmente pelo fato das relações econômicas, políticas e sociais terem se transformado consideravelmente com o fim da chamada Guerra Fria. 22 Para Becker (1983), o território passa a ser compreendido como resultado das relações de poder dos diferentes atores sociais, entendendo que, após a Segunda Guerra Mundial, os Estados passam a sofrer influências de empresas e redes internacionais. Isto ocorre em decorrência das economias interligadas, da busca por matéria- prima, por mercados para os produtos industrializados, por mão de obra barata, por produtos agropecuários e industriais ausentes na matriz produtiva nacional. As relações econômicas são fundamentais para “alimentar” o sistema capitalista e dinamizar as economias dos países. Desta forma, a Geografia precisa contribuir com a discussão e (re)leitura dos conceitos de fronteira e território, pois ambos são constituintes do espaço geográfico, entendidos como unidades espaciais pautadas nas relações sociais, políticas e econômicas. Ao conceito de fronteira se associam às demais categorias de análise do espaço, pois a fronteira acontece no espaço geográfico, ou seja, “separa” dois espaços geográficos com distintas características naturais e humanas. Entendida como a área de delimitação do exercício de soberania e poder de um grupo social, junta-se ao conceito de território. Viver em espaços de fronteira confere relações distintas, peculiares, podendo representar importantes elos com o espaço, distinguindo, então, o lugar na fronteira. É importante destacar também, que a fronteira só é realmente entendida quando analisada pela ótica local, pelas comunidades que ali vivem e se reproduzem social, econômica e politicamente. Os fronteiriços olham a fronteira como a sua morada, onde acontece o seu cotidiano, seu ritmo, suas relações de afetividade, emergindo de tal forma o seu lugar. Diante da complexidade do conceito, mas entendendo-o como fundamental na compreensão das relações sociais, culturais, econômicas e políticas, importantes autores se debruçam no estudo da fronteira e do território, nos seus significados e desdobramentos. Moraes (1990), ao resgatar importantes obras de Ratzel, destaca suas considerações sobre o Estado, pois para Ratzel nenhum povo é destituído de uma organização política. Do desdobramento das discussões sobre Estado, encontra-se uma 23 abordagem sobre fronteira e território, quando considera as fronteiras, no caso, as naturais como linhas não precisas, indeterminadas. No que se refere às colocações de Raffestin (1993), o autor desenvolve o conceito de ‘core areas’, que seria a “célula” a partir da qual o Estado ter-se-ia se desenvolvido. As capitais e as fronteiras foram classificadas como ‘core areas’. Claude Raffestin conclui: “as fronteiras, que deram lugar a múltiplas classificações, exprimem conformações, produtos de relações que só aparecem na problemática morfofuncional com resultados que mascaram as relações de poder que as fizeram nascer” (1993, p. 26). No Brasil, a discussão sobre fronteiras vem crescendo ao longo dos anos, principalmente nos estudos pontuais da vasta fronteira brasileira com os demais países latino-americanos. Destacam-se, Antonio Castrogiovanni, Lia Osório Machado, Márcio Cataia, Bertha Becker, Pierre Monbeig, José de Souza Martins, entre outros. Castrogiovanni (2010) desenvolve trabalhos sobre as fronteiras do Rio Grande do Sul com os países platinos. Para o autor, estudar a fronteira na escala platina é fornecer importantes informações para a compreensão do gaúcho na sua complexidade. O autor também destaca a importância do estudo das fronteiras na Geografia, entendendo-a como uma área dotada de especificidades. Conforme Castrogiovanni (2010, p. 12): “espaço geográfico é um acúmulo desigual de tempos e a fronteira sem dúvida não está alheia a esta lógica”. Esse autor estabelece a diferenciação entre limite e fronteira, além disso, faz menção aos vários tipos de fronteiras, definindo a fronteira política. As fronteiras políticas estão associadas a uma jurisdição territorial, idealizada para o exercício do poder político-administrativo. Machado (2000) juntamente com o Grupo de Pesquisa Retis (UFRJ), do qual é coordenadora, realiza importantes estudos estratégicos das fronteiras brasileiras, entendendo que, nessas áreas, há necessidade de um desenvolvimento específico e da elaboração de políticas públicas, orientadas para a realidade de cada fronteira e suas relações com o centro do país. Seus principais trabalhos estão ligados ao narcotráfico e às relações de ilegalidade que se configuram nas áreas de fronteira do Brasil com países da América Latina. Para Machado (2002) as noções de limite e fronteira emergem com a constituição dos Estados Nacionais e suas definições são marcadas pelas mudanças ao longo do 24 tempo. Na sua discussão a autora destaca o limite internacional, considerando-o como regulador das relações interestatais. Em relação à fronteira, considera uma zona percorrida pelo limite internacional, portanto, espaço relacional de territorialização de grupos humanos e das redes de circulação. Cataia (2007) ressalta a relevância das fronteiras no período geopolítico atual. Segundo o autor (2007, p.01): “a unificação técnica do mundo não implica em sua união política. Quanto maior é a unificação técnica do mundo, maior é a sua compartimentação com a relevância das fronteiras internacionais”. Além disso, Cataia conceitua fronteira e limite, estabelecendo o papel da fronteira como meio de informação. Hissa (2002) também traz em sua obra uma abordagem detalhada sobre fronteira e limite, estabelecendo suas diferenças. Dentre suas inúmeras colocações, pode-se destacar a fronteira vista como “front”, estar à frente, como se ousasse representar o começo de tudo onde deveria representar o fim; o limite parece significar o fim do que estabelece a coesão do território. Monbeig (1984), na obra Pioneiros e fazendeiros de São Paulo, o autor aborda a frente agrícola cafeeira paulista, denominando esse movimento de expansão da produção de café no Oeste paulista, de franja de expansão cafeeira. Nas palavras do autor: “as franjas de ocupação não seria uma paisagem fixa, mas sim um processo histórico- espacial”. (MONBEIG, 1984, p. 52) Assim, o autor já entendia a fronteira como móvel, que pode se expandir lenta ou rapidamente conforme os sujeitos e os ritmos a ela imputados. Esses ritmos que impulsionam o movimento das fronteiras foram classificados por Monbeig (1984) como frente pioneira, motivada pela aventura do desbravamento do território, na busca por riquezas e terras para expansão e domínio. Esse tipo de expansão acontece em menor intensidade, devido ao reconhecimento territorial dos países já ter sido realizado. Restam ainda movimentos populacionais motivados principalmente por fatores econômicos, que foram denominados por Monbeig como: “frentes de expansão, que movem-se lentamente pela subsistência de comunidades tradicionais e frentes pioneiras, motivadas pelo empreendedorismo e vinculação ao sistema econômico de mercado”. (MONBEIG, 1984, p. 56). 25 Martins (2009) apresenta uma discussão sobre fronteira pautada na visão sociológica, dentro de uma abordagem dos movimentos de expansão da fronteira brasileira. Na obra “Fronteira, a degradação do outro nos confins do humano”, a preocupação central na definição de fronteira, é a dimensão social: “a figura social da fronteira e de sua importância histórica não é o chamado pioneiro. A figura central e metodologicamente explicativa é a vítima”. (MARTINS, 2009). Para o autor a fronteira não se reduz a uma questão unicamente geográfica, quando a entende como: “fronteiras de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização(...), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, sobretudo, fronteira do humano.” (MARTINS, 2009, p. 11) Seguindo essa visão sociológica e antropológica, Martins ainda ressalta que fronteira é: “lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da história”. (MARTINS, 2009, p. 133) O autor não associa fronteira a questão de limites territoriais, a entende como um espaço de conflito, da combinação de tempos históricos em processos sociais que recriam formas duras de dominação e de reprodução do capital, muitas vezes pautada na violência e na subordinação do trabalhador. No artigo “O tempo da fronteira: retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e da frente pioneira”, Martins (1996) apresenta uma profunda discussão sobre frente de expansão (grupos que saem em busca de terras para sobrevivência) e frente pioneira (presença do capital na produção e na exploração capitalista das terras). Na sua análise utiliza a história do deslocamento da fronteira na Amazônia, que foi baseada no conflito entre os indígenas de um lado e os civilizados do outro, e dos grandes proprietários de terra e os camponeses pobres. Portanto, para Martins (1996, p. 25) a fronteira é: simultaneamente, lugar da alteridade e expressão da contemporaneidade dos tempos históricos. A unidade do diverso, pressuposto metodológico da dialética, encontra aí o lugar mais adequado e mais rico para a investigação científica.” 26 Além desses autores sobre fronteira, também se destacam Wanderley Messias da Costa, na obra Geografia Política e Geopolítica (1992), Michel Foucher na obra Front set frontières. Um tour du monde géopolitique (1991), A. Moodie, na obra Geografia e Política (traduzido) (1965) e Iná Elias de Castro, na obra Geografia e Política (2011), abordando as noções de território e fronteira associadas à Geografia Política. Wanderley Messias da Costa, na sua obra Geografia política e Geopolítica (1992), faz uma discussão sobre o tema fronteira, na Geografia política, destacando que a compreensão das fronteiras é vital para os estudos desse ramo da Geografia, na medida em que incorporam-se nas relações entre Estado e território. O autor relaciona os velhos e os novos significados de fronteira, ao resgatar os conceitos clássicos desse tema, que estão associados às questões de fronteira e limite: Vimos que alguns conceitos clássicos, como o de “fronteira natural” ou “fronteira movente”, por exemplo, foram rechaçados já no início do século XX – com Vallaux e Ancel – e posteriormente pelos norte-americanos. Por outro lado, a idéia de fronteira (zona) e fronteira (limite), de Fawcet, acabou por consagrar- se e é aceita até hoje, bem como o seu significado de “isóbara política” (de Ancel) que, apesar de sofrer restrições de alguns autores, tem ainda inegável prestígio, até mesmo pela sua originalidade. (COSTA, 1992, p. 291) Diante dos movimentos de integração econômica entre os países, abrem-se novas perspectivas para a compreensão do significado atual das fronteiras. Desta forma, antigos conceitos de fronteira são redefinidos e recebem uma roupagem menos rígida e mais integradora, propondo o entendimento de “zonas de integração e de articulação”. (COSTA, 1992). Costa (1992) destaca na discussão sobre fronteira, a dimensão temporal e não exclusivamente a espacial, entendendo a fronteira como zona que separa realidades espaciais distintas, em tempos desiguais. Desta forma, enfatiza que: Tomando de Braudel o conceito de “tempo social”, interpretam as fronteiras como “disjuntores” de tempos desiguais, como evoluções econômicas não- paralelas, mutações não comparáveis na organização do espaço, ritmos desiguais, etc. Nesse sentido, a fronteira não seria apenas um disjuntor espacial, mas também um disjuntor temporal. Para ele, essa “desigualdade de tempos” é fundamental quando se considera a hipótese da plena unificação européia. (COSTA,1992, p. 293; grifos do original) 27 Costa (1992) ainda destaca que é preciso observar, em cada fronteira, a sua ‘permeabilidade’, de bens, pessoas e mercadorias compreendendo que a integração e a articulação entre as fronteiras não significam a existência de zonas homogêneas, pois cada lado de uma fronteira é singular e abrange dinâmicas socioespaciais e tempos distintos. Foucher na obra Fronts et frontiéres (1991), procura analisar os fenômenos fronteiriços contemporâneos e os velhos e novos significados de fronteira em cada continente. Além disso, destaca a instabilidade das fronteiras do ‘Terceiro Mundo’, o problema da delimitação das fronteiras marítimas, as fronteiras internas e a “supressão” das fronteiras na Europa Ocidental. Destaca, portanto, a diversidade geopolítica das fronteiras, resultante da diversidade temporal. As fronteiras serão examinadas em diversas escalas, pois elas são os contornos de conjuntos de natureza e tipo os mais diversos: construções geopolíticas datadas, multiescalares, multifuncionais – limites políticos, fiscais, muitas vezes lingüísticos, militares... Elas serão abordadas também, distinguindo-se as questões externas – relações internacionais de proximidade entre estados, relações entre etnias... – ou geopolítica externa, e as questões internas – efeitos internos dos traçados, processos de construção nacional ou regional. (FOUCHER, 1991, p. 16) Foucher (1991) dedica uma parte de sua discussão ao entendimento das tensões geopolíticas do ‘Terceiro Mundo’, especialmente na África e na Ásia. Para o autor, essas tensões resultam, em grande parte, das contradições na definição das fronteiras artificiais, impostas pelos regimes imperialistas, cujos limites não correspondem a outros (limites), culturais, étnicos, religiosos etc. Desta forma, formaram-se lugares com tempos sociais distintos e marcados pelas contradições, que geram conflitos internos e externos e dificultam o desenvolvimento econômico dos países, após os processos de independência. Além disso, questiona se o Estado, enquanto instituição, seria a instância adequada para garantir a unidade nacional nessas nações. Na Europa, Foucher analisa a questão das fronteiras sob a ótica da integração nacional, surgida no Pós Segunda Guerra Mundial, com a organização dos países europeus num mercado comum, que mais tarde se tornaria, a União Européia. Nesse sentido, a noção de fronteira rígida e não articulada é rejeitada e outras questões surgem, conforme Costa (1992, p. 297) ressalta sobre a obra de Foucher: “Suas maiores 28 preocupações com o futuro europeu: Quais serão as novas fronteiras estratégicas para cada país, no conjunto (e do próprio conjunto) e, especificamente, qual será o papel da Alemanha (Ocidental) que não ”desistiu” de seu projeto de unificação com a Oriental?” Moodie na sua obra Geografia e Política (1965) destina um capítulo para discutir fronteira e limites, considerados por ele, conceitos importantes para a Geografia Política, pois estão diretamente relacionados com as noções de Estado, território e sociedade. Em relação ao conceito de fronteira, o autor considera serem zonas ou faixas de território que estão sujeitos á mudança contínua de forma e função. Entretanto, ressalta que atualmente essas zonas são muito mais áreas de integração do que litígio, devido à consolidação da expansão territorial, embora: “(...) continuam como zonas marginais e, em alguns casos, constituem ainda regiões de discórdia entre países vizinhos, e sob esse aspecto tornam-se elementos demolidores das relações interestatais que o geógrafo político não pode ignorar” (MOODIE, 1965, p. 83; grifos do original). A definição de limite ganha destaque com a consolidação dos Estados modernos, que necessitam de espaços bem delimitados para o exercício de sua soberania e o estabelecimento da extensão do território, pois de acordo com Moodie (1965, p. 93): “Logo que os Estados tomaram a forma presente e logo que aumentou o comércio mundial, fez-se cada vez mais necessário ajustar suas relações, e isso implicou a definição exata dos seus territórios.” Geralmente os limites são definidos pelas características físicas do território, como a presença de um rio ou uma cadeia de montanhas. Podem ser chamados de limites naturais, por serem elementos da natureza, no entanto, são artificiais, porque foram impostos como limites geográficos. Para Moodie (1965, p. 99): “linhas costeiras, rios, cristas de montanhas, principalmente nos locais onde exerciam função divisória, eram de caráter relativamente permanente e já em existência, de modo a não constituir surpresa, que logo fosse apropriados como limites “naturais.” Desta forma, a definição de limites baseia-se comumente nas características físicas. No entanto, torna-se uma problemática importante na gestão do território, pois essas linhas impostas não são capazes de neutralizarem radicalmente as características culturais, étnicas, sociais e até mesmo políticas e poderão gerar importantes conflitos. 29 Moodie (1965, p. 100) ressalta sobre essa questão que: Qualquer que seja à base da diferenciação entre as sociedades humanas, a origem étnica, a religião, a língua, as atividades econômicas, os sistemas políticos ou a combinação de dois ou mais desses elementos, esses agentes ligadores não terminam abruptamente num rio, cadeia de montanha, lago ou pântano; menos ainda perdem a função em qualquer linha que possa ser traçada com relação às características físicas e, devemos lembrar que a qualidade essencial do limite é o seu caráter linear. A função dos limites é basicamente caracterizar as dimensões do território de cada Estado, compreendendo uma função de separação. Enquanto que a fronteira designa uma zona de integração e articulação, sobretudo em decorrência da globalização e da aliança em blocos econômicos. Sobre a diferença conceitual entre fronteira e limite pode-se destacar que: Esta diferenciação no significado da palavra “fronteira” e “limite” ajuda a esclarecer muita das diciculdades ligadas à relação que surge da justaposição dos Estados. Sempre existiram as fronteiras e somente quando tentam definir as regiões é que os geógrafos entram no pleno conhecimento dos problemas decorrentes de sua existência. Sempre possuíram extensão espacial, sempre ocuparam partes da superfície do globo, mas em virtude de sua natureza transitória vem exigindo definição correta. (MOODIE, 1965, p. 85) Para Castro (2011, p. 95): “as relações de poder supõem assimetrias na posse dos meios e nas estratégias para o seu exercício, e o território é tanto um meio como uma condição de possibilidade de algumas destas estratégias”. Para a autora, a definição de poder é fundamental para a compreensão dos processos atuantes na organização do espaço. No entanto, o poder se apresenta como uma noção abrangente e que pode assumir várias significações de acordo com o contexto que é analisado. Com isso, Castro (2011, p. 97) apresenta algumas referências conceituais para o entendimento da noção de poder: (a)Hobbes (1979:53), “o poder de um homem (universalmente considerado) consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro”, (b) Para Weber (1982: 43), “Poder significa a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra a resistência e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade (...)”, (c) Bertrand Russel (1979: 24) diz que “o poder pode ser definido como a produção de resultados pretendidos”, (d) Para Lasswell (1979: 112), “O poder é, especificamente, um valor de deferência: ter poder é ser levado em conta nos atos (políticos) dos outros”, (e) Já para Bachrach (1970: 22), “existe poder quando há conflitos de interesses ou valores entre duas ou mais pessoas ou grupos. Tal divergência é condição necessária, porém insuficiente, do poder. 30 Uma relação de poder se diferencia da influência pela possibilidade de uma das partes invocar sanções”. Concebendo o poder como uma forma de imposição de uma vontade sobre a parte mais “fraca” dentro de uma relação, Castro (2011) seleciona três formas elementares que se encontram na essência do poder. Poder despótico, marcado pelo medo e coerção da parte forte sobre a parte fraca, numa clássica relação de poder. A segunda forma de poder é a autoridade, que consiste na capacidade de se fazer obedecer, por interesse individual ou coletivo. Por último, o poder político, que atua no espaço político, de caráter deliberativo e que visa o bem comum. Portanto, poder é sempre espacial, exercido por sujeitos com suas relações sociais territorializadas. No que se refere à definição de território, destacam- se Jean Gottmann na obra The significance of territory (1973), G. Deleuze e F. Guattari, na obra O anti-édipo. Capitalismo e esquizofrenia (1976), Robert David Sack, na obra Human Territoriality: Its theory and history (1986), Claude Raffestin, na obra Por uma Geografia do Poder (1993 [1980]) e Giuseppe Dematteis, na obra Progetto implícito. II contributo della geografia umana alle scienze del território (1995). No Brasil, Rogério Haesbaert, na obra O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” a multiterritorialidade (2004), Berta Becker, no texto O uso geopolítico do território: questões a partir de uma visão do Terceiro Mundo, pertencente à obra Abordagens políticas da espacialidade (1983), Marcos Aurélio Saquet, na obra Abordagens e concepções de território (2007) e Marcelo J. Lopes de Souza, na obra O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento (1995). Jean Gottman (1973) associa o conceito de território à dominação de uma determinada área, para o exercício da soberania territorial, principalmente na época da formação dos Estados, no chamado Mundo Novo. Desta forma, evidencia a proximidade do território com o Estado. De acordo com Saquet (2007, p.45): “Um salto qualitativo, referente às concepções renovadas de território, ocorre com as pesquisas e reflexões de Jean Gottmann, a partir de sua formação na escola francesa”. Jean Gottmann contribuiu significativamente em termos metodológicos na abordagem territorial, ao enfatizar ideias sobre circulação, centralidade urbana e iconografias regionais. Desta forma, não dispensa em suas análises os fatores espirituais 31 e culturais, que juntamente com os elementos econômicos e políticos, constituídos historicamente, oferecem a combinação para uma análise do território. Portanto, a abordagem central de Gottmann enfatiza a combinação entre componentes materiais e espirituais da vida, como condição para a sua proposta de compreensão do território. No entanto, também argumenta que a noção de organização política é fundamental para a definição do conceito de território, destacando conceitos como soberania e Estado. Conforme Gottmann (1973), a organização do espaço também integra fatores naturais, o que normalmente é negligenciado quando se trata de sua contribuição na geografia. Sinaliza, dessa forma, para uma abordagem que reconhece as dimensões sociais do território e o ambiente natural. (SAQUET, 2007). Neste sentido, o autor marca uma linha de pesquisa que entende o território com múltiplas dimensões, considerando as forças materiais e imateriais que organizam o espaço e estão em constantes movimentos, tornando os limites e as fronteiras cada vez mais flexíveis, com as modernas redes de circulação e comunicação, produtos da mundialização do capital. Deleuze e Guattari (1976), associam a noção de territorialidade aos aspectos (i)materiais, subjetivos, compreendendo este conceito como área de fluxos, conexões, articulações e aspectos da subjetividade. Os autores G. Deleuze e F. Guattari destacam em suas abordagens a constituição dos territórios e a reterritorialização. Criticam o radicalismo dos pressupostos marxistas de explicar a organização do espaço apenas pelos sistemas de produção. Os autores consideram que as análises espaciais devem considerar também os processos e práticas de criação e recriação sociais. Seguindo essas considerações, Deleuze e Guattari (1976) concebem os territórios como resultantes dos movimentos que os sujeitos realizam no tempo e no espaço, criando e recriando territórios. Para os autores, território é construção social, é natural e também psicossocial, com elementos materiais e imateriais. Contribuem significativamente na questão da desterritorialização, por enfatizarem o valor simbólico e imaginário dos sujeitos que, ao recriarem seus hábitos culturais e modos de produção no território, recriam territorialidades marcadas por experiências vividas. 32 Para Sack (1986), a definição de território também necessita da delimitação de uma área e da manifestação de uma forma de poder. As diferenças territoriais ocorrem pelos distintos resultados das ações de poder, que mudam, conforme quem está no poder. O autor também faz menção à importância da noção de fronteira na discussão do território: “a fronteira assume importante centralidade na medida em que possibilita o controle”. (SACK, 1986, p. 19). Sack traz importantes colocações sobre o território, distintas das abordagens de Claude Raffestin e Giuseppe Dematteis, a partir da década de 1970, dentro da escola anglo-saxônica. Contudo, nenhuma de suas obras foi traduzida para o português. O território depende da delimitação de uma área, sobre a qual é exercida uma forma de poder para controlar os atores e/ou as suas ações sociais. (SACK, 1986). Nessa mesma obra o autor apresenta três características da territorialidade: (1) classificação ou definição de áreas; (2) comunicação e (3) forma de coação/controle. Desta forma, as territorialidades são motivações geográficas que influenciam e condicionam o homem na apropriação territorial. Claude Raffestin é sem dúvida um dos autores mais importantes da retomada da discussão de território na Geografia, contribuindo nas considerações da definição etimológica do termo território, a partir da sua obra Por uma Geografia do Poder, lançada no Brasil em 1993. Nesta obra Raffestin diferencia poder, letra minúscula, do Poder, com letras maiúsculas, já mencionado, além de destacar os trunfos do poder, evidenciando também as relações e práticas sociais cotidianas. Desta forma, Raffestin (1993 [1980]) constrói uma abordagem teórico-metodológica renovada de território. Haesbaert (2004) tece importantes debates baseados nas concepções de território, enfatizando as derivações que esse conceito pode assumir: territorialidade, desterritorialidade, reterritorialidade e multiterritorialidade. Essas derivações evidenciam a ênfase nas relações sociais, na apropriação e na reapropriação territorial na abordagem de Haesbaert. Haesbaert (2006) apresenta uma definição de território com dupla conotação, em que o poder, não se refere apenas ao poder político, mas a complexidade de relações que ocorrem na organização territorial, de uma dominação político-econômica e/ou uma apropriação mais subjetiva e simbólica. 33 Becker (1983) ao dedicar-se aos estudos da Amazônia brasileira, interliga Território-Estado-Limite. A autora considera o território da Amazônia como lócus da reprodução dos povos da Amazônia, da atuação dos empreendimentos capitalistas, da ação das ONGs e da atuação do Estado por meio das políticas públicas ambientais para a floresta. A abordagem territorial de Bertha Becker está imbuída de questões estratégias de gestão do território, com uma forte conotação política, principalmente em se tratando da Amazônia, área na qual se concentram suas pesquisas. Para a autora, a concepção de território nasce como expressão concreta das unidades políticas no espaço, relacionando diretamente território ao Estado-Nação. O Estado é entendido como mediador dos interesses internacionais no espaço mundial. Em se tratando da Amazônia, isso se materializa no incentivo governamental aos investimentos dos grandes empreendimentos capitalistas que se apropriam das riquezas da floresta, pois ao criar infraestruturas e oferecer subsídios para atrair o capital privado nacional e internacional, o Estado investe na modernização de áreas, tornando-as cada vez mais atrativas à ação do capital. Sobre o território, Becker (1983) entende-o como um produto gerado e consumido/vivido pela prática social, nas suas mais distintas dimensões. A autora destaca que: O processo de produção do território é determinado pela infraestrutura econômica, mas regulado pelo jogo político. Implica na apropriação do espaço pelo ator que então terrritorializa esse espaço. Implica também na noção de limite, a forma do território e a malha territorial são manifestações de relações de poder. (BECKER, 1983, p.08) No livro Amazônia (1997), Becker aproxima-se das colocações de Raffestin sobre a distinção do Poder exercido pelo Estado/governo e o poder dos atores sociais, enfatizando a multidimensionalidade das relações de poder. Como exemplo, a autora apresenta a realidade Amazônica, na qual os territórios se organizam a partir do Poder do Estado, com políticas públicas, legislação e estratégias de desenvolvimento da região e das diversas dimensões dos poderes locais, como a influência da igreja católica, dos pequenos produtores, indígenas, madeireiros, organizações não-governamentais, posseiros e outros. 34 Essa constatação da multidimensionalidade do poder surge, a partir da década de 1970, com o acirramento das contradições entre os interesses locais, regionais, nacionais e internacionais, ocasionando os conflitos sociais internos na Amazônia. Becker destaca a importância da informação para a gestão e organização do território. A autora entende que a informação sobre o espaço permite a fluidez de mercadorias, pessoas, serviços e ideias e, portanto, revela um poder sobre dada porção do território, no sentido de fornecer subsídios para o Estado controlar suas fronteiras e recursos naturais, além de elaborar estratégias governamentais de desenvolvimento. (BECKER, 1997). Giuseppe Demateis apresenta estudos significantes em termos qualitativos ao conceito de território, compreendendo este como produto social, com elementos subjetivos e econômicos. Para Saquet (2007, p.49) “...esse autor sinaliza para a compreensão (i)material do território e da territorialidade humana”. Desta forma, evidencia a importância da abordagem das condições subjetivas/psicológicas na abordagem territorial, concomitante às condições econômicas, que se referem às técnicas e as redes de circulação de pessoas e mercadorias. Dematteis (1995), destaca o homem como sujeito histórico, que pensa, cria e trabalha no espaço geográfico. Portanto, concebe o território como resultante das relações econômicas, culturais e políticas, além das formas e interações entre os sujeitos e as redes globais. Dematteis (2005), numa discussão sobre as transformações urbanas, destaca a relação sociedade versus território, numa perspectiva do desenvolvimento local. Neste sentido, enfatiza o Sistema Local Territorial, o qual tem que ser visto como um instrumento de política territorial. Para o seu estudo analítico, propõe: (a) a rede local de sujeitos, que significa a relação dos indivíduos com o território local; (b) o milieu local, refere-se ao conjunto de condições locais; (c) a relação entre a rede local com o milieu local e (d) relação entre a rede local e as redes extralocais, nas escalas regional, nacional e global. Saquet (2007) segue as considerações de Claude Raffestin, dedicando-se também ao resgate epistemológico do conceito de território ao longo da evolução do pensamento 35 geográfico, entendendo-o como resultado de relações (i)materiais efetivadas historicamente no espaço geográfico. Saquet destaca: “o território é entendido como lugar de relações sociais; de conexões e redes; de vida, para além da produção econômica, como natureza, apropriação, mudanças, mobilidade, identidade e patrimônio cultural; como produto socioespacial e condição para o habitar, viver e produzir” (SAQUET, 2007, p. 118). O autor também destaca o movimento composto por articulações territoriais que agem horizontal e verticalmente, interna e externamente ao território, compreendendo a territorialidade, a (des) e a (re)territorialidade (T-D-R) e nos aspectos da economia, da política, da cultura e da natureza (E-P-C-N): O fato é que território e rede se condicionam reciprocamente. Ambos são relações e movimento e se inscrevem complementarmente. As redes de circulação e comunicação são meios na articulação interna do território e, ao mesmo tempo, são territórios e interligam-no a outros territórios, tornando o território [...] um nó [...]. (SAQUET, 2007, p. 72) Souza (1995), por sua vez, apresenta uma definição de território associada às relações de poder e sua materialidade no espaço geográfico. “O território (...) é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”. (SOUZA, 1995, p. 78) No entanto, o seu entendimento não desconsidera as dimensões políticas, culturais e econômicas, para definir o conceito de território, ao conceber que as relações de poder envolvem as demais dimensões desde os recursos naturais de uma área específica, bem como as ligações afetivas e a identidade de cada grupo social com o espaço. Para Souza essa não é a questão fundamental, o primordial é: “quem domina ou quem influencia e como domina ou influencia esse espaço? “ (SOUZA, 1995, p. 78) O autor enfatiza que a questão central, do ponto de vista conceitual são os processos de territorialização e desterritorialização, que consistem em “um processo que envolve relações de poder e a projeção dessas relações no espaço (espaço que, simultaneamente, também é, enquanto substrato material e “lugar”, uma referência e um condicionador das práticas de poder)”. (SOUZA, 2008, p. 60) Na discussão sobre a materialidade do território, Souza (2008, p. 64) destaca que: “Como projeção espacial de relações de poder, o território não pode ser jamais compreendido e investigado (sua origem e as causas de suas transformações) sem que o 36 aspecto material do espaço social seja devidamente considerado”. Essa afirmação se fundamenta no entendimento de que o exercício do poder, para defender ou conquistar territórios, se dá por meio do acesso aos recursos naturais, posicionamentos estratégicos e ao reconhecimento dos modos de vida das populações envolvidas. O território existe por e a partir do substrato material do espaço, que nada mais é do que a modelagem material de uma fração da superfície terrestre, por meio de uma ação de poder. No entanto, o território não se reduz a esse substrato material, que pode desaparecer por um motivo ou outro, e ainda assim o território poderá “sobreviver” como testemunho de um povo. (SOUZA, 2008). A trajetória de Souza foi marcada por duas abordagens, que caracterizaram o momento e o amadurecimento dos debates e das publicações acerca do território. Num primeiro momento, o autor conceitua território como uma ‘porção’ da superfície terrestre definida espacialmente por relações de poder. No entanto, o autor complementa seu entendimento sobre território ao introduzir no conceito a dimensão social na configuração do espaço, associado às relações de poder, quando enfatiza que o território é “antes relações sociais projetadas no espaço, que espaços concretos (SOUZA, 1995, p. 87). Portanto, define território como “um campo de forças” ou precisamente: “relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte, sobre um substrato referencial” (SOUZA, 1995, p. 97), esclarecendo que território é uma manifestação do espaço social, mas não ‘coisa’ material. Outra contribuição importante do autor para a compreensão do conceito de território foi à discussão sobre a mobilidade dos territórios. Trazendo, com isso, o conceito de território cíclico (SOUZA, 1995), acompanhando a ideia de que os territórios podem se mover e até mesmo desaparecer por um período, conforme os territórios móveis de Sack (1986). Assim, fronteira e território são conceitos fundamentais para a análise e compreensão da organização do espaço geográfico. Esses conceitos exprimem a construção social sob um determinado espaço, à delimitação da ação de um grupo social e sua territorialidade, em certo espaço e com o seu entorno. Entender os conceitos de fronteira e território, nas suas concepções atuais é evidenciar o espaço geográfico por e a partir de relações de poder que materializam e 37 configuram a organização espacial, numa delimitação cada vez mais flexível das fronteiras, sobretudo em se tratando de questões econômicas e das redes de circulação e comunicação. No entanto, essa flexibilidade não marca o fim das fronteiras, que não perde sua conotação de demarcação e proteção territorial, embora consiga ser entendida por muitos autores como uma área onde se articulam relações locais, regionais, nacionais e internacionais, numa dada condição espaço-temporal. A abordagem desses conceitos no ensino fundamental mostra-se importante, pois é nessa etapa que o aluno começa a construir as noções chaves para o entendimento do espaço geográfico. É uma etapa fundamental no processo formativo e de aprendizagem do aluno. Desde os anos iniciais do ensino fundamental, conceitos como espaço, lugar, paisagem, região e território constam entre os conteúdos geográficos que devem ser trabalhados. Com o conceito de fronteira, nem sempre isso ocorre, o que não diminui a sua importância como fundamento para o entendimento das relações que ocorrem na organização do espaço geográfico. Sobre a relação entre graduação e a atuação do professor na educação básica, Lana de Souza Cavalcanti argumentou na entrevista, com o título “Sobre o ensino de geografia com novas abordagens” ao site da Revista Nova Escola, em 2014: Qual a chave para que as aulas da disciplina tenham bases sólidas? O foco na escola deve estar nos mesmos conteúdos aprendidos na graduação. Mas eles devem ser estruturados de outra maneira para ser apresentados às crianças. Preocupa ver que isso nem sempre é discutido na universidade. Resultado: quando chegam à sala de aula, os recém-graduados abandonam os conteúdos que aprenderam e se rendem a uma estrutura engessada. É preciso que eles alimentem a disciplina com novas reflexões e abordagens. Isso evita a deterioração da Geografia acadêmica, pois quem torna a disciplina viva é o educador. (CAVALCANTI, 2014, [s/p]) Deste modo, trabalhar conceitos no ensino fundamental exige, além de uma ampla revisão conceitual por parte dos livros didáticos e dos professores, uma adequação teórico-metodológica para de fato proporcionar sua aprendizagem entre sujeitos em pleno processo formativo e de desenvolvimento de suas habilidades e competências. 38 3 PCN’s e PNLD: a construção do livro didático de Geografia ▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ A educação brasileira apresentou, ao longo da história do país, objetivos e metodologias distintas de concepção do processo de ensino aprendizagem, acompanhando as teorias pedagógicas desenvolvidas e os interesses políticos e sociais. “O binômio ensino/aprendizagem apresenta duas faces de uma mesma moeda. É inseparável. Uma é a causa e a outra, a conseqüência. E vice-versa. Isso porque o ensino/ aprendizagem é um processo, implica movimento, atividades, dinamismo; é um ir e um vir continuamente. Ensina-se aprendendo e aprende-se ensinando”. (OLIVEIRA, 2009, p. 217) Dentro dessa perspectiva, Vesentini (2001, p. 25) destaca: “(...) educar para a liberdade não é apenas educar os outros, mas também a si mesmo, de forma permanente, aprendendo ao mesmo tempo que se ensina (ou melhor, que se leva os alunos a aprender). Só assim pode-se propiciar aos educandos que se tornem cidadãos plenos, agentes da história, sujeitos autônomos, críticos e criativos”. “O ensino/aprendizagem da Geografia deveria ser planejado no todo, compreendendo os diferentes níveis de ensino, atendendo às diferenças, aos interesses e às necessidades das diversas clientelas, considerando o desenvolvimento intelectual e visando a formação de uma cidadania responsável, consciente e atuante.” (OLIVEIRA, 2009, p. 218) Até a configuração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no ano de 1996, a educação era regida pela Lei Federal n. 5.692, de 11 de agosto de 1971, que não compreendia um sistema educacional com ensino fundamental e médio, nos moldes que se conhece hoje. A LDB (Lei Federal n.9.394), instituída a partir de 1996, marcou uma mudança significativa no sistema educacional brasileiro. Essa mudança nasce com as discussões sobre que educação o país deseja em consonância com o que estabelece a Constituição Federal de 1988 (apud PCN’s, 1997, p.14), que afirma: a necessidade e a obrigação de o Estado elaborar parâmetros claros no campo curricular capazes de orientar as ações educativas do ensino obrigatório, de forma a adequá-lo aos ideais democráticos e à busca da melhoria da qualidade do ensino nas escolas brasileiras. 39 Baseada na Constituição Federal e na Conferência Mundial de Educação para Todos, que ocorreu em Jomtien, na Tailândia, em 1990, convocada por iniciativa da Unesco, Unicef, PNUD e Banco Mundial e na Declaração de Nova Delhi. No Brasil, passa-se a pensar em uma educação voltada ao atendimento das necessidades básicas de aprendizagem para todos, universalizando o ensino fundamental e ampliando oportunidades para crianças, jovens e adultos. Desta forma, o Ministério da Educação e do Desporto, elabora o Plano Decenal de Educação para todos (1993-2003) que configurava-se como: “um conjunto de diretrizes políticas em contínuo processo de negociação, voltado para a recuperação da escola fundamental, a partir do compromisso com a equidade e com o incremento da qualidade, como também com a constante avaliação dos sistemas escolares”. (PCN’s, 1997, p. 14) Nesta perspectiva elaboram-se as diretrizes e bases da educação nacional, apresentando como objetivo geral, tanto para o ensino fundamental (primeiro grau, com oito anos de escolaridade obrigatória) quanto para o ensino médio (segundo grau, não- obrigatório), construir um sistema educacional que garanta aos educandos uma formação necessária para o desenvolvimento de suas potencialidades, para o trabalho e exercício da cidadania. O ensino fundamental é entendido como prioridade, conforme a emenda constitucional n.14 de 12 de setembro de 1996, cabendo aos Estados e Municípios o financiamento desse nível de ensino. A LDB também traz em seu texto a necessidade de uma formação básica comum a todos os brasileiros, estabelecendo um núcleo comum obrigatório em âmbito nacional para os ensinos fundamental e médio. No entanto, manteve a parte diversificada, que garante o atendimento as questões peculiares de cada região brasileira. À parte diversificada ficaria a cargo do Estado, que a partir da formulação de propostas curriculares serviria de base às escolas municipais, estaduais e particulares. Com a necessidade de se garantir a formação básica comum, a LDB propõe a elaboração de diretrizes para nortear os currículos e os conteúdos mínimos. Neste sentido, elaboram-se os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), como documento que assegura a organização curricular com componentes curriculares flexíveis e que garantam o princípio da base nacional comum. 40 O PCN’s constituem: um referencial de qualidade para a educação no Ensino Fundamental em todo o País. Sua função é orientar e garantir a coerência dos investimentos no sistema educacional, socializando discussões, pesquisas e recomendações, subsidiando a participação de técnicos e professores brasileiros, principalmente daqueles que se encontram mais isolados, com menor contato com a produção pedagógica atual. (1997, p.13). Os PCN’s não se configuram como um modelo impositivo de ensino, pois assegura a participação dos Estados e Municípios na elaboração de suas propostas diversificadas, conforme suas realidades peculiares, além de apresentar os princípios gerais que regem a educação de uma forma geral, e cada área do conhecimento de modo particular. No entanto, a organização curricular e a autonomia na elaboração dos livros didáticos continuam asseguradas. Portanto, esses parâmetros servem como modelo curricular e de currículo mínimo para a base comum nacional e esclarecem os objetivos que o ensino fundamental deve garantir que sejam alcançados. Para Vesentini (2001, p. 15) tanto a educação como o ensino podem ser: “ao mesmo tempo instrumentos de dominação e de libertação.” De dominação quando se pensar que todo o sistema escolar foi desde a sua origem, pensado de cima para baixo, partindo das leis e diretrizes elaboradas e postas em prática pelo Estado, diante de uma sociedade receptora do processo de ensino- aprendizado, que desconsiderava, as suas necessidades e características. Com o passar do tempo, o sistema escolar assumiu certa flexibilidade na elaboração dos currículos, da integração à realidade local e regional, trabalho com projetos e os temas transversais, por exemplo. Ao se referir à educação como libertação, VESENTINI (2001) está se referindo aos resultados que um ensino crítico e reflexivo pode alcançar, dando a liberdade ao aluno de pensar a sua realidade, sentir-se sujeito do seu mundo, aprimorar a sua cidadania, seu raciocínio e criatividade. “O ensino é funcional para o capitalismo moderno, mas, contraditoriamente, ele também é um agente de mudanças sociais e uma conquista democrática” (VESENTINI, 2001, p. 17) Desta forma, o autor ressalta: É mais do que óbvio, portanto, que os avanços na revolução técnico-científica e na globalização, somados às radicais mudanças no mercado de trabalho, exigem 41 uma escola voltada não somente para desenvolver a inteligência dos educandos, o senso crítico (...), a criatividade e a iniciativa individual, mas também voltada para discutir os grandes problemas do mundo. (VESENTINI, 2001, p. 22) A elaboração dos PCN’s foi realizada com a participação de segmentos da educação nacional (professores, técnicos em educação, membros dos conselhos estaduais de educação, representantes de sindicatos e demais entidades relacionas ao magistério), por meio de inúmeros encontros regionais, organizados pelas delegacias do MEC existentes nos Estados da federação. (PCN’S, 1997). Para os PCN’s, os objetivos gerais do ensino fundamental são: (a) compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais [...],; (b) posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e tomar decisões coletivas; (c)conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais, como meio de construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertencimento ao País; (d) conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação [...]; (e) perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente [...]; (f) desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo [...]; (g) cuidar do próprio corpo, valorizando e adotando hábitos saudáveis [...]; (h) utilizar as diferentes linguagens verbal, matemática, gráfica, plástica e corporal [...]; (i) saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos e (j) questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação. (1997, p. 16) De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, é essa etapa do tempo escolar que tem se constituído como foco principal de luta pelo direito à educação. O ensino fundamental passou por mudanças importantes em sua estrutura organizacional, visando atingir: melhoria de sua qualidade e de ampliação de sua abrangência, consubstanciadas em novas leis, normas, sistemas de financiamento, sistemas de avaliação e monitoramento, programas de formação e aperfeiçoamento dos professores e, o mais importante, (...)necessidade de um currículo e de novos projetos político-pedagógicos que sejam capazes de dar conta dos grandes desafios educacionais da contemporaneidade. (PCN’s, 1997, p. 14) 42 Porém, de todas as mudanças no ensino fundamental, a principal delas, é a ampliação da sua duração, para 09 anos, mediante a matrícula obrigatória de crianças a partir dos 06 anos de idade (alteração na LDB, Lei nº 11.274, de fevereiro de 2006). Essa ampliação tem como objetivo central, diminuir os índices de reprovação Nos anos iniciais do Ensino fundamental, pretendendo aumentar em 1 ano o tempo escolar obrigatório, destinado ao aprendizado da leitura e da escrita, sem um caráter de aprovação ou reprovação. Além disso, essa alteração na LDB é resposta a uma tendência de expansão da escolaridade obrigatória na maior parte dos países desenvolvidos e na própria América Latina. 3.1 Os Parâmetros Curriculares Nacionais A Ciência Geográfica passou por diferentes momentos e fases ao longo da sua história, com concepções distintas do objeto e método do fazer geográfico. As diferentes concepções da Geografia influenciaram e ainda influenciam as práticas de ensino. As tendências geográficas difundidas no Brasil, a partir da década de 1940, trazem forte influência da Geografia realizada na França, baseada nas contribuições de Vidal de La Blache. A escola lablachiana tornou a região, como unidade de análise geográfica e caberia ao geógrafo delimitá-las, descrevê-las e explicá-las: “A geografia seria prioritariamente um trabalho de identificação das regiões do globo” (MORAES, 2007, p. 87) Para exemplificar um estudo de geografia baseado nos estudos regionais propostos por La Blache, destaca-se Moraes (2007, p. 88): 1º capítulo: “as bases físicas” ou o “quadro físico”, enumerando as características de cada um dos elementos naturais presentes (relevo, clima, vegetação, etc); 2º capítulo: o “povoamento” ou as “fases de ocupação”, discutindo a formação histórica (primeiras explorações, atrativos econômicos no passado, fundação das cidades, etc); 3º capítulo: a “estrutura agrária” ou o “quadro agrário”, descrevendo a população rural, a estrutura fundiária, o tipo de produção, as relações de trabalho, a tecnologia empregada no cultivo e na criação, etc; 4º capítulo: a “estrutura urbana” ou o “quadro urbano”, analisando a rede de cidades, a população urbana, os equipamentos e as funções urbanas, a hierarquia das cidades daquela região, etc; 5º capítulo: a “estrutura industrial” (quando existisse na região analisada), estudando o pessoal ocupado, a tecnologia empregada, a destinação da produção, a origem das matérias-primas empregadas, o número e tamanho dos estabelecimentos, etc. E finalmente a conclusão, em geral constituída por um conjunto de cartas, cada uma referente a um capítulo, as quais sobrepostas dariam relações entre os elementos da vida regional. 43 A Geografia tradicional1 chega até as escolas, por meio dos procedimentos didáticos, traduzindo-se pela descrição e a memorização dos elementos que compõem as paisagens, sem considerar as relações, analogias ou generalizações. (MORAES, 2007) A abordagem dos conhecimentos geográficos por meio de uma metodologia baseada na descrição, é narrada por Yves Lacoste na obra A Geografia: isso serve, em primeiro lugar para fazer a guerra (2006). Nessa obra, o autor destaca que ao final do século XIX pode-se considerar a existência de duas geografias: - uma, de origem antiga, a geografia dos Estados-maiores, é um conjunto de representações cartográficas e de conhecimentos variados referentes ao espaço; esse saber sincrético é claramente percebido como eminentemente estratégico pelas minorias dirigentes que o utilizam como instrumento de poder. - a outra geografia, a dos professores, que apareceu há menos de um século, se tornou um discurso ideológico no qual uma das funções inconscientes é a de mascarar a importância estratégica dos raciocínios centrados no espaço. (LACOSTE, 2006, p. 31) Fica evidente a separação entre o saber estratégico para o exercício do poder, que o conhecimento do território proporciona, do discurso enciclopédico relatado pelos professores em salas de aula. E, além disso, existe a geografia feita nas Universidades, que já ensaiava novas abordagens do conhecimento geográfico e suas implicações sociais, políticas e econômicas na organização do espaço geográfico. Entretanto, o acesso a essas produções científicas ficava restrito ao ambiente acadêmico. (LACOSTE, 2006) Assim, se reproduzia nas escolas uma geografia que abandonava sua razão de ser, na visão de Lacoste, de que a geografia deveria ser “um saber pensar o espaço” (LACOSTE, 2006, p. 53). No entanto, nesse momento a geografia praticada pelos professores baseava-se na “ilustração e edificação do sentimento nacional” (LACOSTE, 1 O termo tradicional imputado a Geografia após o processo de sistematização dos conhecimentos geográficos é baseado em Moraes (2007). Já para Moreira (2008, p. 16), o termo mais usado é outro: “ O período que começa , no final da segunda metade do século XIX, é o período de uma nova fase. A fase de uma Geografia marcada pelo antagonismo da necessidade de fragmentar-se para estar em dia com a contemporaneidade do pensamento e da necessidade de recuperar a integralidade de visão de mundo que tinha antes. Está nascendo a Geografia clássica”. 44 2006, p. 57-58), reforçando o patriotismo e a alienação da sociedade em relação aos problemas políticos internos da nação. Lacoste (2006) exemplifica o seu pensamento com o ensino de geografia na França, no fim do século XIX, quando afirma que: a instauração do ensino de geografia na França (...) não teve como finalidade (...) difundir um instrumental conceitual que teria permitido apreender racionalmente e estrategicamente a espacialidade (...), mas sim de naturalizar “fisicamente” os fundamentos da ideologia nacional, ancorá-los sobre a crosta terrestre. (LACOSTE, 2009, p. 57) Desta forma, o ensino de Geografia chega às escolas brasileiras com o caráter tradicional, baseado na descrição dos fatos naturais e humanos que se desenvolviam na superfície terrestre, e na memorização e descrição do tema de ensino, obedecendo a uma lógica da neutralidade do ensino. Essa realidade pode ser percebida em livros didáticos de geografia e em práticas docentes cotidianas. No entanto, a realidade mundial passa por profundas transformações no pós- segunda guerra mundial, tornando-a cada vez mais complexa, com o capitalismo concorrencial, a urbanização crescente, as mudanças no espaço agrário (industrialização e mecanização) e a recente articulação das realidades locais em escala mundial. Desta forma, a Geografia Tradicional, com suas teorias e metodologias, não é mais suficiente para explicar esse espaço geográfico que se configurou complexo e dotado de dinâmicas distintas às anteriores. Com forte embasamento marxista, desenvolve-se uma tendência crítica na Geografia, a partir dos anos 60 do século passado. Com isso, o centro de preocupações torna-se as relações entre sociedade, trabalho e natureza na produção do espaço geográfico. Ao contrário da Geografia Tradicional, na Geografia Crítica, alguns assumem um caráter militante, propondo uma Geografia das lutas sociais, das relações de trabalho e da desigualdade social. Conforme Cavalcanti (2014: s/p): “[...] até os anos 1980, ocorreu o movimento de renovação no ensino da disciplina, que apontava para a ineficiência da metodologia adotada anteriormente. Surgiu, assim, uma geografia crítica, acompanhando a evolução da Ciência geográfica”. À Geografia é colocada uma nova preocupação, não basta apenas descrever os fenômenos que se distribuem na superfície terrestre, é necessário também, entender suas 45 causas e relações, procurando alternativas de transformação do espaço geográfico. Desta forma, torna-se uma ciência social, com conteúdos políticos em favor da justiça social, por exemplo. As sucessivas mudanças teórico-metodológicas da Geografia como ciência, conduzem a considerar que, no estudo do espaço geográfico, muito mais do que descrever a realidade é fundamental entendê-la nas suas relações sociais, econômicas, políticas e culturais. Os PCNs citam os principais problemas enfrentados no ensino de Geografia, tanto de caráter epistemológico quanto de ordem prática, no que se refere a escolha dos conteúdos a serem trabalhados: *abandono de conteúdos fundamentais da Geografia, tais como as categorias de nação, território, lugar, paisagem e até mesmo espaço geográfico, bem como do estudo dos elementos físicos e biológicos; *são comuns os modismos que buscam sensibilizar os alunos para temáticas mais atuais, sem uma preocupação real de promover uma compreensão dos múltiplos fatores que delas são causas ou decorrências [...]; *há uma preocupação maior com conteúdos conceituais do que com conteúdos procedimentais [...]; *as propostas pedagógicas separam a Geografia Humana da Geografia Física em relação àquilo que deve ser apreendido como conteúdo específico; *a memorização tem sido o exercício fundamental praticado no ensino de Geografia, mesmo nas abordagens mais avançadas [...]; *a noção de escala espaço-temporal muitas vezes não é clara, ou seja, não se explicita como os temas de âmbito local estão presentes naqueles de âmbito universal e vice-versa, e como o espaço geográfico materializa diferentes tempos (da sociedade e da natureza). (PCN’s, 1997, p.73) Para que a concepção crítica de se pensar e fazer Geografia, atinja o ensino de uma forma mais abrangente e eficaz, é necessário que as mudanças no objeto e método da Geografia sejam assimiladas no âmbito teórico, com um maior embasamento por parte dos professores e dos autores de livros didáticos, pois uma mudança no ensino de Geografia se faz por meio de três condicionantes fundamentais: adequação da teoria pedagógica Tradicional, produção acadêmica voltada à discussão e elaboração de materiais didáticos do ensino de geografia e aprofundamento teórico-metodológico dos docentes. Sem a interação desses condicionantes, o ensino de Geografia, que é realizado de forma descontextualizada da realidade atual, utilizando metodologias não inovadoras, não contribuirá para que o aluno saiba, compreenda, conheça, pense a realidade nas mais 46 diversas escalas e características do espaço geográfico, atingindo, então, o conhecimento geográfico. Discussões atuais sobre o ensino de Geografia têm buscado alternativas pedagógicas que permitam desenvolver nos alunos capacidades e habilidades de interpretação dos aspectos da realidade, compreendendo a relação sociedade-natureza, através da problematização, observação, registro e até mesmo representação dos fenômenos sociais, culturais e naturais que se materializam no espaço geográfico. Isso também se enquadra no estudo das categorias de análise do espaço geográfico, devendo o professor, na função de mediador do processo de ensino-aprendizagem, criar situações em que o aluno seja instigado a pensar, a explicar e a fazer interações na construção da sua aprendizagem. Essas práticas pedagógicas, como utilização de objetos virtuais de aprendizagem, trabalho com imagens, filmes, músicas e aula de campo, procuram dinamizar as aulas de geografia, fugindo da maneira mais comum de se ensinar Geografia, que é por meio do discurso do professor, apoio do livro didático e exercícios de memorização e fixação dos conteúdos. Desta forma, os PCN’s (1997, p. 81), estabelecem como objetivos gerais de Geografia para o ensino fundamental, as seguintes metas: *conhecer a organização do espaço geográfico e o funcionamento da natureza em suas múltiplas relações, de modo a compreender o papel das sociedades em sua construção e na produção do território, da paisagem e do lugar; *identificar e avaliar as ações dos homens em sociedade e suas conseqüências em diferentes espaços e tempos, de modo a construir referenciais que possibilitem uma participação propositiva e reativa nas questões socioambientais locais; *compreender a espacialidade e temporalidade dos fenômenos geográficos estudados em suas dimensões e interações; *compreender que as melhorias nas condições de vida, os direitos políticos, os avanços técnicos e tecnológicos e as transformações socioculturais são conquistas decorrentes de conflitos e acordos, que ainda não são usufruídas por todos os seres humanos e, dentro de suas possibilidades, empenhar-se em democratizá-las; *conhecer e saber utilizar procedimentos de pesquisa da Geografia para compreender o espaço, a paisagem, o território e o lugar, seus processos de construção, identificando suas relações, problemas e contradições; *fazer leituras de imagens, de dados e de documentos de diferentes fontes de informação, de modo a interpretar, analisar e relacionar informações sobre o espaço geográfico e as diferentes paisagens; *saber utilizar a linguagem cartográfica para obter informações e representar a espacialidade dos fenômenos geográficos e, 47 *valorizar o patrimônio sociocultural e respeitar a sociodiversidade, reconhecendo-a como um direito dos povos e indivíduos e um elemento de fortalecimento da democracia. Desta forma, ao longo do ensino fundamental, espera-se que os alunos construam conhecimentos de Geografia, que permita a eles ler, saber e compreender o espaço geográfico, dentro da perspectiva da relação sociedade e natureza, da compreensão do papel da desigualdade social na organização do espaço geográfico, da capacidade de ler e interpretar as linguagens mais modernas da informação, como mapas digitais e imagens de satélite e contribuir na diminuição do preconceito e qualquer tipo de discriminação. (PCN’S, 1997) Os PCN’S também orientam a seleção e organização dos conteúdos de Geografia para o ensino fundamental (séries iniciais e finais) evidenciando temáticas de relevância social e a autonomia dos alunos no processo de ensino-aprendizagem. Os critérios de seleção se organizam visando: (1) os conteúdos selecionados devem priorizar a questão da construção de uma identidade com o lugar onde cada aluno vive, desenvolvendo hábitos e valores importantes para a vida em sociedade e ao exercício da cidadania, (2) nos conteúdos a serem trabalhados devem ser incluídos as categorias de análise da própria Geografia, como espaço geográfico, paisagem, território e lugar, compreendendo que esses conceitos são fundamentais para a organização espacial em múltiplos espaços e tempos, (3) devem constar também as noções de espacialidade e temporalidade dos fenômenos geográficos e (4) os procedimentos de pesquisa da Geografia, como observação, descrição, registro, documentação, representação, analogia, explicação e síntese devem fazer parte dos conteúdos de Geografia para o ensino fundamental, pois são imprescindíveis para que os alunos possam ler e interpretar as informações do espaço, construindo o saber geográfico e entendendo a Geografia como uma Ciência. (PCN’S, 1997, 83) Os conteúdos programáticos para o Ensino Fundamental são organizados em dois ciclos, que definem as metas de ensino e aprendizagem de cada disciplina. No 1º ciclo, que compreende do 2º ao 5º ano, a disciplina de Geografia deve abordar questões relativas à vivência do aluno, no que diz respeito ao papel da natureza e sua relação com a sociedade na construção do espaço geográfico. Desta forma, a paisagem local e o espaço vivido são referências para o professor organizar o seu trabalho, juntamente com a proposta pedagógica de cada escola. Ao se priorizar a paisagem local e o espaço vivido, procura-se identificar o conhecimento e as ideias que cada aluno traz do lugar onde vive. O aluno mesmo sem ter 48 a noção de que esse é conhecimento geográfico, os alunos no 1º ciclo reconhecem características do seu espaço de convivência diária, o espaço vivido. O papel do professor assume cada vez mais um caráter mediador no processo de ensino-aprendizagem, devendo orientar os procedimentos necessários para tornar o conhecimento de cada aluno, em um conhecimento organizado e geográfico. Esses procedimentos são observar, descrever, representar e construir explicações para os fenômenos geográficos cotidianos. No entanto, o estudo da realidade local, deve ser expandido para a comparação com realidades regionais, nacionais e internacionais, compreendendo as relações que se estabelecem com outras paisagens. Isso poderá permitir a busca por semelhanças e diferenças entres os lugares e ampliar as noções de tempo e espaço, que são vitais para o entendimento dos fenômenos geográficos. Portanto, de acordo com os PCN’s, espera-se que ao final do primeiro ciclo, os alunos sejam capazes de: *reconhecer, na paisagem local e no lugar em que se encontram inseridos, as diferentes manifestações da natureza e a apropriação e transformação dela pela ação de sua coletividade, de seu grupo social; *conhecer e comparar a presença da natureza expressa na paisagem local, com as manifestações da natureza presentes em outras paisagens; *reconhecer semelhanças e diferenças nos modos que diferentes grupos sociais se apropriam da natureza e a transformam, identificando suas determinações nas relações de trabalho, nos hábitos cotidianos, nas formas de se expressar e no lazer; *conhecer e começar a utilizar fontes de informação escritas e imagéticas utilizando, para tanto, alguns procedimentos básicos; * saber utilizar a observação e a descrição na leitura direta ou indireta da paisagem, sobretudo por meio de ilustrações e da linguagem oral; *reconhecer, no seu cotidiano, os referenciais espaciais de localização, orientação e distância de modo a deslocar-se com autonomia e representar os lugares onde vivem e se relacionam e, *reconhecer a importância de uma atitude responsável de cuidado com o meio em que vivem, evitando o desperdício e percebendo os cuidados que deve ter na preservação e na manutenção da natureza. (PCN’s, 1997, p. 89)) Os PCN’s (1997) ainda propõem para a abordagem da paisagem local, o estudo a partir de blocos temáticos, que podem ser estudados pelos alunos de um modo amplo e contribuir para o entendimento da construção do espaço geográfico. Esses blocos temáticos se configuram como sugestões de temas que pode ser acatado pelo professor e pela escola, os quais também são livres para propor os seus próprios temas, relacionando a realidade local. 49 Os blocos temáticos propostos pelos Parâmetros são: Tudo é natureza; Conservando o Ambiente; Transformando a natureza: diferentes paisagens; o Lugar e a Paisagem. (PCN’S, 1997, p.89) No tema Tudo é Natureza, o professor poderá incentivar a observação e a descrição da natureza no cotidiano do aluno e para ampliar a percepção dos alunos, pode-se comparar com a natureza em outras escalas, como local, regional, nacional e até global. Destacam-se também, as questões que podem relacionar o papel do trabalho na transformação da natureza, o caráter biofísico da natureza e as relações afetivas que se estabelecem entre as pessoas e o meio ambiente. (PCN’S, 1997) Conservando o Ambiente é o tema por meio do qual se explora a necessidade dos alunos de compreender as relações que os indivíduos estabelecem com a natureza no seu dia-a-dia. Faz parte também deste tema, o modo de produzir o cotidiano, as tecnologias e as novas formas de se relacionar com a natureza, atitudes conservacionistas em relação à água, à produção de energia e à produção de alimentos. Nesta perspectiva conservacionista, os PCN’s incentivam dentro desse tema, o estudo conceitual das Áreas Protegidas e Unidades de Conservação. (PCN’S, 1997) No bloco temático Transformando a natureza: diferentes paisagens, deverá ser enfatizada a evolução da paisagem, por meio do estudo das transformações sociais, culturais e econômicas e da revolução tecnológica. Pode-se integrá-lo a disciplina de História, que poderá dar suporte na discussão das mudanças espaço-temporal das mais distintas paisagens, numa visão interdisciplinar. Dentro desse tema, podem-se incluir também as pesquisas sobre como os diferentes grupos sociais (índios, negros, imigrantes e etc) transformam a natureza ao longo do tempo. (PCN’S, 1997) A individualidade de cada um dos alunos com o lugar onde vivem, é contemplada no tema O lugar e a paisagem, procurando aprofundar a percepção dos alunos para as condições do lugar onde moram e o modo como cada um vê o seu lugar e como cada lugar, compõem a paisagem. Podem-se discutir também as normas e as regras de se comportar na coletividade, procurando perceber como as crianças encaram as regras estabelecidas para cada lugar. (PCN’S, 1997) 50 Esses blocos temáticos estabelecem as dimensões de aprendizagem que a criança deve atingir no nível de escolaridade pertencente ao primeiro ciclo do Ensino Fundamental ao propor conteúdos de caráter conceitual, procedimental e atitudinal, como: *observação e descrição de diferentes formas pelas quais a natureza se apresenta na paisagem local: nas construções e moradias, na distribuição da população, na organização dos bairros, nos modos de vida, nas formas de lazer, nas artes plásticas; *identificação de motivos e técnicas pelos quais sua coletividade e a sociedade de forma geral transforma a natureza: por meio do traba