UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA Botticelli: pintura e teoria Débora Barbam Mendonça Marília 2011 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA CAMPUS DE MARÍLIA Botticelli: pintura e teoria Débora Barbam Mendonça Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP para Defesa de Mestrado na área de concentração em História da Filosofia e História e Filosofia da Arte. Orientadora: Drª. Arlenice Almeida da Silva Marília 2011 Débora Barbam Mendonça Botticelli: pintura e teoria Banca Examinadora ____________________________________________________ Drª. Arlenice Almeida da Silva (UNESP/Marília) (Presidente e Orientadora) ____________________________________________________ Dr. Andrey Ivanov (UNESP/Marília) (1º Examinador) ____________________________________________________ Drª. Magnólia Costa Santos (MAM – Museu de Arte Moderna) (2º Examinador) Marília, 30 de setembro de 2011 Ao meu sobrinho, o pequeno Frederico. Que o futuro triunfe! Agradecimentos Durante o curso das disciplinas, da elaboração da dissertação, e todas as demais atividades envolvidas no curso de Mestrado, muitas pessoas foram enormemente importantes para ajudar a manter minha sanidade mental. Agradeço ao programa de Pós-Graduação Filosofia e ao Escritório de pesquisa, em especial os funcionários Paulo Sérgio Teles, Sylvia Moraes e Renato Geraldi, sem os quais estaria à deriva em um mar de burocracia. Não há espaço para expressar tamanha gratidão por minha querida orientadora Arlenice Almeida da Silva, por sua sabedoria, dedicação, compreensão e paciência durante todos os anos em que trabalhamos juntas. Agradeço aos professores Ana Maria Portich, Andrey Ivanov, Magnólia Costa, Márcio Benchimol e Mário Henrique D’Agostino por terem colaborado diretamente com meu trabalho. Agradeço à Fapesp por ter fomentado minha pesquisa possibilitando que eu me dispusesse de mais tempo para me debruçar sobre ela. Agradeço à minha família, principalmente à minha mãe, irmã, sobrinho e avós por terem sempre me lembrado que mesmo estando à um passo da loucura, nossa prioridade é sempre a vida. Agradeço aos meus colegas de Pós- Gradação Cláudia Galassi, Danilo Ramos, Flávia Quintanilha, Fernando Aun, Luís Fernando Catelan, Rafael Gazeli e Tércio Bugano que surpreendentemente se tornaram amigos. Agradeço à república “Alta-tensão” (Ivan Pedro Martins, Nathália Pantaleão e Paulo Henrique Pereira) pelo “alívio na tensão”. Agradeço aos amigos de longa data e de vida inteira Ana Carolina Meneguelli, Emerson Filipini, Estevan Franco, Fernando Pilan, João Roberto Ricardi, Juliana Arruda, Márcio Girotti e Vivian Souza por terem compartilhado de meu esforço e terem me apoiado mesmo quando meu cansaço se estendia a eles. Agradeço a João Antonio de Moraes por nunca ter perdido a fé e por sempre ter me mostrado que sempre há um caminho melhor a se traçar. Concluindo em um sentido místico, agradeço ao cosmos por ter me devolvido a saúde no momento em que qualquer mal estar fora considerado artigo de luxo. “And I ride the winds of brand new day High where mountains stand Found my hope and pride again Rebirth of a man Time to fly …” (Angra – Rebirth) RESUMO Trata-se de uma investigação dos aspectos filosóficos que envolviam o fazer artístico de Botticelli; tomando como cenário a cidade de Florença durante o Quattrocento. Este trabalho se realizou a partir de uma dupla abordagem, envolvendo um debate filosófico e historiográfico, cuja finalidade foi a de apresentar as discussões teóricas que permeavam a atividade dos artistas da época. Nosso trabalho contou com um aparato histórico, para que fosse possível configurar o Renascimento a partir do contexto em que as atividades culturais estiveram inseridas. Dentre as teorias distintas que visavam refletir sobre uma questão comum, o belo artístico, ressaltamos a proposta neoplatônica de Marsilio Ficino e a teoria pautada no cientificismo humanista de Leon Batista Alberti. A finalidade do embasamento teórico era de indicar aos artistas como deveria ser a composição de suas obras, como deveriam ser as apropriações a partir da Antiguidade, e, desta maneira, mostra como localizar a beleza dada pela natureza. Procuramos em nosso trabalho identificar o pintor Sandro Botticelli como exemplo legítimo da busca pela beleza artística, pela graça que resultava da reflexão sobre a arte como imitação eletiva da natureza. Palavras-chave: Botticelli. Quattrocento. Antiguidade. Imitação da natureza. ABSTRACT This thesis is an investigation on the philosophical aspects involved in Botticelli’s painting, adopting Florence during the Quattrocento as the main scenario. This work has been done from a double approach, involving a historical debate and a philosophical one, which aims at showing theoretical discussions, that underlies the activity of artists of this period. The historical apparatus of our work allowed us to configure the Renaissance from the context in such cultural activities were inserted. Among the distinct theories that aim to think about the artistic beauty, we highlighted Marcelo Ficino’s Neo-platonic proposal and the theory based on Leon Batista Alberti’s Humanist Scientific. The goal of this theoretic foundation was to indicate how should be the composition of works made by artists and how should be the appropriation of Ancient by them, what, thus, implies at showing how we can locate beauty given by nature. We seek in our work to identify Sandro Botticelli as a genuine example of the questing for artistic beauty, for grace which results of reflection about art as elective imitation of nature. Keywords: Botticelli. Quattrocento. Ancient. Imitation of nature. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................ 10 CAPÍTULO I – Historiografia e Metodologia............................................................23 CAPÍTULO II – Conceitos e doutrinas.......................................................................35 CAPÍTULO III – Pintura e reflexão............................................................................53 III. a.) A formação pictórica de Botticelli....................................................................57 III. b.) A Perspectiva no Quattrocento........................................................................66 III. c.) O conceito encontrado na literatura................................................................71 III. d.) O conceito de graça...........................................................................................76 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A virgem do magnificat.............................................95 REFERÊNCIAS...........................................................................................................106 10 INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem por objetivo estudar o conceito de graça na pintura do florentino Sandro Botticelli e, com base nele, confrontar a sua pintura com os pressupostos teóricos que embasavam sua produção. Para que fosse possível a realização de nosso trabalho, tomamos como ponto de partida o estudo de Giulio Carlo Argan1 sobre a pintura de Botticelli, que examinou a participação do pintor no contexto teórico que vigorava em Florença do século XV. As contribuições de Argan foram lidas como sugestão inicial para o questionamento filosófico acerca da pintura de Botticelli. Tal pintura, realizada durante o Quattrocento florentino, é frequentemente dividida em três fases, as quais passaremos a expor sucintamente, a fim de termos maior clareza acerca dos questionamentos indicados por Argan, com base nos quais desenvolvemos nosso trabalho. Certamente, cada fase da obra de Botticelli foi intrigante e decisiva na constituição do conjunto da sua obra, bem como para a formação do artista, que consideramos um verdadeiro representante do Renascimento. A primeira fase da produção de Botticelli corresponde às suas obras iniciais, nas quais o pintor produzia a maior parte de suas composições sob forte influência de seus precursores e mestres dos ateliês, tais como Fra Angelico (1395-1455), Filippo Lippi (1406–1469) e Masaccio (1401-1428). Nessa fase, observamos que Botticelli se dedicava às representações de figuras bíblicas, seguindo o contexto das exigências do Cristianismo. Outra característica que podemos notar é a presença de um traço não tão seguro e bem delimitado como ocorre na fase seguinte, uma vez que, assim como todo iniciante em pintura, Botticelli começou se familiarizando com a composição, aprendendo a mistura e o preparo das tintas. Algumas obras, no entanto, já lhe rendiam prestígio, como é o caso de A adoração dos magos (1465-1467); esta constitui uma de suas primeiras obras originais, que marca o início de uma grandiosa série de quadros dedicados a esse tema, conquistando o agrado de mecenas importantes em Florença, cujas confrarias das quais participavam, como a dos Reis Magos, faziam parte do regimento da vida da cidade. 1 Cf. ARGAN, Giulio C. Clássico e anti-clássico. São Paulo: Cia das Letras, 1999. 11 A adoração dos magos. 1465-1467. Galleria degli Uffizi: Florença. Na primeira fase, Botticelli também se dedica à representação da Virgem Maria, que na maioria das vezes é figurada junto do menino Jesus e de anjos. Esse tema mostra claramente a fidelidade do pintor aos ensinamentos de seu mestre Fra Filippo Lippi, que, por sua vez, exercia atividades religiosas. Não demorou muito tempo, após os cinco anos que esteve vinculado ao ateliê de Lippi, para que Botticelli inaugurasse seu próprio estúdio em Florença, por volta de 1470. A partir de então, Botticelli salta em direção às características próprias, e se apresenta receptivo às novas tendências que acreditamos ser o ponto de transição para sua segunda fase. O artista permanece de prontidão à necessidade de se pintar figuras de temática bíblica e até mesmo retratos; porém, solitariamente, começa a introduzir em suas representações alguns elementos que denotam originalidade. Tais elementos atingirão seu ápice por volta da década de 1480, no Quattrocento, quando, por meio deles, Botticelli finalmente conquista a apreciação dos mecenas, sobretudo, da família Médici. Pelo fato de Botticelli haver começado sua produção independente ainda muito jovem, as obras da segunda fase podem ser classificadas como “obras de juventude”, nas quais a jovialidade e disposição de ânimo do pintor são evidentemente percebidas. No final dos anos 1470, a fama de Botticelli extrapola os limites de Florença, 12 proporcionando-lhe, entre outras atividades, a oportunidade de pintar afrescos na Capela Sistina. O prestígio decorria, também, dos conhecimentos intelectuais para os quais o artista se abria, como a literatura e a filosofia antigas, que fizeram com que ele atraísse a atenção da família mais poderosa de Florença, fato que lhe rendeu encomendas grandiosas, por meio das quais se reconhece sua celebridade além da era renascentista. Durante o período estabelecido como a segunda fase da obra de Botticelli2, marcada principalmente pela adoção de motivos pagãos, percebemos uma importante e forte questão, que pode ser observada nas diversas esferas do Renascimento: o tema do naturalismo. O tema da natureza, ou mesmo a busca por um conteúdo que resgatasse a temática grega, era nitidamente frequente nas pinturas de Botticelli, as quais expressavam uma estreita associação entre arte e filosofia. O tema do naturalismo surgiu no Renascimento devido ao interesse renovado pela Antiguidade, pois nesse período a natureza (physis) envolvia vários os aspectos da vida do homem: mitológico, científico, filosófico, cultural e político. Dessa maneira, os renascentistas buscavam na Antiguidade referências por meio das quais pudessem estabelecer uma nova relação entre o homem e a natureza, uma vez que, esta busca pode ser muito bem observada nas produções artísticas da época. Destacavam-se representações de figuras mitológicas que, à primeira vista, conotavam um sentido profano em vista da religião cristã; entretanto, a real mensagem era a transmissão de um conteúdo filosófico que os intelectuais discutiam nos encontros de reflexão. Na fase tardia de Botticelli, posterior aos anos 1490, o pintor demonstra uma grande preocupação com o conteúdo, jamais, contudo, em detrimento dos aspectos formais que compõem sua pintura. O pintor utiliza atrativos figurais, grande variedade de cores, fazendo com que tais elementos auxiliem a transmissão de um conceito já não mais mitológico; as formas, as cores, e, até mesmo as figuras tornam-se instrumentos de comunicação de suas reflexões. Acreditamos que este novo objetivo da arte de Botticelli expressa, sumariamente, um retorno à arte simples, mais natural no sentido paisagístico, tomando como referência os afrescos de Giotto (1266-1337), em um movimento no qual seria possível realizar um regresso saudosista ao início do Renascimento, valorizando mais o conteúdo e menos o artifício. Essa medida talvez se deva ao fato de Botticelli ter sofrido certa censura por parte de um Frei Dominicano que se estabeleceu 2Apresentamos uma divisão do conjunto de obras de Botticelli a partir das considerações de Giulio Carlo Argan (Cf. Clássico e anti-clássico. São Paulo: Cia das Letras, 1999), e pela apresentação das obras realizadas por Bárbara Deimling (Cf. Botticelli. Köln. Taschen. 1995). 13 em Florença no final do século XV, Girolamo Savonarolla (1452-1498). Tal censura teria ocorrido diante da intensa retomada pelo pintor de temas religiosos, como é o caso das obras que ilustram a vida de São Zenóbio (1500- 1505), que narra a história do primeiro papa de Florença, ocorrida mais de mil anos antes. Percebemos que essa última fase desperta um interesse particular em Argan, uma vez que o teórico observa que é nela que Botticelli se define, ou seja, que o pintor florentino é capaz de conciliar as influências teóricas e técnicas, as quais examinaremos adiante. Cenas da Vida de são Zenóbio (1500-1505). National Gallery. Londres Os três milagres de são Zenóbio (1500-1505). Metropolitan Museum of Art. Nova Iorque 14 Os três milagres de são Zenóbio (1500-1505). Metropolitan Museum of Art. Nova Iorque. Como se sabe, a família Médici foi grande provedora da arte de Botticelli, estabelecendo certos critérios para as obras que lhe encomendavam. No entanto, o artista, como homem intelectual do Renascimento e conhecedor das regras do Humanismo, entendia que tais regras deveriam ser aquelas ditadas pelos manuais de pintura, ou, diferentemente, deveriam ser orientadas pela Filosofia, Teologia, e, sobretudo, pelo legado antigo através da Literatura. Botticelli conseguiu imprimir, por meio desse conhecimento múltiplo, algo original em sua obra: conseguiu resgatar e apropriar-se do repertório dos antigos sobre a natureza, voltando-se aos temas clássicos que permearam boa parte de sua produção. Os valores humanísticos fundamentavam-se não só na temática grega necessária para o Renascimento, como também no tema da necessidade de regresso à natureza esquecida e, com ele, aos valores antigos, fossem eles neoplatônicos - que se referem ao amor e ao belo possível de se realizar no homem em âmbito estritamente ideal - ou mesmo aristotélicos. No artigo “Botticelli”, Argan (1999, p. 208-209) propõe que o pintor possuísse uma orientação filosófica, cuja intenção era a de que, por meio da arte, fosse possível colocar em prática uma filosofia. Botticelli foi o primeiro a “[...] atrelar a pesquisa artística a uma filosofia, [...] que por meio da arte, buscou realizar uma estética [...]”. Argan ainda ressalta que Botticelli teria sido “o primeiro que afirmou a unidade profunda entre arte, pensamento e poesia; o primeiro, finalmente, que isolou o valor do ‘belo’, indicando nele o fim último da arte”. Argan (1999, p. 218) destaca, entretanto, que a arte não é conhecimento da natureza, mas é o que desvenda os “significados alegóricos ocultos das coisas naturais”, ou seja, “ela é vontade de beleza”, 15 haja vista que a “natureza não empresta sua beleza à arte”; a natureza possibilita às práticas artísticas a adoção de temas, motivos e até mesmo conceitos, por meio dos quais a arte age em favor da natureza. Nossa intenção neste trabalho é tomar as considerações de Argan como nosso fio condutor, sempre problematizando-as, e questionando sobre até que ponto a pintura de Botticelli pode ser apontada como uma manifestação que exibe uma ideia do belo, demonstrando uma possível concordância com a vertente do neoplatonismo em voga no final do século XV florentino. Devemos problematizar esses apontamentos acerca de Botticelli, uma vez que há um universo teórico que envolve a produção do artista que muitas vezes se contradiz. Tendo em vista tal contradição iniciaremos nosso estudo sobre a produção de Botticelli por meio da análise de Argan, sendo que no decorrer de nosso trabalho apresentaremos contribuições de outros teóricos que sejam capazes de confrontar, ou mesmo assegurar, a análise apresentada. Argan (1999, p. 216) situa na pintura de Botticelli uma manifestação que exibe uma ideia do belo, encarando-o como resultado de uma figuração particular da natureza. Entretanto, para Argan o belo é obtido com a transcendência da realidade; ou seja, a obra de arte é fruto de uma mediação entre o artista e a natureza, pois, o belo está no detalhe obtido na figuração do conteúdo3, na imitação da natureza. Essa constatação é um dos grandes problemas que envolvem o Renascimento: de um lado, (i) a exigência herdada da Antiguidade de mimese, de imitar a natureza; de outro, entretanto, (ii) no meio humanista que se desenvolvia no século XV, esta exigência não está pautada em bases puras, uma vez que o imitar da natureza não deve ser realizado tal como a natureza é dada aos sentidos. Segundo a posição (ii) a arte deve realizar a perfeição que não existe na natureza, o que pode ser alcançada por meio de correções ou, em outros termos, por uma escolha daquilo que se irá representar, pois, o objeto de imitação deve ser aquele que houver de melhor, segundo técnicas capazes de aperfeiçoá-lo. Essa exigência de uma escolha da natureza gera outro princípio, o do eletio 4, que parece ser inverso ao do imitatio, ao de realização da mimese. Argan desenvolve uma tentativa de resolver esse impasse na obra de Botticelli com a distinção entre mimese e inventio: a pintura das coisas consiste na mimese, e a pintura das ideias consiste na inventio. Para entendermos a pintura do artista, segundo a 3 O belo exposto por Argan trata-se do belo obtido pela inventio, e difere-se do belo mimético platônico, uma vez que a arte mimética consiste na imitação das coisas, que para Platão já são imitação das ideias. O conceito de inventio sana a fragilidade da mimese, pois consiste na representação de uma ideia em si. 4 Cf. PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 16 visão de Argan, devemos enxergá-lo como um pintor capaz de realizar a inventio em sua arte, conseguindo assim estabelecer uma oposição entre formas e imagens. Botticelli realiza uma pintura de ideias, pois se utiliza de símbolos, de alegorias, ou seja, de imagens que carregam em si um conceito mais amplo do que aquele que a própria imagem literal é capaz de figurar. O conteúdo encontrado nas obras de Botticelli é transposto por elementos sempre objetivos que, por sua vez, são equivalentes visuais de um plano incorpóreo e estável: as formas. Dessa maneira, a arte de Botticelli é considerada instável (ARGAN, 1999, p.216), pois são as imagens (alegóricas, plurais, polivalentes, mutáveis) que envolvem sua arte figurativa, enquanto que as formas, as quais tendem ao universal, embasam uma arte estável e constante, capaz de figurar um único conteúdo, a natureza. A história cênica não é ordenada em episódios, mas em um movimento que não permite um recorte estático, tal como no quadro Primavera, no qual as flores estão mais do que descritas, pois, são invocadas, destituídas da substância corporal (ARGAN, 1999, p. 214), ou seja, a “rítmica descontínua da linha” e a “cor empalidecida” sinalizam que para Botticelli a pintura está distante da experiência sensorial, por um processo de transposição das coisas em imagem. O processo de transposição em imagem ao qual Argan se refere vai ao encontro dos ensinamentos da tradição neoplatônica que vigorava em Florença por influência do filósofo neoplatônico Marsílio Ficino. A imagem é incorpórea e abarca significados ocultos, alegóricos, pois é plural (contaminatio), e a questão do belo para Botticelli, por sua vez, é independente da natureza (ARGAN, 1999, p. 218). A arte é entendida como um artifício que permite descobrir os significados alegóricos ocultos das coisas naturais; se é responsável por realizar a imitatio, trata-se de uma imitação por meio da inventio. Argan observa que arte não é representação do belo, e sim vontade de beleza, concordando assim com a teoria metafísica de Ficino, sendo que, dessa maneira, Botticelli é capaz de eliminar o problema arte/natureza irresoluto desde a Antiguidade: a incompatibilidade entre eletio e imitatio. O ideal ficiniano, que possivelmente influenciou a pintura de Botticelli, consiste na expressão de uma religiosidade indeterminada que vai da pulchritudo à venusta, não sem intervenção da voluptas, ou seja, é um ideal de beleza pautado menos em uma beleza moral (pulchritudo), e mais em uma beleza física (venusta), cuja graça decorre de ritmos de cor, visibilidade, interrupção repentina, obstruções, retornos de linha, impedindo que o ritmo se determine como algo constante e previsível. A cor vai 17 agregando seu significado à imagem, perdendo suas qualidades particulares em favor da composição da totalidade; nesse processo, o significado simbólico da cor é responsável por traduzir textualmente a metáfora da luz (ARGAN, 1999, p. 217), e a luz, por sua vez, é vaga e indefinida, uma vez que é mediação “espiritual”; os temas, ou residem na tradição iconográfica, ou são temas alegóricos, capazes de substituir um conceito por uma imagem. Argan ressalta que a poesia do tema é diferente da poesia da imagem, e que não podem se unir em uma forma de objetivação, como na imitação ou contemplação da natureza, ou mesmo em um exemplar histórico. Uma vez que o belo artístico de Botticelli, para Argan, (1999, p. 206) é “abstrato”, ele não pode ser o belo natural ou clássico, e tampouco estar sujeito a uma determinação histórica ou objetiva qualquer, pois, o pensamento do belo se liga a uma teoria, a uma poética comum da elite intelectual florentina da corte dos Médici, uma teoria neoplatônica do amor, que retoma vários motivos do “dolce stil novo” e de Petrarca” 5. Em meados do Quattrocento, era cada vez mais frequente o uso de signos figurativos extraídos da poesia antiga, fazendo com que não fosse mais necessário que os artistas falassem de modo natural sobre os valores sensíveis, intelectuais, filosóficos, metódicos e, neste caso, principalmente poéticos6. Por exemplo, a presença do mito permite reconhecer as obras humanas nas épocas da história, podendo reencontrar, assim, sua significação: a ruína romana, por exemplo, faz com que Florença entre na Antiguidade, de maneira que seja possível agregar o elemento pagão ao mundo cristão (pasticho), ou seja, os mitos são atribuídos aos espíritos que movem o mundo, e não à posição em relação ao objeto. É no contexto de diálogo entre as disciplinas do conhecimento que Argan procura interpretar a pintura de Botticelli, entendido como participante do debate técnico e filosófico do meio intelectual florentino do século XV. Diante disso, essa interpretação resulta na tese que pode ser assim resumida: a pintura de Botticelli é a pintura de ideias, ou seja, seu belo é ideal, o que o torna o realizador de uma filosofia, ou até mesmo de 5 Cf. ARGAN, Giulio Carlo. 1999, p. 211. 6 Não mais falar de modo natural pode ser entendido como falar alegoricamente. Nosso interesse na linguagem alegórica consiste em saber até que ponto as teorias que justificavam as figuras simbólicas de Botticelli eram pautadas no neoplatonismo. João Adolfo Hansen (1986 p.86), em sua obra Alegorias, construção e interpretação da metáfora, realiza alguns apontamentos importantes para o estudo de obras de arte simbólicas no cenário florentino do século XV: os elementos alegóricos tinham por finalidade explicar um simbolismo com outro elemento misterioso, tornando mais difícil sua interpretação. Hansen (1986, p. 82) apresenta o método de interpretação alegórica florentino como um artifício de deslocamento das Escrituras, responsabilizando o pensamento da Antiguidade oriental e greco-romana para sua possível interpretação. Esse deslocamento unifica mistérios pagãos e a revelação cristã numa genealogia ideal, remontando a uma unidade. 18 uma “estética” como prefere Argan (1999, p. 206). O referido autor inicia seu estudo acerca da pintura de Botticelli sugerindo que o pintor tenha participado de correntes helenizantes que surgiram em meio à cultura florentina do século XV, uma vez que essas correntes utilizavam fontes literárias antigas, das quais extraiam o tema das obras de arte produzidas por seus artistas, como no caso de Botticelli, que realizou uma ecfrase do pintor antigo Apeles, utilizando o conceito da Vênus anadiomena para compor a obra Calúnia. Com base nessas sugestões, Argan chama a atenção para a importância do conceito envolvido nas produções artísticas de Botticelli, pois o pintor realizava uma poética com sofisticação, a partir de uma escolha minuciosa de imagens que expressem uma ideia, um tema conveniente. O rigor é próprio do “rito que evoca o mito” (ARGAN, 1999), sem o qual não seria possível a existência de imagens, uma vez que a pintura tem a função de descobrir e revelar as ideias por meio dos símbolos, isto é, das imagens. Vênus Anadiomena se trata de uma figuração de encontrada nos murais de Pompéia, e acredita-se que foi pintada por volta do século I a. C. A transposição do ideal genérico de beleza nas aparências naturais é visto por Argan como exemplo de alegorismo. Ressalte-se, entretanto, que é um alegorismo que não aspira uma transposição direta do conceito em imagem, tampouco a simplicidade do símbolo. Isso ocorre, pois o alegorismo da segunda fase de Botticelli substitui o alegorismo direto e mais naturalista, observado na primeira fase, por um alegorismo conceitual, expressando uma carga maior de conteúdo, tal como a filosofia neoplatônica de Ficino, o que resultou na destruição do mitologismo naturalista dos artistas do Trecento. 19 Argan aponta que Botticelli, inspirando-se no mestre grego Apeles, escolheu para si um ideal de graça venusta, que entende a arte como harmonia de linhas e cores, empregando em certas obras uma imitação de uma ideia de belo, e não de formas históricas, instigando-nos no questionamento sobre o que é o belo ideal para o artista. Para Argan, os elementos que compõem uma pintura são o resultado de uma inspiração propriamente teórica, e não apenas técnica. A obra Calúnia, por exemplo, apresenta elementos formais que resultam da especial inspiração do pintor no mestre antigo Apeles, uma vez que Botticelli se manteve atento aos artifícios da pintura antiga que agregavam a graça (venusta) e a harmonia entre as cores e linhas à pintura. O belo de Botticelli, segundo Argan (1999, p. 214), está afastado e quase destituído de substância corporal: a beleza, a mesma beleza ficiniana, é um distanciamento da realidade física, uma misteriosa transferência da coisa na imagem, um processo que implica um artifício, uma poética moldada em procedimentos alegóricos carregados de preceitos humanistas. Calúnia (1495). Galleria degli Uffizi: Florença. Uma grande e decisiva exigência para a composição da pintura no Renascimento certamente foi a do uso da perspectiva. Para tentar definir a pintura de Botticelli, Argan tenta classificar o tipo de perspectiva que o pintor empregava em suas obras: a 20 perspectiva contraposta à de Piero della Francesca (1415-1492), a toda a construção espacial e proporcionalidade toscana. Botticelli foi um dos primeiros a perceber a diferença entre a visão perspectiva toscana e a flamenga; diferença que está além da questão óptica, pois, tal como a distinção entre mimese e imitatio, na pintura toscana de Piero há uma espacialidade da proporção, enquanto que na de Botticelli há uma composição resultante de um conceito harmônico, ou seja, a construção de um campo visual a partir de um ponto de fuga. Nesse sentido, a preocupação de Botticelli muitas vezes se restringiu à prevalência do valor poético da imagem ao valor de composição da forma, uma vez que, para Botticelli, a composição da historia dependia mais dos conceitos que as figuras representavam a partir de um envolvimento harmônico, do que propriamente da teorização matemática da disposição das figuras no espaço; dessa maneira, é possível atrelar ou mesmo fundir o valor cristão com o motivo pagão (ARGAN, p. 230, 1999). Argan entende a pintura de Botticelli como anti-paisagem, pois, segundo as análises das obras que realizou, as arquiteturas são traçadas seguindo regras de perspectiva; porém inexiste o espaço que ordene ou contenha as figuras, o que resulta, observa Argan, na técnica por meio da qual Botticelli é capaz de valorizar as figuras, ressaltando assim o seu valor alegórico ou simbólico. A perspectiva utilizada por Botticelli, para Argan, não serve para unir, mas para fragmentar o espaço, o que garante uma singularidade ao objeto e vai ao encontro do pressuposto de que sua pintura exprime a transmissão de uma imagem incorpórea. Podemos, entretanto, ressaltar que ao longo de nosso trabalho faremos uma exposição sobre os fundamentos da perspectiva que possivelmente influenciaram Botticelli, mas que não concordam com as análises de Argan, que, por sua vez, se ateve com muito mais atenção ao legado filosófico que auxiliou a composição dos conceitos base para as obras de Botticelli. Como minucioso teórico de arte, Argan (1999, p. 215) localiza os elementos técnicos que permeavam a pintura de Botticelli, e observa que além da perspectiva flamenga que auxiliava na composição da harmonia pictórica, devemos considerar a importância dos métodos ópticos de Brunelleschi (1377-1446) que, por meio do Tratado da pintura desenvolvido por Alberti, chegaram até o Botticelli. Alberti expõe e codifica como teoria da visão a teoria de Brunelleschi sobre a construção arquitetônica 21 do espaço, tornando os estudos sobre a óptica muito mais acessíveis aos artistas do Quattrocento7. A construção arquitetônica do espaço é elaborada por Alberti a partir do domínio do visível. Botticelli por sua vez, como leitor do tratado de Alberti, adota essa noção de perspectiva para a construção do espaço. Tal procedimento remeteria ao Trecento, à arte simples como cópia do que pode ser apreendido pela pirâmide visual, sem deixar que o conceito da obra se esconda atrás da sistematização geométrica do espaço, a qual pertence à tradição de Piero della Francesca e que se estende até o século XVI com Rafael e Leonardo. A pintura é sempre um fruto de uma eleição, e a perspectiva é o método que a pintura utiliza para conseguir transpor tal eleição segundo as regras incontestáveis da visão. Para que entendamos melhor como é possível que a perspectiva auxilie no processo de eleição ao qual a pintura se propõe, devemos entender o que os domínios do visível, do objeto, significam para a filosofia ficiniana: o objeto, segundo Ficino, é o equivalente visual do plano incorpóreo, que, por sua vez, é estável e universal. O que devemos entender a partir das considerações de Ficino é que o processo de eleição é uma atividade incorpórea que está associada ao intelecto, e por sua vez, atende à necessidade que o belo tem de se associar às ideias. Uma vez que a perspectiva auxilia na elaboração do objeto devido à teorização realizada na composição do espaço, podemos entendê-la também como algo incorpóreo se estivermos inseridos no contexto ficiniano priorizado por Argan. A perspectiva tem uma importância especial, pois é responsável por empregar o ritmo da linha, estabelecendo características que não possuem uma continuidade, mas uma ordem, para produzir movimento, e com ela, a beleza graciosa que os humanistas tanto almejavam. A partir da análise de Argan da obra de Botticelli, fica indicado que a perspectiva pautada na visão se realiza em auxílio a um conceito que exprime uma beleza ideal, uma vez que a construção arquitetônica do espaço de Brunelleschi, que influenciou a perspectiva de Alberti, pode também ter auxiliado a manifestação de um legado filosófico ficiniano em favor da pintura. A imagem pintada, de tema antigo ou renascentista, profana ou pagã, pertence ao plano do real e das ideias, pois se trata de uma figuração da realidade a partir de uma escolha. Ambos os temas estão vivos em uma realidade, a mesma na qual encontramos a cultura humanista, que preza pela beleza 7 Cf. ALBERTI, L. B. Da pintura. Campinas: Ed: Universidade Estadual de Campinas, 1989. 22 e pela graça, pelas formas que possuam um conteúdo constante, que se refira à natureza, ao espaço. A possível influência do religioso Savonarola na pintura tardia de Botticelli pode explicar o fato de que o pintor tenha efetuado uma arte abstrata, na leitura de Argan, realizando uma filosofia, uma vez que sua arte esteve colocada fora do tempo e da história, como conhecimento supremo que se consegue transcendendo a realidade rumo à contemplação livre, o que talvez explique o fato de que suas obras tardias, da terceira fase, celebram uma arte antiga, um alegorismo naturalista, além de sua opção pelo uso da perspectiva. No século XVI, o problema da arte era posto, grosso modo, sob função cognitiva, classificando o transcendentalismo estético de Botticelli fora da história e da questão artística, devido sua polêmica ênfase ao primitivo. Botticelli confrontava a concepção histórica da pintura como indagação e conhecimento da natureza e da história, diferente de Leonardo, para o qual a natureza não é revelação da vontade do Criador no sistema harmônico das formas criadas, tampouco obstáculo material: é o mundo ilimitado dos fenômenos, aberto à indagação e à experiência, ou seja, uma antítese ao platonismo contemplativo de Botticelli (ARGAN, 1999, p. 208). Em síntese, nosso trabalho consiste no empenho em comparar os apontamentos de Argan com outras referências de teóricos e historiadores, tais como Aby Warburg, Robert Klein, Erwin Panofsky, para que nos seja possível enxergar Botticelli com nossos olhos. Para realizar esta tarefa se faz necessário entender até que ponto há um ideal de belo ficiniano intrínseco nas obras de Botticelli, bem como ter contato com o legado teórico da pintura da tradição humanista, seja por Alberti ou, mesmo por Piero della Francesca. Enfim, tentaremos localizar elementos na obra de Botticelli, em pormenores tardios ou de juventude, que exemplifiquem o conceito de graça e o debate teórico no qual o pintor esteve inserido. 23 CAPÍTULO I – Historiografia e metodologia Uma das grandes dificuldades encontradas em nossa tentativa de estudar a pintura de Sandro Botticelli decorre da necessidade metodológica de inseri-lo em um período histórico específico. Essa dificuldade não se faz presente somente devido a peculiaridade de Botticelli em relação à sua época, mas também pela polêmica historiográfica gerada em torno do período no qual o pintor se situa: o Renascimento. Existem incontáveis manuais de Arte ou mesmo de História que classificam o período entre os séculos XIV e XVII como Renascimento; entretanto, não é sempre que os manuais entram em um acordo com relação ao início e fim, ou mesmo acerca do começo do Maneirismo ou Barroco. O fato é que a tradição historiográfica sempre tendeu a recortar a história, fragmentar períodos, o que muitas vezes acaba dificultando o entendimento de alguns aspectos que só podem ser compreendidos segundo uma abordagem contínua, como é o Renascimento, por exemplo, na visão de Leon Kossovitch (1994). Kossovitch (1994) observa que há dois modos a partir dos quais é possível interpretar o Renascimento. Estudos realizados por volta do século XVIII por teóricos da Escola de Winckelmann, entre outros, ainda concebiam o Renascimento como um período de grandes manifestações artísticas, cuja característica seria a invenção retórica e poética de tais manifestações, no século XIV, tal como em Petrarca ou, depois, Vasari operam “topoi de invenção que, remontando a Roma imperial, republicana, nada positivam”. Outra concepção de Renascimento, periodizadora, é realizada pelos historiadores dos séculos XIX e XX, como os teóricos do Instituto Warburg, ou os italianos Venturi e Argan, que atribuem a este período uma novidade estilística; ou seja, defendiam que as manifestações artísticas ocorridas no Renascimento foram responsáveis não apenas pela inserção da retórica e da poética nas artes visuais, como contribuíram diretamente para a invenção e a formação de um estilo, o que é encarado por historiadores desta tradição como algo positivo. Para aprofundar nossa análise sobre estes dois possíveis modos de conceber o Renascimento, nos apoiaremos nas interpretações realizadas por teóricos do século XIX, como Aby Warburg (2005), e XX, como Giulio Carlo Argan (1999), Erwin Panofsky (1981), Edgard Wind (1999), e Frank Zollnër (2009). Erwin Panofsky foi um teórico do século XX que contribuiu em muito para a compreensão do Renascimento, e, consequentemente, da pintura de Sandro Botticelli. 24 Para Panofsky, o Renascimento não é um período exclusivamente italiano, o que o faz percorrer e utilizar outras classificações históricas de acordo com as épocas e regiões. Destaca-se, então, uma diferença de abordagem em relação àquelas presentes nas análises de Lionello Venturi e Argan que sempre colocam a efervescência italiana em oposição ao isolamento de Bizâncio. Para que possamos ter noção dos critérios que orientam a cronologia de Panofsky, apresentaremos a divisão histórica elaborada pelo teórico na obra Renascimento e renascimentos 8 . Nessa obra, observa-se o esforço de Panofsky para argumentar em defesa de uma desmistificação e de um questionamento rigoroso sobre a própria existência do Renascimento, entendido como um período particular e isolado na história da civilização. Panofsky (1981, p. 18) almeja detectar a existência de uma inovação e, talvez, com isso, negar a hipótese de que a natureza humana permanece a mesma segundo a ordem do tempo, uma vez que, para esse teórico, a história é uma narrativa que constitui um registro metódico e contínuo segundo o ditado do tempo. Megaperíodos não deverão, portanto, ser princípios explicativos para esta caracterização, uma vez que o tempo é a própria definição de um período, com uma fase marcada por uma mudança de direção que implica, simultaneamente, continuidade e ruptura. O Renascimento é, para Panofsky (1981), um período passível de desperiodização, pois, uma vez que na análise das manifestações culturais ocorridas anteriormente ao século XIV não são identificadas rupturas concisas, muitos historiadores são levados a elaborar uma definição que entende o Renascimento como parte de um processo linear, que ocorreu desde a Idade Média. Por outro lado, devido à constatação histórica de que é possível haver a localização de diversos traços de revivescências menores, ocorridas muito antes da considerada “grande revivescência” que “culminou na época dos Médici”, percebemos que diversos fatores mantinham o Renascimento atado à Idade Média, bem como à Antiguidade Clássica (PANOFSKY, 1991, p. 24). No entanto, a questão que ecoa a partir dessa constatação é: o Renascimento pode ser entendido como um fenômeno único em comparação com as outras revivescências ocorridas anteriormente? 8 Cf. PANOFSKY, Erwin. Renascimento e renascimentos na arte ocidental. Lisboa: Editorial Presença, 1981. 25 Panofsky inicia sua reflexão acerca da periodização do Renascimento propondo um questionamento sobre a legitimidade desse movimento9, como um período particular da história. O primeiro elemento de sua argumentação consiste em demarcar diferenças importantes entre o Renascimento e os movimentos humanistas da Idade Média, defendendo inicialmente que, por se tratar de um termo médio, o momento denominado Renascimento já pressupõe uma era anterior que o separa da Antiguidade. Para tal, Panofsky relembra os versos saudosistas de Petrarca que, diante das ruínas romanas, estabelecia o passado como glorioso e o presente (Idade Média) como deplorável, mesmo que a figura iluminada e gloriosa de Cristo estivesse inserida em todo o contexto do universo medieval. Partindo da existência de um humanismo medieval, Panofsky acompanha diversas esferas da atividade cultural em busca de indícios, de características próprias do Humanismo (ou mesmo do hipotético Renascimento), que poderiam ser resumidos no regresso à Antiguidade Clássica e na exigência da imitação da natureza. Uma primeira revivescência nas artes visuais possibilitou o surgimento de uma tendência, que autorizou os historiadores a observarem nas diversas artes, tais como a pintura, a escultura e a arquitetura, uma confluência entre imitação da natureza e regresso ao antigo, de modo que a pintura do início do século XIV remeteria à regressão ao clássico, e a escultura e arquitetura do século XV à imitação da natureza. Para ressaltar a singularidade do Renascimento, Panofsky (1981) reconhece nele uma evolução, típica à sua tradição, em três fases: a infância corresponde ao momento em que a pintura foi considerada grandiosa com a figura de Giotto; a adolescência também corresponde à pintura com a figura de Masaccio (1401-1428); à fase adulta é atribuída a arquitetura de Brunelleschi e, por fim, culmina na maturidade cujos representantes são Leonardo (1452-1519) e Michelangelo (1475-1564). Provavelmente fundamentando-se em Ghiberti (1378- 1455), Panofsky considera Giotto o portador de uma nova luz, que tira do esquecimento a aura clássica e que marca o início da nova era. Giotto reforma a pintura em um caráter mais naturalista, denotando a sua inclusão na teoria da revivescência. 9A palavra renascimento está escrita com letra minúscula devido à reflexão que Panofsky propõe ao período. 26 Segundo Ghiberti (2005)10, Giotto foi descoberto ainda criança pelo pintor Cimabue (1240-1302)11, o qual ficou muito admirado com a engenhosidade do menino, que sem que ninguém lhe ensinasse, era capaz de transmitir a natureza12. Giotto foi ensinado por Cimabue, que, por sua vez, conhecia a maneira grega, fazendo com que seu aprendiz se tornasse um grandíssimo mestre, realizando notáveis obras em inúmeros lugares. Além desses feitos, segundo Ghiberti (2005, p. 6), Giotto também trouxe a arte nova e natural, abandonando o caráter rude dos gregos sem perder a medida de equilíbrio que possuíam. Um dos problemas com as categorias propostas por Panofsky, que explicam porque elas não são aceitas tão facilmente, decorre, como bem observa Kossovitch (1994, p. 62), de uma possível incoerência na datação de Panofsky a respeito do início do Renascimento. Existem versões que indicam que Giotto tenha inaugurado esse período; entretanto, Kossovitch observa também que Dante está cravado na Idade das Trevas, juntamente com Cimabue, mesmo que estes sejam considerados pré-giottanos. Kossovitch atenta para a incoerência de atribuir data ao início do Renascimento, pois, ao mesmo tempo em que Cimabue era um pré-giottano, estava preso às margens das primeiras luzes, mas também emancipado delas, e, por essa razão, é o nome essencial da representação naturalista abordada no final do século XV. Nesse sentido, Cimabue, não assinala a evolução do bizantino ao renascentista, cujo implícito é o naturalismo, uma outra apropriação antiga. Controvérsia à parte, para Panofsky houve um Renascimento que principiou na Itália por volta de 1300 com Cimabue e depois com Giotto. Antes de iniciarmos nossa análise sobre a polêmica acerca da existência de uma delimitação periódica do Renascimento na História, passaremos à elucidação das revivescências gregas ocorridas durante o período medieval, anteriores ao Trecento, para que, em seguida, possamos melhor contornar o século XV. As revivescências medievais são de grande ajuda no entendimento do início do Renascimento devido ao fato de ser a porta de entrada para dois movimentos maiores: O Proto-renascimento toscano, e o Proto-humanismo. 10 Cf. BAGOLIN, L. A. Dos Comentários de Lorenzo Ghiberti: Análise e Tradução. 2005. Tese de Doutorado. FFLCH, mimeog. 11 Cimabue é um pintor do Trecento, sobre o qual se tem muito poucas informações. A única obra atribuída como sendo de autoria do pintor é a figura de São João Evangelista executada para o mosaico absidial da Catedral de Pisa, cujo pagamento foi efetuado em 1301 (BAGOLIN, A. notas de sua Tradução do Segundo Comentário de Ghiberti, p. 2, 2005). 12 A natureza que Ghiberti menciona é, segundo Bagolin (2005), uma referência à tópica antiga, na qual a natureza é a fonte da invenção. 27 A primeira revivescência medieval foi denominada Carolíngia devido à abrangência dos domínios de Carlos Magno (séculos VII e VIII). Suas manifestações ocorrerem na época dos intercâmbios do Cristianismo com o paganismo e o orientalismo, que utilizavam os termos que se referem ao “renascer” em sentido diferente dos humanistas dos séculos posteriores. O núcleo da revivescência do Império Carolíngio foi Roma, Norte da França e Oeste da Alemanha, lugares onde se propagava um vácuo cultural. A principal reivindicação era a da herança de Roma (renovatio imperii romani), uma atitude universalista e até pagã, pois faz menção aos caracteres mitológicos e as personificações clássicas (como a arte cristã primitiva). Panofsky marca o fim da revivescência Carolíngia em 877 com a morte de Carlos, o calvo, e por nove décadas posteriores permaneceu infértil, quase que um período de incubação. A segunda revivescência medieval foi denominada de Renascimento Otoniano, que ocorreu em meados do século X (970-1020) na Inglaterra, paralelamente às revivescências de outras regiões com outras denominações, tais como, o Renascimento Anglo-saxônico, na Alemanha. Não havia um esforço para fazer reviver a Antiguidade, pois proclamavam um espírito cristocêntrico, buscando inspiração apenas nas fontes do cristianismo primitivo, carolíngio e bizantino. Aproveitava-se a aparência das imagens eliminando suas características clássicas. Cem anos após estes movimentos medievais, ocorrem então os movimentos mais expressivos ainda no alto medievo: o Gótico primitivo na França (última parte do século XI); e, enfim, no período do Alto Românico, os dois movimentos mais próximos do renascimento no Trecento, que citamos anteriormente: o Proto-renascimento (século XII) e o Proto-humanismo (apogeu no século XII até o Trecento). Ambos os movimentos são paralelos, porém, complementares e clássicos. Iniciaremos a explicação da aproximação da Idade Média com o Renascimento elucidando a definição destes dois renascimentos românicos, começando pelo Proto-renascimento. Trata-se de um fenômeno mediterrâneo com sua origem no sul da França, Itália e Espanha (fora do território Carolíngio de tendências celto-germânicas), ou seja, em regiões onde o elemento clássico ainda integrava as civilizações. Nessa época temos o início da urbanização e da formação dos centros, bem como das peregrinações (cruzadas) e das construções monásticas, o que possibilitou que a arte alcançasse os domínios das massas. A atenção na Antiguidade pautava-se na arte pré-cristã, com tendência para a monumentalidade e para a arte tridimensional, estabelecendo um enfoque maior para a arte de cunhar moedas e a da ourivesaria, encrustamento de pedras 28 preciosas e confecção de camafeus. A escultura, por sua vez, começa a ser praticada num sistema arquitetural – princípio da axialidade (aproximação gradual da estátua à coluna). O Proto-renascimento mediterrâneo foi, também, um movimento paralelo ao movimento Gótico francês, mesmo que tenha sido menos duradouro. Segundo Panofsky (1981, p. 92): [...] foi no próprio coração da França – quer dizer, fora da órbita do movimento do proto-renascimento propriamente dito - e não antes dos fins do século doze - quer dizer, não antes do estilo gótico passar como diria Vasari, da infância à juventude e à maturidade - que a arte medieval adquiriu a capacidade de se juntar à arte antiga em condições de igualdade (Movimento do proto-renascimento atraído pelo gótico no domínio real e champanha). O Proto-humanismo, por sua vez, adotou um ideal cultural e educacional específico. Defendia a união entre a razão e eloquência (letras), estabelecendo uma grande importância ao estudo das Humanidades. O Proto-humanismo, como movimento distinto do Proto-renascimento, originou-se em regiões afastadas do Mediterrâneo, como na Alemanha Ocidental, Borgonha, Inglaterra e Países Baixos. Esse movimento propagou-se essencialmente no sul da França, Itália e Espanha, desenvolvendo uma cultura autenticamente clássica, mas não de cunho humanista, que priorizava a Filosofia, a Medicina e a Matemática. O Proto-humanismo retomou mais que o espírito intelectual, pois se lançou na tentativa de resgatar o valor da tradição clássica. A maior manifestação do Proto-humanismo deu-se no âmbito da Literatura, isto é, no conhecimento da cultura grega e na realização de traduções de filósofos, contribuindo, então, para a formação do autêntico humanista, o que viria a auxiliar a formação do intelectual no Renascimento italiano propriamente dito. O Renascimento italiano reintegraria os elementos formais e de conteúdo que haviam sido separados por ambas as tendências (artifícios do Proto-renascimento, e eloquência do Proto- humanismo), pondo fim aos paradoxos medievais que limitavam a forma clássica em virtude de temas cristãos. Entretanto, a influência conjunta dos movimentos medievais (Proto-humanismo e Proto-renascimento) resultou na retomada dos motivos clássicos pelas artes figurativas. Nos séculos XI e XII, a arte medieval tornou-se então a arte clássica, assimilável mediante a decomposição natural destes movimentos. A reintegração dos movimentos anteriores – Proto-renascimento e Proto- humanismo - ao Trecento foi baseada na “Contrarrevolução Gótica”, que, segundo Panofsky, começava a surgir no século XIV, e consistia na tentativa de dispersar a 29 classicização, de reconstituir os significados dos conceitos que estavam esquecidos durante a Idade Média. Essa tentativa pretendia estabelecer a buona maniera moderna, com a finalidade de propor algo de novo em relação ao antigo, que, como podemos perceber, não caiu absolutamente no esquecimento durante toda a Idade Média. Observa-se, nesse período, a ausência de uma tradição figurativa, mas, com o passar do tempo, foram surgindo imagens “neo-teóricas” (autônomas de qualquer tradição clássica e livremente formadas por descrições verbais oriundas de traduções árabes), o que faz com que esse momento seja intermediário entre a dependência da cultura antiga e a nova cultura particular do Ocidente, atingindo assim, o “ponto zero da curva ocidental”. O conceito de “ponto zero” é elaborado por Panofsky para responder sua questão inicial da singularidade do Renascimento. Para esse teórico da arte (1981), há sim um Renascimento particular, que surgiu da emergência de duas tendências que se destacaram durante o período da Idade Média. No entanto, este período particular destacado como Renascimento não exclui os vestígios clássicos existentes ao longo da história da pós Antiguidade; portanto, mesmo se tratando de um período particular, o Renascimento não é a única manifestação clássica na História, mas sim, a manifestação mais completa de tais valores, que conseguiu unir, a partir do século XIII, a forma e o conteúdo clássicos. Três fenômenos distintos colaboraram para que houvesse tal completude num dado momento da história, isto é, para que fosse composto o Renascimento: a Rinascita italiana, a Renovatio Carolíngia, e os dois últimos fenômenos que convergem em um só, o Proto-humanismo e o Proto-renascimento. Os elementos góticos, por sua vez, simbolizavam a transitoriedade dos renascimentos medievais, dos quais o Renascimento se diferencia estruturalmente. A diferença crucial entre a postura do Renascimento italiano e os anteriores, segundo Panofsky (1991, p. 153) é essencialmente decorrente do fato de: No Renascimento italiano, o passado clássico começou a ser olhado a partir de uma distância fixa, comparável à <> [...] essa distância impedia um contato direto [...] mas permitia uma visão total e racionalizada. Em nenhum dos dois renascimentos medievais se encontra essa distância. 30 Ou seja, Panofsky tenta tomar a técnica da perspectiva como uma metáfora do olhar perspectivo 13 que se desenvolve durante o Renascimento italiano legitimando-o enquanto período histórico. O olhar perspectivo se desenvolve a partir do distanciamento consciente entre o presente cristão e o passado pagão. Por falta de perspectiva, de uma distância temporal, a cultura clássica não podia ter uma visão completa de si mesma. A “apaixonada nostalgia” dos humanistas em relação aos gregos (PANOFSKY, 1981, p. 159) impulsiona a recriação do contexto, mas de uma maneira consciente, pois o passar dos séculos possibilitou que houvesse uma visão histórica ampla, podendo servir de roteiro para a renovação desta cultura. Ainda para Panofsky, o salto do século XIV para o XV caracteriza a conquista de uma maior noção de espaço, o que possibilita ao artista mover-se, situando o objeto de sua arte à sua frente. O objeto toma sentido literal a partir de então, pois assume seu papel de objectum, ou seja, se coloca em frente ao artista. Terminando o século XIV, a arte na Itália estava afastada da Antiguidade quase tanto quanto a arte nos países do Norte. Por exemplo, os holandeses criaram seu próprio modo operante e estiveram em contato com quase todas as artes visuais. Os pais da pintura holandesa eram atraídos pelo estilo românico, que estabelecia um rompimento com os mestres. Já para os nórdicos, o românico representava o fim do passado. A Holanda e a Itália, no fim do século XIV, reagiram de forma semelhante quanto ao postulado central, ou seja, o de interpretar o espaço como tridimensional. O início de uma nova era é então marcado pelo regresso à natureza, conceito que desempenhou um papel importante na pintura e, no que se refere à arte clássica, influenciou também a arquitetura, tendo chegado ao seu equilíbrio na escultura. Na arte de Florença, há um momento em especial no qual percebemos o regresso à Antiguidade e seu modo de conceber a natureza: neste momento destacam-se três grandes, um em cada linguagem artística: Brunelleschi, com a arquitetura, Donatello (1386-1466), com a escultura, e Masaccio com a pintura. As influências clássicas colaboraram para a escolha das cores na pintura de Masaccio, para a modelação escultural segundo a perspectiva em Donatello, sempre de acordo com as atitudes que remetem à natureza, garantindo assim uma expressividade emotiva em relação à Antiguidade (PANOFSKY, 1994, p. 225). 13 Entende-se por olhar perspectivo a distância estabelecida entre o observador e o objeto a ser observado, ou seja, a possibilidade de múltiplos pontos de vista. 31 O início do século XV pode ser caracterizado por um período de incubação, que consiste na reconciliação da pintura com a escultura e a arquitetura. A expansão rumo aos motivos clássicos ocorre inicialmente na Itália do Norte, uma vez que Florença e Roma ainda iam aos poucos despertando seu interesse pela atmosfera burguesa e pelo retorno aos motivos clássicos. Depois de 1450-60, houve o início do estilo classicizante com figuras clássicas destinadas à representação das figuras de anjos, como podemos observar em obras tardias de Andrea Del Castagno14. O domínio do estilo classicista em figuras e cenários estabelece a “[...] reintegração da forma e do conteúdo clássicos” (PANOFSKY, 1991, p. 239). Um exemplo dessa reintegração é Piero Pollaiuolo (1441- 1496), o primeiro pintor anatomista de que se tem notícia na Itália do século XV; suas representações de nus apresentavam ênfase excessiva aos contornos caligráficos, as figuras nuas eram contrapostas a um fundo neutro ou paisagens luminosas, o que denota contribuições holandesas aos cenários. De acordo com Kossovitch (1994, p. 59-61), a abordagem realizada pelos estudos históricos, nos séculos XIX e XX (Panofsky, por exemplo), além de positivar a noção de estilo, também é responsável por realizar recortes nos dados históricos, o que resulta em uma avaliação analítica da História, petrificando os tempos, e possibilitando uma concepção evolucionista da História e, mesmo das artes, uma vez que a concepção de estilo é suporte para agregar adjetivos periodizados. Nos séculos XIX e XX, de fato, pode-se ver como o Renascimento é classificado como período de período, pois são realizadas grandes partilhas, criando-se até mesmo a noção de sub-períodos, como o Renascimento Carolíngio (Proto-Humanismo), o que decorre, grosso modo, de um isolamento da Idade Média, gerando preconceitos historiográficos, tais como o rótulo da Idade das Trevas, a escuridão medieval, e outros. Vale ressaltar que o elemento grego que fez parte da Antiguidade é diferente do elemento grego apropriado pelo Renascimento. Do século XIV ao XVI esses elementos passam a integrar o que os historiadores denominam corrente da maniera greca moderna, diferente da maniera greca antica. Os renascentistas tinham a consciência de que somente ao modo grego cabia a perfeição e que o reviver dessa cultura não significava atingir esta perfeição. Essa concepção renascentista é vista pela historiografia evolucionista como impulso para uma nova busca que culmina no classicismo do século XIX; ou seja, para a tradição historiográfica herdeira do século XVIII, os momentos artísticos ao longo da 14 Escudo cerimonial pintado em couro com fundo paisagístico – David- análogo à Florença. 32 história são isolados e depois transferidos para uma escala evolutiva, na qual o posterior consegue superar o momento anterior. Quanto à definição do momento histórico denominado, como indicamos, Renascimento, Kossovitch concorda que a ele corresponda uma invenção histórica e poética que ocorreu por volta do século XIV, cuja característica principal é a da realização de uma ligação retórica entre os tempos antigo e moderno. O século XV, cenário da pintura de Botticelli, é a continuidade da ligação entre o antigo e o moderno, é o século no qual se observa, segundo Argan (1999), o princípio de inventio, nos termos da retórica e da poética antigas. Podemos localizar muitas apropriações de elementos antigos em favor da composição de obras de artes plásticas, literárias e até mesmo de tratados metodológicos, como a obra Da Pintura, de Leon Batista Alberti (1436), que indica a direção a ser seguida pelo pintor que almeja o bem pintar. A historiografia dos séculos XIX e XX também aproxima Renascimento e Humanismo, como podemos constatar na presença e influência de textos considerados medievais, tais como os de Al-Hazen, Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Dante, entre outros, nos renascentistas. Contudo, o fato central é o de que os elementos clássicos, sejam eles gregos, romanos, de orientação platônica ou aristotélica, nunca abandonaram o Renascimento. Isso se deve à relação desse período com o Humanismo: a representação do belo, de sua associação retórica com o bem, no Renascimento, especificamente nos séculos XV e XVI em Florença, estava diretamente atrelada à intersecção entre Filosofia, Ética, Retórica, e Poética, o que caracteriza o retorno ao ideal grego de um conhecimento múltiplo, à capacidade do homem ciceroniano. Nas palavras de Kossovitch (1994, p. 61): [...] “clássico”, “Renascimento” não tem, contudo, datação certa, sendo atribuído ao século XVI pela historiografia dos fins do XIX e começo do XX; pode circunscrever-se ao XV, Quatrocentos, dando-se ênfase à “representação” (ausente do pensamento das artes do mesmo século) perspectivista [...] pode começar no XIV, quando também atualmente, a historiografia deriva artes de letras, valorizando o “humanismo” ignorado nos tempos concernidos por ele, pois criação do século XIX e XX: “Renascimento” subordina-se como “humanismo” [...] para cada poeta designado um pintor [...]. Tomamos como base o debate historiográfico sobre o Renascimento, pautado principalmente nas considerações acerca de sua periodização, para que seja possível nele examinar a pintura de Botticelli, em nossa abordagem acerca do Renascimento. 33 Entretanto, tentaremos apontar as novidades ocorridas no século XV, sempre levando em consideração o fato de que a historiografia pode, muitas vezes, direcionar a pesquisa com jargões e preconceitos gerados em relação ao período estudado. Ciente de tais limites metodológicos e historiográficos, procuraremos mostrar como se efetua a identificação do moderno (Renascimento) com o antigo, acentuando de que modo a tradição antiga persiste ou muda, nas várias vertentes de tais elementos antigos, e observando atentamente quais eram as fontes do século XV, bem como seus procedimentos. Em meados do século XV, surgiram algumas obras de grande importância no direcionamento das apropriações dos elementos antigos realizadas pela época moderna. As obras Da Pintura, De Statua e De re aedificatoria de Leon Baptista Alberti ordenam - retórica e poeticamente - o que deveria ser produzido. Pretendemos estudar mais atentamente a obra Da Pintura (1436), para que possamos compreender quais os métodos indicados aos pintores de Florença e quais os elementos antigos que os artistas, intelectuais e teóricos se apropriavam. A partir desses métodos e elementos, esperamos também destacar em que sentido a Antiguidade persiste, e em qual muda; ou seja, perceber através da obra da Alberti, quais são as novidades do momento que chamamos Renascimento. Em Alberti, poética e a retórica impõem-se na pintura dos séculos XV e XVI, imposição encarada pelos historiadores dos séculos XIX e XX como uma superação positiva, uma vez que à Antiguidade faltava o domínio da composição, pois os antigos desconheciam a perspectiva, bem como o sentido retórico da pintura. Para que seja possível realizar qualquer estudo acerca da arte no Renascimento, devemos levar em consideração a importância do conceito filosófico de belo que, por sua vez, não apresenta apenas um modo de compreensão. De um lado há uma orientação humanista, como bem podemos observar em Alberti; de outro, uma compreensão que embora não exclua o caráter humanista, sua característica mais marcante é a de que o belo artístico seja a representação de um belo ideal, como bem podemos observar na filosofia de Marsílio Ficino. Vale ressaltar que as duas apreensões do belo, durante o Renascimento, concordavam, mesmo com algumas diferenças, com a indissociação entre o bem e o belo, na medida em que havia uma presença inquestionável da retórica e de seus preceitos de conveniência e decoro, que regravam as práticas letradas e as arti liberali, constituindo a representação do belo no século XV. Em outros termos, a reflexão sobre o belo, no Humanismo, estava diretamente atrelada ao entrecruzamento entre Filosofia, Ética, Retórica, e Poética, seja caracterizando as apropriações dos 34 elementos antigos, por meio de um retorno ao ideal grego, seja buscando o conhecimento múltiplo na capacidade do homem ciceroniano. Tendo em vista as questões metodológicas e os elementos presentes no estudo do Renascimento, no próximo capítulo, examinaremos as teorias de Alberti (1989) e Ficino (1956) que embasavam a prática artística, localizando nessas teorias, quais os elementos antigos que o Renascimento se apropriou, bem como quais as novidades que permeavam o período. 35 CAPÍTULO II – Conceitos e doutrinas Para nossa investigação sobre a obra de Botticelli, foi necessário, como se observou no capítulo I, desenhar o contorno da discussão historiográfica envolvendo o Renascimento. Não menos importante que o entendimento historiográfico é o exame das discussões teóricas ocorridas no século XV, uma vez que o meio intelectual florentino articulava Arte, Filosofia, Literatura, Ciência, e, é nesse contexto que devemos observar as obras de Botticelli. Tentamos observar o Renascimento a partir de um frutífero recorte: o século XV florentino, que foi cenário de importantes transformações capazes de legitimar o Renascimento enquanto período histórico. O Quattrocento florentino foi o período em que viveu e produziu Sandro Botticelli, e neste mesmo século respirava-se um clima de inquietação cultural, no qual se observava grande multiplicidade cultural e crescente laicização das concepções sobre o homem. Essa inquietação intelectual tinha por direcionador a busca por algo indeterminado, alguma aura perdida ou mesmo esquecida na Antiguidade Clássica, que se foi tornando mais clara a partir de reflexões pautadas em Platão15, Aristóteles, ou mesmo no platonismo de Plotino, bem como na literatura poética dos antigos, como a de Homero. O clima do século XV é característico do Humanismo, um movimento intelectual abrangente que não temos a pretensão de tentar definir, mas que foi decisivo para a elaboração das obras de dois grandes teóricos, os quais influenciaram diretamente a pintura de Botticelli: Leon Batista Alberti e Marsílio Ficino. Leon Baptista Alberti foi um teórico de grande importância no cenário artístico do Quattrocento, situando-se, nos termos de Anthony Blunt, na obra Teoria artística na Itália 1450-1600, no mais alto patamar humanístico, uma vez que se tratava de um homem consciente do fazer artístico e de diversas disciplinas que serviam para a produção de conceitos para uma obra de arte. Alberti foi um dos primeiros representante dos humanistas16 que tinham uma ligação mais íntima com os assuntos clássicos, sendo que a característica principal de sua concepção de vida está relacionada com este racionalismo humanista, baseado mais na filosofia Antiga do que nos ensinamentos do 15 Um exemplo que podemos citar a respeito da retomada do universo antigo, pode ser o conceito de amor casto pautado no legado platônico, que ficará mais claro mais adiante. 16 Os humanistas defendiam a posse do conhecimento em caráter universal, enciclopédico, estabelecendo uma maior importância às múltiplas disciplinas do saber, tais como a Matemática, Geometria, Anatomia, Retórica, Literatura, Idiomas como Latim e Grego, Teoria das Cores, Geografia, História, etc. 36 catolicismo que vigorava em sua época. Alberti em sua obra De re aedificatoria 17 aborda os métodos arquitetônicos de Brunelleschi para auxiliar a sua teoria de construção visual do espaço18, que servirá tanto para a composição escultórica quanto pictórica. Alberti defende que os edifícios foram construídos por causa dos homens, feitos para satisfazer as necessidades da vida, ocupações do homem, ou deleite. Sua atitude com relação à pintura é a mesma, porém, a pintura deve conter uma “história”, que é de tipo mais nobre ao seguir um tema, e de tipo menos nobre se estiver restrita a figuras individuais; é essa “história” que gera uma imagem das atividades do homem assim como na arquitetura. Na obra Da pintura, Alberti fornece apontamentos para o pintor, a fim de ensiná-lo a pintar como se deve, para atingir uma pintura de tipo mais nobre, bem como indica a necessidade do pintor mostrar-se desejoso e consciente de todas as formas de conhecimento que sejam relevantes para sua arte. O pintor deve empregar sua arte naquilo que for mais agradável, visando a conquistar os mecenas, e, com isso, elevar o gosto e as opiniões deles, porém sem nunca deixar de seguir, acima de tudo, certas normas e princípios como proporções justas, harmonia, variedade, e decoro, que para Alberti constituem a beleza da “história” pintada. A importância do decoro na obra de arte no Renascimento constitui propriamente a beleza ou a graça no sentido de que é considerado belo apenas o que deve ser pintado; ou seja, o belo é aquilo conveniente de ser pintado acima de tudo em âmbito moral. O poder criativo do artista é limitado e sua grandeza consiste justamente na maneira com que é capaz de produzir uma obra agradável e conveniente incluindo seus traços pessoais, mesmo que tenha que seguir os preceitos importantes para a época. Durante quase toda sua obra, sobretudo no Livro I, Alberti chama a atenção para a construção da história a ser pintada19. Um elemento de grande importância para a composição é o ponto, pois, se trata de um sinal que não pode ser dividido por partes, e que também consiste no início da construção de um campo visual (base da pirâmide 17 Cf. ALBERTI, L. B. De re aedificatoria. 18 No livro I da obra Da pintura, Alberti fornece uma formulação teórica da perspectiva linear para a representação pictórica dos objetos, indicando os exercícios já indicados por Brunelleschi. O método albertiano da construção do espaço visual assemelha-se a um do tabuleiro de xadrez, tal como teoriza sobre a construção da pirâmide visual a partir do ponto de fuga. O lineamento é a parte da pintura que corresponde ao conhecimento da geometria euclidiana e da ótica; e a composição à oratória (BAXANDALL, 1971). 19 A história para Alberti deve ser digna de admiração, deve ser agradável e ornada a ponto de cativar e deleitar a alma, e tanto o espectador quanto o artista devem ter o olhar educado segundo decoros e conveniências, capazes de produzir graça, leveza e harmonia, encobrindo o artifício. 37 visual). A superfície também é um elemento importante na composição da obra de arte: além de se tratar da base da pirâmide visual, também agrega em si a função do movimento; permanece a mesma enquanto as linhas e ângulos também não mudarem, porém se houver mudança no movimento da orla, a superfície também muda de aparência e de nome, por exemplo, de triângulo para quadrângulo. Algumas superfícies são planas, outras apresentam inconstância de movimentos; como afirma Alberti (1989, p. 74), são “cavadas por dentro, e outras são infladas para fora e são esféricas”. A perspectiva tem um papel importante na constituição da superfície, uma vez que é por meio da visão que as qualidades dispostas na superfície ganham movimento. Cada superfície apresenta sua própria pirâmide, cor e luz, sendo possível encontrar várias superfícies juntas. O teórico não trata com menos importância a questão da multiplicidade das cores que devem ser empregadas nas obras de arte consideradas belas. A categorização das cores durante o Renascimento está estritamente ligada à natureza, pois divide as cores existentes em quatro grupos referentes, ou seja, aos quatro elementos da natureza, a água (verde), o ar (azul), a terra (cor cinzenta e parda) e o fogo (vermelho). As variações de cores existem devido à variação de tonalidades que representam esses elementos, de acordo com o emprego do preto e do branco. A pintura por volta de 1420 (contemporânea de Alberti) consistia, em linhas gerais, na figuração do mundo exterior de acordo com os princípios do conhecimento humanista, ilustrando uma rememoração da necessidade grega de que a produção artística deva estar de acordo com a natureza tal como se apresenta. Assim, surge novamente a natureza como objeto de produção artística e, portanto, como objeto de estudo, uma vez que se torna necessário que o artista apresente um domínio dos diversos ramos do saber para que possa figurar a natureza de maneira completa. Alberti observa que poucos pintores são capazes de compor a conjunção das superfícies com excelência, pois, para tal tarefa devem saber circunscrever a superfície com as linhas e pôr-se à distância de seu objeto de imitação sendo possível encontrar o vértice do ângulo da pirâmide visual para ter uma ideia da melhor localização para a contemplação das coisas pintadas. Tal como prescreve a retórica, a pintura deve mover e ensinar, deleitar pela copia e varietà delle cose; efetuando na pintura mesmo a indagação sobre a graça e a beleza da composição, pois, não se encontra método mais correto que observar a natureza mesma; por isso, para imitá-la é preciso exercitar-se com todos os pensamentos 38 e diligências. No entendimento de Alberti, encontrar na natureza o tema da pintura não significa realizar uma imitação mimética, e sim pôr em prática o princípio de imitatio, que não se deve confundir com a cópia fenomênica, pois o deleite não é alcançado se a história não refratar virtudes. Alberti concorda, desta maneira, com a noção de graça como copiosidade, indo ao encontro do conceito de concinnitas 20. O termo concinnitas é utilizado por Alberti para auxiliar na compreensão de um tipo de beleza, uma vez que o tipo de beleza defendido pelo teórico vai ao encontro da raiz retórica do termo21 Em relação à proporção, Alberti valoriza a comparação, pois “essas coisas todas se conhecem por comparação. A comparação tem em si a força de mostrar nas coisas o que é mais, o que é menos ou igual” (Alberti, 1989, p.87). Nesse sentido, a proporção das coisas a serem pintadas deve ser preservada para que o pintor não caia no ridículo dos espectadores reconhecerem as coisas pintadas desproporcionalmente, uma vez que é possível de reconhecer esse erro devido à comparação com os outros elementos da obra. Para reforçar seu argumento, Alberti (1989, p.88) interpreta a máxima de Protágoras: “o homem é a dimensão e a medida de todas as coisas”, no sentido de que “os acidentes das coisas podiam ser conhecidos, comparadas com os acidentes dos homens”. Em resumo, Alberti trata dos rudimentos da arte no Livro I Da Pintura (triângulos, pirâmides, intersecção), que são primordiais para fornecer ao pintor em formação os primeiros passos para o “bem pintar”. Alberti (1989, p. 93) ainda acrescenta no Livro I que “nunca será bom artífice quem não for extremamente escrupuloso em conhecer tudo o que dissemos até agora”. O próximo passo das lições ao pintor (Livro II) é de como se deve empregar na prática o que se aprendeu em teoria. No Livro II de Da Pintura, Alberti explora a necessidade da busca da graça, da beleza das coisas na composição da história, ou seja, da superfície a ser pintada, bem como enfatiza que por meio da inteligência o pintor deve colher esses elementos na própria natureza. Para que seja possível atribuir importância na constituição da composição da obra de arte, Alberti expõe o processo de composição da superfície. Na superfície delimitada é possível construir a composição da história a partir dos 20 Em seu tratado sobre a Arquitetura (De re aedificatoria, 1443-1452) Alberti defende que a beleza deve ser digna e justa, e que deve ser entendida mais com a alma do que com o corpo. Para simplificar as definições, Alberti coloca a beleza como algo resultante do ritmo existente entre as partes reunidas com proporção e raciocínio. 21 O termo concinnitas está ligado à uma concepção retórica de Herênio, e está baseado em outros três princípios da retórica: elegantia, que consiste na recomendação de se evitar os vícios; compositio que recomenda-se evitar as repetições e cortes; e dignitas, que recomenda que a oração retórica seja ornada por elementos convenientes. 39 elementos a serem pintados, os corpos, que, por sua vez, são formados pelos membros, e assim por diante. A pintura é dividida em três partes tiradas da própria natureza: a descrição do espaço (circunscrição); a superfície através da qual se realiza a composição; e as qualidades da superfície, a saber, as cores, recepção de luzes. A circunscrição é responsável por descrever a volta em torno da orla na pintura, por estabelecer linhas, delineamento e movimento da orla. A composição na pintura é o processo do pintar pelo qual as partes (da superfície) se compõem na obra pintada, o que resulta na história. A recepção de luz é o que fornece cor e originalidade à obra, o que diferencia a sombra do colorido, ou seja, é uma característica, como observado, qualitativa da obra. Há, no entanto, a necessidade de que todas as partes que compõem a obra pintada apresentem um todo harmônico entre si, o que resultará na história bela; esta harmonia é entendida por Alberti como a graça da pintura; é o ajuste natural e delicado das partes durante a composição: “[...] Da composição das superfícies nasce aquela graça nos corpos que chamamos beleza” (ALBERTI, 1989, p.107). Para que seja possível a efetuação desta graça, ou mesmo a beleza necessária, é preciso que o pintor siga na prática toda a teoria que lhe foi transmitida como os primeiros passos, os rudimentos do bem pintar. Deve haver um delineamento preciso da orla, uma delimitação exata da superfície no que diz respeito à imitação daquilo que se obteve pela base da pirâmide visual, e uma justa disposição, proporção e conformidade dos elementos que formam as figuras que irão compor a história. Alberti (1989, p. 112) revela que o talento é atributo crucial do pintor, verificado na composição dos corpos, ou seja, na adequação devida das figuras com a história que se quer contar. Nesse mesmo momento do Livro II de Da pintura 22 , é revelada a importância da variedade e da copiosidade para a beleza ou graça de uma obra de pintura. Segundo o autor, a história variada é capaz de abranger uma universalidade que somente a pintura é capaz de alcançar, ou seja, a pintura é capaz de agradar tanto o pobre quanto o rico, tanto o sábio quanto o inculto, tanto o fraco quanto o forte. A pintura transmite, de acordo com Alberti, certos movimentos da alma tais como a ira ou a dor, que se mostram ao corpo por meio de sua natureza mutável, fazendo com que o espectador identifique a obra com a alma. 22 Cf. ALBERTI, L. B., 1989, p. 112 40 Para que a pintura seja digna, é necessário que haja movimentos suaves e graciosos, convenientes ao que nela acontece. Nas palavras de Alberti (1989, p.107): “mas as fisionomias que tiverem superfícies juntas de tal modo que recebam sombras e luzes amenas e suaves, e não tenham asperezas de ângulos salientes, diremos certamente dessas fisionomias que elas são formosas e delicadas”. Que ela consiga por meio desses métodos, afetar a imaginação do espectador em seu corpo ou sua alma. Como já declarado, é também de suma importância o equilíbrio do jogo de luz e sombra empregado nas cores, oferecendo o destaque àquilo que lhe for devido. Na superfície plana a cor permanece uniforme, já nas superfícies irregulares, a cor sofre variações porque não há como ter um equilíbrio linear entre claro e escuro. Alberti assegura que, de acordo com o contraste existente entre as cores, a beleza estará nas partes em que a cor estiver mais clara e leve. Podemos observar que nos livros I e II, de Da pintura, Alberti procura combinar elementos técnicos e metodológicos, que julgava importantes para a composição pictórica. Especificamente no livro II, Alberti trata dos conceitos necessários para a formação do pintor, que consiste na associação do fazer artístico com alguns conceitos que os humanistas julgavam imprescindíveis, de acordo com a tendência quattrocentista de realizar uma representação de belo segundo um conceito, uma filosofia. Ou seja, como já vimos, realizando-se com base no diálogo que a pintura pode estabelecer com a Ética, Retórica e Poética, de maneira que seja ressaltado o retorno ao ideal grego, o conhecimento múltiplo do homem e a obtenção das virtudes. Dessa maneira, Alberti enfatiza que o artista não deve ter a riqueza como objetivo de sua pintura, uma vez que a arte da pintura deve produzir o contrário: o reconhecimento, a estima e a glória. O teórico reforça a necessidade de o pintor ser instruído nas artes liberais23, como, por exemplo, a Geometria, e dispor de um vasto conhecimento sobre muitos saberes que possam servir de ajuda para uma bela composição da história. O maior mérito do pintor está na invenção, ou seja, na descrição da história de maneira original e cuidadosa com a fidelidade aos ensinamentos que o pintor deve ter aprendido antes de realizar a obra, estando sempre atento aos detalhes dos elementos pintados. Alberti toma como exemplo de uma boa invenção ou narração da história a obra de Luciano, pintada por Apeles (Século IV a.C) e, mais tarde, por Botticelli, intitulada A Calúnia, pois, além da originalidade, a obra demonstra que o pintor foi íntimo dos poetas. 23 As Artes Liberais se definiam pela junção das artes do Trivium com as do Quatrivium, sendo o Trivium a Gramática, Retórica e Dialética; e o Quatrivium a Astronomia, Geometria, Aritmética e Música. 41 Seguindo sua argumentação, no Livro III do Da pintura, Alberti aconselha, sobretudo, que o pintor deve exercitar-se em sua tarefa e procurar conhecer as proporções e superfícies daquilo que pretende pintar. No entendimento desse autor, o pintor também deve empenhar-se no domínio das variadas figuras que possam lhe servir de inspiração, ou seja, não apenas figuras humanas, mas também todas as coisas que considera “dignas de serem vistas”. Para Alberti (1989, p. 137), é conveniente pintar, pois se trata de cultivar as dádivas da natureza com empenho e exercício. O pintor deve evitar a ansiedade de terminar as obras, uma vez que o período de confecção deve abranger toda a reflexão do tema e a correção do que não estiver adequado para que o resultado seja uma obra bela e conveniente. Alberti ressalta ao final do Livro III, que todos os pintores devem pensar bem, corrigindo-se, sobretudo, interiormente, para que depois possam confiar no que os mais experientes têm a ensinar. O humanismo de Alberti consiste na busca por alcançar algo através da combinação entre aptidão natural e studia humanitatis (Retórica, Gramática, História, Poesia e Filosofia Moral); ou seja, consiste na combinação entre teoria e prática, quase nunca almejada, uma vez que a oratória era a necessidade do homem virtuoso e o contato com as boas letras considerado pouco útil se não fosse complementado pelo conhecimento das coisas do mundo, pela experiência. A recomendação era que os artistas recorressem às boas letras para “ornar e aguçar a invenção que naturalmente nasce com eles” 24. Tal recomendação era dada, pois a educação literária aperfeiçoa o juízo e reforça a dependência conceitual do discurso sobre as artes liberais da instituição retórica, uma vez que teoria e prática devem estar juntas, dado que é o que se julga conveniente à vida. Alberti foi um dos poucos que conseguiram na prática a realização de sua teoria, por isso era considerado digno de elogios no meio florentino. Segundo Vasari25, que escreveu sobre as realizações dos artífices, Alberti aliava conhecimento de causa e eloquência, atingindo o ideal ciceroniano do orador pleno. As artes claramente tinham uma função ética, pois os escritos nos quais os artífices deveriam se pautar estavam associados à persuasão pelo ethos; nesse contexto, o que convinha era normatizado em preceptiva, possibilitando enfatizar os decoros por meio da engenhosa técnica do distanciamento. 24 A obra de Vasari a qual nos referimos trata-se da Vite de' più eccellenti architetti, pittori, et scultori Italiani (1550). Ao tratamento de Luciano Bellosi e Aldo Rossi. Apresentação de Giovanni Previtali. Einaudi, Torino, vol. 2, 1991. 25 Ibdem, nota 17. 42 Para Vasari, o decoro na pintura era capaz de moldar a prudência e o engenho, alterando a própria compreensão do que se convencionava tomar, desde a Antiguidade, como a finalidade das artes liberais, isto é, a imitação da natureza. Paralelamente à reflexão sobre o novo papel do homem, posto como artista, desenvolve-se uma reflexão sobre a técnica da perspectiva, surgida com Bruneleschi e teorizada pela primeira vez pelo próprio Alberti (Panofsky, 1973), e como lembra Leon Kossovitch (1994), que deve ser compreendida como parte de um amplo discurso sobre composição pictórica, pois é em função da história que a obra se mostra. Segundo Grayson26, Alberti era um homem culto que buscava um entendimento da história e a finalidade da arte em relação a esta história, o que resultou numa concepção de arte enquanto atividade criadora e expressão interpretativa das relações entre o homem e a natureza ao longo da História. Blunt (2001) apresenta que, para Alberti, uma pintura histórica afeta o espectador profundamente e o que ele vê faz com que suas emoções sejam despertadas. Por isso, Alberti ressalta a importância de haver no pintor a habilidade conveniente não só para explicar uma ação, como também para escolher um tema, a fim de mostrar as emoções por meio de um gesto. A perspectiva que Alberti teorizou auxilia em muito essa habilidade do artista, pois é por meio dela que o tema é organizado, é seguindo sua conveniência que a história será contada. Essa necessidade gerada por influências humanistas, a de representar na pintura uma natureza adequada, decorre certamente das teorias antigas da imitação da natureza, mas para Alberti, a imitação é limitada ao nível daquilo que é visível. Em outras palavras, a pintura deve ser realizada de acordo com as limitações do espaço, captada pela pirâmide visual 27 , sendo que a imagem deve ser restrita ao que a base desta pirâmide for capaz de captar. Portanto, o que deve ser imitado é a intersecção da pirâmide que todo corpo subentende aos olhos do observador. A grande contribuição de Alberti para a reconstrução da arte da pintura ocorreu devido sua modernização sob bases antigas em função dos valores absolutos da pintura (GRAYSON,1989), possibilitando uma nova perspectiva ou um possível futuro para ela. Em resumo, a obra Da Pintura, de Alberti, terminada por volta de 1435, pode ser encarada como um guia para o pintor, articulando, em uma linguagem humanista, a necessidade de teorias e leis do conhecimento para a arte, exaltando assim o fazer 26 In: ALBERTI, L. B. Da pintura. Introdução de Cecil Grayson, 1989, p. 51. Campinas. 27A pirâmide visual trata-se da construção da imagem vista no olho do observador, ou seja, é o que conduz o objeto visto ao olho, e teoria que serve de fundamento para a técnica da perspectiva linear. 43 artístico antigo. O guia do pintor também pretende mostrar que o especial motivo para que determinado momento histórico volte-se aos valores clássicos da Antiguidade é a carência de modelos; a arte antiga deve, portanto, ser alvo do aprendizado dos modernos, uma vez que os antigos, “tendo muita gente de quem aprender e a quem imitar, tinham menos dificuldades para chegar ao conhecimento daquelas supremas artes que para nós hoje são extremamente penosas” (ALBERTI, 1989, p. 68), se constituindo como exemplo de valorização e desenvolvimento das capacidades do homem, como ser que se relaciona com a natureza. A familiaridade com os assuntos clássicos era a característica principal da concepção de vida de Alberti que, por sua vez, está relacionada com este racionalismo humanista, o qual unia sem nenhuma dificuldade elementos da filosofia pagã e clássica com elementos cristãos28. Seu ponto de vista a respeito das artes e da beleza dependia diretamente desta sua característica. Em quase toda sua obra Da pintura, Alberti chama a atenção para a construção da história a ser pintada, pois, um aspecto de grande importância na beleza é a composição dos elementos no espaço: é o processo por meio do qual as partes das coisas vistas se ajustam na pintura, do qual depende toda a graça possível de se empregar. Por exemplo, a construção teórica de um campo visual demonstra a necessidade da elaboração de métodos científicos - matemáticos - para a construção de uma pintura. Em outras palavras, a natureza que deve ser representada na obra de arte depende de uma sistematização racional, partindo da composição, para atingir a beleza, uma vez que, “[...] Da composição das superfícies nasce aquela graça nos corpos que chamamos beleza” (ALBERTI, 1989, p.107). Sabendo da existência de duas exigências antagônicas no século XV para o belo, podemos perceber que toda a discussão acerca do belo artístico decorria da proximidade que os intelectuais da época procuravam manter com a Antiguidade clássica, sobretudo a grega, de maneira que a relação do homem com a natureza estivesse em evidência. A liberdade de imaginação que o artista adquire consiste em uma nova percepção do modo de realizar a arte, o que para Alberti consiste na inventio, na originalidade que o artista tem de aliar os conhecimentos clássicos aos exercícios do fazer. Entretanto, um fato que se consuma é que, no Renascimento, a questão não é mais a de “como fazer”, e sim, “o que se pode fazer”, de modo que sua liberdade o leve para a direção correta ao encontro 28 Pasticho. 44 do belo, para que então seja capaz de “enfrentar a natureza com armas iguais” (PANOFSKY, 1994, p.49). A necessidade de sistematizar a produção artística gerou diversas especulações acerca do belo que, segundo Panofsky (1994), partiam de duas necessidades antagônicas que conviviam durante o Renascimento: uma que concebe a beleza como fruto da imitação da natureza (princípio imitatio); e outra que defende que a beleza artística é atingida quando o artista toma a natureza como modelo, mas que por meio de suas habilidades consegue superar a simples natureza, corrigindo o que nela houver de imperfeito (princípio eletio)29. Abordamos o conceito de graça como o ponto de confluência entre ambas as necessidades, pois, se trata da beleza que os teóricos indicavam para os artistas, envolvendo o exercício das técnicas e os elementos da natureza. Alberti reconhece que uma pintura se torna digna quando atende a essa dupla exigência que vigora no período, a imitação eletiva da natureza, indispensável para alcançar a graça na obra. Daí decorre, como já vimos, a necessidade de representar elementos da natureza em movimentos que deveriam ser suaves, graciosos, convenientes ao que estivesse acontecendo na cena representada, visando a atingir a identificação do espectador em seu corpo ou sua alma. A novidade dessa tendência pode ser percebida especialmente em Botticelli na relação estabelecida entre poesia e pintura, uma vez que a regra pictórica era vista por um viés poético e o movimento decorria de uma apropriação da poética de Poliziano pautada nos contos homéricos, na qual se baseou Botticelli, não apenas por remeter à poesia antiga, mas por empregar a graça necessária à beleza da obra, de fornecer a vivacidade (WARBURG, 2005, p.74). O movimento é, nesse caso, capaz de aflorar as fantasias e reflexos, contemplar os cabelos, as roupas, dar continuação à liberdade da fantasia, e dotar de vida os elementos ornamentais inanimados (WARBURG, 2005, p. 78). Alberti exige do pintor que ao reproduzir tais motivos, tenha o juízo comparativo necessário para não se deixar levar pelo emaranhado antinatural, pois deve dotar de movimento apenas onde o próprio vento possa ocorrer realmente. A graça ou, simplesmente, a beleza natural, que os renascentistas procuravam encontrar na Antiguidade teve seu conceito desenvolvido a partir do debate prático- 29 O princípio da imitatio em Alberti é entendido como simples cópia descritiva da realidade, pois, se trata de procedimento prudencial de conhecimento das coisas do mundo, envolvendo a inventio, dispositio e elocutio, o dizer ornado. Dessa maneira, a mimese do mundo fenomênico passa do mundo moral, da cena representada, dirigindo-se à alma do espectador. 45 teórico realizado por historiadores do final do século XIX, como Aby Warburg, citado anteriormente. Com base no desenvolvimento do debate realizado no século XIX acerca do Renascimento, é possível perceber que o caminho encontrado por Botticelli para expressar a ambiguidade de seu tempo e, ao mesmo tempo, empregar a beleza e originalidade em suas obras, consiste na alternância entre o modelo buscado na natureza e o modelo natural buscado nas ideias. O cumprimento das duas exigências (imitatio e eletio) resultou então, em uma única: a imitação eletiva da natureza. O embasamento teórico que legitima o Renascimento, enquanto período particular da História, foi responsável pela aproximação entre a arte e o pensamento, pois cada vez mais se percebia a expansão do humanismo cultural entre os intelectuais, bem como se difundia o estudo de textos filosóficos, principalmente os de cunho neoplatônico. Podemos observar que o clima humanista foi capaz de agregar no Renascimento teorias do fazer artístico envolvendo os conceitos necessários para a representação artística, seja a teoria de Alberti, sejam as teorias sobre o belo de cunho idealista, neoplatônico, que atribuíam valores ideais às representações artísticas, tal como a filosofia de Marsílio Ficino. A teoria sobre o belo no século XV fundamenta-se na noção de “Ideia”, admitida tanto por Alberti (Panofsky, p. 53, 1994), quanto pelos intelectuais neoplatônicos que, por sua vez, adotaram a presença de propriedades metafísicas, ou simplesmente o pressuposto de que a beleza artística fosse a representação de uma ideia. A diferença entre a intuição da teoria da arte e a intuição do platonismo, consiste na união da doutrina das ideias com teoria da arte, que, por sua vez, “[...] só foi possível mediante sacrifícios consentidos de parte a parte e, na maioria das vezes, conjuntamente” (PANOFSKY, 1994, p. 55). Quanto mais a concepção de ideia se aproxima de suas propriedades metafísicas, mais a teoria da arte se afasta de suas origens práticas e, nesse mesmo sentido, quanto mais a teoria da arte se aproxima dos postulados práticos do Humanismo, mais a teoria das ideias perde seu caráter metafísico. Um dos filósofos de orientação neoplatônica mais influentes no cenário intelectual florentino foi, sem dúvida, Marsílio Ficino (1433- 1499). O estudioso era médico, mas se dedicava a traduzir textos de Platão e Plotino30, e também se empenhava 30 No ano de 1463, Cosme de Médici adaptou a Villa Careggi para os estudos de Ficino, onde se estabeleceu a sede da academia platônica, onde também Ficino traduziu todos os diálogos de Platão para o latim, obra concluída em 1469. 46 na tentativa de fundir a filosofia de Platão com preceitos bíblicos, principalmente no seu comentário ao Banquete “De Amore”, obra na qual já demonstrava uma articulação entre ensinamentos pagãos e cristãos. Ainda no contexto da obra De Amore, percebemos a presença de uma cosmologia complexa, também alicerçada em fragmentos de escritos antigos, utilizados pela Medicina Hipocrática – Corpus Hermeticum - atribuídos duvidosamente a um texto traduzido por Ficino para o latim de um sacerdote egípcio lendário, Hermes Trimegisto, que segundo a lenda era tradutor de tratados mágicos e cosmológicos antiquíssimos, de Asclépio e Pimandro, mas que na verdade se tratavam de textos de inspiração neoplatônica do século II e III. Podemos, então, perceber que Ficino também pode ser considerado um intelectual de múltiplos saberes que, por sua vez, não tentou influenciar diretamente a arte do século XV; entretanto, como os artistas eram participantes do cenário intelectual florentino, Ficino também teve suas especulações filosóficas transpostas em arte, principalmente, suas considerações neoplatônicas acerca do belo ideal. O eixo central da filosofia de Ficino é reconhecido na oposição ao pensa