unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP NAIARA GOMES MORANTE UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS TRADUÇÕES DE THE CHRONICLES OF NARNIA: THE SILVER CHAIR À LUZ DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO BASEADOS EM CORPUS ARARAQUARA – SP 2018 NAIARA GOMES MORANTE UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS TRADUÇÕES DE THE CHRONICLES OF NARNIA: THE SILVER CHAIR À LUZ DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO BASEADOS EM CORPUS Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Estudos do léxico Orientador: Prof. Dr. Celso Fernando Rocha ARARAQUARA – SP 2018 NAIARA GOMES MORANTE UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FIGURA FEMININA NAS TRADUÇÕES DE THE CHRONICLES OF NARNIA: THE SILVER CHAIR À LUZ DOS ESTUDOS DA TRADUÇÃO BASEADOS EM CORPUS Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, Programa de Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Linguística e Língua Portuguesa. Linha de pesquisa: Estudos do léxico Orientador: Prof. Dr. Celso Fernando Rocha Data da defesa: 27.04.2018 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Celso Fernando Rocha Universidade Estadual Paulista – UNESP/FCLAR Membro Titular: Profa. Dra. Angélica Karim Garcia Simão Universidade Estadual Paulista – UNESP/IBILCE Membro Titular: Prof. Dr. Odair Luiz Nadin da Silva Universidade Estadual Paulista – UNESP/FCLAR Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Àqueles que adentram os universos mágicos narrados nos livros com um olhar de criança, sempre abertos a vivenciar o que quer que se encontre para “além do guarda-roupa”. AGRADECIMENTOS A Deus. Sem Ele, não haveria autores como Lewis e mundos como Nárnia. Ao meu pai Antônio e à minha mãe Maria. Sempre. Mesmo muitas vezes sem entender o que tanto eu fazia trancada no quarto estudando, deram-me todo o apoio para que eu me sentisse bem e pudesse me dedicar. À minha irmã Amanda, por ser alguém com quem sempre posso contar. Às minhas amigas Stephanie, Jaqueline e Mariana por me fazerem assistir a filmes que pudessem espairecer minha cabeça e por compartilharem café comigo. A Fiote, por tocar lindamente minhas músicas preferidas e por me distrair sempre que necessitei. A Tamires, por ouvir meus lamentos e alegrias, acreditar em meu trabalho e sempre rezar por mim. A Isadora, por todo o incentivo e por me ajudar mesmo quando tinha milhões de coisas para fazer. Aos amigos que o mestrado me trouxe, Amanda e Tiago, por tornarem esta uma etapa menos solitária e muito mais alegre para mim. Ao Davizinho, por me presentear com sua amizade mais que valiosa e por todas as horas que, comigo, dedicou a Nárnia. A Nay, por ter um brilho todo especial que sempre me inspirou e por todas as aventuras que compartilhamos. Ao meu orientador eu precisaria dedicar um livro todo só de agradecimentos. O professor Celso soube me incentivar, apoiar, instigar, acalmar, cobrar, ajudar a superar o desânimo de algumas vezes e, o mais importante, trouxe Nárnia à minha vida. A Deus, que colocou tantas pessoas maravilhosas em minha vida e me ajudou a percorrer esta jornada. RESUMO A presente dissertação volta-se para o estudo do léxico de uma obra traduzida, tendo como base o uso de corpus. Escolhemos para análise o livro The Chronicles of Narnia: the Silver Chair (1953), do escritor C. S. Lewis, e suas traduções para a língua portuguesa “As Crônicas de Nárnia: a cadeira de prata” – tradução de Paulo Mendes Campos – e para a língua espanhola Las Crónicas de Narnia: la silla de plata – Tradução de María Rosa Duhart Silva. Selecionamos três vocábulos para análise, os quais se relacionam à representação das principais personagens femininas e a aspectos simbólicos da narrativa: Jill, Witch e owl. Estas são palavras-chave no corpus que compilamos e foram extraídas por meio de ferramentas específicas do software WordSmith Tools. Investigamos, então, os três vocábulos de acordo com seu cotexto (texto ao redor da palavra de busca) e com seu contexto. Para tal, levamos em consideração os dados fornecidos pelo programa, como o número de ocorrências dos vocábulos escolhidos no texto de partida (TP) e nos textos de chegada (TCs) e os pressupostos teóricos dos Estudos da Tradução Baseados em Corpus (BAKER, 1993, 1995, 1996). Os resultados das análises apontam para a criação de novos sentidos nos TCs de acordo com o léxico selecionado pelos tradutores, levando o leitor a conceituar de diferentes modos as personagens citadas, a partir de suas impressões ao ter acesso ao TC. Palavras–chave: Tradução. Linguística de Corpus. Léxico. Nárnia. ABSTRACT The present dissertation, based on subsidies from Corpus Linguistics consists of a study aimed at studying the lexicon of a literary work. We have chosen to analyze the book The Chronicles of Narnia: the Silver Chair (1953), by the writer C. S. Lewis, and its translations into the Portuguese language As Crônicas de Nárnia: a cadeira de prata – translated by Paulo Mendes Campos –, and into the Spanish language Las Crónicas de Narnia: la silla de plata – translated by María Rosa Duhart Silva. We have selected three words for analysis, which relate to the representation of the main female characters and the symbolic aspects of the narrative: Jill, Witch and owl. These are keywords in the corpus we compiled and they were extracted using specific tools from WordSmith Tools software. We then investigated the three words according to their co-text (text around the search word) and its context. To do so, we took into account the data provided by the program, such as the number of occurrences of the words chosen in the source text (ST) and in the target texts (TTs) and the theoretical assumptions of Corpus-based Translation Studies (BAKER, 1993, 1995, 1996). The results of the analyzes point to the creation of new meanings in the TTs according to the lexicon selected by the translators, leading the reader to conceptualize the characters mentioned in different ways, from their impressions upon access to the TT. Keywords: Translation. Corpus Linguistics. Lexicon. Narnia. LISTA DE TABELAS Tabela 1 Quantidade de palavras no corpus em estudo. 34 Tabela 2 Vocábulos mais frequentes em CN-Ing. 41 Tabela 3 Lista de palavras-chave em CN-Ing. 41 Tabela 4 Estatísticas referentes à variação lexical no corpus em estudo. 43 Tabela 5 Palavras-chave selecionadas para análise. 49 Tabela 6 Palavras-chave selecionadas no TP e nos TCs e suas frequências. 50 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Ordem de publicação e ordem cronológica dos eventos da história. 13 Quadro 2 Material de apoio para análise. 37 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Tela inicial do WST. 35 Figura 2 A personagem Jill. 52 Figura 3 A personagem Witch. 81 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CN-Esp The Chronicles of Narnia em Língua Espanhola CN-Ing The Chronicles of Narnia em Língua Inglesa CN-Port The Chronicles of Narnia em Língua Portuguesa LC Língua de Chegada TC Texto de Chegada TO Texto Original TP Texto de Partida TT Texto Traduzido SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 22 1.1 A Tradução 22 1.1.1 A Tradução de Literatura 25 1.1.2 A Tradução de Literatura Infantojuvenil 27 1.2 A Linguística de Corpus 28 1.2.1 Conceituação de corpus 30 1.3 Corpus, Literatura e Tradução 31 2 METODOLOGIA 34 2.1 Compilação do corpus e extração dos dados 34 2.2 Forma de análise dos dados 36 3 ANÁLISE DOS DADOS 39 3.1 O léxico mais frequente nos corpora analisados: dados estatísticos 3.2 Variação lexical nas obras do corpus em análise 3.3 Léxico selecionado para análise 3.3.1 Análise do vocábulo Jill Jill/Jill 41 43 49 51 3.3.2 Análise do vocábulo WitchFeiticeira/Bruja 3.3.3 Análise do vocábulo OwlCoruja/Búho 76 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS 103 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 105 10 INTRODUÇÃO É amplamente conhecido que o processo de tradução mostra-se indispensável para que a literatura possa ser apreciada em diversas línguas, dadas as diferenças linguísticas, culturais e históricas de cada sociedade. Essa atividade complexa gera significados e possibilita a difusão de ideias e de conhecimento de autores por meio da mediação de um tradutor. Crianças, jovens e adultos encontram nos textos literários personagens com as quais se identificam e que auxiliam no próprio autoconhecimento, fato que se dá, muitas vezes, exclusivamente por meio do acesso a obras traduzidas. Dessa forma, faz-se necessário estudar essa literatura que cada vez mais faz parte do cotidiano dos leitores. Afinal, analisar o texto traduzido permite elevar tanto a compreensão de fenômenos linguísticos como de aspectos relacionados às diferenças culturais entre as línguas envolvidas. Na presente pesquisa, propomos um estudo acerca deste processo, por meio da análise de duas traduções de The Chronicles of Narnia: the Silver Chair, escrito por C. S. Lewis e publicado pela primeira vez em 1953. Selecionamos a tradução para a língua portuguesa, de Paulo Mendes Campos, intitulada “As Crônicas de Nárnia: a cadeira de prata”, e a tradução para a língua espanhola, Las Crónicas de Narnia: la silla de plata, de María Rosa Duhart Silva.1 Nossa investigação volta-se para o estudo da representação das personagens femininas nos textos de chegada (TCs), as quais atuam como protagonistas na narrativa, conforme se observa ao analisar as palavras-chave do corpus compilado. É de nosso interesse observar, a partir do léxico utilizado nas traduções, o modo como essas personagens são apresentadas ao leitor, posto que as palavras escolhidas pelos tradutores recriam essas figuras nas narrativas. Acompanhamos, assim, esse processo, atentando-nos, finalmente, para as transformações pelas quais passam essas personagens no decorrer da história, e é neste sentido que esta pesquisa relaciona-se ao feminino. Tencionamos, também, promover o levantamento de características mais frequentes nos TCs, contribuindo, dessa forma, para um maior entendimento do trabalho envolvido em uma tradução. Para cumprir os objetivos a que nos propomos, mostra-se fundamental o uso de corpus em nosso trabalho. É por meio da análise dos dados extraídos do material textual que conseguimos observar mais atentamente o texto de partida (TP) e suas traduções. Mais especificamente, o uso de corpora paralelos – tal como fazemos em nossa pesquisa – permite 1 Utilizamos para análise as edições de 2001 do livro em inglês, 2011 do livro em português e 1993 do livro em espanhol. Tal escolha deve-se ao fato de esses livros estarem disponíveis em formato digital. Salientamos que a tradução em português refere-se à edição publicada no Brasil, e a tradução em espanhol refere-se à edição publicada no Chile. 11 o contraste entre esses textos e a observação de estratégias utilizadas pelos tradutores frente aos desafios apresentados pelo TP. Esse tipo de abordagem, possibilitada pelo uso da Linguística de Corpus enquanto metodologia, favorece, a partir do uso de ferramentas computacionais, o estudo dos TCs de maneira que posamos descrever determinados fenômenos que neles ocorrem. Assim, esta pesquisa pode apresentar contribuições tanto para os tradutores quanto para os estudos relacionados à tradução de textos literários, em especial os de literatura infantojuvenil, área que ainda carece de investigações. The Chronicles of Narnia são uma obra composta por sete livros publicados entre 1950 e 1956. A escolha, para nosso estudo, de The Silver Chair (1953), quarto em ordem de publicação e sexto levando-se em consideração os eventos narrativos, deve-se ao fato de este ser o único livro cujas protagonistas são essencialmente figuras femininas: Jill, ocupando o lugar de heroína da história, e a Dama do Vestido Verde, a vilã. Outras personagens masculinas desempenham função bastante relevante na trama, mas não se mostram o foco da narrativa como as duas citadas. Assim, despertou-nos curiosidade investigar o modo como ocorre a representação dessas figuras nas versões traduzidas do livro. Se, no texto em língua inglesa, o olhar do narrador nos conduz a determinadas reflexões sobre a protagonista e a antagonista, interessa-nos saber de que forma o olhar do tradutor reconstruiu essas personagens: ressaltou suas características positivas e negativas? Possibilitou ao leitor identificar-se ou não com as personagens? Acentuou as transformações pelas quais passaram? Uma série de questionamentos norteou nossa pesquisa que, longe de apresentar-se prescritiva em relação à análise das traduções, preocupa-se em estudar as diversas possibilidades de sentido que se criam a partir do trabalho do tradutor com o léxico. Cabe ressaltar que o contraste entre as traduções em língua portuguesa e em língua espanhola não tem como finalidade apontar um TC mais adequado ou “melhor” porque se aproximou mais do TP linguisticamente do que o outro. A comparação entre as duas línguas tenciona observar o modo como os tradutores lidaram com as construções sintáticas, figuras de linguagem, referências a elementos culturais (entre outros) levando em consideração o idioma do TP e o idioma dos TCs, com foco nas significações que se constroem nas línguas de chegada (LCs). Salientamos também que este trabalho não esgota as possibilidades de análise de nosso objeto de estudo, “As Crônicas de Nárnia”, uma vez que escolhemos focar alguns aspectos do TP e dos TCs, dada a delimitação de nosso tema. Dessa forma, todas as reflexões que apresentamos como fundamentação teórica de nossa pesquisa mostram-se importantes, pois tratam do trabalho do tradutor como um mediador, que torna possível a determinado público o acesso à literatura, e do processo de 12 tradução como produtor de significados na LC. Assim, tais considerações nos auxiliam a olhar para os TCs não no sentido de observar se os tradutores reproduziram “cópias fiéis” do TP para as respectivas LCs, mas de refletir sobre as possíveis implicações de suas escolhas, seja ao se aproximar do TP seja ao se distanciar deste no que concerne ao léxico utilizado. A fim de contextualizar o leitor em relação ao nosso objeto de estudo, apresentamos, em seguida, algumas informações a respeito de C. S. Lewis, autor da série, e dos tradutores e também um panorama geral sobre a obra “As Crônicas de Nárnia” e sobre o livro em análise, “A cadeira de prata”. C. S. Lewis, o criador de Nárnia Talvez o conhecimento que muitos têm sobre Lewis consista no fato de ele ser o criador de “As Crônicas de Nárnia”, série de literatura infantojuvenil mundialmente conhecida. No entanto, Clive Staples Lewis (1898–1963) é também reconhecido pelo trabalho que realizou como professor e crítico literário. Alguns acontecimentos marcaram sua vida e sua produção literária, como a participação na Primeira Guerra Mundial e sua conversão ao cristianismo, da qual resultaram obras como “O Problema do Sofrimento” (1940), “Cartas de Um Diabo ao Seu Aprendiz” (1942), “Milagre” (1947) e “Cristianismo Puro e Simples” (1952). Lewis tornou-se famoso por obter sucesso, além da publicação de suas obras, com suas palestras nas universidades em que trabalhou, Cambridge e Oxford, as quais eram transmitidas pela BBC de Londres. Além disso, ganhou prêmios como o Chancellor’s Essay, em 1921, concedido ao graduando que escrevesse o melhor ensaio sobre um tema predeterminado, e o prêmio Sir Israel Gollancz Memorial, em 1937, o qual honrava obras extraordinárias que se dedicassem a estudar algum aspecto da língua ou da literatura inglesa antigas. Também seu livro The Chronicles of Narnia: the Last Battle recebeu um prêmio, o "Carnegie", em 1956, como melhor livro de literatura inglesa infantojuvenil. Os tradutores das Crônicas: Paulo Mendes Campos e María Rosa Duhart Silva Paulo Mendes Campos (1922–1991), tradutor de “As Crônicas de Nárnia”, foi também jornalista, adaptador, poeta e escritor. Nasceu em Minas Gerais, mas exerceu a maior parte das atividades pelas quais é reconhecido no Rio de Janeiro, onde permaneceu até sua morte. Suas crônicas e seus poemas tiveram bastante destaque e figuram como o cerne de sua obra. 13 Enquanto autor, recebeu o prêmio Alphonsus de Guimarães, em 1966, por suas coletâneas de poemas “O domingo azul do mar” (1958) e “Testamento do Brasil” (1956). Enquanto adaptador, recebeu menção honrosa, em 1988, por sua adaptação de Bouvard e Pécuchet, de Gustave Flaubert, e o Prêmio Jabuti, em 1989, pela adaptação de “Bola de Sebo e outras histórias”, de Guy de Maupassant, entre outros. Campos traduziu obras dos gêneros narrativo, lírico e dramático, além de textos não ficcionais escritos em alemão, inglês, francês e espanhol. Sua tradução mais famosa, entretanto, é de “As Crônicas de Nárnia”, das quais foi o primeiro tradutor para a língua portuguesa, no início da década de 1980. Da série de sete livros, Campos foi responsável pela tradução de seis Crônicas, excetuando-se apenas “A última batalha”. Em relação à tradutora do livro em língua espanhola, María Rosa Duhart Silva, não encontramos informações sobre sua biografia. Sabemos apenas que foi responsável pela tradução de todos os livros que compõem a obra nas versões publicadas no Chile. Nárnia: a obra As “Crônicas de Nárnia” são uma obra de literatura infantojuvenil formada, como mencionado anteriormente, por sete livros publicados entre 1950 e 1956. Os acontecimentos narrados nos livros, entretanto, apresentam uma sequência diferente daquela em que foram publicados. Assim, a título de ilustração, apresentamos, a seguir, um quadro com as obras elencadas em ordem de publicação e em ordem cronológica dos eventos narrativos: Quadro 1. Ordem de publicação e ordem cronológica dos eventos da história. Ordem de publicação Ordem cronológica The Lion, the Witch and the Wardrobe (1950) (O leão, a feiticeira e o guarda-roupa) (El león, la bruja y el armario) The Magician’s Nephew (O sobrinho do mago) (El sobrino del mago) Prince Caspian (1951) (Príncipe Caspian) (El príncipe Caspian) The Lion, the Witch and the Wardrobe (O leão, a feiticeira e o guarda-roupa) (El león, la bruja y el armario) The Voyage of the Dawn Treader (1952) (A viagem do peregrino da alvorada) (La travesía del Viajero del Alba) The Horse and his Boy (O cavalo e seu menino) (El caballo y el muchacho) The Silver Chair (1953) (A cadeira de prata) (La silla de plata) Prince Caspian (Príncipe Caspian) (El príncipe Caspian) The Horse and his Boy (1954) (O cavalo e seu menino) (El caballo y el muchacho) The Voyage of the Dawn Treader (A viagem do peregrino da alvorada) (La travesía del Viajero del Alba) 14 The Magician’s Nephew (1955) (O sobrinho do mago) (El sobrino del mago) The Silver Chair (A cadeira de prata) (La silla de plata) The Last Battle (1956) (A última batalha) (La última batalla) The Last Battle (A última batalha) (La última batalla) Fonte: elaborado pela autora. Aslam é o grande Leão, o criador de Nárnia. Trata-se da única personagem que aparece em todos os livros, sempre convocando seres humanos (crianças) para uma missão. Ao final de cada jornada percorrida e de cada objetivo cumprido, as personagens deixam Nárnia como novas criaturas, com suas vidas transformadas. Nárnia é uma terra mágica, onde o tempo transcorre de modo singular, e a fauna e a flora têm vida: falam, lutam, amam. A criação deste mundo é narrada no livro “O sobrinho do mago” (1955). O Leão, por meio de sua palavra criadora, dá vida a uma terra encantada, Nárnia. Digory e Polly, duas crianças que viviam em Londres, acabam tendo acesso a este mundo devido ao fato de André, tio do menino, ter criado anéis mágicos que poderiam transportar pessoas entre mundos. O problema, entretanto, é que Digory desperta uma força maligna, Jadis, que macula a pureza de Nárnia. Ele e Polly recebem de Aslam, então, a missão de libertar Nárnia dos poderes de Jadis. As crianças conseguem afastar Jadis, mas, uma vez que o mal havia entrado naquele mundo, sempre pairava a ameaça de seu retorno. Em O Leão, a feiticeira e o guarda-roupa (1950), segundo livro em ordem de sequência dos eventos narrativos, Nárnia precisa ser liberta de uma maldição lançada por Jadis, agora também denominada Feiticeira Branca. A bruxa havia condenado aquela terra a um inverno de cem anos. Aslam convoca, então, quatro crianças para cumprir essa missão: Lúcia, Edmundo, Susana e Pedro. As crianças conseguem derrotar a Feiticeira Branca, e Nárnia passa por um período de paz sob o reinado de Lúcia, A Destemida; Edmundo, O Justo; Susana, A Gentil, e Pedro, O Magnífico. Esta época em que os quatro reinam em Nárnia é chamada de “A Era de Ouro” de Nárnia; entretanto, o livro “O cavalo e seu menino” (1954) mostra a ambição do povo calormano, o qual deseja invadir Nárnia. Aslam utiliza o auxílio de duas crianças, Shasta e Aravis, juntamente com seus cavalo e égua falantes, respectivamente, para evitar que o fato ocorra. Os próximos eventos que sucedem em Nárnia são narrados em “O príncipe Caspian” (1951). Já havia um ano que Lúcia, Edmundo, Susana e Pedro tinham deixado Nárnia. Caspian, herdeiro do trono de Nárnia, teve seu direito usurpado, e todas as criaturas deste país 15 corriam perigo. Assim, convoca os quatro antigos reis para ajudá-lo a derrotar seus inimigos, com a ajuda de Aslam. Em “A viagem do peregrino da alvorada” (1952), Lúcia e Edmundo voltam a Nárnia; com eles, vai também Eustáquio, um garoto retratado como mesquinho e arrogante no início da narrativa, mas que, ao passar por diversos desafios, tem seu caráter transformado. Os três são responsáveis por ajudar Caspian, que agora se tornara rei, a resgatar sete nobres amigos de seu pai que haviam sido mandados para os Mares Orientais e para as Ilhas Solitárias por um inimigo do monarca anterior. As crianças e o rei vivem perigosas aventuras, mas atingem seu objetivo; novamente, com o auxílio constante de Aslam. Terminada a jornada, Aslam informa a Lúcia e a Edmundo que eles já não voltarão a Nárnia. No livro seguinte, “A cadeira de prata” (1953), Aslam convoca Eustáquio a voltar a Nárnia, juntamente com Jill, colega de escola do menino. Os dois precisam resgatar o príncipe Rilian, filho do rei Caspian, do domínio da Dama de Vestido Verde, uma feiticeira. A narrativa concentra-se especialmente nas impressões e nos esforços de Jill ao realizar a missão dada por Aslam, de modo que o leitor também acompanha uma jornada pessoal pela qual a garota passa. Depois de vencerem a feiticeira, as crianças voltam para casa como verdadeiros e eternos amigos. No último livro da série, “A última batalha” (1956), diversas personagens que haviam atuado nas outras narrativas retornam à terra mágica na tentativa de ajudar Tirian, último rei de Nárnia, a impedir a destruição do lugar. Entre o surgimento de um falso Aslam e inúmeros conflitos que mostram a ambição dos seres – mas também o valor da amizade e da lealdade –, o mundo que Aslam criara tem um fim e revela-se a existência da verdadeira Nárnia, para onde vão aqueles que Aslam julga merecedores. A seguir, apresentamos um resumo do livro escolhido para este estudo, o qual auxilia na compreensão do desenvolvimento da seção de análise desta dissertação. Nárnia: “A cadeira de prata” “A cadeira de prata” narra diversas jornadas, dentre as quais se destacam as de Jill e de Eustáquio, acompanhados de Brejeiro, em busca do príncipe Rilian, desaparecido há dez anos. As crianças estudavam em um colégio experimental na Inglaterra e ambos sofriam perseguições por parte de seus colegas. A narrativa tem início com a fuga de Jill, que, chorando, tenta escapar de um grupo de meninos. Eustáquio a encontra e tenta consolá-la, mas Jill, que desconfiava do menino devido a seu comportamento no passado, mostra-se esquiva. 16 O garoto tenta convencê-la de que havia mudado e decide contar as aventuras que tinha vivido em Nárnia em seu encontro com Aslam. Enquanto dialogam, os perseguidores se aproximam, de modo que os dois precisam fugir. Durante a fuga, Jill e Eustáquio abrem uma porta, na tentativa de escapar, deparando- se com um penhasco. O menino acaba caindo do penhasco, mas, na verdade, já estava a caminho de Nárnia, pois Aslam havia aparecido. Jill é quem tem contato direto com o Leão; ele diz à garota que os convocou pois tem uma missão para eles: resgatar o príncipe Rilian, filho de Caspian X. Jill se assusta ante a figura imponente de Aslam, mas ouve suas instruções. Depois, é soprada para Nárnia. Chegando lá, encontra Eustáquio e explica tudo o que havia acontecido em seu encontro com Aslam. Os dois, auxiliados por diversas corujas, são orientados sobre o que devem fazer. Brejeiro, uma criatura narniana meio humano meio animal, parte com as crianças e as auxilia durante todo seu percurso. O grupo passa por privações e perigos nos caminhos que percorre; o maior desafio, entretanto, é lidar com os próprios medos e limites de cada um. Para encontrar o príncipe, precisam chegar ao Submundo, reino que estava sob o comando da Dama de Vestido Verde, uma poderosa feiticeira que, por meio de sua sedução, havia aprisionado Rilian em um encantamento. Quando as crianças e Brejeiro o encontram, percebem que ele não tem consciência de que está sendo subjugado pela feiticeira, fato que torna a missão ainda mais difícil de ser cumprida. Todas as noites, o príncipe é mantido atado a uma cadeira de prata, mas ele acredita que a feiticeira faz isso para que ele não se transforme em um monstro. Ocorre, então, um enfrentamento entre a rainha e Jill, Eustáquio e Brejeiro, na luta pela liberdade de Rilian. A feiticeira lança mão de um instrumento musical, aliado à sua voz cadenciada pronunciando palavras cuidadosamente escolhidas, para tentar levar todos a se esquecerem da existência de Nárnia e, assim, torná-los prisioneiros seus. No entanto, ainda que pudessem se esquecer de tudo, Jill se recorda de que Aslam existe, fato que desperta a todos. Brejeiro consegue desfazer o encantamento da feiticeira, e Rilian é liberto. O príncipe é o responsável por destruir a rainha – que havia se transformado em serpente, sua forma original. Todos regressam a Nárnia e Rilian pode reencontrar o pai. Caspian, já de idade avançada, falece feliz por ter reencontrado o filho. Todos os habitantes se alegram, e Jill conclui que, mesmo tendo passado por tantos desafios, tudo aquilo valera a pena. A menina e Eustáquio voltam ao colégio, dando uma lição em seus antigos algozes com a ajuda de Aslam. Jill e Estáquio permanecem amigos para sempre. 17 Estudos realizados sobre Nárnia Este universo mágico narrado por Lewis em sete livros desperta o interesse de muitos estudiosos. Assim como diferentes mitos tentam interpretar a criação do mundo que conhecemos e explicar seu funcionamento, busca-se investigar como Nárnia foi formada, quais são as características dos seres que a povoam, como age a magia que a sustenta e de que modo ocorre seu fim. Nesse sentido, elencamos uma série de estudos que analisam distintos aspectos dessa terra criada por Lewis, os quais nos auxiliam a pensar em nosso trabalho, tanto em relação a pesquisar aspectos ainda não abordados da obra como em relação a observar e usar como subsídio as reflexões sobre os diversos caminhos já percorridos na análise desta narrativa. Uma das características que mais desperta interesse entre os estudiosos de “As Crônicas de Nárnia” é a relação que se pode estabelecer entre os sete livros que formam as Crônicas e a Bíblia Sagrada. Por diversas vezes, o Leão, Aslam, protagonista dos livros, é comparado pelos críticos ao Deus dos cristãos. O próprio número de livros que formam a série, sete, associa-se ao livro sagrado: são sete os dias necessários para a criação do mundo, sete os dias necessários para que o povo hebreu derrubasse as muralhas de Jericó e começasse a reconquista da Terra Prometida, sete o número que aparece nas descrições que o livro bíblico Apocalipse faz da destruição da Terra. Assim, a simbologia do número sete permeia os acontecimentos que marcam o início e o fim da vida de um povo e de uma terra, tanto em Nárnia como na Bíblia. Ademais da relação estabelecida entre Aslam e Deus, outro aspecto em comum nas narrativas é a corrupção do mundo idealizado tanto por este como por aquele ser. Nas duas obras, cria-se um paraíso – um mundo perfeito. Este paraíso, entretanto, torna-se impuro quando o homem permite que forças malignas adentrem este espaço. Em Nárnia, aparecem feiticeiras que desejam destruir seu criador e tomar posse da terra, assim como a serpente bíblica que tenta Eva no Jardim do Éden (Gênesis 3, 1-6). De acordo com as tradições cristãs, o ser humano, então, precisa arcar com as consequências de seus atos: caminha errante travando batalhas nesta terra até o momento em que Deus retorne e elimine o mal; da mesma forma, os habitantes de Nárnia enfrentam perigosos desafios até que passam a viver em uma Nárnia onde não existe dor, tristeza nem nada de mal, apenas paz. As Crônicas representam, assim, uma jornada repleta de diversos episódios que lembram a própria jornada dos cristãos na Terra e rumo ao paraíso. 18 Gonçalves (2015), levando em consideração a perspectiva monolíngue, analisa os contos “O sobrinho do mago”, “O Leão, a Feiticeira e o guarda-roupa” e “A última batalha”, três dos livros que constituem a obra em questão, a partir de uma perspectiva da Bíblia Sagrada enquanto livro literário. A autora estuda aspectos intertextuais das histórias relacionados à obra cristã, como o mito da criação do mundo, o sacrifício de Aslam – morte e ressurreição de Jesus Cristo – e o apocalipse, que representa a batalha final dos cristãos antes de alcançar uma nova e definitiva pátria. O Leão destaca-se como o próprio cordeiro imolado para a salvação dos seus, que se entrega voluntariamente a fim de impedir a queda de seus amigos, e ressuscita, como o Cristo descrito na Bíblia, provando que transcende mesmo a morte. Em sua pesquisa, a autora utiliza concepções de Bakhtin (a partir dos estudos de Kristeva, 1974), para quem o texto se constrói sempre a partir da absorção e da transformação de outros textos, como um “mosaico de citações”. Outro aspecto intertextual com o livro base do cristianismo é o poder criador da palavra: o momento de fala é também o momento de realização e consumação de uma ação, tanto na Bíblia como nas “Crônicas de Nárnia” (GUTIÉRREZ BAUTISTA, 2011). Segundo o autor, Lewis mostra o nascimento de um novo mundo (Nárnia) não como uma alegoria da criação de nossa própria terra, mas como seu próprio modo de perceber e sentir a criação de um mundo estritamente guiado pelo amor. Dessa forma, o amor configura-se o elemento mais importante que se pode relacionar aos aspectos intertextuais entre as Crônicas e o livro sagrado dos cristãos. O autor mostra que, a partir de acontecimentos reais (Segunda Guerra Mundial), Lewis leva também o leitor a um caminho de reflexão, misturando realidade e ficção de modo que não se excluam, mas coexistam. Mesmo depois de episódios como os das guerras mundiais, que minam a esperança e qualquer sentido de existência diante do comportamento cruel do ser humano, é preciso redescobrir a beleza da vida, e nisso consiste a chamada visão poética do mundo, do mundo criado por Lewis, Nárnia. Salinas Araya (1999) analisa as Crônicas a partir da figura do Leão, Aslam, o qual representa uma oportunidade de experiência com algo que transcende a vida terrena, o divino. Este constitui um aspecto importante da doutrina cristã pregada na Bíblia: acreditar que existe algo além do que se oferece na vida terrena e que provoca um encontro com a própria essência do ser. De acordo com o autor, encontrar-se com Aslam significa ter uma experiência com o divino e descobrir-se vivo. Aslam é justo; aparece no momento em que é necessário, agindo nas pessoas como quem conhece exatamente o que elas precisam para entender a própria experiência da vida. Além disso, o Leão apresenta-se como figura que transcende até mesmo o tempo. Outro aspecto assinalado pelo autor consiste em que o leitor toma 19 conhecimento da própria história do Leão conforme contam-se as aventuras das demais personagens: seu modo de agir revela seu caráter. Aslam é o responsável por propiciar àqueles que chama uma experiência sobrenatural que os transforma profundamente, de maneira positiva. Além de configurar-se como espaço para uma experiência com o divino, Nárnia também se mostra como lugar do sagrado. De acordo com Lopes (2009), Nárnia torna-se o espaço seguro para as quatro crianças enviadas a Londres durante a Segunda Guerra Mundial (Lúcia, Edmundo, Pedro e Susana) mas, para além disso, torna-se um lugar sagrado onde as crianças crescem conhecendo-se a si mesmas. Aslam representa o ser supremo que acolhe, ao lado de quem todos desejam estar e de quem as crianças sentem-se em paz. Nárnia é um espaço de realização e de transcendência – quem conhece o sagrado não quer se afastar dele: o mundo profano parece uma sombra, um sonho distante, como narrado diversas vezes nos livros. Marques (2011) estuda outro aspecto das Crônicas, o fato de poderem ser lidas como um conto de fadas. A autora analisa o livro “O Leão, a feiticeira e o guarda-roupa” como uma história de fadas considerando três elementos fundamentais: o narrador, a narrativa e o leitor. Segundo a autora, nas normas que regem o conto, o maravilhoso é normal, é esperado. Nos contos, adapta-se uma realidade de acordo com o desejo de mundo das pessoas, traço que seria o principal desse tipo de narrativa. O narrador do livro tem conhecimento de tudo e, por vezes, até do próprio leitor, aproximando-o ou distanciando-o do fato narrado. Um dos elementos que permite a leitura das Crônicas como uma história de fadas é a existência de um outro mundo – Nárnia. Embora a existência dessa terra seja questionada – cause estranheza (o que não ocorre nos contos de fadas dado que o extraordinário já é esperado), seres que não existem em nossa realidade têm existência real em Nárnia. Há também as noções de consolo, escape e reparação, próprias dos contos de fada, presentes nas Crônicas. Greggersen (2006) analisa nas Crônicas aspectos que denotam a sabedoria das personagens femininas na obra. A autora relata alguns episódios da obra relacionados às figuras femininas humanas e animais que aparecem nos livros: Lúcia, Susana, Aravis, Polly, Jill e a Sra. Castor. Essas personagens são responsáveis por conduzir as outras nas diversas missões que Aslam lhes confere: elas mostram-se luz, expressão de sabedoria e de prudência. Lúcia, por exemplo, é a primeira que adentra Nárnia (no primeiro livro publicado da série); é a escolhida pelo Leão para ter o contato inicial com a terra desconhecida e guiar seus irmãos até lá. A autora lembra que a figura feminina, desde mitos mais antigos, relaciona-se à sabedoria, à capacidade de decidir e de julgar com justiça, como no caso da deusa grega 20 Atenas, filha de Zeus. Em suma, a busca pela sabedoria, pela verdade marca a trajetória do ser humano – e esse seria um dos aspectos tratados na obra: seres errantes que buscam seu caminho entre idas e vindas de Nárnia. Ademais de aspectos relacionados ao cristianismo, à mitologia e à sabedoria, outra discussão é trazida por Galuppo e Pereira do Lago (2009), a questão da representação do direito e da moral em “As Crônicas de Nárnia: O Leão, a feiticeira e o guarda-roupa”. De acordo com os autores, diversas obras literárias se valem de seu enredo para ensinar noções de moral e direito, ambas ligadas à conduta humana; a primeira relacionada a certos grupos e suas ideologias e a segunda fundamentada no princípio de garantir direitos e deveres ao cidadão visando à manutenção de uma vida justa em sociedade. A noção de justiça mostra-se basilar no livro, dado que rege o acontecimento mais relevante da trama: o sacrifício de Aslam. Edmundo, irmão de Lúcia, trai os irmãos ao aliar-se à Feiticeira Branca. De acordo com as leis de Nárnia, mundo que tem existência própria considerando-se as Crônicas como uma história de fantasia, Jadis, a feiticeira, tinha direito ao sangue de todo aquele que cometesse um ato de traição em Nárnia. A Feiticeira menciona, inclusive, uma pedra que conteria gravada a lei, de conhecimento de todos os habitantes daquela terra. O senhor de Nárnia, Aslam, protegendo o garoto, negocia com Jadis seu sacrifício em troca da liberdade de Edmundo. Faz-se o acordo, e Aslam é morto de maneira humilhante. O ponto crucial é que se mantém o poder da lei. Caso a ordem não fosse cumprida, a sociedade perderia seus princípios de direitos e deveres e, na terra em questão, causaria a destruição do lugar por meio de água e de fogo. Aslam, entretanto, ressuscita no dia seguinte, devido à outra lei que rege o lugar. De acordo com esse princípio, se um inocente se doasse em troca de um traidor, não estaria sujeito à morte. Como Jadis desconhecia esse preceito, acreditou ter alcançado seu objetivo de derrotar Aslam. Sua falta de conhecimento levou-a a fazer um acordo que não lhe trouxe, de fato, benefícios. Todos os trabalhos citados se debruçam sobre determinados aspectos de “As Crônicas de Nárnia”. Nesse sentido, como forma de aportar um novo olhar acerca da obra selecionada e, mais especificamente, a respeito do feminino, propomos a realização desta pesquisa. A organização desta dissertação de mestrado materializa-se da seguinte forma: no primeiro capítulo, apresentamos a fundamentação teórica de nosso trabalho. Expomos algumas considerações sobre Tradução, tradução de Literatura, Linguística de Corpus e a relação entre corpus, Literatura e Tradução. No segundo capítulo, descrevemos os passos metodológicos deste estudo. No terceiro, procedemos à análise dos dados selecionados, dividida em duas partes: em um primeiro momento, realizamos uma análise referente à 21 variação lexical no TP e nos TCs; posteriormente, analisamos três palavras-chave, as quais se relacionam ao feminino na narrativa. No quarto capítulo, expomos as principais conclusões a que chegamos a partir da análise dos dados. Por fim, apresentamos as referências bibliográficas que possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa. Passamos, então, ao primeiro capítulo desta dissertação, o qual apresenta o arcabouço teórico que fundamenta nosso estudo. 22 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Nesta seção, abordamos algumas conceituações a respeito da Tradução e da Linguística de Corpus. Na subseção 1.1, tratamos dos aspectos gerais relacionados à Tradução, a partir dos estudos de Arrojo (2002, 2003), Bellos (2011), Lefevere (1992) e Paz (1971). Nas subseções 1.1.1 e 1.1.2, apresentamos algumas reflexões acerca da tradução de Literatura e da tradução de Literatura Infantojuvenil, fundamentando-nos nos trabalhos de Coelho (2001), Lambert (2011) e Lefevere (2007). Na subseção 1.2, abordamos conceitos referentes à Linguística de Corpus, a partir dos pressupostos teóricos de Berber Sardinha (2000, 2004). Por fim, em 1.3, tratamos da relação entre corpus, Literatura e Tradução, de acordo com os estudos de Baker (1993, 1995, 1996). Procedemos, em seguida, à apresentação dos conceitos que fazem referência à Tradução. 1.1 A Tradução Pensar sobre o processo de Tradução implica olhar para os textos que são produtos desta prática como quem analisa uma descoberta. Sem lamentar algo que se tenha “perdido”, o leitor é convidado a apreciar as novas palavras às quais têm acesso por meio do trabalho do tradutor, considerando-as, como Neruda o faz, algo valiosíssimo: […]. Mas, dos bárbaros, caíam de suas botas, dos elmos, das ferraduras, como pedrinhas, as palavras luminosas que ficaram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram para si o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo para si e nos deixaram tudo... Deixaram- nos as palavras.2 (NERUDA, 1984, p. 24. Tradução nossa.). Neruda fala sobre a preciosidade que os colonizadores deixaram nas terras que exploraram: o idioma. A língua, por permitir ao homem expressar-se, é comparada ao ouro pelo poeta, àquilo que tem maior valor. O poeta termina o texto refletindo que os “bárbaros” levaram tudo o que havia em sua terra, mas que também deixaram tudo porque as palavras permaneceram ali. 2 […]. Pero a los bárbaros se les caían de las botas, de las barbas, de los yelmos, de las herraduras, como piedrecitas, las palabras luminosas que se quedaron aquí resplandecientes... el idioma. Salimos perdiendo... Salimos ganando... Se llevaron el oro y nos dejaron el oro... Se lo llevaron todo y nos dejaron todo... Nos dejaron las palabras (NERUDA, 1984, p. 24). 23 Refletindo, em um primeiro momento, sobre a palavra, podemos observar que é por meio dela que o homem organiza sua vida. E, para além desse fato, o homem utiliza a palavra para criar. E para recriar. Nesse contexto de criação e recriação, propomos neste capítulo algumas reflexões acerca da tradução de textos e da figura do tradutor, as quais embasam nossa pesquisa. Uma tradução é sempre uma recriação. O texto recriado resulta de um processo que envolve pelo menos dois textos, duas línguas diferentes, duas culturas e um tradutor/leitor. Todos esses elementos estão inseridos em um momento histórico e político de determinada sociedade. Assim, para compreender a atividade tradutória, é preciso considerar concepções de texto, de cultura, de história e política, bem como a formação do tradutor. O primeiro aspecto que podemos pensar é a noção de originalidade de um texto. Um texto não pode ser entendido como completamente original, como proprietário de uma verdade até então desconhecida, porque a própria linguagem a que temos acesso já se configura como uma tradução: Todo texto é único e, ao mesmo tempo, é a tradução de outro texto. Nenhum texto é totalmente original porque a própria linguagem, em sua essência, já é uma tradução: primeiro, do mundo não verbal; depois, porque cada frase e cada signo é a tradução de outro signo e de outra frase. Entretanto, é possível inverter essa reflexão sem que se perca sua validade: todos os textos são originais porque cada tradução é diferente. Cada tradução é, até certo ponto, uma invenção, constituindo-se, assim, um texto único.3 (PAZ, 1971, p. 9. Tradução nossa). Como destaca Paz (1971), um texto pode ser considerado original no aspecto de que se trata de uma criação única, que difere das demais criações, mas não no sentido de que é a fonte primária de determinado assunto. O autor reflete ainda sobre outra ideia importante: a de que todo texto, ao mesmo tempo em que é singular, também representa uma tradução, considerando desde aspectos cognitivos que envolvem a escrita até o ponto em que as palavras são escritas. Assim, podemos considerar a tradução um novo texto, que não se subordina a outro, mas o recria. Portanto, esse novo texto deve ser analisado levando-se em consideração esse fato. 3 Cada texto es único y, simultáneamente, es la traducción de otro texto. Ningún texto es enteramente original porque el lenguaje mismo, en su esencia, es ya una traducción: primero, del mundo no-verbal y, después, porque cada signo y cada frase es la traducción de otro signo y de otra frase. Pero eso razonamiento puede invertirse sin perder validez: todos los textos son originales porque cada traducción es distinta. Cada traducción es, hasta cierto punto, una invención y así constituye un texto único (PAZ, 1971, p. 9). 24 Essa reflexão mostra-se importante para pensarmos esse novo produto, o texto de chegada (TC), enquanto um lugar de comunicação e de interação. Como espaço de manifestações linguísticas, culturais e ideológicas, não se trata de um produto subalterno em determinada cultura – pensamento ainda arraigado em muitas sociedades. Tampouco é possível considerar uma tradução como inferior em relação aos textos escritos na língua de partida (LP) porque o ser humano está rodeado de traduções, as quais fazem parte de seu cotidiano, mesmo que não as perceba. Neste trabalho, pensamos o texto traduzido a partir de suas especificidades, interessando-nos analisar como os processos de criação ocorrem nos TCs. As implicações de conceber um texto como “original” voltam-se para questões como proteção e fidelidade. Quando se entende a tradução como um texto inferior, estimula-se a leitura do texto de partida (TP) por acreditar-se que ele contém um sentido a ser decifrado. Ler o TC não permitiria ao leitor, portanto, chegar aos mesmos resultados que ele alcançaria com a leitura do TP (BELLOS, 2011, p. 43). O que esse tipo de postura deixa entrever é o fato de que a tradução presta um serviço necessário, mas que não seria eficaz como o texto do qual parte, o qual deveria ser protegido, respeitado e exaltado. A “fidelidade” ao TP é outro ponto importante ao se considerar uma tradução. Arrojo (2002) defende o ato de traduzir como uma atividade produtora de significados, posto que não é possível proteger o “original” de modificações. A autora apresenta concepções de tradução que, no passado, pregavam que o tradutor devia ser fiel ao TP, tanto no plano da forma como no do conteúdo. Segundo Arrojo (2002), considerar, como Catford (1980), a tradução como substituição do material linguístico do TP para o material linguístico do TC implica pensar que todas as línguas oferecem léxico suficiente para “dizer a mesma coisa”. A tradução funcionaria, portanto, como um processo de troca. Outro aspecto frisado pela autora é o de que os sentidos que aparecem no TP são interpretados por meio da leitura do tradutor. Assim, a visão de tradução apresentada por Nida (1975) não abrange as complexidades desse processo. O teórico compara as palavras de uma sentença aos vagões de carga de um trem. Trata-se de um trajeto em que a mensagem do TP precisa chegar à LC, não importando a disposição das palavras e das orações, mas que o conteúdo seja transportado. De acordo com Arrojo (2002), esse tipo de “fidelidade” ao TP implica considerar que as palavras carregam significados unívocos, que apresentam apenas uma acepção de sentido. Ao tradutor, cabe a tarefa de “decifrar” o TP, fazendo com que sua mensagem transpareça no TC, de modo “fiel” à proposta do “original”. Essas concepções mostradas pela autora têm em comum o fato de privilegiarem o TP, desconsiderando os 25 elementos que citamos anteriormente como atuantes no processo de tradução: os textos envolvidos, as línguas e culturas desses textos, os contextos históricos, sociais e políticos e a própria figura do tradutor. Da mesma forma que os textos são produzidos em um determinado tempo e espaço, também os tradutores, ao realizarem uma tradução, estão inseridos em um contexto, o qual influencia seu modo de traduzir. Mostra-se importante, então, considerar alguns aspectos em relação a este profissional. Segundo Arrojo (2003), Toda tradução, por mais simples e breve que seja, trai sua procedência, revela as opções, as circunstâncias, o tempo e a história de seu realizador. Toda tradução, por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não, meramente, uma compreensão "neutra" e desinteressada ou um resgate comprovadamente "correto" ou "incorreto" dos significados supostamente estáveis do texto de partida. (ARROJO, 2003, p. 68). Como salienta a autora, o tradutor de um texto é um sujeito interpretante, que, ao entrar em contato com o TP, realiza uma leitura deste. A partir desta leitura é que realizará seu trabalho, representando na tradução sua própria interpretação desse mesmo autor e de seu universo. Esta interpretação, longe de configurar-se uma “violação” do TP, mostra-se inerente ao processo de tradução, posto que nossas línguas naturais estão imersas em contextos histórico-culturais diferentes e as palavras não carregam significados fixos e unívocos. Podemos pensar, então, que, quanto mais conhecimentos o tradutor/leitor tiver a respeito das culturas e das línguas envolvidas no processo de tradução, sobre o autor e sobre a obra que pretende traduzir, mais próxima sua tradução poderá estar do público leitor da obra traduzida. Isto porque poderá ler o TP levando em consideração suas condições de produção e também os propósitos a que serve. De acordo com Lefevere (1992), todos esses fatores contribuem para as decisões que o tradutor toma ao traduzir. Portanto, não é possível isolá-lo e a seu trabalho, como se fossem independentes e descontextualizados. Na seção seguinte, abordaremos aspectos concernentes à tradução de obras literárias para que possamos compreender algumas especificidades desse processo. 1.1.1 A tradução de Literatura Todas as traduções são regidas por princípios, que, como refletimos anteriormente, abarcam não somente processos linguísticos, mas questões do entorno social e cultural. 26 Também a tradução de literatura pode ser analisada levando em consideração essa reflexão. Lambert (2011) argumenta que não cabe pensar a tradução unicamente no espaço da língua ou da literatura, uma vez que essa atividade não passa apenas por esses meios. Trata-se de uma atividade cultural, política, social, histórica, religiosa. Esses aspectos constituem também as fronteiras que muitas vezes as traduções enfrentam para serem aceitas em determinada sociedade. Lefevere (2007) mostra que a tradução de literatura está condicionada a diversos fatores. O autor apresenta o condicionamento do tradutor ao sistema de mecenato e à poética no que tange à tradução de obras literárias. O primeiro representa o poder que controla aquilo que será publicado, agindo na escolha da forma e do conteúdo que irá circular em determinada cultura por meio dos textos. Fica claro, portanto, que existe uma rede de interesses que marcam a aceitação da publicação de obras traduzidas. Esses interesses podem ser políticos, econômicos ou ideológicos. Em relação à poética, o tradutor precisa estar atento aos recursos literários utilizados, aos gêneros que circulam na LC, aos temas que são trabalhados bem como à função que a literatura desempenha no sistema social da cultura da LC (LEFEVERE, 2007, p. 51). Essa poética é que determina quais obras de literatura são aceitáveis. Segundo o autor, a tradução é responsável por modificações nos sistemas poéticos. O controle em relação ao que entra, então, em uma cultura, passa também por essa noção de que pode haver uma “contaminação” da cultura local. As influências estrangeiras podem ser perigosas à medida que trazem ideologias diferentes daquela da cultura de chegada. Logo, o mecenato pode atuar na tentativa de proteger os diversos sistemas que regem uma sociedade, e impedir a publicação e a circulação de obras. Conhecidos os fatores que favorecem ou restringem as publicações de traduções literárias, podemos refletir também sobre o modo como trabalham os tradutores desse tipo de literatura inseridos em determinada poética. Conforme explica Lefevere (2007), tanto escritores como tradutores utilizam diferentes estratégias para provocar determinados efeitos de sentido no leitor. Por ser, então, antes de tudo, um leitor, o tradutor interpreta o TP, que despertará nele uma gama de significações; são esses sentidos que ele representará no TC. É interessante observar que ao utilizar estratégias para produzir no TC os efeitos de sentido provocados pelo TP o tradutor pode, de certa forma, driblar certos conceitos e restrições impostos pela poética de sua sociedade, mas ele não tem como sanar as diferenças existentes entre a língua do TP e a língua para a qual traduz (LEFEVERE, 2007). Assim, algumas estratégias sempre revelarão as diferenças entre os textos, pois o tradutor pode optar 27 por trabalhar aspectos formais em que o TP foi escrito, especialmente no caso de poemas; pode optar por privilegiar relações semânticas, entre outros. O fato é que essas diferenças não devem ser utilizadas como uma arma contra o tradutor e seu trabalho, pois retratam uma forma de reescrita em relação a qual ele precisou tomar uma decisão. Observadas as complexidades do processo tradutório, Lefevere (2007) aponta um caminho para que se possam discutir as questões de tradução. Abandonando o conceito de prescrição imposto pelas poéticas, todas as restrições e tudo aquilo que o tradutor “precisa” fazer para que seu texto alcance o mesmo objetivo que o TP, é possível pensar o TC no âmbito dos estudo literários, de acordo com os processos que normalmente seguem, com as características que são frequentes em TCs. A essas características ele chama estratégias, e o estudo analítico delas permite entender, de fato, o que ocorre em uma tradução. 1.1.2 A tradução de Literatura Infantojuvenil A tradução de literatura infantojuvenil, por sua vez, mostra-se um pouco mais complexa que a tradução de literatura de forma geral. Esse tipo de reescrita ocupou, durante anos, uma posição de inferioridade em relação à tradução de outros tipos de texto, visto que a própria produção de literatura infantojuvenil esteve marginalizada nas sociedades. Mesmo a definição do que seria uma literatura para crianças e jovens mostra-se não resolvida. Encontram-se nesta categoria os tipos de texto que se escrevem para o público-alvo crianças e jovens – entretanto, quem escreve são adultos. Os temas tratados nesses livros cumprem duas funções, a de entreter a criança e a de atuar em seu processo formativo. Coelho (1991) aponta como razão para que este fosse considerado um tipo de literatura inferior o fato de associar-se literatura infantil a livros repletos de imagens, rimas, cujo valor literário era sobrepujado pela distração e pela moral que poderiam fornecer. Também O’Connel (2006, p. 17 e 18) considera literatura infantil aquela produzida para o público jovem, tomando este como o público-alvo, o que não significa que efetivamente este grupo leia esta literatura nem que ela esteja restrita somente a ele. A autora elenca alguns aspectos para reflexão sobre esse gênero. Primeiramente, o fato de que se escreve este tipo de texto visando a dois públicos: as crianças e adolescentes e os responsáveis por fazer com que efetivamente essa literatura possa circular em sociedade: pais, críticos, editores. O primeiro deles deve ser atraído pelas histórias, pelos temas, pela forma de escrita. O último mostra-se importante devido ao fato de decidir aquilo que será publicado e terá permissão para que as crianças leiam. 28 O segundo aspecto que a autora cita em relação às especificidades da literatura infantojuvenil são os dois tipos de leitura que se podem fazer desse tipo de texto. Uma delas está no âmbito mais denotativo, geralmente realizada por crianças, em que se toma todo o universo da narrativa de modo criativo. A criança entra no universo maravilhoso narrado e toma de modo literal o que lê, sem realizar interpretações. O outro modo de se ler essa narrativa refere-se à leitura interpretativa normalmente realizada por adultos ao terem acesso a essa literatura. Este leitor presta atenção aos símbolos, às metáforas, tomando muitas vezes o universo maravilhoso apresentado como uma alegoria. Ademais dessas características, destacam-se duas funções normalmente atribuídas à literatura infantojuvenil: propiciar experiência literária e educar. Àquela incluem-se questões de criação, recriação, entretenimento da criança. Esta refere-se às questões de socialização que esses livros ensinam: ao modo de aprender a respeitar as pessoas com quem se convive em sociedade e, especialmente, ao ensino de princípios. Por meio de situações que acontecem com as personagens principais das histórias, as crianças observam que, se tomarem determinada atitude, algo ruim acontecerá com elas, tal como ocorreu com a personagem do livro. Isso acontece por meio dos contos de fada, das fábulas, entre outros gêneros textuais que sempre apresentam uma moral. No próximo tópico, apresentamos algumas considerações sobre a Linguística de Corpus, o conceito de corpus, o tipo de corpora utilizado neste estudo, os Estudos da Tradução Baseados em Corpus e os aspectos concernentes à tradução do texto literário. 1.2 A Linguística de Corpus Nesta seção, tratamos de alguns conceitos referentes ao estatuto da Linguística de Corpus enquanto disciplina dedicada ao estudo da linguagem. Podemos dizer que os corpora já existiam antes da revolução tecnológica propiciada pelo computador, uma vez que desde a antiguidade há relatos de elaboração de conjunto de textos para estudos; Alexandre, o Grande, por exemplo, criou o corpus Helenístico e, nas Idades Antiga e Média, produziram-se corpus com citações bíblicas. Uma das primeiras pessoas a utilizar corpus para estudo da língua foi o educador Thorndike, no século XX, que construiu um corpus com mais de 18 milhões de palavras, coletando, organizando e analisando os dados manualmente. Cabe dizer que grande parte das primeiras pesquisas com corpora voltavam-se para o ensino de línguas (BERBER SARDINHA, 2004). 29 Nos anos de 1950, no entanto, a disciplina começa a perder espaço para as teorias racionalistas da linguagem. Em oposição à Linguística de Corpus, que trabalha com a linguagem enquanto sistema de probabilidades, por meio de um método empírico – priorizando dados decorrentes da observação da linguagem –, surge a Linguística Gerativa, que trata a linguagem como um sistema de possibilidades, por meio de um método introspectivo. Além da nova teoria, o fato de os corpora linguísticos serem compilados, armazenados e observados de modo manual, exigindo o envolvimento de um grande número de pessoas na atividade, faz com que as pesquisas com corpus sejam vistas com desconfiança. Esse quadro muda mais tarde, em 1964, quando a disciplina ganha novo impulso com o lançamento do primeiro corpus linguístico eletrônico, o Brown University Standard corpus of Present-day American English, contendo um milhão de palavras – uma grande quantidade de vocábulos, levando em consideração o fato de que os dados foram transferidos para o computador por meio de cartões perfurados. Podemos dizer que houve um amadurecimento da disciplina por conta do advento do computador. Com o uso dos PCs e o desenvolvimento de programas específicos para o armazenamento e extração de dados de corpora, vários estudos puderam ser efetuados em grandes quantidades de textos; além disso, as ferramentas eletrônicas foram importantes para conferir maior confiabilidade às pesquisas, antes vistas como altamente susceptíveis a erros. Como mencionado anteriormente, com o instrumental disponibilizado pela Linguística de Corpus, os dados linguísticos passaram a ser observados por meio de diferentes vieses. Berber Sardinha, então, define a Linguística de Corpus unindo a finalidade da disciplina de estudar a linguagem por um método empírico ao fato de os corpora serem manipulados por ferramentas eletrônicas: A Linguística de Corpus ocupa-se da coleta e da exploração de corpora, ou conjunto de dados linguísticos textuais coletados criteriosamente, com o propósito de servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. Como tal, dedica-se à exploração da linguagem por meio de evidências empíricas, extraídas por meio de computador. (BERBER SARDINHA, 2000, p. 3). Atualmente, a partir das pesquisas com corpora, organizam-se materiais didáticos, programas que empregam o reconhecimento de voz, e também dicionários, já que os corpora são representativos da língua em uso e possibilitam trabalhar com instâncias reais de cada idioma. Também disciplinas voltadas ao estudo da Tradução podem fazer uso de corpora em suas investigações, como veremos mais adiante. 30 1. 2. 1 Conceituação de corpus Inicialmente, o conceito de corpus fazia referência a um conjunto de dados linguísticos escritos, coletados com a intenção de estudo da linguagem, sendo utilizados também para o ensino de línguas. Atualmente, o conceito passou a incorporar novos aspectos, como o fato de os dados serem coletados e analisados por meio de ferramentas eletrônicas, como o programa de computador WordSmith Tools (WST) (empregado nesta pesquisa), o que permite maior controle em relação ao armazenamento e posterior observação dos dados. Uma definição de corpus considerada abrangente por Berber Sardinha é a de Sánchez (apud Berber Sardinha, 2004, p.18): um conjunto de dados linguísticos (pertencentes ao uso oral ou escrito da língua, ou a ambos), sistematizados segundo determinados critérios, suficientemente extensos em amplitude e profundidade, de maneira que sejam representativos da totalidade do uso linguístico ou de algum de seus âmbitos, dispostos de tal modo que possam ser processados por computador, com a finalidade de propiciar resultados vários e úteis para a descrição e análise. (SÁNCHEZ, 1995, p. 8-9). Segundo Berber Sardinha (2004), há seis características importantes para que um conjunto de dados linguísticos seja classificado como um corpus adequado para análise:  A origem: os dados devem ser autênticos;  O propósito: o corpus deve ter a finalidade de ser um objeto de estudo linguístico;  A composição: o conteúdo do corpus deve ser criteriosamente escolhido;  A formatação: os dados do corpus devem ser legíveis por computador;  A representatividade: o corpus deve ser representativo de uma língua ou variedade;  A extensão: o corpus deve ser vasto para ser representativo. Com relação aos tipos de corpora utilizados nos Estudos da Tradução baseados em corpus, Baker (1995, p. 230) cita três tipos principais de corpus que podem ser utilizados em pesquisas na área de Tradução:  corpus paralelo: composto de textos originais (TOs) em uma determinada língua (língua de origem) e suas respectivas traduções em outra língua (língua de tradução). De acordo com Camargo (2007, p.18), o corpus paralelo seria o mais indicado para investigações com textos literários, pois com seu uso é possível observar traduções de 31 um mesmo texto em línguas diferentes, características que tradutores apresentam, além da pesquisa de traduções já consagradas de determinados itens lexicais ou estruturas sintáticas;  corpus multilíngue: consiste em um conjunto de dois ou mais corpora monolíngues, sendo cada corpus em uma língua diferente; e  corpus comparável: consiste em dois conjuntos de textos em uma mesma língua: um composto de TOs e outro de TTs para a língua em questão. No caso de nosso estudo, compilamos um corpus paralelo, composto de um TP em língua inglesa e suas respectivas traduções para as línguas portuguesa e espanhola, que nos permitiu contrastar algumas características dos TCs em relação ao TP, observando traços específicos. 1.2 Corpus, Literatura e Tradução Estudiosos da Tradução passaram a fazer uso de corpus computadorizado em seus trabalhos a partir da década de noventa. O uso de corpora eletrônicos permite ao tradutor observações mais criteriosas dos TPs e TCs, da linguagem empregada e do uso do léxico. O acesso a grandes corpora oferece, na verdade, uma oportunidade de analisar traduções tendo como subsídios referenciais os dados e informações advindos de corpus; assim, pode observar uma diversidade de TCs, contando com a oportunidade de acessar exemplos autênticos de dados. Na atualidade, o computador não gera traduções satisfatórias de um texto literário ou poético, pois a tradução não é apenas um processo de emprego de sinônimos de uma língua para outra. No entanto, a máquina tornou-se fundamental para os Estudos da Tradução, pois é um método eficiente e confiável para coletar dados, além de fazê- lo com rapidez, o que não ocorria antigamente com a coleta e armazenamento manual de corpora. Para ter acesso aos corpora eletrônicos, um dos programas mais utilizados é o WST, criado por Mike Scott, que auxilia na descrição da linguagem da tradução a partir de um ou mais corpora de textos em formato eletrônico. Dentre as várias ferramentas que o programa disponibiliza, destacamos três, a WordList, a KeyWords, e a Concord, utilizadas em nosso estudo. Na primeira das ferramentas, a WordList, são extraídas listas de palavras individuais por ordem de frequência, listas de palavras individuais por ordem alfabética e listas de estatísticas. As listas de estatísticas são extraídas com base na razão forma/item 32 (FI: type/token ratio) e na razão forma/item padronizada (FI: standardised type/token ratio), na qual cada forma é contada como um vocábulo, mesmo que ele ocorra diversas vezes, e os itens constam de uma lista de frequência com valores numéricos. A razão FI resulta da divisão do número de formas do corpus pelo valor obtido da divisão do número de itens por cem, criando uma lista de estatísticas. Quanto mais alto for o valor da porcentagem obtido pela divisão, maior a diversidade lexical que o texto possui. Quando, pelo contrário, o valor da porcentagem é baixo, pode ser um indicativo de que há muitas repetições, por exemplo, apontando para um léxico menos variado em determinado corpus. A diferença entre a razão FI padronizada e a lista de estatísticas simples é que a primeira apresenta os cálculos em intervalos regulares, ou seja, com partes do texto, em vez de realizar cálculos com todas as palavras de uma vez. É mais empregada para comparar textos de tamanhos diferentes, já que a outra lista é sensível à extensão do texto e o caracteriza como mais rico em léxico, por exemplo, se a porcentagem obtida for alta. No entanto, textos maiores tendem a ter mais repetições que textos menores, e a razão FI padronizada permite fazer o cálculo de razão levando em consideração o fato de os textos terem extensões diferentes. Após o cálculo a cada mil palavras do texto, é feita uma média aritmética com a soma deles, o que permite chegar à razão padronizada. Outra ferramenta oferecida pelo programa é a KeyWords, uma seleção dos itens/vocábulos com maior relevância dentro do texto, não sendo esses, necessariamente, os vocábulos com maior índice de ocorrência. Para se compilar uma lista de palavras-chave, é preciso contrastar uma lista de palavras de um corpus, a WordList, com uma lista de palavras de um corpus de referência, ambas codificadas como listas de palavras por ordem de frequência. A comparação das duas listas é feita através de “uma prova estatística selecionada pelo usuário (qui-quadrado ou log-likelihood)” (BERBER SARDINHA, 2004, p. 97), e o resultado que se obtém dessa comparação é chamado de keyness, ou chavicidade. As palavras- chave são assim chamadas porque apresentam um índice de ocorrência significativa maior no corpus de estudo do que no corpus de referência, segundo a comparação estatística. A terceira ferramenta utilizada em nosso estudo é a Concord, que gera concordâncias ou listagens das ocorrências de uma palavra específica, listas de colocados e listas de agrupamentos lexicais, apresentando o seu cotexto (texto ao redor da palavra de busca). É por meio desse instrumental que Baker (1993) defende o uso de corpora de TPs e de TCs nos Estudos da Tradução, uma vez que o acesso aos conjuntos desses textos representa para os pesquisadores uma oportunidade de investigação e observação da natureza do TC 33 como tal. De acordo com a autora, textos traduzidos devem ser tratados como eventos comunicativos genuínos, e dessa forma, ser estudados com o mesmo valor atribuído a outros eventos linguísticos. Grandes conjuntos de corpus permitiriam observar o funcionamento do processo tradutório no sentido de perceber normas que o regem, restrições que são impostas a ele, e características próprias que TCs partilham, por exemplo. Além disso, e como ponto principal, o uso de corpora permite aproximar-se do processo de tradução a partir da observação (que pode ser feita por meio do uso de ferramentas eletrônicas específicas, como as oferecidas pelo WST), de modo a analisar de que forma esse processo é realizado. De acordo com Baker (1996, p. 180-184), existem algumas características frequentes em TCs que não ocorrem em TPs, como a simplificação, explicitação e normalização. Na simplificação, a linguagem empregada na tradução tenderia a tornar-se mais simples e de mais fácil compreensão, também é comum encontrarmos mudança de pontuação e emprego de um vocabulário menos variado nos TCs. Alguns parágrafos nos TCs podem ser reorganizados e expressões linguísticas próprias da cultura dos TPs podem ser desconstruídas, por exemplo. Com relação à explicitação, a linguagem empregada na tradução torna-se mais clara e explícita, e pode ser observada nos TCs a partir de uma maior extensão desses, do emprego exagerado de vocabulário e de conjunções coordenativas explicativas. Por fim, a normalização (ou conservacionismo), verifica-se na tendência em utilizar na tradução características da língua materna, como clichês, por exemplo. A continuação, no capítulo 2, passamos à metodologia de desenvolvimento de nosso estudo. 34 2 METODOLOGIA Nesta seção, apresentamos os procedimentos metodológicos empregados no desenvolvimento desta pesquisa. Na primeira parte, descrevemos a forma de compilação do corpus e de extração dos dados. Em seguida, o procedimento de análise do material selecionado, por meio do arcabouço teórico-metodológico da Linguística de Corpus e dos Estudos da Tradução Baseados em Corpus. 2.1 Compilação do corpus e extração dos dados O primeiro passo para a realização deste estudo consistiu na seleção do livro para análise, The Chronicles of Narnia: the Silver Chair, e suas traduções para as língua portuguesa (“As Crônicas de Nárnia: a cadeira de prata”) e espanhola (Las Crónicas de Narnia: la silla de plata). Selecionamos este volume, entre os sete que compõem a obra, devido ao fato de trazer como personagens centrais figuras femininas, uma vez que tencionamos estudar os vocábulos relacionados à representação destas nas respectivas traduções. Em seguida, compilamos um corpus paralelo composto pelo TP em língua inglesa e pelos TCs em língua portuguesa e espanhola, conforme exposto na Tabela 1, a seguir: Tabela 1. Quantidade de palavras no corpus de estudo. Corpus de estudo Tamanho (quantidade de palavras) The Chronicles of Narnia: the Silver Chair CN-Ing 51.996 “As Crônicas de Nárnia: a cadeira de prata” CN-Port 41.318 Las Crónicas de Narnia: la silla de plata CN-Esp 53.276 Fonte: elaborada pela autora com base nos dados gerados pelo WST. Por meio da Tabela 1, é possível observar que o número de palavras que compõe os textos do corpus diferem significativamente. Em CN-port, por exemplo, a quantidade de vocábulos é menor, em relação ao TP; enquanto o texto em língua inglesa apresenta 51.996 vocábulos, o texto em língua portuguesa apresenta 41.318 – uma diferença de mais de 10.000 palavras. Já o texto em língua espanhola apresenta mais palavras que o TP: 53.276 – uma quantidade de 1.280 itens a mais. 35 Uma vez compilado o corpus, empregamos o software WST versão 6.0 e os utilitários WordList, Keywords e Concord como ferramenta de extração de dados do corpus e de análise, inserindo no programa os livros CN-Ing, CN-Port e CN-Esp no formato txt. (formato legível pelo programa), depois de convertê-los do formato em que estavam disponíveis na internet, *.pdf. A figura, a seguir, ilustra a primeira tela desse programa computacional: Fonte: software WST. No canto superior esquerdo, encontra-se o utilitário Concord, responsável pela extração, a partir de vocábulos pré-selecionados, da listagem de concordância. Esse utilitário possibilitou a observação das palavras-chave em cotexto e contexto. Na sequência, observa-se a KeyWords, por meio da qual foi gerada a lista de palavras de maior chavicidade em CN-Ing. O último utilitário, a WordList, foi utilizado para gerar três listas de palavras, para o TP e para os TCs, por ordem de frequência e por ordem alfabética. Além dessas listas, por meio dessa ferramenta também foi possível obter dados estatísticos a respeito da razão forma/item (type/token ratio) e da razão forma/item padronizada (standardised type/token ratio), cuja utilidade explicamos no subtópico 1.2. Paralelamente ao corpus, criamos um arquivo texto (formato *.doc) a partir dos livros, que se encontravam em formato digital (arquivos em*.pdf), contendo o TP e os TCs alinhados Figura 1. Tela inicial do WST. 36 em colunas. Utilizamos este material a fim de fazer uma leitura comparativa dos textos e, posteriormente, para facilitar a análise dos vocábulos selecionados. Nesta etapa de extração dos dados, utilizamos dois dos utilitários disponibilizados pelo software. Empregamos o primeiro deles, a WordList, para gerar três listas de palavras por ordem de frequência e por ordem alfabética para cada livro. Todas foram salvas no formato *lst. (arquivo manipulado pelo programa) e também em formato Microsoft Office Excel (*.xls). A partir dessas listagens, comparamos o número de ocorrências dos vocábulos nas respectivas traduções em relação ao TP. Aplicamos a segunda ferramenta, a Keywords, para compilar uma lista de palavras- chave de CN-Ing para análise, a qual também foi salva nos formatos *lst. e *.xls. Essa lista resulta do contraste entre a WordList do texto em língua inglesa e a lista de palavras do British National Corpus (BNC).4 Por meio do resultado gerado pela ferramenta, pudemos observar quais vocábulos apresentaram maior ou menor índice de chavicidade no TP. Nesse sentido, escolhemos para análise os de maior chavicidade relacionados às figuras femininas do TP e também de alto teor simbólico: Jill, Witch e owl. 2.2 Forma de escolha e análise dos vocábulos No que concerne à análise dos vocábulos, selecionamos as palavras-chave de CN-Ing, excluindo desta listagem preposições, artigos, pronomes, advérbios e verbos que apresentaram chavicidade mais alta, além de nomes próprios de personagens cujo nível de simbolismo não se mostrava representativo. Analisamos, portanto, a partir da lista de palavras-chave, substantivos, próprios e comuns, de simbolismo relevante na história, a saber: Jill, Witch e owl. Tais palavras estão entre as 30 de maior chavicidade e representam personagens importantes para o desenvolvimento do texto em análise. Escolhidos os vocábulos, utilizamos uma terceira ferramenta do WST, a Concord, que nos permitiu localizar os trechos que continham as palavras-chave selecionadas e observá-las com seu cotexto. Procedemos, então, à escolha dos excertos para análise. Para a primeira palavra-chave, Jill, selecionamos dez trechos. Para a segunda palavra-chave, Witch, oito trechos. Para a terceira palavra-chave, owl, três trechos. Os excertos foram selecionados levando-se em consideração o fato de apresentarem cenas que ocorrem durante toda a narrativa, de forma que podemos observar a representação das personagens no início, no meio 4 O BNC é um corpus composto por 100 milhões de palavras representativas do inglês britânico falado e escrito. Foi criado pela Oxford University press no final dos anos 80. 37 e no final da trama. Além disso, também consideramos como critério de escolha as passagens que pudessem conter mais aspectos para observação, a partir de uma perspectiva qualitativa. A fim de contrastar os textos, os trechos foram dispostos obedecendo a sequência: texto em língua inglesa, texto em língua portuguesa e texto em língua espanhola. Nossa análise consistiu, então, do estudo das palavras-chave e dos colocados (palavras que circundam o vocábulo pesquisado), de modo que todo o contexto em que o vocábulo escolhido ocorreu mostrou-se importante para refletirmos sobre as relações de sentido ali estabelecidas. Nessa etapa da pesquisa, também fizemos uso do arquivo em formato *.doc citado anteriormente, o qual possibilitou uma leitura simultânea dos textos, auxiliando-nos a observar os processos linguísticos que ocorreram no TP e nos TCs. Cabe salientar que, no momento da análise, fizemos uma contextualização dos vocábulos. Por meio da recuperação de ditados populares, de expressões idiomáticas, de narrativas populares e literárias e do uso de dicionários de símbolos, investigamos aspectos simbólicos das palavras-chave escolhidas, verificando as relações de sentido que apresentam nas culturas do TP e dos TCs. Esta etapa mostrou-se relevante no sentido de podermos refletir sobre a carga semântica dos vocábulos selecionados na língua do TP, inglês, atentando-nos para os possíveis efeitos de sentido nas traduções em cada uma das línguas dos TCs, português e espanhol. No quadro a seguir, apresentamos o material de apoio utilizado na análise: Quadro 2. Material de apoio para análise. Dicionários de símbolos CHEVALIER, J. et al. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. CIRLOT, J-E. Dicionário de símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Dias. 4. ed. São Paulo: Centauro, 2007. Dicionários de língua CALDAS AULETE. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon Editora Digital, 2007. COLLINS COBUILD Advanced learner’s English dictionary. 4. ed. Glasgow: HarperCollins Publishers, 2006. DRAE. Diccionario de la Real Academia Española. 22. ed. Madrid: Espasa-Calpe, 2001. MOLINER, M. Diccionario de uso del español. 2. ed. Madrid: Gredos, 1998. OXFORD Advanced Learner’s Dictionary. Oxford: Oxford University Press, 2004. WALTER, E. Cambridge Advanced Learner’s Dictionary. 2. ed. New York: Cambridge University Press, 2005. Livro JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2016. Fonte: elaborado pela autora. 38 Por fim, ademais de analisar as palavras-chave de CN-Ing nos livros em estudo, utilizamos os dados fornecidos pela WordList como objeto de investigação. A ferramenta gerou listas de estatísticas para cada um dos textos do corpus por meio da razão forma/item e da razão forma/item padronizada. Assim, foi possível realizar uma análise dos TCs com base na variação lexical destes em relação ao TP. Com base nos procedimentos metodológicos apresentados, passamos, no capítulo 3, à exposição e à análise dos dados levantados. 39 3 ANÁLISE DOS DADOS Neste capítulo, apresentamos primeiramente, no subitem 3.1, os dados estatísticos referentes ao léxico mais frequente em CN-Ing, CN-Port e CN-Esp e às palavras-chave do texto em língua inglesa. Em seguida, em 3.2, expomos estatísticas a respeito da variação lexical no TP e nos TCs com base na razão forma/item. Em 3.3, procedemos à análise do léxico selecionado a partir dos dados fornecidos pelo WST. Por fim, em 3.4, observamos outros aspectos relacionados à tradução dos TCs. É importante ressaltar que apesar da abordagem quantitativa, por meio do tratamento do léxico a partir do instrumental da Linguística de Corpus, observar o simbolismo de um conjunto vocabular não é tarefa fácil. Jung (2016 [1964], p. 113) afirma que “para o espírito científico, fenômenos como o simbolismo são um verdadeiro aborrecimento por não poderem formular-se de maneira precisa para o intelecto e a lógica.” O autor ainda se aprofunda nessa problemática de delimitação e menciona que muitas construções simbólicas apresentam-se sem probabilidade de negação ou de confirmação. Nesse sentido, entendemos que se mostram como índices a serem ativados por meio da leitura em contexto. O autor citado ilustra tal questão referindo-se à “cruz”; acompanhada de um nome, data e em determinados lugares representa que alguém está morto. Por outro lado, o mesmo símbolo utilizado pelos cristãos abre-se para uma profusão de sentidos, ideias e emoções que foram construídos durante milênios. Sua fluidez constitutiva pode passar despercebida em caso de leituras mais objetivas (ou atreladas a um olhar mais cartesiano); no entanto, seus sentidos ativados são inesgotáveis em termos de implicações. Mesmo lançando, nesta pesquisa, foco nos aspectos linguísticos (léxico), optamos por estabelecer algumas leituras pautadas na simbologia, uma vez que a obra em tela é rica em redes significativas e simbólicas. O símbolo mostra-se como imagem de algo que, embora cotidiano, remete-nos a um outro significado não convencional, “alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós” (JUNG, 2016 [1964], p. 18). Como evocam conotações ocultas, inconscientes, os símbolos são importantes para representar crenças de um povo, auxiliando o ser humano, especialmente, em sua construção e busca de sentido. Isso se torna possível devido ao fato de conseguirem transmutar em algo concreto (acústica ou imageticamente) uma série de significações e conceitos, que, de acordo com Jung (2016 [1964], p. 19), somos incapazes de compreender em sua totalidade. Tal noção é relevante neste estudo, pois uma das características do conjunto lexical em análise é o de designar símbolos. 40 Ademais deste aspecto, o léxico selecionado também se abre à interpretação enquanto arquétipo. De acordo com Jung (2016 [1964], p. 83), o arquétipo manifesta algo do inconsciente com o qual o ser humano precisa lidar e cuja representação sempre se repete e se perpetua nas sociedades, pois evoca, ainda que não se saiba sua origem, as mesmas sensações e significações, mesmo com o passar do tempo. Nos contos de fada, por exemplo, um dos arquétipos mais comuns é o da donzela. Utiliza-se esta figura para representar a inocência, a fragilidade, a criatura órfã que precisa ser salva de inúmeros perigos. Embora caracterizada de distintas formas nas histórias, o modelo de personagem tem o mesmo fundamento. Assim é que as diversas culturas são marcadas pela existência de arquétipos que auxiliam o ser humano a tentar entender e lidar com aquilo que não se mostra tão claro em sua consciência, mas que é essencial para seu desenvolvimento. Desse modo, buscamos alinhavar alguma delimitação de sentido aos três vocábulos de maior chavicidade na obra e, também, verificar aspectos relacionados à tradução dos excertos que orbitam o léxico selecionado. A seguir, em 3.1, apresentamos os dados estatísticos de nosso corpus dos quais extraímos os vocábulos para análise. 3.1 O léxico mais frequente nos corpora analisados: dados estatísticos A frequência, como mencionado anteriormente, constitui um dos critérios de análise da presente pesquisa. Por meio da lista de palavras geradas pelo WST, é possível saber quais vocábulos foram os mais recorrentes no texto, incluindo-se todas as classes de palavras, seguidos do número de vezes que aparecem. Assim, podemos observar e comparar o léxico mais frequente no TP e nos TCs. A ferramenta Concord possibilita o estudo das palavras em cotexto. O utilitário KeyWords permite que observemos as palavras em uma lista de acordo com sua relevância no corpus em estudo. Desse modo, escolhemos as que se apresentaram com maior chavicidade para desenvolver nossa análise. 41 A Tabela 2, a seguir, apresenta os 20 primeiros vocábulos mais frequentes nas obras estudadas, sem eliminação dos dados espúrios. Tabela 2. Vocábulos mais frequentes em CN-Ing. Vocábulos Frequência Vocábulos Frequência (1) The 2821,00 (11) Said 624,00 (2) And 1973,00 (12) They 571,00 (3) A 1252,00 (13) I 556,00 (4) Of 1108,00 (14) She 531,00 (5) To 1047,00 (15) On 438,00 (6) It 799,00 (16) Had 433,00 (7) Was 729,00 (17) But 408,00 (8) That 717,00 (18) As 404,00 (9) In 660,00 (19) Jill 380,00 (10) You 633,00 (20) All 373,00 Fonte: elaborada pela autora com base nos dados gerados pelo WST. A partir da Tabela 2, podemos perceber que entre as palavras mais frequentes do corpus encontram-se artigos, conjunções, preposições, pronomes, verbos e advérbios. Fica claro, portanto, que o léxico mais recorrente refere-se aos elementos de construção e coesão textual. Apenas um substantivo figura como vocábulo de grande frequência, aquele que designa a protagonista da narrativa, Jill. Esse é um dado importante, pois já indicia a relevância dessa personagem na história. Em seguida, na Tabela 3, apresentamos os 10 vocábulos de maior chavicidade no corpus em língua inglesa, com o léxico de conteúdo. Tabela 3. Lista de palavras-chave em CN-Ing. Palavra-chave Frequência Chavicidade (1) Jill 380 4.387,6 (2) Puddleglum 181 2.751,61 (3) Scrubb 174 2.623,29 (4) Said 624 1.262,25 (5) Eustace 91 1.171,41 (6) Aslan 70 962,82 (7) Narnia 62 851,31 (8) Prince 117 649,76 (9) Wiggle 47 580,06 (10) She 531 520,09 Fonte: elaborada pela autora com base nos dados gerados pelo WST. 42 Por meio da Tabela 3, observamos que a primeira palavra-chave da lista, Jill, apresenta frequência 380 e chavicidade 4.387,6. Conforme mencionamos em relação à Tabela 2, o vocábulo já aparece entre os mais frequentes, e o fato de ser a palavra de maior chavicidade atesta sua relevância na narrativa. Trata-se da heroína da história, aquela escolhida por Aslam para libertar o príncipe Rilian de um encantamento lançado pela Feiticeira Verde. A criança aparece também no último livro da série, “As Crônicas de Nárnia: a última batalha”. Puddleglum, segunda palavra-chave, de frequência 181 e chavicidade 2751,61, é o nome de um ser da espécie dos paulamas – criatura meio homem, meio animal que aparece apenas no livro em análise para ajudar Jill e Eustáquio em sua missão. Scrubb, terceira palavra-chave da lista, apresenta frequência 174 e chavicidade 2.623,29. Trata-se do sobrenome de Eustáquio, o companheiro de Jill nas aventuras em Nárnia. Scrubb conhece Nárnia antes de Jill, como narrado em “As Crônicas de Nárnia: a viagem do peregrino da alvorada”, e também participa do último livro da série, “A última batalha”. A designação de seu nome pelo narrador por vezes é feita pelo primeiro nome, por vezes pelo segundo, a depender do fato narrado. A quarta palavra-chave, said, é a de maior frequência na lista, 624, mas não a de maior chavicidade, 1.262,25. Trata-se de um dos verbos mais recorrentes no texto, não somente por ser um verbo dicendi, mas também porque o ato de dizer tem significação densa na narrativa, uma vez que Nárnia foi criada a partir da palavra. Lançar mão da palavra envolve poder, o poder de fazer existir, de perdoar, de questionar e, também, de exteriorizar sentimentos. Eustace, quinta palavra-chave, ocorre 91 vezes e tem chavicidade 1.171,41. Designa o primeiro nome do outro protagonista da narrativa. Sua frequência, 91, é menor do que Scrubb, 174, devido ao fato de, no texto em língua inglesa, o garoto ser chamado por seu sobrenome na maioria das vezes em que é mencionado. Nas outras posições, ocorrem Aslan (6), Narnia (7), Prince (8), Wiggle (9) e o pronome She (10). Selecionamos, para o presente estudo, três vocábulos entre os 30 de maior chavicidade na obra analisada com o intuito de observarmos seus respectivos cotextos e contextos de utilização. A escolha recai sobre dois vocábulos relacionados ao feminino e um vocábulo de grande relevância simbólica a respeito dessas personagens femininas. 43 3.2 Variação lexical nas obras do corpus em análise Neste item, apresentamos dados que mostram a variação lexical no corpus em estudo, extraídos por meio da ferramenta WordList, do WST, na lista de estatísticas simples. Por meio dela, tivemos acesso ao número de formas e de itens do corpus, bem como à razão forma/item e à razão forma/item padronizada. Os números fornecidos pela lista nos permitiram ter uma ideia preliminar sobre a densidade lexical das traduções: causada por possíveis casos de repetição, omissão ou acréscimo de vocábulos e simplificações de trechos nos TCs, por exemplo. Na tabela a seguir, apresentamos os dados lexicais referentes às estatísticas extraídas do TP em língua inglesa e dos TCs em língua portuguesa e espanhola, respectivamente. Tabela 4. Estatísticas referentes à variação lexical no corpus em estudo. Formas Itens Razão Forma/Item Razão Forma/Item Padronizada CN-Ing 4.574 51.996 8,80 41,30 CN-Port 6.231 41.284 15,09 48,10 CN-Esp 7.257 53.246 13,63 46,71 Fonte: elaborada pela autora com base em dados fornecidos pelo WST. De acordo com os dados da tabela, observamos que em CN-Ing o número de formas, ou seja, de vocábulos diferentes, é 4.574. Em CN-Port, a quantidade de vocábulos diferentes utilizados no texto é 6.231. Em CN-Esp, os vocábulos somam 7.257. Verifica-se, então, que ambas as traduções apresentam um número maior de formas, apontando para a utilização de mais palavras diferentes que no texto em inglês – houve, portanto, uma maior variação vocabular em relação ao TP. Na tradução para a língua portuguesa, há uma quantidade de 1.657 formas a mais que no TP. Já na tradução em língua espanhola, a variação de vocábulos é ainda maior: são 2.683 formas a mais. Em relação ao número de itens, isto é, da quantidade de palavras utilizadas em todo o texto, o TP apresenta 51.996. O TC em língua portuguesa apresenta 41.284 vocábulos, e o TC em espanhol, 53.246. Notamos que a quantidade de palavras empregadas nas traduções difere substancialmente em relação ao TP, especialmente em CN-Port, com 10.712 vocábulos a menos. Em CN-Esp, a diferença é menor, mas em sentido oposto ao que ocorre em CN-Port: são 1.250 palavras a mais utilizadas para construir a tradução. Nesse sentido, o TC em 44 espanhol aproxima-se mais do TP do que o TC em língua portuguesa, uma vez que a quantidade de vocábulos difere menos. Ainda que os dois TCs apresentem um maior número de formas, é interessante notar que isso não implica que tenham mais vocábulos como um todo. O texto em português, por exemplo, embora apresente um número de itens menor que o TP, tem a maior razão forma/item entre os três textos: 15,09. Ou seja, a variação lexical foi maior ali, pois CN-Port, cuja quantidade de palavras é menor, apresenta mais vocábulos diferentes. O TC em espanhol também varia mais que o TP, como mostra a razão forma/item do corpus, 13,63. Em relação aos diferentes dados da variação do número de formas e de itens e da variação da razão forma/item, podemos contabilizar sua ocorrência por meio da análise de diversas características que Baker (1993) aponta como frequentes em traduções. A reconstrução de parágrafos, por exemplo, por meio da explicitação de informações ou da omissão de vocábulos elucida alguns processos que ocorreram em CN-Port e em CN-Esp. Os trechos que apresentamos em seguida ilustram esses processos que podem estar culminando na variação lexical diferente entre os três textos, e, consequentemente, na criação de novos sentidos nas traduções. Os fragmentos selecionados fazem referência às três palavras-chave analisadas neste estudo, Jill, Witch e owl. O trecho a seguir traz o primeiro vocábulo de nossa análise, Jill. Trata-se de um momento em que, escondidos dos colegas do Colégio Experimental, Jill e Eustáquio têm seu primeiro diálogo sobre Nárnia. They were very excited as they said this. But when they had said it and Jill looked round and saw the dull autumn sky and heard the drip off the leaves and thought of all the hopelessness of Experiment House (it was a thirteen- week term and there were still eleven weeks to come) she said: "But after all, what's the good? We're not there: we're here. And we jolly well can't get there. Or can we?" (CN-Ing) (LEWIS, 2001, p. 551, grifo nosso). Estavam muito nervosos. Mas, quando Jill olhou em torno e reparou o céu tristonho de outono, com as folhas gotejando, e lembrou-se de que não havia esperança no Colégio Experimental (faltavam ainda onze semanas para as férias), disse: – Mas, afinal de contas, de que adianta? Não estamos lá: estamos aqui. E não há nenhum jeito de ir para lá. Ou há? (CN-Port) (LEWIS, 2011, p. 523, grifo nosso). Dijeron esto con gran entusiasmo; pero después, cuando ya lo habían dicho y Jill miró a su alrededor y vio ese nublado cielo otoñal y escuchó el ruido de las gotas que caían de las hojas y pensó en lo inútil que era el Colegio Experimental (era un curso de trece semanas y aún faltaban once), dijo: 45 —Pero después de todo, ¿qué sacamos? No estamos allá; estamos aquí. Y requetenunca podremos ir allá. ¿O podemos? (CN-Esp) (LEWIS, 1993, p. 7, grifo nosso). Nesta passagem, CN-Ing apresenta 76 palavras, CN-Port, 61 e CN-Esp, 75. O trecho faz referência a uma conversa importante entre Jill e Eustáquio: a existência de Nárnia. O menino revela o modo como conheceu a terra mágica, partilhando sua aventura com Jill, jurando que tudo o que diz é verdade. É nesse contexto que as crianças se encontram emocionalmente alteradas e que se desenrolam as sensações narradas em relação a Jill. Notamos que o TC em português apresenta um número de itens menor; tal fato se deve, especialmente, à omissão de trechos em relação ao TP e à reorganização de períodos. Podemos observar em CN-Port, em um primeiro momento, o uso em menor quantidade do conectivo “e” para expressar as sensações de Jill. Em CN-Ing, a conjunção é utilizada quatro vezes no segundo período, mostrando tanto a intensidade com a qual os pensamentos vinham à mente da garota como o fato de se tratar de ações que aconteciam de maneira fluída, acentuando seu desespero em relação à realidade que vivenciava. Jill relacionava uma coisa à outra: olhar ao redor de si “e” ver o céu “e” ouvir o gotejar das folhas “e” pensar sobre a escola. Desse modo, mesmo sabendo da existência de outro mundo, estaria condenada a permanecer no colégio, pois havia uma lista de elementos, enumerados (no TP), que a lembravam do lugar exato onde ela estava. Em CN-Port, as ações da menina são narradas de modo mais organizado, utilizando-se uma oração intercalada (“com as folhas gotejando”) para expressar sua percepção sobre o ambiente. Desse modo, parece que Jill está resignada, observando tudo a sua volta e pensando sobre isso, e não inquieta, como sugere o uso contínuo de and no TP. Ademais, notamos em CN-Port a omissão da informação que se encontra entre parênteses no TP, a de que o curso totalizava treze semanas. O TC em língua portuguesa só apresentou a informação das semanas que restavam ainda, onze, e não o número total que, quando explícito, mostra, novamente, o desespero de Jill. Afinal, de um total de treze semanas, deviam vir ainda onze; a garota já se sentia desanimada ao pensar em todo o tempo que precisaria passar no colégio, atormentada pelos companheiros. Outra informação omitida em CN-Port é a do ato de fala das crianças They were very excited as they said this e when they had said it. Os verbos dicendi não aparecem no TC em português e não há a noção de que as emoções se desencadeiam a partir do momento em que as crianças pronunciam suas palavras. No TP, o momento da fala de Jill e de Eustáquio é de 46 grande cumplicidade, pois atesta, como em um acordo, que tudo o que estão vivendo é verdadeiro e não há intenção de enganar. Podemos observar também nesse trecho a tradução do adjetivo excited por “nervosos” em CN-Port. Em língua inglesa, a palavra faz referência a um estado em que as emoções não estão sob controle, tanto em um sentido negativo – em que a pessoa se sente tão preocupada que não consegue estar quieta, tranquila, como em um sentido positivo, em que a pessoa se sente tão entusiasmada que isso transparece em seu comportamento.5 O adjetivo escolhid