David Guarniery Galvão Teorias da identidade mente-cérebro: Ullin T. Place, Herbert Feigl, John J. C. Smart Marília 2024 Câmpus de Marília 1 David Guarniery Galvão Teorias da identidade mente-cérebro: Ullin T. Place, Herbert Feigl, John J. C. Smart Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Marília. Área de Concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica. Orientador: Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho. Marília 2024 G182t Galvão, David Guarniery Teorias da identidade mente-cérebro : Ullin T. Place, Herbert Feigl, John J. C. Smart / David Guarniery Galvão. -- Marília, 2024 215 p. : tabs., mapas Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Jonas Gonçalves Coelho 1. Problema mente-corpo. 2. Identidade mente e cérebro. 3. Processos físicos e consciência. 4. Estados mentais e encéfalo. 5. Neurociências. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. David Guarniery Galvão Teorias da identidade mente-cérebro: Ullin T. Place, Herbert Feigl, John J. C. Smart Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica Linha de pesquisa: Filosofia da Informação, da Cognição e da Consciência Banca Examinadora Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho UNESP – Câmpus de Marília. Orientador Prof. Dr. Cezar Augusto Mortari USFC – Universidade Federal de Santa Catarina. Prof. Dr. Marcos Antonio Alves UNESP – Câmpus de Marília. Marília, 07 de novembro de 2023 AGRADECIMENTOS 1º. Certamente deixo meus mais sinceros agradecimentos ao meu orientador, Prof. Dr. Jonas Gonçalves Coelho (UNESP). Desde minha primeira mensagem, mesmo ao longo de uma pandemia (Covid-19), não faltou atenção, humildade, respeito, comprometimento e o auxílio sem o qual eu jamais teria conseguido. Excelente funcionário do poder executivo do Estado de São Paulo, é certo que já disse a ele a diferença positiva por ele feita em minha trajetória acadêmica e como eu sou grato a ele por me ter ajudado na construção de cada passo: da produção do projeto à conclusão desta dissertação. Deixo expressa minha gratidão. 2º. Agradeço ao Prof. Dr. Marcos Antonio Alves (UNESP). Foi na Universidade Estadual de Londrina que eu o conheci e, ao comentar sobre meus interesses de pesquisa e pedido por um auxílio, indicou-me o Prof. Dr. Jonas. Essa história que me conduz à UNESP e culmina com esta dissertação começou aqui. E eu jamais poderia me esquecer desse nome. 3º. Agradeço aos professores de lógica Dr. Carlos Luciano Montagnoli (UEL), Dr. Cezar Augusto Mortari (UFSC) e Dr. Luiz Henrique da Cruz Silvestrini (UNESP). Todos os quais, de algum modo, revelaram-se acessíveis e receptivos. Professores dos quais eu pude obter orientações e explicações que me ajudaram a compreender ainda mais aquela que é, para mim, ao menos por enquanto, apenas uma área de recreação: a Lógica. Um campo divertido para as horas vagas de um entusiasmado com o poder da formalização e da demonstração. 4º. Registro meu agradecimento também aos meus professores de Neurociências, a saber: Dra. Lilian Teresa Bucken Gobbi, Dr. Sérgio Tosi Rodrigues e Dr. Luiz Henrique Florindo, pelos quais pude aprimorar meus conhecimentos em aludida área e, ao mesmo tempo, refletir sobre o progresso da inteligência artificial e os tradicionais problemas filosóficos da mente. Com eles pude aprender mais sobre os processos neurofisiológicos responsáveis pela construção de nossas percepções: sistemas visual e auditivo. Tal conteúdo conduziu-me a uma dimensão mais profunda do questionamento filosófico acerca do que é a realidade. E levarei para vida uma nova aflição sobre “o verdadeiro criador de tudo” (M. Nicolelis). 5º. Deixo meus mais sinceros agradecimentos também às pessoas de Gabriel Felipe dos Santos (UEL-Cafil 2023), Pedro Oliveira Fonseca (UEL-mestrando 2023), Ana Carolina Turquino Turatto (UEL-graduanda 2023) e meu professor de graduação Dr. Marcos Alexandre Gomes Nalli. Pessoas dotadas de boa vontade e sem as quais a declaração necessária para iniciar minha banca de qualificação jamais teria sido posta sequer ao alcance dos meus olhos. Peço a esses quatro nomes o perdão por tamanho transtorno. Eu jamais esquecerei o empenho que tiveram pelo esclarecimento dos fatos e pelo fraterno reconhecimento da inocência ao meu nome. Eu agradeço. 6º. Diversas foram as ocasiões em que as circunstâncias poderiam ter me levado a desistir do mestrado. Sei que parte de meu interesse em me manter firme nesses contextos deve- se a duas pessoas: Jaqueline e Michelle (NRE-Londrina). Agradeço pela atenção. Como também agradeço pela disponibilidade em me ouvir em minhas nítidas e mesmo justificadas aflições. Quanto de mim eu deixei em vocês, não sei. Mas sei da presença positiva que as duas tiveram nesta tão deplorável jornada de minha vida sobre a Terra. Vocês aliviaram o peso de minha existência. Nisso lhes sou grato... enquanto eu viver. Guardem o melhor de mim. Se não lhes pude dar meu sorriso, saibam reconhecer a paz que vocês trouxeram ao meu rosto ainda vivo. Eu tive alguém com quem conversar. Raros aqueles em quem eu pude confiar. 7º Não por prioridade. Gostaria de encerrar esse agradecimento àqueles que, de todos, produziram a mais importante diferença construtiva que muito contribuiu com a realização desta pesquisa: meus pais e irmãos. Nomeadamente, refiro-me a Ailton Galvão (pai), Marlene Salgado Galvão (mãe), Jeniffer Grasiely Galvão (irmã) e Wallison Paulineli Galvão (irmão). Desses obtive não a ajuda intelectual – essa caberia apenas a meu estimado orientador, por quem guardo uma parte dos meus melhores sentimentos –, mas o apoio emocional pelo qual a permanência da vida ainda me tem sido a escolha... ainda que confusa. Sinto-me um desajustado no espaço e no tempo. Por vezes, me vi como um erro biológico, psicológico e social. Quanto de mim eu declarei a vocês desde pequeno? Quanto eu guardei no silêncio dos meus 850 poemas fúnebres dos meus 18 aos 24 anos? Rogo apenas para que meu medo do futuro não tenha arruinado a nossa felicidade ao longo do caminho. Que o tempo que ainda resta a cada um de nós nos conduza à paz em família pela qual, por tão intensas e repetidas vezes, eu me vi chorando na saudade de vocês. No amor com que lhes tenho... e na tristeza com que me vejo: eu lhes peço o devido perdão. “611. Where two principles really do meet which cannot be reconciled with one another, then each man declares the other a fool and heretic” (Ludwig Wittgenstein – On Certainty) GUARNIERY, David. Teorias da Identidade Mente-Cérebro: Ullin T. Place, Herbert Feigl, John J. C. Smart [dissertação]. São Paulo: Faculdade de Filosofia e Ciência, Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2023. RESUMO Em filosofia da mente, duas perguntas ontológicas mostram-se tão antigas quanto duradouras e formam o núcleo difícil desse campo, a saber: [1] “o que são os estados mentais?” e [2] “como se dá a interação causal entre os estados mentais e os processos físicos?”. Ambas as indagações derivam daquele que é tradicionalmente conhecido como “problema mente-corpo”, também denominado de “problema mente-cérebro”. Possibilidades de respostas foram dadas e, até o final da década de 1950, haviam-se originado propostas teóricas que passaram a ser conhecidas como dualismo, behaviorismo, pampsiquismo, teoria cibernética, psicologia da Gestalt, psicanálise e, dentre tantas, a teoria da identidade mente-cérebro, a qual, em seu contexto inicial, apresentava divergências entre suas próprias modalidades. Assim, como objetivo geral desta dissertação, propusemo-nos avaliar a resposta fisicalista fornecida em favor da identidade entre os estados mentais e os processos neurofisiológicos. Para tanto, como objetivos específicos, foram assumidas: [1] a análise reconstrutiva; [2] a avaliação crítica e [3] a análise comparativa de autores daquela mesma teoria. Constituiu método de pesquisa a revisão bibliográfica apoiada sobre os textos clássicos da área, os quais foram avaliados por meio do Cálculo Proposicional Clássico (CPC) e Cálculo Quantificacional Clássico (CQC) de 1ª Ordem, no propósito de superar a simples especulação a partir de demonstrações do status semântico de proposições, conjuntos de proposições e argumentos que constituem o corpo teórico da supracitada teoria. Para tanto, foram utilizados os três artigos principais e iniciais da década de 1950, a saber: “Is consciousness a brain process?” (1956) de autoria de Ullin Thomas Place, The “mental” and the “physical” (1958), do filósofo Herbert Feigl, bem como o artigo “Sensations and brain processes” (1959), escrito por John Jamieson Carswell Smart. Os resultados sugerem convergências e divergências entre os autores relativas às quatro propostas de análise do problema mente-cérebro: [1] linguística, [2] epistemológica, [3] lógica e [4] ontológica; bem como a carência de pesquisa empírica que sustente a identidade ontológica entre estados mentais e processos cerebrais. Salientamos o conflito entre [1] a possibilidade lógica da identidade ontológica sintética a posteriori mente-cérebro com [2] a possibilidade epistemológica da ciência dos estados fenomenais (qualitativos) e a ignorância dos processos físicos (quantitativos) a eles correlacionados. Também avaliamos a possibilidade de uma rejeição puramente lógica (a priori) da viabilidade da tese de uma identidade linguística sintética a posteriori dos referentes conceituais de uma linguagem fenomenal com aqueles de uma linguagem neurofisiológica, bem como suas implicações ontológicas. Palavras-chave: cérebro; identidade; lógica; mente. GUARNIERY, David. Mind-Brain Identity Theories: Ullin T. Place, Herbert Feigl, John J. C. Smart [dissertation]. São Paulo: Faculty of Philosophy and Science, Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2023. ABSTRACT In philosophy of mind, two ontological questions prove to be as old as they are enduring and form the difficult core of this field, namely: [1] “what are mental states?” and [2] “how does the causal interaction between mental states and physical processes occur?” Both questions derive from what is traditionally known as the “mind-body problem”, also called the “mind- brain problem”. Possibilities for answers were given and, by the end of the 1950s, theoretical proposals had emerged that came to be known as dualism, behaviorism, panpsychism, cybernetic theory, Gestalt psychology, psychoanalysis and, among many, the mind-brain identity theory, which, in its initial context, presented divergences between its own modalities. Thus, as a general objective of this dissertation, we set out to evaluate the physicalist answer provided in favor of the identity between mental states and neurophysiological processes. To this end, the following were assumed as specific objectives: [1] reconstructive analysis; [2] critical evaluation and [3] comparative analysis of authors of that same theory. The research method was a bibliographical review based on classic texts in the area, which were evaluated using Classical Propositional Calculus (CPC) and First-Order Predicate Calculus (FOPC), with the purpose of overcoming simple speculation based on demonstrations of the semantic status of propositions, sets of propositions and arguments that constitute the theoretical body of the aforementioned theory. To this end, the three main and initial articles from the 1950s were used, namely: “Is consciousness a brain process?” (1956) by Ullin Thomas Place, The “mental” and the “physical” (1958), by philosopher Herbert Feigl, as well as the article “Sensations and brain processes” (1959), written by John Jamieson Carswell Smart. The results suggest convergences and divergences between the authors regarding the four proposals for analyzing the mind-brain problem: [1] linguistic, [2] epistemological, [3] logical and [4] ontological; as well as the lack of empirical research that supports the ontological identity between mental states and brain processes. We highlight the conflict between [1] the logical possibility of synthetic a posteriori mind-brain ontological identity with [2] the epistemological possibility of knowing the phenomenal states (qualitative) and not knowing the physical processes (quantitative) correlated to them. We also evaluate the non-possibility of an (a priori) purely logical rejection of the viability of the thesis of an a posteriori synthetic linguistic identity of the conceptual referents of a phenomenal language with those of a neurophysiological language, as well as its ontological implications. Keywords: brain; identity; logic; mind. PREFÁCIO Para a compreensão adequada dos capítulos a seguir, devemos apresentar um breve, porém necessário, esclarecimento sobre a posição da Lógica como parte do método aqui utilizado para nossa avaliação crítica dos aludidos textos e sua relação com a filosofia da mente a ser avaliada, a saber: a teoria lógico-ontológica e lógico-linguística da identidade contingente mente-cérebro – pedimos atenção aos termos em itálico – da década de 1950. Assim sendo, gostaríamos de já antecipar ao leitor de que esta não é, contudo, uma dissertação na área da Lógica e nem é um capítulo de História da Lógica e muito menos de Lógica pura. Devemos também declarar o que estará sendo entendido por analítico, sintético, a priori, a posteriori, verdade lógica, falsidade lógica, contingência, autoevidência, amparo epistêmico e identidade, sendo o último o mais relevante dos conceitos utilizados pelos teóricos aqui admitidos. O problema da identidade entre os estados mentais e os processos cerebrais pode ser avaliado por quatro propostas de análises, a saber: [1] ontológica, [2] epistemológica, [3] linguística e [4] lógica. Uma vez que todos os termos do parágrafo anterior estão relacionados com os problemas linguístico, epistemológico e lógico da identidade mente-cérebro, começaremos nossa exposição com algumas considerações sobre o uso da Lógica e encerraremos nossas considerações com a noção de “identidade lógica” (tanto no sentido empregado por Leibniz quanto no sentido empregado por Place, Feigl e Smart). Lógica Interessa-nos aqui dois sistemas formais: [1] Cálculo Proposicional Clássico (CPC) e [2] Cálculo Quantificacional Clássico de 1ª Ordem com Identidade (CQC=). Dada a proposição “o círculo é redondo”, uma possível formalização para o CPC seria “C”; enquanto que uma possível formalização para o CQC= seria Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ x = y))). Nesta dissertação, serão representados no CQC os substantivos, verbos e adjetivos do seguinte modo, respectivamente: S01, para 01 ≤ x ≤ 99; V100, para 100 ≤ x ≤ 999; A1000, para 1000 ≤ x ≤ 9999. Amparo Epistêmico Por “amparo epistêmico” será entendido algum conjunto de crenças, preferências ou compromissos que, como premissas não declaradas, servem de amparo à argumentação. Robert Fogelin, em “The logic of deep disagreements” (1985), ao abordar o que é tido como um bom ou mau argumento, nos permite compreender que mesmo um argumento do tipo “{R; S} ├ T” (o qual seria inválido no CQC= 1ª ordem) parece estar ancorado em alguma premissa não explicitamente mencionada e, portanto, situado em um tácito contexto, como parte das crenças, preferências ou compromissos não declarados pelo interlocutor; argumento esse que poderá tornar-se dedutivamente válido ao colocarmos explicitamente uma terceira premissa condicional (que estava oculta durante o debate) contendo uma conjunção entre as premissas inicialmente declaradas, isto é: “{R; S; ((R ˄ S;) → T)} ├ T”. Assim, um argumento não poderia ser avaliado como bom ou ruim apenas recorrendo à sua estrutura, devendo existir algo além que sirva como um latente, compartilhado e pressuposto amparo epistêmico ao próprio argumento. Definindo as condições normais de argumentação, Fogelin declara que “uma troca argumentativa é normal quando ocorre em um contexto de crenças e preferências amplamente compartilhadas [entre os interlocutores]” (Fogelin, 2005, p. 6, tradução livre). Ainda segundo o autor, “a argumentação, ou seja, o envolvimento em uma troca argumentativa, pressupõe um histórico de compromissos compartilhados” (Fogelin, 2005, p. 6, tradução livre), ou ainda: um “terreno comum”, uma vez que “o significado de todos os nossos dispositivos argumentativos é interno aos contextos argumentativos normais (ou quase normais)” (Fogelin, 2005, p. 7, tradução livre). Assim, Fogelin nos declara que “as partes envolvidas na conversa compartilham muitas crenças e [...] muitas preferências [...]. Uma característica importante dessas crenças e preferências compartilhadas é que elas ficam em segundo plano, sem serem mencionadas” (Fogelin, 2005, p. 5, tradução livre, itálicos meus). Analítico / Sintético O sentido que está sendo assumido aqui para o termo “analítico” e “sintético não é o linguístico, ou ainda, semântico. Proposições do tipo “o círculo é redondo” são proposições semanticamente analíticas conforme o significado (sentido) dos termos “círculo” e “redondo” na língua portuguesa, mas são logicamente sintéticas conforme sua estrutura tão somente. No CQC=, Tal proposição assumiria a seguinte formalização: Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ x = y))). A proposição “o círculo é redondo” não é logicamente analítica. Assim, do ponto de vista estritamente lógico, por analítica será entendida qualquer proposição que no CPC ou CQC= sejam tautologias, verdades lógicas ou falsidades lógicas, isto é, que em virtude de sua forma e não de seu conteúdo, sejam necessariamente verdadeiras (verdade lógica) ou necessariamente falsas (falsidade lógica), não dependendo de qualquer amparo epistêmico ulterior às lógicas supracitadas, de onde é afirmado o caráter a priori do procedimento de sua verificação. Oposto a isso, a proposição será sintética, de onde é afirmado o caráter a posteriori do procedimento de sua verificação. Como exemplo, apresentamos uma proposição analítica cuja estrutura nos permite verificar tratar-se de uma falsidade lógica, a saber: “o círculo é redondo e o círculo não é redondo”. Uma formalização possível seria: (Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ x = y))) ˄ Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ ¬ (x = y))))) Uma proposição analítica cuja estrutura nos permita verificar tratar-se de uma verdade lógica seria: “o círculo é redondo ou o círculo não é redondo”. Uma formalização possível seria: (Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ x = y))) ˅ Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ ¬ (x = y))))) Uma proposição sintética, aquela cuja estrutura não nos permita verificar tratar-se de uma verdade lógica ou de uma falsidade lógica seria: “o círculo é redondo e o círculo não é quadrado”. Uma formalização possível seria: (Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ x = y))) ˄ Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (Q1000x ˄ ¬ (x = y))))) A Priori / A Posteriori Assumiremos como a priori o procedimento estritamente lógico e, por conseguinte, independente de qualquer amparo epistêmico, que permita demonstrar, via [1] tabela verdade, [2] dedução natural ou [3] tablô semântico, a verdade ou falsidade analítica de uma proposição devidamente formalizada para o CPC ou CQC=. Assim, a proposição segundo a qual “o círculo é redondo ou o círculo não é redondo”, formalizada anteriormente, dependerá de procedimento exclusivamente a priori e cujo status semântico deverá necessariamente ser verdade lógica ou falsidade lógica no CQC= de 1ª Ordem, jamais podendo ser uma contingência. Assumiremos como a posteriori o procedimento não estritamente lógico (LC) e, por conseguinte, dependente de algum amparo epistêmico que permita declarar/constatar a verdade ou falsidade sintética de uma proposição devidamente formalizada para o CPC ou CQC=, o que torna irrelevante o método de dedução a ser aplicado na demonstração do referido valor da proposição. Assim, a afirmação segundo a qual “o círculo é redondo”, formalizada anteriormente, dependerá de procedimento eminentemente a posteriori e cujo status semântico não poderá ser verdade lógica nem falsidade lógica no CQC= de 1ª Ordem, sendo, por conseguinte, uma contingência. Verdade Lógica / Falsidade Lógica / Contingência Nesta dissertação, utilizaremos a noção de verdade e falsidade apresentadas por Mortari, Introdução à lógica (2016), p. 236-244, conforme “Definição 10.1” e “Definição 10.2”. Para mais detalhes, vide referência. Será entendido por contingência o status semântico de proposições que, formalizadas para o CPC ou CQC=, possa ser inferido de demonstrações via tablô semântico quando, por redução ao absurdo (RAA), tanto uma fórmula bem formada quanto a negação desta mesma fórmula resultar em pelo menos um ramo aberto em ambos os casos. Nesse sentido, uma contingência é uma proposição sintética a posteriori e, por conseguinte, é dependente de algum amparo epistêmico, não sendo necessariamente verdadeira nem necessariamente falsa. Como exemplo, citamos a proposição segundo a qual “o círculo é redondo” formalizada anteriormente. Autoevidência Há proposições autoevidentes que não são formalizáveis para o CPC ou CQC= e, por conseguinte, não são passíveis de serem definidas como verdade lógica ou falsidade lógica. Contudo, dado o conteúdo desta dissertação, interessa-nos aqui aqueles casos que o são. Assim, diremos que a proposição que, adequadamente formalizadas para a o CPC ou CQC=, resulte em uma fórmula bem formada que, via tablô semântico, por redução ao absurdo (RAA), apresente todos os ramos fechados no cálculo da fórmula ou da negação dela será uma proposição autoevidente. Nesse sentido, será também uma falsidade lógica ou uma verdade lógica e, por conseguinte, uma proposição analítica a priori. Desse modo, toda proposição autoevidente será necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa; e independente de qualquer amparo epistêmico. Como exemplos, citamos: (caso 1 = autoevidente e necessariamente verdadeira) “o círculo é redondo ou o círculo não é redondo”, (caso 2 = autoevidente e necessariamente falsa) “o círculo é redondo e o círculo não é redondo”. Formalizações foram apresentadas momento acima. Identidade Lógica Em discussões e debates atuais contra a noção de “identidade lógica” pretendida por Place, Feigl e Smart, comumente é apresentada a Lei de Leibniz, compreendida como “princípio da identidade dos indiscerníveis” e como “princípio da indiscernibilidade dos idênticos”. A formalização adequada da mencionada Lei é simplesmente impossível pelo CQC de 1ª Ordem e talvez – não estamos garantindo e há pesquisa sugerindo também não ser o caso (GRACHER, 2016, p. 78-81) – só se torne possível por meio do CQC de 2ª Ordem e assumiria as seguintes formalizações: 1º Caso: “princípio da indiscernibilidade dos idênticos”. • ⱯxⱯyⱯP ((x = y) → (Px ↔ Py)) 2º Caso: “princípio da identidade dos indiscerníveis”. • ⱯxⱯyⱯP ((Px ↔ Py) → (x = y)) Por aplicação da regra de “introdução da bicondicional”, temos que: • ⱯxⱯyⱯP ((Px ↔ Py) ↔ (x = y)) Em uma abordagem intuitiva, diremos que essa parece ser uma definição cujo resultado seja uma identidade analítica a priori, uma vez que: [1º Caso] – se “x” é igual a “y”, então todas as propriedades, relações, estados ou circunstâncias para “x” estão para “y” e vice- versa. Ou ainda: se “x” não é igual a “y”, então deve haver pelo menos uma propriedade, relação, estado ou circunstância para “x” que não está para “y” ou vice-versa. [2º Caso] – se todas as propriedades, relações, estados ou circunstâncias para “x” estão para “y” e vice-versa, então “x” é igual a “y”. Ou ainda: se há pelo menos uma propriedade, relação, estado ou circunstância para “x” que não está para “y” ou vice-versa, então “x” não é igual a “y”. Se a única forma de falarmos sobre “identidade” fosse essa apresentada por Leibniz, então, a teoria da identidade mente-cérebro defendida por nossos autores nos artigos iniciais certamente não poderia lograr êxito algum, enfrentando dificuldades aparentemente insolúveis. Na verdade, será exatamente esse o percurso histórico dessa proposta ontológica para os estados mentais. Contudo, a identidade a qual nos propomos formalizar não é, em qualquer via que se pretenda, a identidade nos mesmos termos em que Leibniz a coloca – no capítulo 4, falaremos mais sobre isso e mencionaremos a resposta de Feigl em seu “Pós-escrito após 10 anos”. Tal identidade deverá ser, antes de tudo, uma identidade lógico-ontológica e lógico- linguística contingente (sintética a posteriori) entre estados psicológicos (Ψ) e processos físicos (Φ), de modo que: (Ψ = Φ). Para bem ou para mal, é essa a [1] identidade linguística dos referentes de Feigl e a [2] identidade ontológica das entidades de Place e Smart, acerca das quais sugerimos uma formalização para o CQC= de 1ª Ordem. Sugerimos que a compreensão da Lei de Leibniz – formalizada para o CQC de 2ª Ordem –, não expresse adequadamente a noção de “identidade” pretendida por nossos três autores. Para justificar essa sugestão, apresentamos dois motivos, a saber: [1ª Formalização]: sob a devida concessão do uso de “ψ” e “φ” como variáveis individuais relativas ao psicológico e ao físico respectivamente, note que, ao menos intuitivamente, o status semântico de ambas as fórmulas não é contingente e, por conseguinte, não é sintético a posteriori, não atendendo às considerações dos teóricos da identidade. 1º Caso: “princípio da indiscernibilidade dos idênticos”. • ⱯψⱯφⱯP ((ψ = φ) → (Pψ ↔ Pφ)) 2º Caso: “princípio da identidade dos indiscerníveis”. • ⱯψⱯφⱯP ((Pψ ↔ Pφ) → (ψ = φ)) [2ª Formalização]: alternativamente, sob a devida concessão do uso de “Ψ” e “Φ” agora como constantes predicativas relativas ao psicológico e ao físico respectivamente, note que, ao menos intuitivamente, o status semântico da primeira ainda é analítico a priori; e embora o “2º Caso” seja contingente, sendo, por conseguinte, sintético a posteriori, sequer se trata verdadeiramente do 2º Caso, uma vez que aquele de Leibniz é analítico a priori, como já havíamos declarado poucos parágrafos acima: 1º Caso [?]: “princípio da indiscernibilidade dos idênticos” [?]. • ⱯxⱯΨⱯΦ ((Ψ = Φ) → (Ψx ↔ Φx)) 2º Caso [?]: “princípio da identidade dos indiscerníveis” [?]. • ⱯxⱯΨⱯΦ ((Ψx ↔ Φx) → (Ψ = Φ)) Desse modo, salientamos que o conceito de identidade da tese filosófica da mente a ser analisada e avaliada nesta dissertação não poderá ser compreendido como equivalente àquele empregado por Leibniz em qualquer dos dois casos. Iniciemos nosso 1º capítulo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 19 1. TEORIA DA IDENTIDADE DE U.T. PLACE 1.1. Introdução: a rota para a teoria da identidade lógico-ontológica segundo Place ... 21 1.2. “É a consciência um processo cerebral?” – Uma abordagem lógica e ontológica da consciência ......................................................................................................... 22 1.2.1. Problema linguístico..................................................................................................... 23 1.2.2. Problema linguístico e problema lógico ....................................................................... 25 1.2.3. Problema lógico e problema ontológico ...................................................................... 34 1.2.4. A crítica de Place à falácia fenomenológica ................................................................. 39 2. TEORIA DA IDENTIDADE DE HERBERT FEIGL 2.1. Introdução: a rota para a teoria da identidade lógico-linguística segundo Feigl .... 42 2.2. Dos diagramas setorial, subsetorial e teórico .............................................................. 43 2.3. Funcionalismo fora do contexto ................................................................................... 43 2.4. Da tese – noções gerais .................................................................................................. 44 2.5. Alguns conceitos relevantes, complexos ou obscuros ................................................. 46 2.6. Análise da obra .............................................................................................................. 49 2.6.1. “Físico1” e “Físico2” ................................................................................................... 62 2.6.2. Síntese da tese por etapas ............................................................................................. 93 2.6.3. Formalização da tese .................................................................................................... 95 3. TEORIA DA IDENTIDADE DE J.J.C. SMART 3.1. Introdução: a rota para a teoria da identidade lógico-linguística segundo Feigl ... 99 3.2. Uma proposta lógico-ontológica da identidade mente-cérebro ................................ 102 3.3. Das objeções e suas réplicas ......................................................................................... 105 3.3.1. Smart – “Objeção 1” .................................................................................................... 105 3.3.2. Smart – “Objeção 2” .................................................................................................... 107 3.3.3. Smart – “Objeção 3” .................................................................................................... 109 3.3.4. Smart – “Objeção 4” .................................................................................................... 114 3.3.5. Smart – “Objeção 5” .................................................................................................... 116 3.3.6. Smart – “Objeção 6” .................................................................................................... 117 3.3.7. Smart – “Objeção 7” .................................................................................................... 118 3.3.8. Smart – “Objeção 8” .................................................................................................... 120 3.3.9. Smart – Do status lógico da tese de U.T. Place ........................................................... 122 3.4. Avaliação crítica da argumentação de Smart ............................................................ 123 3.4.1. Avaliação crítica do uso da Navalha de Ockham ........................................................ 123 3.4.2. Avaliação crítica da “Objeção 1” e respostas de Smart ............................................... 124 3.4.3. Avaliação crítica da “Objeção 2” e respostas de Smart ............................................... 131 3.4.4. Avaliação crítica da “Objeção 3” e respostas de Smart ............................................... 131 3.4.5. Avaliação crítica da “Objeção 4” e respostas de Smart ............................................... 134 3.4.6. Avaliação crítica da “Objeção 5” e respostas de Smart ............................................... 136 3.4.7. Avaliação crítica da “Objeção 7” e respostas de Smart ............................................... 137 4 ANÁLISE COMPARATIVA: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMOS 4.1. Introdução: algumas considerações à análise ............................................................ 144 4.2. O problema linguístico ................................................................................................. 145 4.3. O problema lógico ......................................................................................................... 147 4.4. O problema ontológico ................................................................................................. 151 4.5. O problema epistemológico.......................................................................................... 155 4.6. Os interlocutores da época ........................................................................................... 158 4.6.1. Funcionalismo ............................................................................................................. 158 4.6.2. Teoria cibernética ........................................................................................................ 159 4.6.3. Psicologia da Gestalt ................................................................................................... 160 4.6.4. Psicanálise ................................................................................................................... 160 4.6.5. Behaviorismo ............................................................................................................... 160 4.6.6. Dualismo ...................................................................................................................... 162 4.6.6.1. Place e o dualismo de processos ............................................................................... 163 4.6.6.2. Feigl e o dualismo de predicados ............................................................................. 165 4.6.6.3. Smart e o dualismo de propriedades ......................................................................... 169 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................................172 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................179 ANEXOS: TABELAS E DIAGRAMAS ............................................................................181 Capítulo 1 – Ullin Thomas Place: Tabela Place-01 .....................................................................................................................183 Tabela Place-02 .....................................................................................................................184 Tabela Place-03 .....................................................................................................................185 Tabela Place-04 .....................................................................................................................186 Tabela Place-05 .....................................................................................................................187 Tabela CQC-A1 .....................................................................................................................188 Tabela CQC-A2 .....................................................................................................................189 Tabela CPC-A1 .....................................................................................................................190 Tabela CPC-B1 ......................................................................................................................190 Tabela CPC-B2 ......................................................................................................................191 Tabela CPC-C1 ......................................................................................................................191 Tabela CPC-C2 ......................................................................................................................192 Capítulo 2 – Herbert Feigl: Tabela Feigl – Reducionismo Ontológico .............................................................................194 Diagrama Setorial ..................................................................................................................195 Diagrama Subsetorial ............................................................................................................196 Diagrama Teórico ..................................................................................................................197 Capítulo 3 – John Jamieson Carswell Smart: Tabela Smart – Objeção 1 – A...............................................................................................199 Tabela Smart – Objeção 1 – B ...............................................................................................199 Tabela Smart – Objeção 1 – C (Parte 1) ................................................................................200 Tabela Smart – Objeção 1 – C (Parte 2) ................................................................................201 Tabela Smart – Objeção 1 – D...............................................................................................202 Tabela Smart – Objeção 1 – E (Parte 1) ................................................................................203 Tabela Smart – Objeção 1 – E (Parte 2) ................................................................................204 Tabela Smart – Objeção 1 – E (Parte 3) ................................................................................205 Tabela Smart – Objeção 1 – F ...............................................................................................207 Tabela Smart – Objeção 3 – A...............................................................................................208 Tabela Smart – Objeção 3 – B ...............................................................................................209 Tabela Smart – Objeção 7 – A...............................................................................................210 Tabela Smart – Objeção 7 – B ...............................................................................................211 Tabela Smart – Objeção 7 – C ...............................................................................................211 Tabela Smart – Objeção 7 – D...............................................................................................212 Tabela Smart – Objeção 7 – E ...............................................................................................213 Capítulo 4 – Análise Comparativa: Tabela Comparativa PFS .......................................................................................................215 19 INTRODUÇÃO A teoria fisicalista surge como uma tentativa de superar o tradicional problema mente- corpo – também denominado problema mente-cérebro –, o qual, grosso modo, foi gerado por três perguntas interrelacionadas: [1] qual a natureza dos estados mentais (psicológicos, conscientes)? [2] qual a natureza dos estados corporais (físicos, neurofisiológicos)? [3] qual a relação (tipo de interação) entre estados mentais/conscientes e estados corporais/neurofisiológicos? Todas as perguntas são ontológicas: as duas primeiras dizem respeito à natureza do ente em questão, enquanto a última refere-se ao modo de ser do referido ente, ou ainda, como se dá a relação entre os existentes. O dualismo de substância ao molde cartesiano, ao diferir a natureza dos estados mentais e processos físico, gerava o problema da interação entre substâncias distintas. O behaviorismo, tanto o psicológico (o qual é lógico-ontológico) quanto o analítico (o qual é lógico-linguísticos) havia estreado sua proposta de superação do terceiro problema ao modificar a ontologia do primeiro: a mente como puro comportamento e os relatos mentais como redutíveis a relatos comportamentais. Contudo, há estados mentais que não são evidenciados pelo comportamento do agente; ainda assim, tais estados seriam evidenciados pela atividade neurofisiológica. Desse modo, a teoria da identidade, também modificando a ontologia do primeiro, mas rejeitando a ontologia behaviorista, propõe-se como um reducionismo ontológico do mental para o físico (estado mental = estado cerebral) com claro favorecimento ao último, bem como propõe uma identidade entre os referentes dos conceitos dualistas (fenomenológicos) e dos conceitos fisicalistas (neurofisiológicos). Por conseguinte, a teoria da identidade tratará do problema mente-corpo através de quatro propostas de análise, a saber: [1] linguística (semântica); [2] epistemológica (conhecimento); [3] lógica (validade); e ontológica (existência). O problema que orienta esta pesquisa é, portanto: “o que é a consciência?”. O objetivo principal será a avaliação crítica da resposta fornecida pela teoria da identidade mente-cérebro. Para tanto, como objetivos específicos, serão assumidas as seguintes etapas: [1] a análise reconstrutiva e [2] a avaliação crítica daqueles três supracitados artigos da tradição filosófica, [3] comparando-as posteriormente. Como método de pesquisa, serão adotadas: [1] a revisão bibliográfica dos textos clássicos e [2] a avaliação da tese por meio do Cálculo Proposicional Clássico (CPC) e Cálculo Quantificacional Clássico de 1ª Ordem com Identidade (CQC=). Assim sendo, [1] o primeiro capítulo consistirá na reconstrução e avaliação crítica da teoria da identidade mente-cérebro de Ullin Thomas Place, a qual é lógico-ontológica. [2] Será 20 o segundo capítulo desta dissertação a reconstrução e avaliação crítica da teoria da identidade mente-cérebro de autoria de Herbert Feigl, a qual é lógico-linguística. [3] Como terceiro capítulo, será apresentada uma reconstrução e avaliação crítica da teoria da identidade mente- cérebro de John Jamieson Carswell Smart, a qual é, como veremos, lógico-ontológica, tal como aquela de Place. [4] Por fim, como último capítulo, será apresentada uma avaliação crítica comparativa entre os autores naquilo que diz respeito às similaridades e distinções teóricas. Tabelas de cálculos, bem como diagramas conceituais/teóricos referentes aos capítulos serão apresentados todos ao final da dissertação. 21 CAPÍTULO 1 1. Ullin Thomas Place 1.1.Introdução: a rota para a teoria da identidade lógico-ontológica segundo Place Até o final da primeira metade do século XX, grosso modo, podemos dizer que duas concepções de mente ou consciência predominavam nas Universidades do mundo ocidental, a saber: o [1] dualismo de substâncias e o [2] behaviorismo (psicológico e lógico). Compreendendo a mente como alma e, por conseguinte, distinta do corpo ou de qualquer objeto físico com o qual a alma possa estar conectada ou relacionada, o dualismo de substâncias é incomparavelmente a concepção mais difundida, efeito da influência de religiões dualistas sobre o pensamento humano, tais como o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. Contudo, como resposta acadêmica aos problemas da pós-modernidade, o dualismo de substâncias gradualmente tornou-se obsoleto ao progresso social, intelectual e tecnológico do século XX, de modo que o behaviorismo lógico se tornou, em termos das filosofias praticadas naquele que era então o “novo século”, uma primeira alternativa não dualista para a pergunta “o que é a mente?” ou “o que é a consciência?”. Todavia, também o behaviorismo passou a ser visto com ressalvas por parte de alguns filósofos que não conseguiam concordar com a tese do behaviorismo psicológico, segundo a qual, grosso modo, questões sobre a consciência são questões sobre comportamentos1 ou sobre disposições comportamentais2, bem como rejeitavam a tese do behaviorismo lógico, segundo a qual enunciados significativos formulados por meio de um vocabulário mentalista são redutíveis a enunciados formulados por meio de um vocabulário puramente comportamental, de modo que dizer “João está com medo” é um enunciado significativo se, e somente se, for redutível a enunciados tais como “diante de circunstâncias específicas do tipo ‘x’, o sujeito ‘y’ apresenta os comportamentos ‘a’, ‘b’, ‘c’ e ‘d’”, sendo que os comportamentos listados são movimentos ou estados do corpo que, como tais, são publicamente observáveis, o que, ao contrário do dualismo de substâncias, pelo menos permite uma abordagem científica da _____________ 1 Alguns exemplos: caminhar para frente, agachar-se, deitar-se, etc. 2 Qualquer ação ou estado corporal que apareça ou se manifeste como resposta a estímulos do ambiente e tende a desaparecer após cessadas as condições ambientais necessárias à ocorrência de comportamentos do tipo disposicional. Como exemplo, colocaremos [1] o contexto para a ação e [2] a ação possível de ser tomada (disposicional), tal como se segue: [1] uma rede de descanso à sombra dos coqueiros (contexto) e [2] Maria deitou-se na rede (disposição comportamental). 22 consciência. Em oposição tanto ao dualismo quanto ao behaviorismo, a teoria da identidade mente- cérebro surge na década de 1950 a partir de publicações de Ullin Thomas Place, Herbert Feigl e John Jamieson Carswell Smart. Grosso modo, respeitadas as diferenças teóricas entre os referidos autores, diremos que, com a tese segundo a qual “a consciência é um processo no cérebro”, os teóricos da identidade terminam por rejeitar o dualismo, bem como rejeitam a pretensão de uma redução de todo o mental ao comportamental e de uma redução linguística de enunciados mentalistas significativos a enunciados fisicalistas dos tipos comportamental e mesmo neurofisiológico. Para compreendermos melhor a resposta dada pela teoria da identidade mente-cérebro à pergunta “o que é a consciência?”, será feita uma avaliação crítica inicial dos três principais textos que introduzem essa abordagem, a saber: “Is consciousness a brain process?” (Place, 1956), The “mental” and the “physical” (Feigl, 1958) e “Sensations and brain processes” (Smart, 1959). O primeiro texto será tomado como base a partir da qual todos os demais acréscimos textuais serão apresentados. 1.2.“É a consciência um processo cerebral?” – uma abordagem lógica e ontológica da consciência Em seu artigo “Is consciousness a brain process?”, Place introduz sua proposta filosófica de identificar a consciência com os processos cerebrais advertindo que, apesar de o behaviorismo ser, naquela época (década de 1950), a concepção fisicalista moderna3, o reducionismo pretendido pelo behaviorismo poderia ocorrer para conceitos cognitivos e até mesmo volitivos, mas não poderia ser alcançado para termos tais como “[...] consciência, experiência, sensação e imagem mental” (Place, 1956, p. 44, tradução nossa) em virtude de haver, para tais termos, um “resíduo intratável”, de natureza puramente privada ou interna para o qual não cabe uma tradução adequada em termos exclusivamente comportamentais (externos). Essa compreensão de Place que propõe a existência de um “resíduo intratável” poderia parecer, aos desatentos, uma inclinação ao dualismo, contudo, essa seria uma interpretação equivocada: Place em momento algum pretende que, por não ser redutível ao comportamento, não seja a consciência redutível ao cérebro com seus específicos processos _____________ 3 Place dá a entender que, de natureza fisicalista, não há qualquer outra destacada abordagem da consciência além do behaviorismo psicológico e lógico até o momento que antecede a publicação de seu artigo: “[o] fisicalismo moderno, no entanto, diferente do materialismo dos séculos XVII e XVIII, é behaviorista” (Place, 1956, p. 44, tradução nossa). 23 neurofisiológicos. Em seu artigo, Place deve “[...] argumentar que [1] a aceitação de processos internos não implica dualismo e que [2] a tese de que a consciência é um processo no cérebro não pode ser descartada por motivos lógicos” (Place, 1956, p. 44, tradução nossa). No tópico intitulado “O ‘é’ da definição e o ‘é’ da composição”, a questão lógica que Place levanta sobre as afirmações de natureza mental e as afirmações de natureza comportamental e cerebral resulta tanto na rejeição do dualismo quanto do behaviorismo, bem como introduz a questão ontológica da consciência que Place pretende defender. Podemos, assim, dizer que: [1] em um primeiro momento, teremos o problema linguístico da redução semântica de todos os enunciados mentais a enunciados comportamentais ou cerebrais, redução essa negada por Place; [2] em um segundo momento, teremos o problema lógico referente à plausibilidade da afirmação “a consciência é um processo no cérebro”, sob uma abordagem acerca do status semântico da referida proposição; por fim, [3] em um terceiro momento, teremos o problema ontológico de uma identificação da consciência com as atividades ou processos situados no cérebro, identificação essa sugerida e defendida4 por Place. Esses três problemas estão profundamente conectados, de modo que, ao abordar um, o outro já começa a aparecer, o que dificulta consideravelmente uma abordagem devidamente fragmentada desses três movimentos argumentativos da tese de Place. 1.2.1. Problema linguístico O problema linguístico está relacionado à redução semântica de proposições em uma linguagem mentalista a proposições em uma linguagem fisicalista: dizer “eu estou com dor” é o mesmo que dizer “eu estou com as fibras C disparando”5. Referente ao primeiro momento, Place declara que, quando ele defende “[...] a tese de que a consciência é um processo no cérebro, [ele] não está tentando argumentar que quando nós descrevemos nossos sonhos, fantasias e sensações, nós estamos falando sobre processos em nossos cérebros” (Place, 1956, p. 44, tradução nossa). Comparando com a proposta do behaviorismo lógico, Place ainda nos diz que “[...] eu não estou reivindicando que afirmações sobre sensações e imagens mentais são _____________ 4 É digno de nota que, segundo nos declara a enciclopédia eletrônica Stanford Encyclopedia of Philosophy para o verbete “The Mind/Brain Identity Theory”, de alguma forma, respeitadas as diferenças teóricas e peculiaridades da época, tal sugestão e defesa não começa propriamente com Place e a escola australiana, antes: já existiam em trabalhos de autores como Leucippus, Hobbes, La Mettrie, Vogt, Cabanis entre outros. Desse modo, Place, Feigl e Smart fazem uma atualização da antiga sugestão segundo a qual “a mente/consciência é um processo no cérebro” agora sob a óptica das conquistas, peculiaridades e demais fatores próprios da primeira metade do século XX. 5 Em neurociências, reconhece-se que tais fibras existem e participam dos processos vinculados à sensação de dor. 24 redutíveis a ou analisáveis por meio de afirmações sobre processos cerebrais, da mesma forma com a qual ‘afirmações cognitivas’ são analisáveis por meio de afirmações sobre comportamento” (Place, 1956, p. 44-45, tradução nossa). Lembremo-nos de que Place aceita a tese segundo a qual alguns enunciados sobre processos cognitivos possam ser reduzidos a ou analisados em termos de enunciados sobre processos comportamentais. O que ele rejeita é que todo e qualquer enunciado formulado por meio de termos mentalistas possa, sem prejuízo lógico e semântico, sofrer a pretendida behaviorista redução. Place vai ainda mais longe. Afirma que se o hipotético conjunto pleno de todos os enunciados mentalistas não pode ser reduzido a enunciados behavioristas – há um resíduo intratável –, também não é o caso uma redução lógica, sem qualquer prejuízo semântico, dos enunciados mentalistas para enunciados neurofisiológicos: “Dizer que afirmações sobre consciência são afirmações sobre processos cerebrais é manifestamente falso”6 (Place, 1956, p. 45, tradução nossa). No artigo de Place há a apresentação de três razões pelas quais devemos admitir a não redução semântica da consciência ao cérebro, quais sejam: [...] (a) pelo fato de que você pode descrever suas sensações e imagens mentais sem saber nada sobre seus processos cerebrais ou mesmo que tais coisas existem, (b) pelo fato de que as declarações sobre a consciência e as declarações sobre os processos cerebrais de alguém são verificadas por maneiras inteiramente diferentes e (c) pelo fato de que não há nada de contraditório na afirmação “X está com dor, mas não há nada acontecendo em seu cérebro” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa). Note que “(a)” é uma questão epistemológica acerca da aquisição ou não do conhecimento; sendo que “(b)” é uma questão epistemológica acerca da verificação da verdade ou falsidade dos enunciados, onde cabe como critério a teoria correspondencionista da verdade, sendo que aqui reside um aspecto importante da argumentação de Place, isto é, a existência de enunciados cujo status semântico é contingente – enunciados do tipo sintético a posteriori, ou seja, enunciados tais como “a consciência é um processo no cérebro” –; por sua vez, o item “(c)” aponta para uma questão puramente lógica acerca da verificação da verdade ou falsidade dos enunciados, onde cabe como critério a teoria coerentista da verdade, sendo _____________ 6 Não está claro o que Place quer dizer com “manifestamente falso”, pois, se por questões puramente lógicas e relacionadas ao CQC=, então Place está dando um passo não logicamente autorizado aqui, uma vez que, se A01 = “x é afirmações sobre consciência” e A02 = “x é afirmações sobre processos cerebrais”, de modo que Ǝx (A01x ˄ Ɐy (A01y → (A02x ˄ x = y))), então: não é nem falsidade lógica nem verdade lógica. Da forma como está, trata-se apenas de uma contingência e, por conseguinte, espera-se haver pelo menos um Universo possível onde a afirmação em questão seja ontologicamente verdadeira e pelo menos um Universo possível onde a mesma afirmação em questão seja ontologicamente falsa. Se ele a define como uma afirmação manifestamente falsa, deve fazê-lo não por lógica, mas com base em algum elemento exterior à estrutura lógica da proposição (ex: experiência), uma vez que o enunciado é de tipo sintético a posteriori. 25 que aqui temos os enunciados cujo status semântico é verdade lógica (tautologia) ou falsidade lógica (contradição) – enunciados do tipo analítico a priori, ou seja, enunciados tais como “para todo e qualquer ‘x’, ‘x’ é ‘A’ ou ‘x’ é ‘não-A’”, ou ainda, Ɐx (Ax ˅ ¬Ax). 1.2.2. Problema linguístico e problema lógico Place escreve “[...] X está com dor, mas não há nada acontecendo em seu cérebro” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa). Enunciados sobre estados mentais não são a mesma coisa que enunciados sobre processos cerebrais, ou ainda: enunciados sobre estados mentais não significam (semântica) a mesma coisa que enunciados sobre processos cerebrais, de modo tal que ao negar um eu necessariamente nego o outro ou ao afirmar um eu necessariamente afirmo o outro. Isso pode ser demonstrado ao nos certificarmos do status semântico do enunciado acima, para o qual apresentamos uma possível transcrição para o Cálculo Quantificacional Clássico de 1ª Ordem com Identidade (CQC=), bem como uma demonstração do status semântico da obtida fórmula via tablô semântico (vide “Tabela Place-01”). Em termos mais técnicos, referentes à aplicação do tablô semântico ao CQC=, denominemos a proposição “X está com dor, mas não há nada acontecendo em seu cérebro” como “A”. Caso “A” fosse uma falsidade do ponto de vista puramente lógico, isto é, da estrutura da proposição e não da semântica dos termos, a demonstração apresentada na “Tabela Place- 01” para a fórmula “A” deveria ter resultado, no lado positivo da tabela – com redução ao absurdo sem inserção de negação “(RAA)” –, em todos os ramos fechados, isto é, apresentando contradição em algum momento da ramificação e para todos os ramos existentes, o que não aconteceu. Por outro lado, caso “A” fosse uma verdade do ponto de vista puramente lógico, a demonstração apresentada na tabela supracitada para a negação da fórmula, isto é, “¬A”, deveria ter resultado, no lado negativo da tabela – por redução ao absurdo com inserção de negação “¬ (RAA)” –, em todos os ramos fechados, ou seja, apresentando contradição em algum momento da ramificação e para todos os ramos existentes, o que significa que se “¬A” é uma falsidade lógica, então “A” é uma verdade lógica. Contudo, isso também não ocorre. Se o status semântico de qualquer fórmula que formalize adequadamente uma proposição qualquer para o CQC= não é nem uma verdade lógica e nem uma falsidade lógica, então, podemos inferir que o status semântico de tal fórmula é contingência, isto é: não é necessariamente verdadeira e nem é necessariamente falsa, de modo que a verdade ou falsidade sintética do enunciado dependerá de um sistema de referência, ou ainda, um amparo epistêmico a partir da qual 26 possamos decidir o valor epistemológico7 (verdade ou falsidade) do enunciado. Esse é o caso do enunciado “X está com dor, mas não há nada acontecendo em seu cérebro”. Para mais detalhes, consulte a “Tabela Place-01”. Note que, aqui, o problema linguístico (isto é: a redução semântica) e o problema lógico (isto é: a estrutura proposicional) se confundem, pois, como reforçamos por demonstração via CQC=: se enunciados sobre estados mentais fossem semanticamente redutíveis (ou seja: logicamente equivalentes – vide: capítulo 2) a enunciados sobre estados cerebrais, uma afirmação do tipo “X está com dor, mas não há nada acontecendo em seu cérebro” deveria resultar em contradição em todas as ramificações quando, no tablô semântico, por RAA, a fórmula que formalize adequadamente tal proposição fosse calculada, o que não ocorre, como podemos ver pela demonstração apresentada na “Tabela Place-01”, lado “Positivo”. Creio que esse ponto se tornará mais claro quando outros exemplos, abaixo mencionados, forem introduzidos à nossa reflexão. (Atenção: apesar de introduzida por Place, a relação entre redução semântica e equivalência lógica será melhor explorada somente por Herbert Feigl em sua filosofia lógico-linguística da identidade dos referentes conceituais. Place está interessado em uma filosofia lógico-ontológica da identidade entre os estados mentais e os estados cerebrais). Nos aprofundando um pouco mais no problema lógico, naquele artigo de 1956, no mesmo parágrafo onde Place apresenta os três motivos pelos quais “dizer que afirmações sobre consciência são afirmações sobre processos cerebrais é manifestamente falso”, Place também nos coloca duas afirmações que, aqui, não apenas estão em perfeita conformidade lógica com aqueles mesmos três motivos supracitados, como também definem a natureza do problema e a respectiva defesa a ser apresentada por Place, quais sejam: [1] “[...] a afirmação ‘a consciência é um processo no cérebro’, apesar de não ser necessariamente verdadeira, não é necessariamente falsa” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos); [2] “[...] ‘A consciência é um processo no cérebro’, em minha visão, não é nem autocontraditória nem autoevidente; é uma hipótese científica razoável, do mesmo modo que a afirmação ‘o relâmpago é um movimento de cargas elétricas’ é uma hipótese científica razoável” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos). _____________ 7 Admitido o CQC=, por valor epistemológico será entendido o valor verdade ou o valor falsidade da proposição pretendida como legítimo conhecimento sobre “x”. Assim, o valor epistemológico de uma proposição poderá ser: [1] em casos analíticos, uma verdade lógica {ex: (A ˅ ¬A)} ou uma falsidade lógica {ex: (A ˄ ¬A)}; [2] em casos sintéticos, uma contingência que sempre dependerá de um amparo epistêmico por meio do qual tal valor possa ser verificado ou estabelecido {ex: (A ˄ B)}. O procedimento para o primeiro é inteiramente a priori. O procedimento para o segundo é forçosamente a posteriori. 27 Para explicar o que Place está propondo, gostaríamos de recorrer mais uma vez ao CQC=. Place escreveu “[...] a consciência é um processo no cérebro” (Place, 1956, p. 44-46, tradução nossa), a qual denominaremos de “B” e para a qual apresentamos o cálculo de seu respectivo status semântico (vide “Tabela Place-02”). A primeira das duas afirmações de Place, colocadas em destaque no parágrafo anterior, é tornada logicamente explícita aqui por meio do tablô semântico, cujo resultado coincide perfeitamente com as pretensões do autor. Se a afirmação “a consciência é um processo no cérebro” fosse necessariamente falsa, o lado positivo “(RAA)” da “Tabela Place-02” deveria ter resultado em contradição em todos, e absolutamente todos, os ramos. No entanto, há apenas três ramos, sendo que apenas dois apresentam contradição, havendo um que segue ao infinito por não haver possibilidade alguma de contradição. Por outro lado, se o mesmo enunciado fosse necessariamente verdadeiro, então o lado negativo “¬ (RAA)” da “Tabela Place-02” deveria ter resultado em contradição em todos, e absolutamente todos, os ramos. No entanto, há apenas três ramos, sendo que apenas um apresenta contradição, havendo dois que permaneceram abertos (sem contradição). Se o enunciado “a consciência é um processo no cérebro” não é nem uma verdade lógica e nem uma falsidade lógica, então ele é uma contingência e, como tal, não é nem autocontraditória e nem autoevidente, legitimando, do ponto de vista lógico, parte da segunda afirmação de Place, o qual não se limitou ao estatuto lógico da proposição, apontando para o estatuto ontológico da mesma quando a declara como uma “hipótese científica razoável”. O enunciado em questão é uma hipótese científica razoável porque, como contingente que é, é também um sintético a posteriori, como qualquer enunciado da biologia, química, física ou que precise de algum amparo epistêmico específico que o defina como verdadeiro ou como falso – portanto, enunciados cuja verdade é melhor definida pela teoria correspondencionista do que pela coerentista –. Desse modo, tudo o que se diz do enunciado “A” também pode-se dizer de “B” e vice-versa. Place termina por declarar o enunciado “a consciência é um processo no cérebro” como lógica e ontologicamente equivalente ao enunciado “o relâmpago é um movimento de cargas elétricas”, para o qual, com a finalidade de verificação dessa simetria, apresentamos a “Tabela Place-03”. Place havia escrito: “[...] o relâmpago é um movimento de cargas elétricas” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa), a qual denominaremos de enunciado “C”. Em posse da “Tabela Place-02” e “Tabela Place-03”, podemos nos certificar da simetria pretendida por Place. Note que a estrutura lógica das fórmulas em ambas as tabelas é a mesma, razão pela qual os resultados não são menos do que logicamente idênticos, isto é: ambas as proposições não são uma verdade lógica, não são uma falsidade lógica, não são autocontraditórias, não são 28 autoevidentes, sendo contingentes, sintéticas a posteriori e, por conseguinte, são igualmente uma hipótese científica razoável, sensata que dependerá de um amparo epistêmico para o estabelecimento de seu valor epistemológico, isto é: a verdade ou falsidade sintéticas da proposição. Compreendido esse primeiro importante movimento lógico feito por Place em seu artigo de 1956, poderemos passar para aquele que é, conforme nossa interpretação, o próximo mais relevante movimento que Place fará em seu argumento em favor da identidade mente- cérebro: os três tipos de “é”. Acredita o autor que todo o equívoco cometido pelas pessoas que pretendem descartar, apenas por motivos puramente lógicos, a afirmação “a consciência é um processo no cérebro” deve-se ao fato de elas não distinguirem três tipos possíveis de uso linguístico do verbo “ser” (to be), a saber: “[...] o ‘é’ da definição [...] o ‘é’ da composição [e o] ‘é’ da predicação” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa). Com o propósito de garantir a compreensão do leitor sobre a distinção feita acima, Place fornece alguns exemplos, os quais, situados no segundo parágrafo da página 45 de seu aludido artigo, serão, aqui, apresentados a partir de uma tradução nossa do original em inglês. Segundo o autor, são exemplos adequados [1] para o “é” da definição: “o quadrado é um retângulo equilátero”, “vermelho é uma cor” e “entender uma instrução é ser hábil para agir apropriadamente sob as circunstâncias apropriadas”; [2] para o “é” da composição: “a mesa dele é um caixote velho”, “O chapéu dela é um feixe de palha amarrado com barbante”, “uma nuvem é uma massa de gotículas de água ou outras partículas em suspensão”; [3] para o “é” da predicação: “Toby tem 80 anos e nada mais”8, “o chapéu dela é vermelho e nada mais” ou “as girafas são altas e nada mais”. Place ainda nos afirma que para os dois primeiros tipos de uso do “é” cabe, após a sentença, acrescentar a expressão “e nada mais” (and nothing else), uma vez que tanto o sujeito quanto o predicado “[...] são expressões as quais fornecem uma adequada caracterização do estado de coisas para o qual ambas as expressões se referem” (Place,1956, p. 45, tradução nossa), enquanto que, para o último caso, o referido acréscimo torna a sentença sem sentido. Ainda sobre os exemplos citados acima, Place prosseguirá chamando a atenção para a notável diferença entre as proposições apresentadas para o “é da definição” e para o “é da composição”. Para o primeiro tipo, Place declara que “[...] são afirmações necessárias as quais _____________ 8 No original: “[...] Toby is 80 years old and nothing else” (Place, 1956, p. 45). Infelizmente, em português, deixamos de traduzir com o verbo “ser” e utilizamos o verbo “ter”, que nada tem a ver com o ponto filosófico em questão, tornando essa proposição, quando em português, filosoficamente inútil aos propósitos aqui pretendidos. 29 são verdadeiras por definição” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos), de modo que “[...] há uma relação entre o significado da expressão formando o predicado gramatical e o significado da expressão formando o sujeito gramatical, tal que sempre que o sujeito for aplicável, o predicado também deverá ser aplicável” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos). Por outro lado, afirmações do segundo tipo “[...] são afirmações contingentes as quais tem que ser verificadas pela observação” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos), de modo que “[...] não existe tal relação entre os significados das expressões ‘sua mesa’ e ‘caixote velho’; simplesmente acontece que, neste caso, ambas as expressões são aplicáveis ao mesmo objeto e, ao mesmo tempo, fornecem uma caracterização adequada do mesmo” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos). Gostaríamos de retomar alguns pontos referentes aos dois parágrafos anteriores, pois compreendemos que, formalizada para o CQC=, a estrutura das proposições citadas por Place fornece-nos outro status semântico quando observamos seus exemplos do ponto de vista da estrutura lógica e não da significação – note: a questão linguística era sobre a redução semântica de enunciados mentalistas a enunciados comportamentais e até mesmo neurofisiológicos (tema principal de Feigl e não de Place); a questão lógica (a qual entendemos que deva estar interessada não no significado, mas na estrutura da proposição) é sobre o descarte da hipótese da identidade entre o mental e o físico por ser necessariamente falsa, sendo esse o caso que nos interessa avaliar agora e acerca do qual Place nos diria: não é possível logicamente excluir tal hipótese por ser contingente. Para tanto, apresentamos uma tabela que reúne e expõe a filosofia de Place quanto às duas principais condições de uso do “é” (definição e composição), suas definições, respectivos exemplos e algumas observações (vide “Tabela Place-04”); bem como, por meio da tabela verdade aplicada ao Cálculo Proposicional Clássico (CPC), apresentamos os três casos possíveis de status semânticos de fórmulas (vide “Tabela CPC-A1”), os dois casos possíveis de status semânticos de conjunto de fórmulas (vide “Tabela CPC-B1” e “Tabela CPC-B2”) e os dois casos possíveis de status semânticos de argumentos (vide “Tabela CPC-C1” e “Tabela CPC-C2”); sendo que, por via do tablô semântico aplicado ao CQC=, demonstramos o status semântico de um caso típico de uma proposição contingente comumente e – do ponto de vista estritamente sintático e não semântico – equivocadamente declarada como evidente e necessariamente verdadeira (vide “Tabela CQC-A1”), bem como apresentamos a mesma proposição da “Tabela CQC-A1” agora na condição de inferência a partir de um conjunto consistente de premissas, de modo que o caráter necessário da relação entre a fórmula da conclusão e aquelas do conjunto fique demonstrado na “Tabela CQC-A2”. Para melhor 30 compreensão de nossa avaliação crítica da abordagem lógica realizada por Place, com a finalidade de problematização e esclarecimento, sugerimos ao leitor confrontar a “Tabela CQC- A1” e a “Tabela CQC-A2” com a “Tabela Place-05”. Note que, da forma como as proposições foram declaradas, todos os exemplos fornecidos para o “Caso 1” da “Tabela Place-04” são do tipo apresentado para o “Caso 3” da “Tabela CPC-A1”: as proposições “o quadrado é um retângulo equilátero”, “vermelho é uma cor” e “entender uma instrução é ser hábil para agir apropriadamente sob as circunstâncias apropriadas”, as quais Place entende que sejam, do ponto de vista semântico e não sintático (estrutura da proposição), verdades lógicas estão de acordo com a primeira definição, qual seja: “[...] são afirmações necessárias as quais são verdadeiras por definição” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos). Contudo, do ponto de vista lógico aplicado sobre a estrutura e não sobre a significação dos termos – não nos interessa o dicionário e sim a gramática (sintaxe, ou ainda: estrutura) – tais enunciados não são nem uma verdade lógica e nem uma falsidade lógica. A segunda definição, qual seja: “[...] há uma relação entre o significado da expressão formando o predicado gramatical e o significado da expressão formando o sujeito gramatical, tal que sempre que o sujeito for aplicável, o predicado também deverá ser aplicável” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos), só é possível a partir do momento em que for definido um amparo epistêmico (ex: dicionário da língua portuguesa) no qual o significado para “quadrado” seja colocado como significado para “retângulo equilátero” e para o qual possamos recorrer para nos certificar da verdade ou falsidade da proposição, a qual é semanticamente analítica, mas sintaticamente (estruturalmente) sintética. Disso se segue que, do ponto de vista da estrutura formalizada para o CQC=, nenhum dos exemplos apresentados são logicamente necessários ou logicamente verdadeiros e, portanto, o status semântico de cada um dos exemplos é contingência, de modo que a verdade ou falsidade sintética daquelas proposições só poderá ser inferida quando aquelas mesmas proposições, enquanto conclusão de um argumento ou raciocínio, forem uma consequência lógica de algum conjunto consistente de premissas (verdadeiras ou falsas), premissas essas oriundas de algum amparo epistêmico. Assim sendo, podemos afirmar que, relacionando com a “Tabela CQC-A1” a “Tabela CQC-A2”, o status semântico da fórmula Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ x = y))) – ou inda: “o círculo é redondo” – é contingente, sendo a verdade ou falsidade da proposição de caráter forçosamente sintético, de modo que o procedimento para o estabelecimento do valor epistemológico (verdade ou falsidade) da supracitada proposição será absolutamente a posteriori, o que nos forçará a recorrer a algum amparo epistêmico (ex: um livro de geometria euclidiana). Portanto, no caso apresentado, dada a estrutura da proposição, a fórmula resultante 31 não é necessariamente verdadeira nem necessariamente falsa. Tomados os detalhes puramente lógicos anteriormente mencionados, observamos que, em alguns casos, é possível confundir [1] a necessidade característica da proposição ou fórmula relacionada a um específico conjunto (ex: o argumento “{(A ˄ B)} ╞ A”) com [2] aquela necessidade decorrente da própria estrutura lógica da proposição por si mesma única e exclusivamente (ex: a proposição “(A ˅ ¬A)”), o que independe de suas relações com quaisquer outros elementos de quaisquer amparos epistêmicos – neste caso: quem se importaria com um livro de geometria euclidiana? É irrelevante –. Esses são dois status semânticos9 completamente distintos, uma vez que “[2]” diz respeito à fórmula e “[1]” diz respeito à relação entre uma fórmula e um específico conjunto de premissas. O mesmo se aplica perfeita e exatamente a todos, e absolutamente todos, os demais exemplos apresentados por Place para o “Caso 2” da “Tabela Place-04”, para a qual é fornecida uma demonstração, na “Tabela Place-05”, para a proposição “a mesa dele é um caixote velho”: do ponto de vista puramente sintático, as proposições “a mesa dele é um caixote velho”, “o chapéu dela é um feixe de palha amarrado com barbante” e “uma nuvem é uma massa de gotículas de água ou outras partículas em suspensão” não são uma verdade lógica tal como também não são uma falsidade lógica, estando, por conseguinte, em perfeito acordo com a primeira definição, qual seja: “[...] são afirmações contingentes as quais tem que ser verificadas pela observação [posteriormente = a posteriori]” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa). A segunda definição, qual seja: “[...] não existe tal relação [de necessidade] entre os significados das expressões ‘sua mesa’ e ‘caixote velho’; simplesmente acontece que, neste caso, ambas as expressões são aplicáveis ao mesmo objeto e, ao mesmo tempo, fornecem uma caracterização adequada do mesmo” (Place, 1956, p. 45, tradução nossa, itálicos nossos), só é possível a partir do momento em que não for definido um amparo epistêmico no qual o significado para “a mesa dele” seja colocado como significado para “um caixote velho” e para o qual possamos recorrer para nos certificar da verdade ou falsidade sintética do enunciado – pense em um livro onde a seguinte definição esteja dada: (“sua mesa” = “caixote velho”) –. Disso se segue que nenhum dos exemplos apresentados são logicamente necessários ou logicamente verdadeiros e, _____________ 9 Para que não se confunda, é relevante mencionar que o status semântico de uma proposição formalizada para o CQC= e calculada via tablô semântico não é definido pelo significado (dicionário) dos termos, mas pela estrutura sintática (gramática) da proposição, do conjunto de proposições ou do argumento. No CQC=, O status semântico da proposição “o círculo é redondo” não é definido pelo significado de “círculo” nem pelo significado de “redondo”, mas pelos operadores, constantes predicativas e constantes individuais. Se “o círculo é redondo” é semanticamente (dicionário da língua portuguesa) uma proposição analítica a priori, certamente a fórmula que a transcreve para o CQC= – exemplo: Ǝx (C01x ˄ Ɐy (C01y → (R1000x ˄ x = y))) – é sintaticamente (“gramática” da linguagem do CQC=) uma proposição contingente e, por conseguinte, sintética a posteriori. 32 portanto, o status semântico de cada um dos exemplos é contingência, de modo que, tal como anteriormente declarado, a verdade ou falsidade de uma proposição desse tipo só poderá ser inferida quando a referida proposição, enquanto conclusão de um argumento, for uma consequência lógica de algum conjunto consistente de premissas (verdadeiras ou falsas), premissas essas oriundas de algum amparo epistêmico previamente admitido. Portanto, reiteramos: podemos afirmar que tudo o que se possa dizer, do ponto de vista lógico (estrutura e não significado), a respeito de proposições do tipo “o círculo é redondo” poderá também ser dito a respeito de proposições do tipo “a mesa do João é um caixote velho”, o que fica evidenciado pelas demonstrações via CQC= apresentadas na “Tabela CQC-A1” e “Tabela Place-05”: ambas são contingentes (poderá ser verdadeiro ou falso, a depender do amparo epistêmico) , cujo tipo de status semântico é sintético, cujo tipo de procedimento para estabelecer a verdade ou falsidade da proposição é a posteriori, de modo que necessito de posterior recorrência a informações de algum amparo epistêmico (para definir a verdade ou a falsidade sintética da proposição), sendo, com efeito, proposições não evidentes, não necessariamente verdadeiras e não necessariamente falsas, conforme declarado na “Tabela CPC-A1”, “Caso 3”. Desse modo, ao falar de “logicamente verdadeira” e “logicamente falsa”, observada a estrutura lógica das proposições e não a significação de seus termos ou frase, Place termina por nos confundir: [1] o status semântico de uma proposição em virtude exclusivamente de sua estrutura lógica com [2] o status semântico de uma proposição que, enquanto conclusão de um raciocínio ou argumento, seja ou não uma consequência lógica de um conjunto consistente de premissas; premissas as quais, a partir de um raciocínio dedutivo, se verdadeiras, nos permitirá, a priori, estabelecer não apenas [2.1.] o status semântico de tipo puramente analítico que, nessas condições, qualquer proposição, enquanto conclusão, possuirá (para conjuntos, vide “Tabela CPC-B1” e “Tabela CPC-B2”; para argumentos, vide “Tabela CPC-C1” e “Tabela CPC-C2”), como também [2.2.] a verdade (anteriormente sintética, agora analítica) da proposição que assume a posição de conclusão de um argumento10. Dito de outro modo: o caráter analítico a priori e, por conseguinte, logicamente _____________ 10 Tome a proposição, formalizada para o CPC: “A”. O status semântico sintético da proposição “A” é, em si mesma, contingência, ou ainda, poderá ser verdadeiro ou falso, a depender de algo mais, isto é, algum (a posteriori) amparo epistêmico. Agora tome o seguinte argumento, formalizado para o CPC, a saber: {(A ˄ B)} ╞ A. Note que a mesma fórmula “A” agora está como conclusão de um argumento. Neste caso, o status semântico agora é de tipo puramente analítico, ou ainda, é ou não é uma consequência lógica da premissa. No exemplo dado, de fato, “A” é uma consequência lógica. Assim sendo, se verdadeira a premissa, então a verdade, anteriormente sintética, de “A” poderá ser afirmada a priori. 33 necessário, do qual poderia estar se valendo Place para declarar a verdade da proposição “o quadrado é um retângulo equilátero” não só não está na estrutura da própria proposição como nunca esteve nela. Está, antes de tudo, na relação entre a implícita assimilação psicológica prévia de um amparo epistêmico (dicionário, área do conhecimento, cultura...) a partir do qual, definidos os termos, possamos inferir tanto a proposição “o quadro é um retângulo equilátero” quanto seu valor epistemológico, isto é, seu valor verdade ou falsidade (neste caso: semanticamente analítica e, por conseguinte, a priori; mas sintaticamente sintética e, por conseguinte, a posteriori). A situação declarada acima é idêntica quando a proposição é “a mesa dele é um caixote velho”: o caráter analítico a priori é da relação Amparo Epistêmico-Proposição (vide “Tabela CPC-C1” e “Tabela CPC-C2”) ou Premissa-Conclusão e não da proposição supracitada isoladamente, situação essa na qual temos um caso de proposição sintética a posteriori, cujo status semântico poderia ser (não necessariamente será) uma verdade lógica ou uma falsidade lógica (vide “Tabela CPC-A1”, Caso 3) a depender sempre do amparo epistêmico ou da premissa contida no argumento. Por outro lado, enquanto verdade lógica ou falsidade lógica, qualquer proposição desse tipo possui um status semântico analítico, cujo procedimento para a certificação da verdade ou falsidade é puramente a priori, não necessitando recorrer a informações de algum amparo epistêmico ou premissa em um argumento, de modo que a proposição “o círculo é redondo ou o círculo não é redondo” é necessariamente verdadeira (independente das circunstâncias) e a proposição “o círculo é redondo e o círculo não é redondo” é necessariamente falsa (independente das circunstâncias) (vide “Tabela CPC-A1”, caso 1 e caso 2). A partir dessas considerações, do ponto de vista puramente lógico (estrutura sintática da proposição) e, portanto, inicialmente ausente de qualquer abordagem empírica ou semântica do fenômeno físico da consciência, podemos compreender melhor quando Place argumenta que: Aqueles que afirmam que a afirmação “a consciência é um processo cerebral” é logicamente insustentável baseiam sua afirmação, eu suspeito, na suposição equivocada de que se os significados de duas afirmações ou expressões são completamente desconectados, eles não podem fornecer uma caracterização adequada do mesmo objeto ou estado de coisas: se algo é um estado de consciência, não pode ser um processo cerebral, pois não há nada de contraditório em supor que alguém sente uma dor quando nada está acontecendo dentro de seu crânio. Da mesma forma, podemos ser levados a concluir que uma mesa não pode ser um caixote velho, uma vez que não há nada de contraditório em supor que alguém tenha uma mesa, mas não possua um caixote velho (Place, 1956, p. 45-46, tradução nossa). 34 O que Place almeja nessa citação é rejeitar qualquer pretensão de abandono da identificação da consciência com os processos no cérebro baseados apenas em questões exclusivamente lógicas: o caso observado por Place ainda se dá em torno da semântica, quando, na verdade, já na própria sintaxe (estrutura) também não poderiam – e aqui o argumento é mais forte –. Em uma contribuição ao argumento de Place, esperamos ter pelo menos feito o leitor notar que, dada a proposição “a consciência é um processo no cérebro”, a questão lógica aí envolvida está a favor de Place. É dizer: do ponto de vista lógico, a identidade pretendida entre a consciência e o cérebro é uma questão irrefutavelmente contingente (desde que observada apenas a estrutura da proposição analisada por Place, não relacionando-a a premissas ou amparo epistêmico onde a contingência observada na estrutura seja superada pelo caráter analítico a priori da relação), de modo que não é no plano da linguagem e nem no plano lógico, mas sim no plano ontológico que a disputa filosófica deverá ser travada junto com o auxílio da Ciência, pretenderá nosso autor, muito embora terá a discordância do filósofo Herbert Feigl, para o qual a análise lógico-linguística é a tarefa do filósofo, sendo a pesquisa empírica uma tarefa para o cientista. No capítulo sobre a teoria da identidade ontológica entre mente e cérebro de autoria de Smart, falaremos da formalização (CQC=) de um problema epistemológico que poderá ser confrontado com o aparente cenário favorável que acabamos de observar ao problema lógico- ontológico avaliado por Place. Dito de outro modo: se aqui a questão lógica está a favor da ontologia pretendida por Place, com a avaliação crítica feita por nós ao artigo de Smart, a questão lógica trará novos desafios à aludida ontologia – vide: todas as tabelas relativas ao Smart, objeção 1 –. Cabe, então, uma pergunta: qual a relação entre problemas de tipo lógico e aqueles de tipo ontológico? 1.2.3. Problema lógico e problema ontológico Com a última citação apresentada e discutida no tópico anterior deste artigo, a dimensão lógica do problema da consciência dá início, no artigo de Place, à dimensão ontológica, isto é: da independência lógica das expressões posso concluir a independência ontológica das entidades? Quando Place diz que “a mesa dele é um caixote velho” ele se refere nitidamente a um caso particular: a mesa do João é um caixote velho, contudo, é perfeitamente possível, tanto do ponto de vista lógico quanto do ponto de vista ontológico, que a mesa da Maria seja de vidro grosso, temperado, lapidado, sobreposto a uma armação ultramoderna de titânio polido. Por outro lado, “[...] ‘a consciência é um processo no cérebro’ é uma proposição 35 geral ou universal aplicada a todos os estados de consciência” (Place, 1956, p. 46, tradução nossa, itálicos nossos). Se Place realmente pretendesse resultados filosóficos muito próximos ou parecidos àqueles posteriormente colocados pelo funcionalismo, então: por que ele não disse “a consciência dele (João) é um processo no cérebro”? Esse seria também apenas um caso particular do qual se seguiria a necessária aceitação da possibilidade empírica e ontológica de que “a consciência dela (Maria) é um processo no computador” tanto quanto “a consciência dele (Alienígena) é um processo no substrato físico não orgânico”, sentenças essas nunca ditas por Place. Por que Place não disse simplesmente que a consciência humana é um processo no cérebro humano? Isso evitaria a particularização da consciência ao nível do indivíduo, mantendo-a no nível da espécie, ao mesmo tempo em que evitaria a generalização indevida de que só há consciência se houver processamento cerebral, com toda ênfase possível no último termo. A verdade é que se não há motivos lógicos para descartar a tese de que a consciência é um processo no cérebro, também não há qualquer motivo lógico para rejeitar a possibilidade do fenômeno físico da consciência às máquinas ou a alguma inteligência extraterrestre de natureza muito distinta de nós (não baseada em carbono, por exemplo). Place deveria estar perfeitamente ciente disso quando definiu a consciência como uma “hipótese científica razoável” (dimensão ontológica, p. 45) e como uma proposição contingente (dimensão lógica, p. 45). Quando Place declara que o “[...] argumento da independência lógica de duas expressões para a independência ontológica das entidades a que se referem fracassa no caso dos processos cerebrais e da consciência” (Place, 1956, p. 46, tradução nossa), o que, de fato, Place quer dizer? [1] Que tipo de dependência ontológica Place pretende que haja entre a consciência em geral e os específicos processos cerebrais? [1.1] Uma identificação e dependência ontológica circunstancialmente necessária (sintético a posteriori (tipo A)) tal como a identificação e dependência lógica contingente entre consciência e cérebro? – (a mesa dele é um caixote velho) –; [1.2] Uma identificação e dependência ontológica universalmente necessária (sintético a posteriori (tipo B)), em detrimento da contingência logicamente demonstrada? – (o relâmpago é um movimento de cargas elétricas)11 –. Sem deixar isso claro, _____________ 11 Um suposto caso de juízo de conhecimento denominado de analítico a posteriori: [1] a água é H2O; [2] o relâmpago é um movimento de cargas elétricas; [3] a consciência é um processo no cérebro. Com isso, gostaríamos de sugerir ao leitor que sempre se certifique da possibilidade de substituir a denominação “(sintético a posteriori (tipo B))” por “analítico a posteriori); bem como que observe a argumentação e as pretensões de nossos três autores (Place, Feigl e Smart) contrastando: juízos analíticos a priori, sintéticos a posteriori (tipo A e B), analíticos a posteriori e a relação de identidade segundo a Lei de Leibniz. 36 Place nos apresenta o argumento das nuvens, segundo o qual: Uma nuvem é uma grande massa semitransparente com uma textura macia suspensa na atmosfera, cuja forma está sujeita a mudanças contínuas e caleidoscópicas. Quando observada de perto, no entanto, verifica-se que consiste em uma massa de partículas minúsculas, geralmente gotículas de água, em movimento contínuo. Com base nesta segunda observação, concluímos que uma nuvem é uma massa de minúsculas partículas e nada mais. Mas não há conexão lógica em nossa linguagem entre uma nuvem e uma massa de minúsculas partículas; não há nada de contraditório em falar sobre uma nuvem que não é composta de minúsculas partículas em suspensão. Não há contradição envolvida em supor que as nuvens consistem em uma massa densa de tecido fibroso (Place, 1956, p. 46, tradução nossa). Pela via ontológica, estabelecendo as devidas relações, diria Place que, no exemplo acima, a nuvem ocupa um posto parecido, mas não idêntico, com aquele da consciência: a consciência não é um neurônio, da mesma forma que a nuvem não é uma gotícula. A rigor, a consciência não é o cérebro da mesma forma como a nuvem não é “uma massa de minúsculas partículas” – muito embora, em algum momento, Place, assumindo uma visão simplista, nos diga que seja –. O que, de fato, Place deseja é argumentar em favor da afirmação segundo a qual: a consciência é um processo no cérebro da mesma forma que a nuvem é um processo na atmosfera, muito embora “consciência e cérebro” e “nuvens e massa de minúsculas partículas” sejam aparentemente tão distintos que tanto a experiência quanto as proposições (sintéticas a posteriori) relativas a essas duas relações erroneamente nos induzam a acreditar que sejam entidades distintas. Com isso, um emergentismo não-fisicalista é afastado por Place. Pela via lógica, as asseverações de Place, no fragmento de texto acima, estão perfeitamente corretas, inclusive sobre a não contradição ao declarar que “as nuvens consistem em uma massa densa de tecido fibroso”, sentença essa que se enquadra como mais um exemplo para o “Caso 3” da “Tabela CPC-A1” tanto quanto a sentença “uma nuvem é uma massa de minúsculas partículas e nada mais”. Isso quer dizer que, do ponto de vista lógico, tanto pode a nuvem ser uma massa de minúsculas partículas de água quanto uma massa densa de tecido fibroso. Contudo, estaria Place disposto a admitir a possibilidade da existência (ontologia) de nuvens como massa densa de tecido fibroso? Ou uma nuvem desse tipo Place admitira apenas como possibilidade lógica, jamais aceitando a existência de nuvens que não sejam uma massa de minúsculas partículas? Essas perguntas são cruciais porque, em certa medida, apontam para o tipo de comprometimento que Place possui com as afirmações segundo as quais “a consciência é um processo no cérebro” e “a consciência é um processo no computador”. No que diz respeito à nuvem de tecido fibroso, Place declara que “[...] tal consistência [fibrosa da nuvem] parece estar implícita em muitas das funções desempenhadas pelas nuvens nas histórias 37 de fadas e na mitologia” (Place, 1956, p. 47, tradução nossa). Assim, perguntamos: para Place, seria a consciência alienígena ou computacional também apenas uma história de fadas ou uma mitologia? A possibilidade de uma resposta às indagações anteriormente estabelecidas pode ser esboçada a partir daquele que foi o último exemplo que Place nos forneceu em seu artigo de 1956: “o relâmpago é um movimento de cargas elétricas”. Tal afirmação é logicamente contingente12, isto é, não é necessariamente verdadeira nem necessariamente falsa, sendo, como já declarado, um enunciado do tipo sintético a posteriori (tipo B) e, com efeito, uma hipótese científica sensata que revela, segundo Place, as mesmas dificuldades referentes à proposição “a consciência é um processo no cérebro”: Como no caso da consciência, por mais perto que examinemos o relâmpago, nós nunca seremos capazes de observar as cargas elétricas, e assim como as operações para determinar a natureza do estado de consciência de alguém são radicalmente diferentes daquelas envolvidas na determinação da natureza dos processos cerebrais de alguém, as operações para determinar a ocorrência de relâmpagos são radicalmente diferentes daquelas envolvidas na determinação da ocorrência de um movimento de cargas elétricas (Place, 1956, p. 48, tradução nossa). O que Place pretende com o argumento do relâmpago é declarar que a razão pela qual pensamos a consciência como radicalmente diferente dos processos cerebrais é o fato de que, além de, semanticamente, enunciados sobre a consciência não serem enunciados sobre padrões específicos de atividade no cérebro, não é possível verificarmos, nem mesmo por aproximação direta e gradual, a ocorrência da consciência a partir da pura e simples inspeção minuciosa das interações a nível neuronal, tanto quanto não é possível verificarmos a ocorrência do relâmpago a partir da pura e simples inspeção minuciosa das interações a nível atômico: é como querer encontrar o próprio João não a partir da soma total das interações das partes que compõem seu corpo, como um efeito emergencial, mas na própria interação particular, como um micro indício do ser humano em escala celular, o que, a princípio, parece-nos um desejo insensato. Em suma, o que Place nos propõe a partir do argumento do relâmpago é que: o fenômeno físico da consciência não está na fenda sináptica, o que não quer dizer que não dependa fundamentalmente da referida fenda que, como uma das muitas estruturas encontradas no tecido nervoso, permite – dá origem (gives rise)13 – a ocorrência física, sincrônica, não centralizada da atividade cerebral a que chamamos “consciência”. Assim como o relâmpago _____________ 12 Confrontar a “Tabela Place-02” com a “Tabela Place-03”. 13 Assim diz Place sobre o surgimento do relâmpago a partir do movimento de cargas elétricas através da atmosfera planetária. Ver em: Smart, 1959, p. 48. 38 nada mais é do que aquilo que aparece do movimento de cargas elétricas no ambiente químico da atmosfera planetária (e, portanto, é redutível a esse contexto), também a consciência nada mais é do que aquilo que aparece do movimento de cargas elétricas no ambiente químico da “atmosfera” cerebral (e, portanto, é redutível a esse contexto). Que Place pretenda que a consciência seja tão física quanto o relâmpago, não há dúvidas. Contudo: pretende Place que seja a consciência tão ontologicamente dependente dos processos no cérebro quanto um relâmpago é invariavelmente depende ontologicamente (sintético a posteriori (tipo B)) dos processos (movimentos de cargas elétricas) na atmosfera? Novamente citamos o autor: “[...] ‘a consciência é um processo no cérebro’ é uma proposição geral ou universal aplicada a todos os estados de consciência” (Place, 1956, p. 46, tradução nossa, itálicos nossos). Muito embora esse aspecto da abordagem ontológica não seja suficientemente explorada no artigo “Is conciousness a brain process?” (1956), a suposição de uma resposta positiva à pergunta acima parece ser, a princípio, a mais plausível, o que justificaria a interpretação aparentemente não deseja por Place e sobre a qual se fará toda a disputa intelectual entre os teóricos da identidade e os funcionalistas mecânicos algum momento no futuro próximo à década de 1950. Place aproxima o enunciado “a consciência é um processo no cérebro” muito mais do enunciado “o relâmpago é um movimento de cargas elétricas” do que “a mesa dele é um caixote velho”. Ontologicamente falando, o que temos com essa sugerida aproximação? O enunciado sobre a mesa refere-se a uma construção social e cultural, para a qual cabe apenas uma necessidade circunstancial, o que torna perfeitamente aceitável admitir a existência de outras mesas que não sejam formadas por caixotes velhos – nós inventamos a mesa! –. Por outro lado, o enunciado sobre o relâmpago refere-se a uma construção física (cargas elétricas) e biológica (visual), para a qual cabe uma necessidade de tipo, a princípio, universal, de modo que parece inaceitável14 admitir a existência de outros relâmpagos que não sejam formados por descargas _____________ 14 Note que: [1] não há motivo lógico algum para rejeitar possibilidades contrárias à tese de que relâmpagos são movimentos de cargas elétricas, uma vez que se trata de um enunciado cujo tipo de status semântico é contingente, isto é, a verdade ou falsidade da proposição é sintética e, por conseguinte, o tipo de procedimento para a certificação de sua verdade ou falsidade é a posteriori; [2] bem como a experiência humanamente incompleta corrobora, mas nunca impede, que fenômenos físicos não possam resultar em relâmpagos por outros meios que não por movimento de cargas elétricas, é dizer: nós não temos uma experiência completa do Universo para que, epistemologicamente, a partir de aludida experiência, estejamos justificados a excluir alternativas aparentemente esdrúxulas – recorde o caso da nuvem de tecido fibroso –. Em qualquer dos casos, a exigência epistemológica é sempre alta: ou se resolve pela [a] completude da dedução ou pela [b] completude da experiência; do contrário, a questão permanecerá aberta. Como a completude da experiência parece ser sempre humanamente impossível, resta-nos a completude da dedução. Contudo, o juízo aqui em questão é de tipo sintético a posteriori, para o qual não cabe procedimento dedutivo algum exatamente por haver lacunas (incompletude) na estrutura lógica do enunciado, ou mesmo no conjunto ou no argumento decorrentes de qualquer amparo epistêmico admitido por nós. 39 elétricas com emissões de fótons – trata-se de uma criação natural e não humana, apesar de sua reprodução em laboratório –. Entendemos que o compromisso de Place com o enunciado sobre a consciência se dê ontologicamente nos mesmos termos daquele segundo caso (relâmpago) e não do primeiro caso (mesa), assumindo postura inversa quando em uma abordagem puramente lógica. Dito de modo mais incisivo: tendo como referência apenas o artigo de 1956, Place não parece estar disposto a aceitar que o fenômeno físico da consciência seja idêntico a outro substrato além do cérebro, de modo que a inicial crítica dos funcionalistas estaria perfeitamente justificada. O artigo de Place foi dirigido, na época, aos dualistas, aos behavioristas e aos fenomenólogos (filósofos): ninguém mais foi citado. Sugerimos que, naquela mesma época, o funcionalismo ainda não existisse como posicionamento filosófico explícito – talvez existisse na mente de muitos pensadores algum tempo antes da publicação de Place, mas sem ser academicamente declarado ou, se declarado alguma vez, não teria ganhado a força teórica e acadêmica necessárias par