UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS LUCAS LAPRANO CONVENÇÕES PROCESSUAIS PRÉVIAS E DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL SUPERVENIENTE FRANCA 2022 LUCAS LAPRANO CONVENÇÕES PROCESSUAIS PRÉVIAS E DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL SUPERVENIENTE Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Direito. Orientadora: Profa. Dra. Luciana Lopes Canavez. FRANCA 2022 LUCAS LAPRANO CONVENÇÕES PROCESSUAIS PRÉVIAS E DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL SUPERVENIENTE Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Direito. BANCA EXAMINADORA Presidente:_________________________________________________________________ Profa. Dra. Luciana Lopes Canavez Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, campus de Franca, SP. 1º Examinador:______________________________________________________________ Profa. Dra. Kelly Cristina Canela 2º Examinador:______________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando da Fonseca Gajardoni Franca, 30 de junho de 2022. LAPRANO, Lucas. Convenções processuais prévias e desequilíbrio contratual superveniente. 2022. 211 fl. Monografia – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, 2022. RESUMO O Código de Processo Civil de 2015, superando o pretenso dogma da irrelevância da autonomia da vontade no processo civil, positivou no ordenamento jurídico brasileiro uma cláusula geral de negociação processual atípica, consubstanciada no art. 190 do CPC, a qual passou a autorizar a ampla negociação sobre suas situações jurídicas processuais e sobre o procedimento. Dentre as aplicações possíveis das convenções processuais, a possibilidade de sua celebração no âmbito dos extraprocessual, na modalidade de convenções processuais prévias, é de grande interesse para a prática contratual, notadamente por permitir que as partes negociem sobre seus ônus, poderes e deveres relativos a litígios futuros. Assim, campo de investigação de significativa importância surge em relação à comunicação normativa entre o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e o Código de Processo Civil, da qual resulta a incidência de princípios legais específicos, tais como o do equilíbrio contratual, e das diversas regras de tutela do desequilíbrio superveniente a tais convenções. É, pois, partindo de tais premissas, mediante a utilização do método hipotético-dedutivo, que se pretende demonstrar que a tutela do equilíbrio das convenções processuais é imperativo legal, do qual decorre a necessidade de uma adequada aplicação das teorias da revisão por onerosidade excessiva (art. 6º, V, do CDC) e da resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480 do CC) ao objeto das convenções processuais. Ademais, a presente dissertação busca analisar, além da aplicabilidade do princípio do equilíbrio contratual e das teorias relativas ao desequilíbrio contratual superveniente às convenções processuais prévias, a necessidade de uma correta leitura dos institutos, a fim de que estes sejam adequados às suas especificidades. PALAVRAS-CHAVE: convenções processuais. princípio do equilíbrio contratual. desequilíbrio contratual superveniente. LAPRANO, Lucas. Convenções processuais prévias e desequilíbrio contratual superveniente. 2022. 211 fl. Monografia – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, 2022. ABSTRACT The 2015 Civil Procedure Code, which overcame the pretense dogma of the irrelevance of the private autonomy in Civil Procedure, included in the brazilian legal system a general clause of atypical procedural negotiation in the art. 190 from the Civil Procedure Code, which authorizes a wide range of negotiation of the party’s procedural rights or over the procedure itself. Amongst the many uses of procedural contracts, the possibility of their conclusion outside the court, as pre-trial procedural contracts, is of great use for the contractual practice, specifically by allowing that the parties negotiate over their burdens, powers and duties related to future litigation. Therefore, an important field of research arises in relation to the legal communication between the Civil Code, the Code of Consumer Defense and Protection and the Civil Procedure Code, which results in the application of specific legal principles, such as the principle of contractual balance, and of several rules related to supervening unbalance to such contracts. Based on such premisses, and with the application of the hypothetico-deductive method, the aim of this dissertation is to prove that the enforcement of procedural contracts balance is a legal imperative, which leads to the need of correctly applyng the theories of contractual revision resulting from excessive burden (art. 6º, V, CDC) or contractual termination resulting from excessive burden (arts. 478 to 480, CC) to the object of procedural contracts. Moreover, this dissertation aims to assess, beyond the application of the principle of contractual balance and the theories related to supervening contractual unbalance to the procedural contracts, how to correctly use such theories, so that they take into account the specific traits from those contracts. KEYWORDS: procedural contracts. principle of contractual balance. supervening contractual unbalance. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8 2 DA AUTONOMIA PRIVADA AOS NEGÓCIOS JURÍDICOS ......................... 13 2.1 Perfil dogmático da autonomia privada e a função dos negócios jurídicos ........ 13 2.1.1 Da autonomia da vontade à autonomia privada funcionalizada ................................. 16 2.1.2 A autonomia negocial e a teoria dos fatos jurídicos: os negócios jurídicos como instrumento da autonomia privada ............................................................................. 30 2.2 A autonomia privada no direito processual civil: da supressão à reconquista de espaços perdidos ....................................................................................................... 37 2.2.1 O processo civil nos modelos adversarial e inquisitivo/inquisitorial ......................... 37 2.2.2 Os desafios de um processo civil adequado ao Estado Democrático de Direito: o modelo cooperativo de processo e os negócios jurídicos processuais como expressão da autonomia privada ................................................................................................. 42 2.3 A cláusula geral de negociação processual atípica do art. 190 do CPC: requisitos e controle de sua validade ........................................................................................ 47 2.3.1 O plano da existência dos negócios jurídicos processuais atípicos ............................ 48 2.3.2 O plano da validade dos negócios jurídicos processuais atípicos: as condições gerais e específicas de validade ............................................................................................ 49 3 O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E NO CÓDIGO CIVIL: AS NOVAS PERSPECTIVAS DA JUSTIÇA CONTRATUAL E SEUS DIÁLOGOS COM O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E AS CONVENÇÕES PROCESSUAIS .............................. 52 3.1 Breve análise da estrutura normativa dos princípios ........................................... 53 3.2 Os princípios constitucionais da solidariedade e da justiça social ....................... 58 3.3 Conceito do princípio do equilíbrio contratual e as consequências de sua aplicação .................................................................................................................... 64 3.3.1 O princípio do equilíbrio contratual no Código de Defesa do Consumidor ............... 72 3.3.2 O princípio do equilíbrio contratual no Código Civil ................................................ 80 3.4 O princípio do equilíbrio contratual e a sua aplicabilidade às convenções processuais prévias: a corregulação formal e diálogo das fontes entre o Código de Processo Civil, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil............. 88 4 A TUTELA DO DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL SUPERVENIENTE NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E NO CÓDIGO CIVIL ............... 97 4.1 Antecedentes históricos das teorias de tutela do desequilíbrio contratual superveniente: da ascensão ao declínio da cláusula rebus sic stantibus ............... 97 4.2 A teoria da imprevisão francesa............................................................................ 100 4.3 A teoria da pressuposição e as teorias da base do negócio na Alemanha.......... 105 4.4 A tutela da alteração das circunstâncias em Portugal ........................................ 115 4.5 A Itália e a teoria da onerosidade excessiva ......................................................... 119 4.6 A tutela do desequilíbrio contratual superveniente no direito privado brasileiro: a adoção da onerosidade excessiva pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Código Civil de 2002............................................................................................... 121 4.6.1 Breve panorama do desequilíbrio superveniente no direito brasileiro: do Código Civil de 1916 ao Código de Defesa do Consumidor ......................................................... 121 4.6.2 A revisão contratual por onerosidade excessiva no Código de Defesa do Consumidor: delineamento e requisitos ......................................................................................... 124 4.6.3 A resolução contratual por excessiva onerosidade no Código Civil de 2002: perfil dogmático e adaptação da teoria italiana ao ordenamento jurídico nacional ........... 132 4.6.3.1 O artigo 478: a resolução por onerosidade excessiva no Código Civil .................. 133 4.6.3.2 A hipótese revisional do artigo 479: a possibilidade de oferta de modificação contratual equitativa pelo réu .................................................................................. 151 4.6.3.3 A hipótese revisional do artigo 480: o pedido de redução ou alteração do modo de execução da prestação nos contratos unilaterais .................................................... 155 4.6.3.4 O art. 317: a possibilidade de correção do valor da prestação que se torna manifestamente desproporcional e as controvérsias acerca de sua interpretação conjunta com os arts. 478 a 480............................................................................... 159 4.6.4 A necessidade de compatibilização das regras relativas ao desequilíbrio contratual superveniente com as convenções processuais prévias ............................................ 162 5 A TUTELA DO DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL SUPERVENIENTE DAS CONVENÇÕES PROCESSUAIS PRÉVIAS ...................................................... 164 5.1 O objeto das convenções processuais .................................................................... 165 5.2 O problema da identificação dos limites das convenções processuais ............... 170 5.3 A aplicação da resolução por onerosidade excessiva do Código Civil às convenções processuais prévias ............................................................................. 177 5.3.1 As convenções processuais e o preenchimento do requisito do “contrato de execução continuada ou diferida” ............................................................................................ 177 5.3.2 A aferição objetiva do desequilíbrio superveniente das convenções processuais: o agravamento da disposição, renúncia ou autorrestrição originalmente pactuada e a consequente redução a zero da garantia processual correlata .................................. 179 5.3.3 A onerosidade excessiva das convenções processuais e a extrema vantagem da contraparte ................................................................................................................ 185 5.3.4 Os requisitos negativos para a aplicação da resolução por onerosidade excessiva às convenções processuais ............................................................................................ 187 5.3.5 A forma e o momento do controle da onerosidade excessiva das convenções processuais: a possibilidade de tutela do equilíbrio convencional pela propositura de processo autônomo ou pelo controle incidental da licitude de seu objeto ............... 189 5.4 A aplicação da resolução por onerosidade excessiva do Código de Defesa do Consumidor às convenções processuais prévias .................................................. 191 6 CONCLUSÕES ...................................................................................................... 194 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 200 8 1 INTRODUÇÃO Com a edição da Lei nº 13.105, de 15 de março de 2015 (Código de Processo Civil - CPC), o ordenamento jurídico brasileiro passou a contar com um diploma processual sintonizado com significativos avanços da ciência processual, tais como a adoção de um modelo cooperativo de processo (MITIDIERO, 2015), a consolidação de um “Tribunal multiportas”1 (THEODORO JÚNIOR et al., 2016, p. 262), a vedação às decisões surpresa (Art. 10 do CPC)2, a eleição de um rol de precedentes qualificados (Art. 927 do CPC) e, dentre outros, o reconhecimento dos chamados negócios jurídicos processuais, mediante uma “cláusula geral de negociação processual” (THEODORO JÚNIOR et al., 2016, p. 294), consubstanciada no artigo 190 do CPC3. Importante notar, de início, que o tema da negociação processual não era, até então, recorrente no direito brasileiro; a ciência do direito processual civil, até atingir seu estado atual, sofreu fortes reflexos das concepções culturais e ideológicas nas mais diversas épocas. Na realidade brasileira, até a edição do Código de Processo Civil de 2015, predominava a concepção puramente publicista do fenômeno processual civil, o que importava, inclusive, no reconhecimento da suposta cogência e imperatividade de todas as normas processuais, bem como do monopólio das fontes do direito processual pelo Estado (CABRAL, 2020, p. 205). Inevitavelmente, a doutrina brasileira se manteve, ao longo do século XX, praticamente silente sobre o tema (CABRAL, 2020, p. 157). Entretanto, com a retomada do desenvolvimento do instituto das convenções processuais no exterior4, o debate chega em peso ao Brasil, com a subsequente edição de trabalhos sobre o tema (CABRAL, 2020, p. 162-163) e levando, por fim, à inclusão de uma cláusula geral de negociação processual no Código de Processo Civil de 2015 (artigo 190 do CPC). É, em verdade, representação do reconhecimento e reingresso da autonomia privada no 1 Sua proposta central remonta, em suma, no adequado dimensionamento e tratamento do conflito por meio da disponibilização de técnicas alternativas de resolução de conflitos (ADRs – Alternate Dispute Resolution) (THEODORO JÚNIRO et al., 2016, p. 264-265), se valendo, portanto, de técnicas tais como a da mediação, conciliação e arbitragem. 2 “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.” (BRASIL, 2015) 3 “Art. 190. Versando o processo sobre direito que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante processo” (BRASIL, 2015). 4 Com destaque para seu desenvolvimento nas experiências alemã, francesa e italiana (CABRAL, 2020, p. 141- 153). 9 processo civil brasileiro (RAATZ, 2016, p. 188), em clara contraposição à concepção hiperpublicista de processo, até então hegemônica. Inevitavelmente, após a edição da Lei nº 13.105, de 15 de março de 2015, a doutrina pátria tem se debruçado sobre o tema das convenções processuais, objetivando elaborar uma teoria geral sobre os negócios jurídicos processuais (CABRAL, 2020, p. 52), bem como identificar sua aplicabilidade nos mais variados temas processuais e ramos do Direito, tais como nos contratos empresariais (DIDIER JR.; LIPIANI; ARAGÃO, 2018), nos processos de execução (DIDIER JR.; CABRAL, 2018) e até mesmo sua utilização convencional por parte do Poder Público (BARREIROS, 2016), o que comprova a extensão do tema. Dentre a vastidão do tema, um dos campos de estudo das convenções processuais de maior relevância diz respeito à interação entre os negócios jurídicos processuais com diversos regramentos de direito material, notadamente com normas do direito civil e do direito do consumidor. A comunicação normativa entre tais diplomas normativas assume especial relevância quando, por exemplo, consideradas aquelas convenções de natureza prévia ou prévia ou pré-processual, as quais podem ser celebradas antes da instauração do processo judicial mediante inserção em instrumento próprio ou, mesmo, no próprio instrumento do negócio jurídico de natureza material. A admissão de tal interação normativa, além de atrair a aplicação de teorias tais como as da corregulação normativa formal5 ou do diálogo das fontes, leva também à conclusão que, com a inserção das convenções processuais no âmbito extraprocessual, diversos princípios setoriais do direito das obrigações e do direito contratual, bem como certos institutos de tal ramo, passam a se aplicar a tal modalidade negocial, até mesmo como forma de dar o devido tratamento legal ao tema. Neste mister, destaca-se que, embora o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 preservem os já clássicos princípios do direito contratual6, tais diplomas trazem, em seu bojo, três novos princípios7 para tal subárea do direito: os princípios da boa-fé8, da 5 Tal noção, quando aplicada aos negócios jurídicos processuais, parte precipuamente da assertiva de que estes, por serem espécie de negócio jurídico, devem sofrer regulamentação legal tanto dos dispositivos previstos no Código Civil (artigos 104 e seguintes), os quais dizem respeito aos requisitos genéricos de existência, validade, eficácia, dentre outros, atinentes aos negócios jurídicos em geral, quanto que de normas processuais (CABRAL, 2020, 309-311), tais como aqueles requisitos específicos para os negócios jurídicos processuais previstos no artigo 190 do CPC e em seu parágrafo único. 6 Notadamente, os princípios da liberdade contratual, do pacta sunt servanta e o da relatividade dos efeitos contratuais (AZEVEDO, 1998, 115). 7 Antônio Junqueira de Azevedo (1998, p. 116-117) já apontava que o direito dos contratos recebia influências pelo reconhecimento de três novos princípios contratuais, adequados à hipercomplexidade da sociedade atual. 8 Para uma discussão pormenorizada do princípio da boa-fé enquanto cláusula geral, veja-se Judith Martins- Costa (2000) e António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro (2013). 10 função social dos contratos9 e do equilíbrio contratual. Para os fins da presente dissertação, o princípio do equilíbrio contratual se apresenta como o de maior relevância, ao impor, aos contratos e convenções em geral, a necessidade de que realizem ou mantenham, na maior medida possível, o equilíbrio contratual. Cumpre, assim, a função de evitar que “qualquer contratante venha a sofrer sacrifício econômico desproporcional em decorrência do cumprimento das obrigações que compõem o objeto do seu contrato”10 (SCHREIBER, 2020, p. 72-74). Admitindo-se, pois, que as convenções processuais devem ser objetivamente equilibradas - imperativo este que, mais do que simples princípio previsto no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, possui fundamento de índole constitucional, notadamente nos princípios da solidariedade (art. 3º, I, da CF) e da justiça social (art. 3º, III, da CF) -, surge a necessidade de que o acervo normativo de tutela ao desequilíbrio contratual seja corretamente interpretado, a fim de que possa ser aplicado, a contento, diante das especificadas do objeto das convenções processuais É o que se passa, pois, quando se pretende aplicar as teorias da revisão por onerosidade excessiva (art. 6º, V, do CDC) e da resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480 do CC) às convenções processuais prévias. Ainda que parte da doutrina já aponte, em linhas gerais, pela possibilidade de sua aplicação aos negócios jurídicos processuais, tal como o fazem Antonio do Passo Cabral (2020, p. 436) e Fredie Didier Jr. (2018, p. 41), é certo que tal aplicação exige maior desenvolvimento dogmático, vez que a simples referência aos requisitos legais das teorias parece insuficiente para a correta aplicação dos institutos. Como se verá ao longo do desenvolvimento desta dissertação, a própria interpretação do art. 478 do Código Civil é cercada de divergências doutrinárias, devido aos diversos requisitos contidos em sua redação, dentre os quais se incluem elementos de ordem subjetiva (imprevisibilidade e a extraordinariedade do fato superveniente) e objetiva (onerosidade excessiva), além da duvidosa inserção, pelo legislador brasileiro do requisito da “extrema vantagem” ao dispositivo, alvo de duras críticas pela doutrina nacional. Desta forma, a correta análise de tal tema depende, invariavelmente, de seu enfrentamento em duas frentes simultâneas: uma análise de direito material, de forma a se ter melhor dimensão da aplicação dos arts. 6, V, do CDC, e arts. 478 a 480 do CC, bem como das polêmicas doutrinárias que pairam sobre sua aplicação; e uma análise que busque melhor 9 Por todos, ver Teresa Negreiros (2002, p. 205-267). 10 Lembra o autor, ainda, que o desequilíbrio contratual pode ser tanto vertical quanto horizontal, ou seja, decorrente do agravamento do sacrifício econômico no tempo ou pela desproporção entre sacrifício sofrido e benefício obtido, respectivamente (SCHREIBER, 2020, p. 70). 11 compreender o objeto das convenções processuais e seus limites imanentes, a fim de que possa se obter uma correta e analítica aplicação dos dispositivos de direito material a tais convenções. Ademais, ao se tratar do princípio do equilíbrio contratual, constatou-se que seu conteúdo impõe que as convenções, em geral, sejam objetivamente equilibradas, não se atendo à mera validade da manifestação de vontade das partes, mas se voltando ao aspecto substancial do negócio. Devido a tal premissa, aponta-se que a “onerosidade excessiva” é o requisito legal que melhor evidencia, de forma objetiva, a ocorrência do desequilíbrio contratual superveniente, sendo inclusive, previsto textualmente tanto no art. 6º, V, do CDC, quanto que no art. 478 do Código Civil. Assim, quando consideradas as particularidades do objeto das convenções processuais, o qual versa a respeito de situações jurídicas processuais das partes ou sobre o próprio procedimento, constata-se que este difere substancialmente do conteúdo patrimonial dos contratos civis em geral; surge, assim, de forma clara, o questionamento: qual critério é apto, de fato, a demonstrar a ocorrência de onerosidade excessiva de uma convenção processual? Buscando encontrar solução satisfatória para tal questão, bem como para avaliar todos os demais requisitos elencados para a aplicação dos arts. 6º, V, do CDC e 478 a 480 do Código Civil, a presente dissertação é dividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo busca fazer uma reconstrução da evolução do conceito da “autonomia privada”, partindo de sua concepção clássica, enquanto “autonomia da vontade”, até sua caracterização contemporânea, funcionalizada em atenção aos princípios inaugurados pela Constituição Federal de 1988 e à dignidade da pessoa humana; após, demonstrar-se-á, também, o processo de supressão da autonomia privada no direito processual civil, até a “reconquista” de seu espaço, no ordenamento jurídico brasileiro, com a edição do CPC/2015. O segundo capítulo, por sua vez, se destina ao estudo do princípio do equilíbrio contratual propriamente dito, com a identificação de seus fundamentos constitucionais, das consequências de sua aplicação, culminando com a identificação de sua presença no texto normativo do CDC e do Código Civil. Demonstrar-se-á, ao final, que tal princípio é plenamente aplicável às convenções processuais, as quais não são imunes à exigência de que seu conteúdo seja, também, equilibrado. O terceiro capítulo se ocupará, essencialmente, das teorias desenvolvidas, tanto em solo nacional quanto estrangeiro, para a tutela do desequilíbrio contratual superveniente. Após breve exploração de seu desenvolvimento na França, Alemanha, Portugal e Itália, bem como da história de seu desenvolvimento na doutrina e na legislação brasileira, passar-se-á à análise 12 detida dos remédios legais para tutela do desequilíbrio contratual superveniente no CDC (art. 6º, V) e no Código Civil (arts. 317 e 478 a 480), evidenciando as divergências interpretativas e as polêmicas que cercam a aplicação de tais dispositivos, especialmente daqueles previstos na legislação civil. O quarto e último capítulo, valendo-se das conclusões dos capítulos anteriores, especialmente daquelas obtidas no terceiro capítulo, se encarregará da aplicação das normas de tutela específica do desequilíbrio contratual superveniente às convenções processuais. Para tanto, será realizado, incialmente, estudo relativo aos limites e à licitude do objeto (art. 104, II, do CC) das convenções processuais, buscando, assim, a identificação de parâmetros que viabilizem a aferição da ocorrência da onerosidade excessiva em tal contexto. Após, será feita análise detida de cada um dos requisitos para a aplicação do desequilíbrio superveniente positivadas no CDC (art. 6º, V) e no Código Civil (arts. 478 a 480), buscando sua compatibilização com as convenções processuais. Assim, os objetivos da presente dissertação são, em síntese: a demonstração de que as convenções processuais, em geral, se sujeitam ao princípio do equilíbrio contratual; que as normas relativas à tutela do desequilíbrio contratual superveniente, tais como previstas no CDC e no Código Civil, são aplicáveis às convenções processuais; e, ao final, investigar como o parâmetro da licitude do objeto das convenções processuais pode ser utilizado para fins de demonstrar ocorrência de sua excessiva onerosidade. Serão as fontes primárias de pesquisa a legislação brasileira, notadamente o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Código de Processo Civil e a Constituição Federal, valendo-se a presente dissertação, ainda, de pesquisa bibliográfica pertinente ao tema. O método utilizado para a presente pesquisa é o hipotético-dedutivo, com ênfase na análise dogmática das questões enfrentadas. Considerando que a hipótese lida com um objeto que transita entre os campos civil e processual civil, será realizada rigorosa investigação dogmática dos institutos sob estudo, especialmente do objeto dos negócios jurídicos processuais, da teoria da resolução por onerosidade excessiva e do princípio do equilíbrio contratual. 13 2 DA AUTONOMIA PRIVADA AOS NEGÓCIOS JURÍDICOS 2.1 Perfil dogmático da autonomia privada e a função dos negócios jurídicos Tratar sobre o fenômeno contratual, convencional ou negocial, especialmente no que diz respeito aos seus limites, significa, em última instância, versar a respeito das esferas de liberdade conferidas por dado ordenamento jurídico para a livre atuação – negocial ou não - dos particulares. É, pois, em tais esferas de liberdade11 positivamente reconhecidas que se fundamenta, em grande medida, a própria noção de autonomia privada12. Naturalmente, o indivíduo, dotado de liberdade individual, é o mais apto a conhecer seus próprios interesses e, consequentemente, a atuar na regulação dos atos tendentes a realizá-los (AMARAL NETO, 1989, p. 216). Ademais, é pelo intenso atuar do indivíduo que, por meio de ações e omissões, se exteriorizam as opções e vontades do agente, sendo que algumas destas escolhas, por serem reputadas como juridicamente relevantes, efetivamente 11 A discussão acerca das acepções, definições e possível conteúdo do que efetivamente vem a constituir a ideia de “liberdade” escapa aos escopos e limites da presente dissertação; destaca-se, entretanto, que, conforme já exposto, a autonomia da vontade se funda no reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de esferas de liberdade para a atuação do indivíduo, ou seja, na noção de liberdade objetiva. Para José Afonso da Silva (2001, p. 234- 239), a liberdade objetiva é aquela cujo objeto é de efetivo interesse para o direito positivo, posto que referente à liberdade garantida de agir livremente, de fazer ou de atuar, consubstanciada no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, o qual dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 1988). Tal dispositivo, além de concretizar o princípio da legalidade, possui, ainda, o condão de materializar o direito fundamental da liberdade de ação, o qual, sendo “liberdade-base” de todas as demais, determina que “a liberdade, em qualquer de suas formas, só pode sofrer restrições por normas jurídicas preceptivas (que impõem uma conduta positiva) ou proibitivas (que impõem uma abstenção)” (SILVA, 2001, p. 239). É, portanto, o fundamento, no ordenamento jurídico brasileiro, da noção de que o indivíduo, no exercício de sua liberdade individual, poder praticar todo “ato não ordenado nem proibido por lei” (AMARAL NETO, 1989, p. 216). Para visão abrangente sobre outras acepções do conceito de liberdade, remete-se a Daniel Sarmento, “Os princípios constitucionais da liberdade e da autonomia privada” (2005, p. 167-217). 12 É corrente na doutrina o uso das expressões “autonomia da vontade”, “autonomia privada” e “autorregramento da vontade” para a descrição de um mesmo fenômeno, muito embora tal confusão terminológica não seja recomendada. Destaque-se, neste sentido, a ideia de que a expressão “autonomia da vontade” possui caráter mais subjetivo e psicológico (AMARAL NETO, 1989, p. 213), graças à ênfase conferida a seu aspecto volitivo, quer seja por exprimir um dado constructo ideológico inserido em um contexto histórico e filosófico específico do século XIX (MARTINS-COSTA, 2002, p. 614-615 apud NEGREIROS, 2002, p. 2). Da mesma forma, é clássica a crítica formulada por Pontes de Miranda ao emprego do conceito de autonomia privada no sentido de “autorregramento do direito privado”, vez que sua adoção acabaria por, reflexamente, “qualquer auto-regramento da vontade, em direito público, - o que seria falsíssimo. O que caracteriza o auto-regramento da vontade é poder- se, com êle, compor o suporte fáctico dos autos jurídicos com o elemento nuclear da vontade. Não importa em que ramo do direito.” (MIRANDA, 2012, t. 3, p. 111). É com fundamento em tal crítica, que alguns autores que tratam acerca dos negócios jurídicos processuais optam expressamente por se referir ao “autorregramento da vontade”, tal como o faz Pedro Henrique Nogueira (NOGUEIRA, 2016, p. 138), na medida em que seria conceito mais genérico e abrangente, capaz de abarcar outros ramos do Direito que não apenas o Direito Civil. Ante ao exposto, optou-se, na presente dissertação, pelo uso intercambiável entre as expressões “autonomia privada” e “autorregramento da vontade”, vez que, uma vez considerado que o objeto de estudo aqui abordado transita, necessariamente, tanto pelos domínios do Direito Processual Civil quanto que do Direito Civil, a manutenção do conceito “autonomia privada” facilitará o diálogo com as obras e doutrinas do Direito Privado em geral, seara na qual tal expressão é comumente empregada. 14 passam a integrar o mundo jurídico13. São exatamente tais atos que compõem a noção de autonomia privada, a qual, caracterizada como corolário da liberdade juridicamente garantia aos indivíduos, expressa sua capacidade de determinarem seu próprio comportamento, quer seja em relação a escolhas existenciais14, quer seja em relação a questões negociais (SARMENTO, 2005, p.168-169). Em outras palavras, é possível definir a autonomia privada como “a auto-regulação dos interesses particulares” (GOMES, 1980, p. 43) ou, ainda, “é o espaço deixado às vontades, sem se repelirem do jurídico tais vontades [...] interior, portanto, às linhas traçadas pelas regras jurídicas cogentes, como espaço em branco cercado pelas regras que o limitam” (MIRANDA, 2012, t. 3, p. 109-110). Importante que, desde já, sejam feitas duas ressalvas relativas ao estudo da autonomia privada. Em primeiro lugar, destaca-se que a vinculação da autonomia privada com atos de natureza eminentemente negocial ou patrimonial se trata de simplificação equivocada de tal fenômeno. Não se olvida, obviamente, a relevância e destaque que a autonomia privada vem a desempenhar na seara contratual, razão, inclusive, pela qual os dois fenômenos costumam ser associados como se equivalentes fossem. Entretanto, a autonomia privada engloba todos aqueles atos livremente assumidos que possam acarretar transformações jurídicas (PERLINGIERI, 2007, p. 17), de sorte que “a autonomia privada não se identifica com a iniciativa econômica, nem com a autonomia contratual em sentido estrito: o contrato, como 13 Sem qualquer pretensão de exaurir o tema, até por se tratar de objeto que foge aos estreitos limites do recorte da presente dissertação, importante apresentar a relevantíssima noção desenvolvida por Pontes de Miranda acerca do fenômeno da incidência das regras jurídicas. Destaca-se, em primeiro lugar, a distinção realizada pelo autor entre o mundo em que se realizam os fatos e o chamado mundo “jurídico” (MIRANDA, 2021, t. 1, p. 59). Inicialmente, cabe à norma jurídica a descrição de determinado fato, evento ou conduta que poderá ocorrer no mundo e que, por ter sido reputado como relevante para a vida social, fora objeto da normatividade jurídica (MELLO, 2012, p. 73). É, pois, tal proposição normativa que atribui à ocorrência de determinados fatos – fatos estes que serão denominados como “suporte fáctico” (MELLO, 2012, p. 73), efeitos jurídicos (MELLO, 2012, p. 50). O fenômeno da “juridicização” dos fatos se dá, por sua vez, com a incidência da norma jurídica sobre o suporte fático ocorrido, momento a partir do qual o fato jurídico efetivamente é gerado no mundo jurídico, podendo produzir seus efeitos (MELLO, 2012, p. 108). O que importa destacar, por hora, é a noção de “relevância” de dado fato ou conduta para que esta venha a ser descrita por dada norma jurídica, de forma que sua ocorrência fará tal fato gerar o correspondente fato jurídico no “mundo jurídico”. Consequentemente, haverá atos da conduta humana que, por serem atinentes a questões que prescindem de tutela jurídica, serão ignorados pelo ordenamento (GOMES, 1980, p. 44), posto que excessivamente triviais ou sem maiores repercussões na vida social. Por outro lado, aqueles atos que sejam dignos de proteção comporão, propriamente, o conteúdo da autonomia privada perante a ordem jurídica, com todos suas permissões e restrições. Outros aspectos atinentes ao fenômeno da incidência jurídica e ao conceito de negócio jurídico serão abordados em momento oportuno. 14 Sustenta Pietro Perlingieri, inclusive, a impossibilidade de se igualar, formalmente, os atos de natureza não- patrimonial e existencial – tais como aqueles relativos à saúde (v.g. transplantes) e à vida família – aos atos negociais em sentido estrito, destinados exclusivamente à busca do lucro (PERLINGIERI, 2007, p. 276), de forma que aqueles seria dotados de posição mais elevada na hierarquia constitucional em relação a estes, pelo menos em relação ao ordenamento jurídico italiano (PERLINGIERI, 2007, p. 18). 15 negócio patrimonial, não exaure a área de relevância da liberdade dos particulares” (PERLINGIERI, 2007, p. 275-276). Em segundo lugar, importa mencionar, ainda, que a análise de dita autonomia privada, pelo menos no que diz respeito à sua análise em concreto, deverá sempre ser feita com referencial a dado ordenamento jurídico; isto pois sua caracterização é essencialmente dependente da configuração do ordenamento jurídico a que se faz referência (PERLINGIERI, 2007, p. 17), especialmente quando se fala sobre os limites impostos por tal ordem jurídica à autonomia privada. Consequentemente, se trata de conceito jurídico substancialmente influenciado pelo contexto cultural, filosófico e histórico em que estiver inserido (RAATZ, 2016, p. 158). É por esta última razão, inclusive, que é válido tratar o exercício da autonomia privada, sim, como exercício da autorregulação reconhecida pelo ordenamento jurídico aos indivíduos, mas sem se esquecer que é também uma questão intimamente relacionada com seus limites (AMARAL NETO, 1989, p. 215). A existência de tais limites, muito embora desde sempre existentes, não é sinônimo de sua imutabilidade, especialmente quando considerado que sua modificação – seja para equilibrar interesses individuais ou atingir algum grau de justiça social (GOMES, 1980, p. 45-46) – depende, em última instância, da própria evolução da ordem jurídica subjacente. Esta primeira aproximação do conceito de autonomia privada cumpre o importante papel de fixar de parâmetros e conteúdos mínimos para sua compreensão, o que se demonstra útil quando se aborda tema tão polivalente e, não raramente, tratado de forma ambígua e pouco precisa. Se presta, ainda, a demonstrar que o conceito ora adotado não é aquele derivado de concepções voluntaristas da autonomia privada, comumente vinculadas às noções do dogma da vontade, da vontade como fonte jurídica15 e da liberdade absoluta de negociar. Assim, conforme já exposto, uma acepção dogmática da noção de autonomia privada deriva, necessariamente, de seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico, posto que a autorregulação dos interesses dos indivíduos só pode existir naqueles ordenamentos jurídicos que efetivamente reconheçam a existência de interesses privados (MELLO, 2012, p. 217). Conforme síntese já clássica de Betti, “a autonomia privada é um fenômeno logicamente correlativo ao da existência das esferas individuais de cada um” (BETTI, 1969, t.1, p. 93). 15 Como frisa Marcos Bernardes de Mello (2012, p. 222), a vontade não é fonte de categorias jurídicas ou dos correspondentes efeitos jurídicos, vez que, respectivamente, tão somente lhe cabe a escolha e o preenchimento de tais categorias, além de só poder atribuir-lhes aqueles efeitos jurídicos que se balizem pelos limites traçados pelo sistema jurídico. Isto pois “tanto quando há ampla liberdade negocial como quando existe disciplinamento prévio, restringindo-a, o que, efetivamente, se tem é outorga de poder às pessoas pelo ordenamento jurídico” (MELLO, 2012, p. 222). 16 Com o reconhecimento da autonomia privada pelo ordenamento jurídico, passa-se ao subsequente desafio de regulamentá-la. Em diversas experiências jurídicas modernas, o instrumento principal que se destina a viabilizar o exercício da autonomia privada, notadamente a autonomia negocial, se dá por meio da categoria do negócio jurídico, cujos próprios limites representam a área de liberdade de atuação conferida à autonomia privada (GOMES, 1980, 43). Assim, pode-se dizer que: O negócio é instrumento de autonomia privada, precisamente no sentido de que é posto pela lei à disposição dos particulares, a fim de que possam servir-se dele, não para invadir a esfera alheia, mas para comandar na própria casa, isto é, para dar uma organização básica aos interesses próprios de cada um, nas relações recíprocas. (BETTI, 1969, t.1, p. 102). Uma vez identificado o forte liame existente entre a noção de autonomia privada e sua concretização pelos correspondentes negócios jurídicos, justifica-se, antes de se passar ao seu estudo e classificação na teoria dos fatos jurídicos, que se apresente breve contexto evolutivo do conceito da autonomia privada. Tal se dá, em grande medida, pois sua evolução e funcionalização foram, ao menos no direito brasileiro, fundamentais para a reformulação dos hoje atuais paradigmas dos fenômenos negocial e contratual. 2.1.1 Da autonomia da vontade à autonomia privada funcionalizada Conforme já exposto, o conteúdo que vem a compor o conceito de autonomia privada é, antes de tudo, condicionado pelas circunstâncias históricas e culturais do ordenamento jurídico em que estiver inserido. É por tal razão, inclusive, que alguns autores apontam a existência de diversas “autonomias”, cada qual refletindo a visão e interpretação de cada época sobre tal conceito (RODRIGUES JUNIOR, 2004, p. 117). Importante distinguir, assim, a acepção da autonomia da vontade, em sua gênese, da ideia de autonomia privada que se desenvolve posteriormente. A Revolução Francesa, na qualidade de fato histórico que viabiliza o rompimento com o Ancién Régime francês, coloca em perspectiva central a figura do indivíduo – notadamente do indivíduo burguês, componente essencial do “terceiro estamento” (le Tiers Etat) -, além de pautar, também, na tríade “liberdade, igualdade, e fraternidade”, os ideais de supressão de estamentos sociais, igualde formal16 e abolição de todos os privilégios (COMPARATO, 2015, p. 148). 16 Paolo Grossi destaca que a igualdade, formalmente considerada, desempenhará um papel importante no Código Civil Francês de 1804. Isto pois, partindo da premissa que o “ônus da igualdade” não tolera qualquer forma de diversidade que se derive do pertencimento a dada religião ou, ainda, a certas velhas estruturas sociais 17 Ademais, devido à forte influência filosófica do iluminismo e do humanismo nos ideais que levaram à Revolução, destaca-se que tal período fora marcado, ainda, pelas concepções do individualismo e do voluntarismo, ideias estas que, como se verá, são fundamentais na conformação da autonomia da vontade como era, então, compreendida. É corrente a indicação de que o fundamento do individualismo se encontra na doutrina do nominalismo, a qual teve como alguns de seus principais expoentes Duns Scotto e Guilherme de Ockham. Em grandes linhas, o nominalismo, tal como apresentado por Ockham, indica verdadeira contraposição ao realismo moderado, tal como sustentado por São Tomás de Aquino, o qual tomava como reais – ou seja, não se confundindo com meros conceitos surgidos da mente humana – os chamados “universais”: v.g. os gêneros, as espécies (VILLEY, 2005, p. 227). Assim, os seres singulares viriam a se incluir em classes que refletiam a existência de uma ordem natural e existente, objetivamente, no mundo exterior, independentemente de sua apreensão pelo intelecto (VILLEY, 2005, p. 227). A oposição de Ockham e de seu nominalismo ao realismo é frontal; sustenta o autor, na realidade, que somente os indivíduos são, efetivamente, reais e existentes, contrapondo-se àquelas categorias universais: “só Pedro, Paulo, aquela árvore, aquele bloco de pedra são reais, só eles constituem ‘substâncias’. Quanto ao ‘homem’, quanto ao vegetal ou ao mineral, isso não existe, e poderíamos dizer o mesmo de todas as noções gerais” (VILLEY, 2005, p. 229). Desta forma, todos os indivíduos, seres e objetos devem ser considerados individualmente, singularmente. Os “universais” e as generalizações, por sua vez, não representariam mais do que signos e termos da linguagem destinados, tão somente, a exprimir semelhanças ou relações existentes entre vários fenômenos ou seres singulares (VILLEY, 2005, p. 230). O voluntarismo, por sua vez, reflete a doutrina “segundo a qual o direito tem a sua fonte não numa ordem objetiva (da natureza, da sociedade), não em direitos naturais e irrenunciáveis do homem, não uma lógica jurídica objetiva, mas no poder da vontade” (HESPANHA, 2012, p. 322). Com desdobramento do nominalismo de Ockham nos ideais do individualismo e do voluntarismo, interessantes repercussões são sentidas no próprio mundo do direito; isto pois, se conceitos genéricos e universais não são, de fato, reais, põe-se em xeque a própria noção intermediárias, as pessoas passam a ser consideradas como seres abstratos e socialmente “nus”, ou seja, completamente desvencilhadas de sua condição social (GROSSI, 2010, p. 88). 18 clássica de direito natural17, cuja essência residia na descoberta de soluções jurídicas emanadas da ordem subjacente à própria natureza. O nominalismo, assim, prima pela existência de uma norma jurídica não mais extraída da ordem natural, mas fundada nas vontades positivas dos indivíduos (VILLEY, 205, p. 233). A menção a tais normas fundadas na vontade dos indivíduos sugere, ainda, que o embrião do próprio positivismo jurídico se encontrava na obra de Ockham: O positivismo jurídico é [...] a doutrina que exalta o direito positivo a ponto de pretender edificar sobre a lei, e apenas sobre a lei, o conjunto da ordem jurídica. E é nesse sentido, o mais claro e mais autêntico, que o positivismo jurídico é produto do nominalismo. E que já faz parte da doutrina de Guilherme de Ockham. Como acabamos de dizer, Guilherme de Ockham apenas reconhece, como objeto do conhecimento, “res positivae” singulares: isso quer dizer que ele também só pode reconhecer como fontes de direito fórmulas de leis, expressões de vontades individuais, e não mais a ordem da natureza. Guilherme de Ockham concebeu e até aplicou o positivismo jurídico. (VILLEY, 2005, p. 236) Como último elemento a ser destacado acerca da obra de Ockham, Michel Villey aponta, ainda, que é possível se encontrar o gérmen do que do surgimento da noção de direito subjetivo18 em sua obra. Para Villey, tal origem se dá pela associação entre a força normativa do direito a uma faculdade do sujeito, notadamente um poder, cuja associação dará origem a uma nova ordem social, fundada no direito individual e na ideia de potestas dignificado enquanto direito (VILLEY, 2005, p. 253 e 288). Seriam, conforme Hespanha (2012, p. 320-321), “poderes de vontade garantidos pelo direito”, cuja restrição somente se justifica na medida em que for necessária para a salvaguarda dos direitos dos outros. A título de exemplificação, cita-se o direito do credor de exigir a prestação do devedor e o direito de o proprietário usar de sua propriedade com a exclusão da interferência de terceiros; todos estes direitos subjetivos correspondem à expressão de uma vontade, cujos efeitos não existiriam senão provocados pela manifestação desta mesma vontade (HESPANHA, 2012, p. 321). Naturalmente, a absorção de inúmeras propostas do nominalismo pelo direito fora um processo lento, vez que a obra de Guilherme de Ockham surge já na primeira metade do 17 Não se pretende, aqui, discorrer sobre as acepções ou sobre as inúmeras correntes filosóficas acerca da ideia de direito natural. O que busca aqui se apresentar é, na esteira da exposição de Michel Villey (2005), demonstrar que a mudança de enfoque estimulada pelo nominalismo de Ockham gerará, eventualmente, uma mudança na compreensão do fenômeno jurídico, cujo polo de interesse migrará de uma preexistente “ordem natural” para uma ordem decorrente da própria racionalidade humana. 18 Para as razões que levam Michel Villey a identificar, na obra de Ockham, as raízes para uma “teoria ockhamiana do direito subjetivo”, nascida, especialmente, em decorrência da querela entre a Ordem dos Monges Franciscanos – da qual Ockham era membro - e o Papa João XII, remetemos para Michel Villey, “A formação do pensamento jurídico moderno” (2005, p. 265-288). 19 século XIV (VILLEY, 2005, p. 221-222). Entretanto, sustenta Michel Villey que, não obstante a lógica e metafísica da obra de Ockham tenha se transmitido somente de forma indireta e lenta para a ciência jurídica, seu papel fora fundamental para a para as premissas e estrutura do direito moderno (VILLEY, 2005, 233-234). Não é por outro motivo que o direito natural que se desenvolve na cultura jurídica europeia dos séculos XVII e XVIII, bebendo das fontes do nominalismo e do cientificismo cartesiano, reflete um “novo” jusnaturalismo, cujo fundamento não residia mais em fundamentos religiosos – notoriamente fragmentados na Europa -, mas sim em um atributo comum a todos os homens: a razão. É o processo de laicização dos valores que fundamentam o direito, valores estes comuns a todos os homens, assim como também o são as evidências racionais (HESPANHA, 2012, p. 310-311). John Gilissen (1995, p. 737-738) atribui, ainda, à Escola Jusnaturalista o primado do desenvolvimento, no século XVII, da autoridade da vontade: indica, assim, que com Grócio se desenvolverá a soberania da vontade, com fundamento no respeito da palavra dada, cuja observância se imporá desde as relações individuais até os tratados firmados entre as nações; Puffendorf, por sua vez, defenderá que a autoridade do direito encontra seu fundamento e origem no homem, o qual não pode ser comandado por nenhuma autoridade superior. Tradicionalmente, entretanto, indica-se a doutrina de Immanuel Kant como a precursora19 da expressão “autonomia da vontade”, com lastro em sua obra “Fundamentação da metafísica dos costumes” (RODRIGUES JUNIOR, 2004, p. 117). A doutrina kantiana da “teoria da vontade” teria, portanto, realçado a autonomia da vontade e seu papel criador de valores universais. Em última instância, o próprio direito consistiria na forma da relação existente entre o encontro do arbítrio de duas pessoas, sendo que a ação justa ou jurídica se expressaria pela coexistência entre os respectivos livres-arbítrios (HESPANHA, 2012, p. 321). Vê-se, portanto, que toda bagagem filosófica e jurídica que se expressa com o eclodir da Revolução Francesa é o acúmulo, pois, de longo desenvolvimento do nominalismo, da doutrina kantiana e da conformação de um novo jusnaturalismo, todos os quais representam um retorno ao indivíduo e à exacerbação de sua vontade. 19 Certos autores, entretanto, indicam que a expressão só haveria ingressado no direito interno por contribuição de obras de Direito Internacional, notadamente a partir de posicionamentos de Charles Dumoulin no século XVI (RODRIGUES JUNIOR, 2004, p. 117-118). 20 Ainda que seja inquestionável a relevância da Revolução Francesa na conquista das liberdades individuais, conquista esta que pode ser descrita, inclusive, como uma primeira geração dos direitos humanos (FERREIRA FILHO, 2012, p. 24), não se deve olvidar que fora no campo das relações econômicas e contratuais que a autonomia da vontade encontrou sua maior aceitação, especialmente com a edição do Code Civil francês de 1804. O Código Civil Francês (comumente designado como Código de Napoleão ou Napoleônico) representa verdadeiro marco para a ciência jurídica europeia, notadamente por ser o primeiro grande Código da idade moderno e o primeiro dos códigos burgueses (ROPPO, 2009, p. 41). Em perspectiva funcional, Judith Martins-Costa aponta que o Código de Napoleão atende perfeitamente às necessidades da burguesia industrial que se expande no século XIX, trazendo, em seu conteúdo, extensa regulamentação da vida privada: abrange os fundamentos do individualismo do liberalismo; coloca os bens no centro20 do sistema jurídico e edifica um regime de propriedade que viabiliza a apropriação privada dos meios de produção; assegura a transmissão patrimonial21 por meio da sucessão causa mortis, sem prejuízo do direito de testar, dentre outras questões (MARTINS-COSTA, 2000, p. 187-188). Em suma: o Código Civil Francês de 1804 busca regular exaustiva e plenamente a vida privada burguesa, a ponto de ser apontado como a “constituição da vida privada” (MARTINS-COSTA, 2000, p. 189). A divisão do Código se dava em três grandes seções: a primeira destinada às pessoas, a segunda à propriedade e, a terceira e última, destinada aos instrumentos que existem para a viabilizar a circulação de bens, tais como contratos, sucessões, dentre outros (GROSSI, 2010, p. 89). É por tal razão que Enzo Roppo destaca que o contrato, no Código de 1804, assume uma posição subordinada à propriedade, vez que destinado a transferir direitos sobre as coisas (ROPPO, 2009, p. 42). Assim, com a edificação da propriedade privada enquanto pedra fundamental do Código de Napoleão, consolidada estava, também, a liberdade individual: como é marca do pensamento oitocentista, as ideias de propriedade e liberdade estavam intimamente atreladas, posto que, de um lado, a propriedade representava a garantia do indivíduo em face do poder público; por outro, era a liberdade que constituía a própria substância da propriedade, vez que, sem aquela, não haveria a possibilidade de uso e gozo desta (ROPPO, 2009, p. 42-43). Assim, “sem propriedade [...] não há liberdade, mas inversamente, não pode haver propriedade 20 Destaca Judith Martins-Costa (2000, p. 188), neste sentido, que mais de 1700 artigos do Código de Napoleão dizem respeito aos bens, enquanto tão somente 500 eram dirigidos às pessoas. Entretanto, mesmo os dispositivos relativos às pessoas versavam, primariamente, sob a perspectiva de sua propriedade (GROSSI, 2010, p. 89). 21 dissociada da liberdade de gozá-la, de dela dispor, de transferi-la e fazê-la circular sem nenhum limite” (ROPPO, 2009, p. 43). Entretanto, a maioria dos recursos econômicos e da propriedade imobiliária eram de titularidade das classes vencidas na Revolução Francesa – nobreza e clero -, razão pela qual urgia o desenvolvimento de mecanismos e instrumentos de transferência de riquezas para a burguesia, ora vitoriosa, a fim de que concentrasse grande parcela dos recursos produtivos às suas capacidades produtivas (ROPPO, 2009, p. 43). Diante de tais urgências e da necessidade de edificação de um instrumento técnico- jurídico adequado a realizar tal transferência, com redução de desperdícios, atritos e lesões substanciais, o legislador francês edifica a figura do contrato e a correspondente liberdade de contratar, com fundamento no consenso dos contratantes (ROPPO, 2009, p. 45): Nesta perspectiva, liberdade de contratar significava, para a burguesia empreendedora, de adquirir os bens das classes antigas, detentoras improdutivas da riqueza, e livre possibilidade de fazê-los frutificar com o comércio e a indústria. Mas contrato baseado no consenso significava, por outro lado, uma forte garantia para as velhas classes proprietárias (que a burguesia pretendia não destruir, mas promover, numa relação de aliança subalterna): a garantia de que para a transferência dos seus bens era sempre necessária sua vontade. (ROPPO, 2005, p. 45-46) Assim, a ideia de plena liberdade de contratar era condição de possibilidade de desenvolvimento das atividades burguesas, vez que capaz de viabilizar a transferência patrimonial pretendida; por outro lado, era a plena vinculação dos contratantes à palavra dada, à vontade livremente manifestada, que garantia a segurança jurídica das avenças pactuadas. Consagrando a dupla necessidade de liberdade e segurança, o legislador francês edificou, no artigo 1.134 do Código Civil de 1804, fórmula que seria verdadeiro marco da ideologia liberal e de seu constructo jurídico nos oitocentos: “os contratos legalmente formados têm força de lei para aqueles que os celebraram”22. Tal dispositivo, muito embora seja enunciado de simples compreensão, reflete verdadeira síntese do quanto até aqui exposto, sendo troféu do triunfo do liberalismo, do individualismo e do liberalismo, cujos desdobramentos são significantes para a ordem jurídica então vigente. Em primeiro lugar, destaca-se que o artigo 1.134 consagra, em termos jurídicos, o dogma da autonomia da vontade, cujos antecedentes já foram explorados. Como sintetiza Judith Martins-Costa, o dogma assenta a noção de que o homem livre exprime uma vontade 22 Tal tradução fora encontrada na tradução portuguesa da obra de Enzo Roppo, “O contrato” (2009, 34). Miguel Reale, entretanto, evita propositadamente a expressão “força de lei”, apresentando a seguinte tradução: “as convenções legalmente formadas têm lugar de leis (tiennent leu de lois) para aqueles que as fizeram” (REALE, 1998, p. 90). Entendemos que, para fim da exposição que ora se faz, ambas as traduções exprimem o fim pretendido, qual seja, demonstrar a obrigatoriedade e vinculação dos contratantes aos pactos por si celebrados. 22 livre, ou seja, “o indivíduo é, na sociedade, um ser essencialmente livre, que somente pode se vincular e não pode sofrer nenhuma outra constrição senão aqueles que ele mesmo reconhece ou as que a ordem jurídica, excepcionalmente, e de forma limitada e vaga, lhe assinala” (2000, p. 202-203). Daí se falar em consensualismo contratual, ou seja, o consenso entre as partes contratantes como fonte de relações jurídicas (REALE, 1998, p. 91). Se, por um lado, o consentimento mútuo constitui elemento essencial do contrato, sem exigências, como regra, de formas específicas que fossem essenciais à sua validade (NEGREIROS, 2002, p. 25), a ausência de consentimento livre, seja por falta de liberdade (v.g. a coação) ou de conhecimento de causa (v.g. o erro), macula e nulifica o contrato, posto que viciada a vontade do contratante (MARTINS-COSTA, 2000, p. 203). Em segundo lugar, a justiça contratual não era questão que comportava maiores elocubrações. Se as manifestações de vontade que deram origem ao contrato foram declaradas livremente, sem qualquer vício de consentimento, a igualdade jurídica (formal) dos contratantes era garantia de que as trocas respeitavam os cânones da justiça comutativa (ROPPO, 2009, p. 35). Assim, a mera igualdade formal entre indivíduos e a sua livre manifestação de vontade asseguravam que o contrato seria automaticamente reputado como justo (MARTINS-COSTA, 2000, p. 203), independentemente das condições materiais de sua realização ou da existência de eventual desequilíbrio contratual (RENNER, 2007, p. 28). Tal cenário é representado, sinteticamente, pela já clássica fórmula atribuída a Alfred Fouillé: “quid it contractuel dit juste”23. Em terceiro lugar e consagrando uma das mais célebres fórmulas na seara dos contratos, tem-se a noção de “pacta sunt servanta”, a qual atribui obrigatoriedade aos compromissos livremente assumidos, cujo caráter inderrogável lhes aproximaria da própria ideia de lei (ROPPO, 2009, p. 34). Assim, obrigatoriedade dos contratos exprime, além uma substância ética própria, intimamente relacionada com a autorresponsabilização de indivíduos livres, um caráter econômico relevante, vez que garante a circulação de riqueza na medida em que protege o cálculo econômico e as previsões dos contratantes (ROPPO, 2009, p. 34-35). É, pois, condição necessária para o funcionamento do sistema de circulação de bens proposto pelo Código Civil Francês de 1804. 23 Conforme tradução de Anderson Schreiber, “quem diz contratual diz justo” (SCHREIBER, 2020, p. 61), refletindo a noção de que a justiça contratual é intrínseca aos pactos nos quais as vontades foram livremente manifestadas por sujeitos formal e juridicamente iguais. 23 Em quarto e último lugar, destaca-se uma outra repercussão teórica essencial para o que pretende aqui se expor: a fórmula econômica liberal do laissez-faire, laissez-passer clama pela liberdade absoluta de contratar, ainda que as avenças se apresentassem, no plano material, como absolutamente injustas (GILISSEN, 1995, p. 738-739). É por tal razão que se aponta que a autonomia da vontade, se encontrava limites na lei, estes eram mínimos, se confundindo, não raramente, com sua ausência: a tal poder da vontade a lei só pode opor uns poucos limites negativos, vale dizer, a lei apenas tem o poder de assinalar as fronteiras, muito largas, dentro das quais a liberdade individual poderia mover-se e expandir sem contrariedades, tais quais a fórmula dos bons costumes e as limitações subjetivas, atinentes à capacidade. Não se poderia, então, tolerar a imposição, por lei, de fronteiras positivas, que impusessem aos sujeitos, contra a sua vontade, certos deveres e muito menos que estes deveres viessem formulados pela voz do Judiciário. (MARTINS-COSTA, 2000, p. 203) Vê-se, ante o já exposto, que a ideia de autonomia da vontade cunhada no pós- Revolução, mais especificamente pelo Código Civil Francês de 1804, representa uma síntese de um contexto histórico e cultural específico, permeado pelos ideais de humanismo, individualismo, voluntarismo e, sobretudo, liberalismo. Como bem define Antônio Junqueira de Azevedo, tal autonomia da vontade, dita “francesa”, não representa mais do que uma visão insular do homem, fundada em um dualismo que separa o homem e a natureza (AZEVEDO, 2002, p. 13 apud RODRIGUES JUNIOR, 2004, p. 118); referencia-se, metaforicamente, ao homem europeu como aquele que, trajando seu terno, deixa à mostra tão somente sua cabeça e suas mãos, símbolos respectivos da razão e da ação ou vontade, mas esconde o restante do corpo, o qual simboliza a natureza física e a essência do homem (AZEVEDO, 2002a, p. 109). É, por esta razão, que aqui se acolhe a crítica de Judith Martins-Costa acerca do uso contemporâneo da expressão autonomia da vontade, posto que esta representa uma construção ideológica específica do século XIX (MARTINS-COSTA, 2000, p. 614-615 apud NEGREIROS, 2002, p. 2). Acrescente-se, ainda, que ideia de autonomia da vontade traz consigo, uma conotação de liberdade absoluta e irrestrita, verdadeiras “zonas francas” para a atuação de tal autonomia (TEPEDINO, 2009c, t. 3, p. 6), o que, atualmente, não mais se sustenta. Sem superar, ainda, o dogma da autonomia da vontade, o fenômeno contratual ganhará novo nível de sofisticação e abstração com a pandectística e o desenvolvimento da categoria dos negócios jurídicos. O BGB, o qual entra em vigor quase um século de atraso em relação à experiência francesa por força de diversas condicionantes histórias e sociais, é produto de 24 uma tradição científica diferente substancialmente distinta da francesa, o que levou à edificação de um modelo distinto de disciplina contratual (ROPPO, 2009, p. 46-47). Destaca-se, nesse sentido, a construção de uma categoria jurídica mais abstrata e geral que o contrato, capaz de abarcar uma série de fenômenos que não apenas o contratual: o negócio jurídico. Assim, a disciplina contratual não mais se reportava, tão somente, à subespécie do contrato (Vertrag) propriamente, mas também às normas gerais de disciplina do negócio jurídico (Rechstsgeschäft) (ROPPO, 2009, p. 47-48). Se é possível se apontar distinções de cujo ténico-jurídico entre os modelos alemão e francês, é certo que, no plano ideológico, o negócio jurídico representava um instrumento ainda mais eficaz na reafirmação dos valores burgueses. Não bastasse sua absoluta harmonia com as exigências e interesses econômicos desta classe, o negócio jurídico representava novo passo no sentido de abstrair, ainda mais que o contrato, os negócios dos sujeitos reais e das operações econômicas reais, hipertrofiando a igualdade formal dos sujeitos jurídicos (ROPPO, 2009, p. 50-51): Por intermédio dele, tornavam-se de facto irrelevantes, ou apagavam-se até, a concreta posição económico-social das partes e os termos reais da troca económica levada a cabo, que desapareciam por detrás de um de um dado, por assim dizer, biológico (e neste sentido abstraído das determinações de classe) ao qual se atribuía relevância exclusiva: a vontade; (ROPPO, 2009, p. 51) Assim, o poder e relevância da vontade também encontrava abrigo no BGB, sendo inclusive elevada a elemento central para a definição do negócio jurídico, reforçando-se ainda mais o dogma da vontade. Limitava-se, assim, a aferição de eventuais vícios do negócio jurídico à verificação da existência de eventuais vícios da vontade que, de forma um tanto quanto similar à francesa – ainda que relativa a conceito jurídico inexistente no Código Civil Francês de 1804 -, maculassem a liberdade e a espontaneidade da quem contrata (ROPPO, 2009, p. 49). O apelo à vontade e à sua força criadora de obrigações justificava, ainda, que se limitasse a interferência de poderes públicos na dinâmica das atividades dos particulares, cujo fundamento se dava em sua autonomia da vontade. Oras, se a autonomia da vontade coincidia com a livre expressão da vontade humana, é consequência natural que toda influência externa ou “qualquer intervenção autoritária destinada a limitá-la devia aparecer como como tentativa inadmissível de substituir a fonte ‘natural’ dos efeitos jurídicos por uma fonte ‘artificial’ e arbitrária, e, ao mesmo tempo, como atentado odioso a um atributo fundamental da pessoa.” (ROPPO, 2009, p. 51-52). 25 Tal qual na experiência francesa, Wieacker (2015, p. 552) ainda aponta que o BGB não conferiu ao direito privado, propriamente, uma função social própria24. Limitou-se, assim, a configurar um modelo de direito privado que se mantinha adstrito aos estreitos limites de um liberalismo eticamente fundado, mas ainda refletindo os interesses da classe burguesa. Muito embora se aponte que o BGB tenha nascido, em certa medida, em descompasso com certas exigências sociais e até mesmo da sociedade dos negócios, é certo que seu primor técnico-científico o alçou à condição de código comparável com o Código Civil Francês de 1804, influenciando substancialmente países encarregados na missão de construir um código próprio (WIEACKER, 2015, p. 553-554). Naturalmente, tal influência se fez sentir no Código Civil Brasileiro de 1916, apontando-se o BGB como na base do projeto de Clóvis Beviláqua (WIEACKER, 2015, p. 556-557), além de ser possível a identificação das influências individualistas e voluntaristas do Código Civil Francês de 1804. Assim, adotou-se, também na realidade brasileira, a filosofia europeia do século XIX, sintetizada como individualista e representante do “mundo da segurança”, assim compreendida a noção de “segurança”, conforme síntese de Stefan Zweig, como sinônimo de segurança dos pactos e do trânsito jurídico de bens25, por sua vez garantidos pela estabilidade das regras do direito civil (TEPEDINO, 2006a, p. 38-39). É certo que, não obstante a panaceia individualista e a edição do BGB no crepúsculo do século XIX, logo na segunda metade do século já se insurgiam vozes contrárias aos abusos decorrentes da liberdade contratual irrestrita; o recrudescimento das desigualdades sociais e da exploração brutal da mão de obra proletária, tudo validado com fundamento na sacrossanta “liberdade contratual” do indivíduo abstrato dos oitocentos, geraram crises sociais até então inéditas. Some-se a tal questão social, ainda, que o começo do século XX fora surpreendido por duas guerras de escala mundial, as quais puseram em xeque os consensos até então estabelecidos. 24 Cita Franz Wieacker, por exemplo, que o BGB decidia fundamentalmente contra a equivalência material dos contratos, tal como proposta pela ética aristotélica; que a fórmula da laesio enormis, herdado do direito comum, desapareceu; e que a cláusula rebus sic stantibus fora expressamente rejeitada. Em suma, o BGB renunciou a uma ética material dos contratos e não se preocupou que a liberdade contratual eventualmente se tornasse uma ameaça à liberdade social pela constituição de cartéis ou pelo falseamento do mercado. Bastava, assim, a crença e a confiança no ideal do cidadão racional e autorresponsável (WIEACKER, 2015, p. 552-553). 25 É interessante notar que, se o Código Civil Francês de 1804 e o BGB representavam, respectivamente, os interesses da incipiente classe burguesa francesa e alemã, também no Brasil o Código Civil de 1916 é fruto da obra de homens de classe média, cuja preocupação imediata era a construção de um conjunto de normas de Direito Privado que correspondesse às “aspirações de uma sociedade interessada em afirmar a excelência do regime capitalista de produção”, muito embora tenham sofridos pressões da elite agrária do país, a qual não tolerava certas “ousadias” de cunho liberal e progressista (GOMES, 2006, p. 30-31). 26 As reações a tais excessos do liberalismo econômico e jurídico se apresentarão como um movimento cunhado como “socialização” ou “publicização” do direito, cujos traços essenciais residem no aumento da influência do direito público sobre áreas até então reservadas ao direito privado26, bem como o aumento intervenção estatal na economia. No plano jurídico, tais intervenções redundaram, não raramente, na redução da liberdade irrestrita de contratar. Na Alemanha, por exemplo, indica-se que o “novo” direito social e econômico quebraram o predomínio do direito privado a partir da 1ª Guerra Mundial, sendo impostas graves restrições às liberdades contratuais e de utilização de propriedade pela economia de guerra. Tais traços foram marcantes, por exemplo, com o controle e regulamentação de um mercado dirigido de habitação27, o qual constituiu ruptura profunda com a ampla liberdade de contratar, medida esta que se impôs pelo problema habitacional que acometeu o país durante o período de guerra (WIEACKER, 2015, p. 630-634). Também adquiriu relevância e autonomia em tal período, na Alemanha, o direito do trabalho, cujo alargamento e desenvolvimento pela doutrina e pela jurisprudência durante tal período é considerado como um dos progressos jurídicos mais relevantes do século XX, cujo destacamento completo do direito privado só se deu com vitórias parciais da classe operária alemã em 1918 (WIEACKER, 2015, p. 635-636). Em suma, o que se percebe na realidade alemã é um movimento de integração da sociedade econômica liberal na ordem jurídica pública, mediante a “impregnação” do direito social na realidade jurídica alemão do século XX (WIEACKER, 2015, p. 632): Isto significa, no entanto, que, neste sistema ordenador, os princípios constitutivos do direito privado clássico – a fundamentação dos direitos subjectivos privados e da autonomia negocial privada e as conexões conceituais e a unidade interno do sistema – estão necessariamente postas à prova e submetidas a uma mutação decisiva de funções. Uma nova 26 É importante, entretanto, que se faça menção das críticas formuladas por Otavio Luiz Rodrigues Junior sobre tal processo de “socialização” do direito privado. Destaca que tal sensação de “asfixia” fosse, na época em que surge, até passível de identificação com uma ideia “publicização” do direito civil, dado o aumento na preocupação com questões de interesse social e conteúdo humanista. Entretanto, a utilização de um termo tão plurívoco como “socialização” não pode, hoje, ser aceito de forma tão genérica. Para tanto, cita, por exemplo, que muito embora a famosa obra de Patrick Atiyah, “The rise and fall of freedom of contract”, tenha sido projetada para a realidade brasileira como se fosse um trabalho descrito da crise dos contratos no pós-guerra, em verdade se refere à ascensão e queda de uma teoria contratual específica, qual seja, a teoria inglesa, também fundada no voluntarismo e em voga entre os séculos XVIII e XIX; por outro lado, também demonstra o “avanço” do direito civil sobre áreas tais como do direito administrativo, do trabalho e processual civil – esta última evidenciada, após a edição Código de Processo Civil de 2015, por exemplo, pela criação da figura do negócio jurídico processual – a partir dos idos de 1980, sem que, contudo, tal processo fosse identificado como a “civilização” do direito público (RODRIGUES JUNIOR, 2019, p. 41-82). 27 Inicialmente concebido como uma regulamentação jurídica de emergência, o direito social de habitação foi adquirindo, com o tempo, certa permanência no direito alemão, fixando rendas mínimas e máximas e medidas de proteção dos inquilinos (WIEACKER, 2015, p. 634). 27 legitimação do direito privado na consciência jurídica do estado social e a sua convincente sintonização com o direito social (ao lado da sua integração numa economia concorrencial concebida como princípio de funcionamento do mercado) passaram a constituir a tarefa mais premente da jurisprudência e da dogmática civilísticas da actualidade. (WIEACKER, 2015, p. 633) Assim, a liberdade contratual é mantida no contexto da “economia social de mercado”, mas passa a ser funcionalizada28 em relação ao ordenamento social; as limitações da liberdade contratual derivam da observância da erupção da solidariedade em meio à concepção clássica do direito privado (WIEACKER, 2015, p. 633). Processo parecido acometeu, paralelamente, a realidade jurídica brasileira. Inicialmente elaboradas com caráter excepcional e transitório, a fim de manter inalterados os alicerces e a dogmática do Código Civil Brasileiro de 1916, o legislador brasileiro viu-se cada vez mais pressionado a editar leis “de emergência”29, com o intuito de atender aos inúmeros conflitos sociais e situações econômicas não contempladas pelo Código (TEPEDINO, 2006a, p. 39-40). Neste sentido, por exemplo, aponta-se que o Decreto nº 4.403, de 22 de dezembro de 1921, foi um dos primeiros diplomas a inaugurar uma série de leis do inquilinato com maior ou menor grau de proteção aos locatários, derrogando as normas do Código Civil de 1916 relativas à matéria (RODRIGUES JUNIOR, 2019, p. 41). Acentuaram-se, no mesmo período, às críticas à autonomia da vontade “francesa”, notadamente pelas graves consequências sociais decorrentes de sua exacerbação. Em contrapartida, adotou-se a adjetivação da autonomia enquanto privada, no sentido de dar normas a si mesmo no âmbito das relações jurídicas de direito privado. Assim, a autonomia privata, versão italiana da autonomia da vontade, exprime uma visão dogmática mais objetiva e fundada nos seguintes postulados: a supremacia do interesse público sobre o do particular e de sua esfera privada; a colocação do negócio jurídico como espécie normativa subalterna; a 28 Gustavo Tepedino, com fundamento em Pietro Perlingieri, descreve que o processo de funcionalização das estruturas jurídicas atinge a todos os fatos jurídicos. As situações jurídicas subjetivas apresentam, portanto, dois “aspectos distintos – o estrutural e o funcional. O primeiro identifica a estruturação de poderes conferida ao titular da situação jurídica subjetiva, enquanto o segundo explicita a finalidade prático-social a que se destina. O aspecto funcional condiciona o estrutural” (TEPEDINO, 2009d, t. 3, p. 150). Assim, os legítimos interesses individuais merecerão tutela na medida em que forem socialmente relevantes. Tal noção não se vincula, de forma alguma, a uma visão totalitária do direito: diz respeito ao atendimento dos valores sociais consagrados pela Constituição, os quais são elementos internos à própria noção de autonomia privada (TEPEDINO, 2009d, t.3, p. 150-152). 29 Observando tal movimento de descodificação, o qual também tomou lugar na Itália, Natalino Irti, em célebre obra, anuncia a “era da descodificação”, representada pela substituição de um sistema jurídico único, centrado no Código Civil, por um polissistema, formado por diversos microssistemas de direito privado (TEPEDINO, 2006a, p. 44-45). Entretanto, tal como Gustavo Tepedino (2006a, p. 46-47) e Pietro Perlingieri (2007, p. 6), aqui não se admite a teoria da fragmentação sistemática, posto que a unidade do sistema jurídico hoje reside na centralidade da Constituição Federal, a qual deve, naturalmente, ser tomada como filtro axiológico e polo interpretativo de toda a legislação infraconstitucional, quer esta esteja sistematiza em um Código ou na forma de normas esparsas. 28 autonomia privada reflete um poder normativo concedido aos indivíduos pela lei, mas que deve ser exercida nos limites desta e de seus valores; a autonomia privada reflete um poder outorgado pelo Estado aos indivíduos (RODRIGUES JUNIOR, 2006, 27-28). Importante destacar, ainda, o paulatino processo de inserção, nas constituições, de temas antes reservados ao direito civil. Assim, verifica-se, especialmente nas constituições do pós-guerra30, a introdução de normas que estabelecem deveres sociais a serem observados no desenvolvimento da atividade econômica, além de tratarem de temas tradicionalmente afeitos ao direito civil, tais como função social da propriedade, limites da atividade econômica, organização da família, dentre outros (TEPEDINO, 2006b, t.2, p. 28-29). Há, portanto, um processo de constitucionalização31 do direito civil, o qual, como defende Gustavo Tepedino (2006b, t.2, p. 41-42), passa a exigir, em relação aos legisladores, 30 Indica-se, comumente, que as Constituições Mexicana (1917) e Alemã (1919) foram as pioneiras em traçar as linhas mestras do Estado da democracia social, as quais foram retomadas por diversas cartas constitucionais após a Segunda Guerra Mundial. Os direitos sociais foram, portanto, diferenciados dos clássicos direitos e garantias individuais, já que, se estes representam verdadeira limitação do Estado, ou seja, esferas de liberdade nas quais não é lícito a invasão por parte dos Poderes Públicos, aqueles têm por objeto uma atividade positiva do Estado, o qual, por meio de políticas públicas, deve promover direitos à educação, à saúde, ao trabalho, dentre outros (COMPARATO, 2015, p. 204-206). 31 Muito embora seja expressão comum e já difundida na doutrina nacional, a “constitucionalização” do Direito, em especial do direito civil, não reflete um fenômeno que ocorre, tão somente, de uma única forma. Neste sentido, Virgílio Afonso da Silva (2014, p. 39) indica que, se a principal noção que se tem de “constitucionalização do Direito” é a de irradiação dos efeitos das normas ou valores constitucionais, tal processo pode ocorrer por várias formas, bem como ser causado por diversos atores. Destaca, assim, na obra de Gunnar Folke Schuppert e Christian Bumke, três formas de constitucionalização que servem para a compreensão do fenômeno no direito brasileiro. A primeira destas, a constitucionalização por reforma legislativa, se dá mediante reformas legislativas nas normas infraconstitucionais, a fim de adaptá-las às prescrições constitucionais ou, ainda, realiza-las, no caso das constituições dirigentes. A segunda ocorre pela irradiação do direito constitucional pelos outros ramos do direito, com a consequente “submissão” de tais ramos aos ditames constitucionais. Exemplifica que, muito embora o fenômeno hoje se apresente como trivial, a constitucionalização do direito privado na Alemanha, em 1950, se mostrou como empreitada de difícil fundamentação, diante da tradição noção de que tal ramo do direito seria zona de livre atuação da autonomia privada. Por fim, destaca a constitucionalização pela atuação dos legisladores (como já visto), pela jurisprudência e pela doutrina (SILVA, 2014, p. 39-45). Já na obra de Luis Favoreu, Vírgilio Afonso da Silva frisa que, dentre os tipos de constitucionalização mencionados pelo autor, a chamada “constitucionalização- transformação” é a que mais se aproxima de sua concepção de constitucionalização do direito: é, nas palavras de Louis Favoreau, “constitucionalização dos direitos e liberdades, que conduz a uma impregnação dos diferentes ramos do direito e, ao mesmo tempo, à sua transformação. Mas isso diz respeito também às instituições, especialmente as instituições administrativas e judiciais” (FAVOREAU, 1996, p. 37 apud SILVA, 2014, p. 48). Como resultado da “constitucionalização-transformação”, passa-se a se falar, assim, em “direito constitucional civil”, ideia que não parece Virgílio Afonso da Silva, entretanto, adotar (SILVA, 2014, p. 171-172). Como efeitos indiretos de tal processo, há, em primeiro lugar, a unificação da ordem jurídica, a qual se opera mediante a relativização entre direito público e direito privado e pelo fato de as normas constitucionais se tornarem, progressivamente, o fundamento dos ramos do direito, transformação esta que leva à perda de importância dos chamados “princípios gerais do direito” em favor das normas constitucionais. Em segundo lugar, tem-se a simplificação da ordem jurídica, a qual, ao colocar a Constituição como “norma de referência” do ordenamento jurídico, seu eixo se desloca da lei para a carta constitucional (SILVA, 2014, p. 48-49). Por não ser a constitucionalização do direito civil objeto de pesquisa da presente dissertação, de forma que sua menção é, ainda que indispensável, lateral, remete-se, para outras críticas às diversas acepções do conceito, a Otavio Luiz Rodrigues Junior, “Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais” (2019, p. 171-237). 29 produção normativa compatível com a Constituição; em relação aos intérpretes, reclama uma leitura das leis civis conforme a Constituição, reafirmando, assim, a unidade do ordenamento jurídico, composto de fontes harmônicas; mas, sobretudo, passa a exigir que a autonomia privada e as relações civis sejam revitalizadas mediante nova tábua axiológica, inaugurada pela Constituição. Na realidade brasileira, se a Constituição Federal de 1988 consagrou a liberdade econômica e a livre iniciativa (artigo 1º, IV, da CF), não o fez de forma irrestrita; impõe-se que a livre atuação dos particulares se balize na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), na igualdade substancial (artigo 3º, III, da CF) e na solidariedade social (artigo 3º, inciso I, da CF). A importância do fenômeno descrito para o estudo da autonomia privada decorre do fato que a constitucionalização do direito civil não se trata, necessariamente, de redução quantitativa dos espaços da autonomia privada – vez que os ramos do direito tradicionalmente afeitos ao direito privado continuaram a ele relacionados, assim como fora mantida a liberdade dos particulares na determinação de vários de seus aspectos -, mas verdadeira transformação qualitativa desta, sem que sejam subtraídos seus poderes, titularidades ou responsabilidades (TEPEDINO, 2006b, t. 2, p. 42). Pode-se sistematizar, assim, modificações de ordem subjetiva, objetiva e formal na autonomia privada (TEPEDINO, 2009c, t. 3, p. 14-16). Subjetivamente, a autonomia privada na realidade do direito civil-constitucional se distancia da concepção abstrata dos sujeitos de direito, tal como inicialmente proposto pelos franceses. Ao revés, a pessoa deve ser, agora, concretamente considerada, inclusive em relação às suas condições materiais e sociais, o que pode caracterizá-la como “hipossuficiente”, por exemplo, invocando-se lógica e técnica interpretativas diferenciadas. Objetivamente, tem-se que as relações jurídicas e os interesses existenciais se sobrepõem aos puramente patrimoniais, de forma que estes últimos devem ser funcionalizados em relação aos primeiros. É relevante, pois, que os bens jurídicos – especialmente os “novos” bens jurídicos, decorrentes do avanço da cibernética e da tecnologia, tais como os dados pessoais – não sejam considerados apenas em relação a seus aspectos patrimoniais, mas com foco na tutela da pessoa humana (TEPEDINO, 2009c, t. 3, p. 15). Destaca-se, ainda, a necessidade de se tratar a teoria contratual contemporânea sob a ótica do paradigma da essencialidade, tal como cunhado por Teresa Negreiros (2002, p. 380). Em suma, a caracterização do bem contratado como essencial, útil ou supérfluo deve ser 30 tomada como parâmetro para a conciliação entre os “novos” e os “velhos” princípios32 do direito contratual, de forma que a utilidade existencial do bem será critério juridicamente relevante para a avaliação das questões contratuais. Por fim, é relevante a modificação relativa às formas dos atos jurídicos: se antes o formalismo contratual se justificava exclusivamente como medida de segurança patrimonial, a fim de proteger as transferências de patrimônio inter vivos e causa mortis, este agora passa a exercer, também, função limitadora da autonomia privada, em favor de interesses socialmente relevantes e das pessoas em situação de vulnerabilidade (TEPEDINO, 2009c, t. 3, p. 15). Cite-se, por exemplo, as exigências do Código de Defesa do Consumidor para as diversas cláusulas que possam integrar o contrato de adesão. A autonomia privada, enfim, tal como delineada pela Constituição Federal de 1988, não é infensa aos valores constitucionais, sendo tão somente balizada por limites pontuais impostos pelo Estado; em verdade, esta é funcionalizada em relação à pessoa humana e à tábua axiológica constitucional. O próprio conteúdo das liberdades privadas garantidas pelo projeto constitucional já se reafirma na solidariedade, na igualdade substancial e na tutela da dignidade da pessoa humana. São elementos integrantes de sua substância, e não limites legais externos à liberdade, a qual seria contida pela lei (TEPEDINO, 2009b, t. 3, p. 36-37). Feito tal panorama, tem-se demonstrado, em grandes linhas, os contornos que a autonomia privada assume atualmente na realidade constitucional brasileira, a qual não pode se desvencilhar dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da igualdade substancial. Assim, natural que os negócios jurídicos, instrumento por excelência de concretização da autonomia negocial, estejam sujeitos à tábua axiológica constitucional, assim como os contratos, os quais se inserem, estruturalmente, como categoria mais específica em relação aos negócios jurídicos. 2.1.2 A autonomia negocial e a teoria dos fatos jurídicos: os negócios jurídicos como instrumento da autonomia privada O negócio jurídico assume, por meio da construção jurídica do BGB, o papel de categoria jurídica abstrata e significativamente mais ampla que a simples noção de “contrato”, vez que capaz de regular gama de atos mais ampla do que aquele instituto. É, inclusive, o caráter amplo do negócio jurídico que faz com que Emilio Betti o aponte como uma solução 32 Evitou-se, até o momento, a conceituação do que se entende por “princípio”; seu conteúdo e a problemática da distinção entre princípios e regras será feita em momento oportuno e em conjunto com o estudo da noção de “princípio contratual”. 31 de um problema prático, qual seja, o de conferir à iniciativa individual um modo de se manifestar e de se mover juridicamente (BETTI, 1969, t. 1, p. 96). Entretanto, qualquer análise que pretenda enfrentar, ainda que brevemente, o fenômeno dos negócios jurídicos, deve contextualizá-lo, classificá-lo e inseri-lo na teoria dos fatos jurídicos. Na teoria dos fatos jurídicos, grandemente desenvolvida em solo nacional por Pontes de Miranda e, ulteriormente, por Marcos Bernardes de Mello, é mediante a incidência da norma jurídica sobre o suporte fáctico33 ocorrido que se opera a “juridicização” dos fatos do mundo real, responsável pela criação de seu correspondente no mundo jurídico, qual seja, o fato jurídico. (MELLO, 2012, p. 108). Define-se, pois, como fato jurídico “o que fica do suporte fáctico suficiente, quando a regra jurídica incide e porque incide. [...] Fato jurídico é, pois, fato ou o complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica” (MIRANDA, 2012, t. 1, p. 148). Tal conceito jurídico comporta, ainda, melhor classificação e individualização entre as espécies dos fatos jurídicos de acordo com os elementos nucleares (cerne)34 de seu suporte fáctico (MELLO, 2012, p. 150). Em síntese, os elementos nucleares diferenciais para a classificação dos fatos jurídicos serão: “a) a conformidade ou não conformidade do fato jurídico com o direito, b) a presença, ou não, de ato humano volitivo no suporte fáctico tal como descrito hipoteticamente na norma jurídica” (MELLO, 2012, p. 150). Em primeiro lugar, a análise da licitude ou ilicitude como a primeira grande divisão a ser feita no estudo de fato jurídico lato sensu é essencial para abranger o maior número de espécies do fenômeno. Há fatos que se concretizam em plena conformidade com as prescrições jurídicas, razão pela qual são classificados como lícitos; há, porém, fatos que representam violação das normas jurídicas, negando o direito, o que os caracteriza como ilícitos. Destaque-se que a ilicitude do fato não o torna, entretanto, ajurídico – tome-se, por 33 Lembrando que, conforme lição de Marcos Bernardes de Mello, sempre baseado na obra de Pontes de Miranda, o suporte fáctico faz sempre referência a um fato, evento ou conduta que pode ocorrer no mundo real. É, pois, conceito do mundo dos fatos – e não do mundo jurídico -, sendo que, após sua ocorrência no plano da realidade, há a incidência da norma jurídica e fazendo surgir o fato jurídico (MELLO, 2012, p. 73). Diz-se suporte fáctico abstrato ou hipotético a previsão normativa do suporte fáctico, enquanto previsto no enunciado lógico da norma, e suporte fáctico concreto, quando materializado no plano da realidade (MELLO, 2012, p. 74). 34 Os suportes fácticos, muito embora sejam complexos (geralmente compostos por mais de um fato), sempre possuem fatos que são determinantes e essenciais para a incidência da norma jurídica: são os elementos nucleares do suporte fáctico. Dentre estes, é o cerne do suporte fáctico que constitui o dado fático fundamental do fato jurídico, sem o qual o fato jurídico sequer existirá. São exemplos a morte, quanto à sucessão, e a vontade consciente, no ato jurídico (MELLO, 2012, p. 85). Marcos Bernardes de Mello destaca, ainda, que a classificação empreendida se vale o suporte fáctico hipotético, e não do concreto, razão pela qual, na prática, pouco importa a forma que os fatos apresentem em sua concreção ou o nome dado pelas partes ao fato jurídico (MELLO, 2012, p. 158). 32 exemplo, a existência das normas penais em geral -, razão pela qual estes também devem ser incluídos em uma classificação satisfatória dos fatos jurídicos35 (MELLO, 2012, 151-155). Em segundo lugar e após a classificação dos fatos jurídicos lato sensu em termos de sua licitude, o segundo dado distintivo das espécies de fato jurídico reside na presença, ou não, do elemento volitivo no cerne do suporte fáctico. Distingue-se, assim, entre aqueles fatos que decorrem de eventos simplesmente relacionados à natureza ou aos animais, os quais prescindem de qualquer ato humano; e aqueles em cujo cerne do suporte fáctico reside uma conduta humana (MELLO, 2012, p. 155-156). São esses últimos que, agora, interessam à presente dissertação. Fazendo-se, pois, breve panorama das espécies jurídicas de acordo com o critério de classificação eleito (cerne do suporte fáctico abstrato) e seus elementos diferenciais, especialmente da presença ou ausência de conduta humana, tem-se a seguinte classificação: Os fatos jurídicos stricto sensu são aqueles fatos jurídicos que, na composição de seu suporte fáctico abstrato, possuem como dado essencial apenas os fatos da natureza36, independentemente de ato humano. São exemplos tradicionais o nascimento, a morte, a maioridade, a confusão, dentre outros37 (MELLO, 2012, p. 165-166). O ato-fato jurídico, por sua vez, representa uma situação de fato que, entretanto, somente pode ser resultado de uma conduta humana: a caça, a pesca, a especificação, a descoberta de tesouro, a ocupação da posse, dentre outros. Em suma, o que pretende se destacar é a relação existente entre o ato humano e o fato que dele decorre, sem que, entretanto, a vontade humana seja elemento determinante para sua ocorrência, razão pela qual a norma jurídica concebe o ato-fato como avolitivo: abstrai-se de qualquer elemento de 35 Conforme elegante síntese de Marcos Bernardes de Mello (2012, p. 153), “a diferença que existe entre eles é, em essência, axiológica, nunca ontológica. E tanto é verdadeira essa observação que um fato hoje considerado (= valorado) ilícito pode, amanhã, por modificação da norma jurídica, passar a ser considerado lícito”. 36 Os fatos da natureza, por sua vez, têm relevância para o direito na medida em que interferem na esfera jurídica de alguém, ampliando-a ou reduzindo-a, razão pela qual foram objeto da norma jurídica. Destaca-se o exemplo do rio que muda e curso, podendo beneficiar os donos de terrenos ribeirinhos – que adquirem a área que constituía seu álveo – e prejudicar os proprietários das terras por onde passou a correr, os quais perdem a área ocupada pelo curso de água (MELLO, 2012, p. 167). 37 Com a cautela científica que lhe é peculiar, Marcos Bernardes de Mello (2012, p. 165) faz um adendo em relação a aqueles casos em que o evento que concretize o suporte fáctico concreto tenha ligação com um ato humana, tais como a concepção de um ser humano, a qual resulta em seu nascimento, a morte por suicídio ou a confusão provocada pelo homem. Muito embora tais fatos jurídicos stricto sensu tenham um ato humana em sua origem no plano da realidade, isto não altura a natureza do fato jurídico: “A morte não deixa de ser evento da natureza se provocada por ato humano; do mesmo modo o nascimento não perde a sua característica de fato natural porque houve um ato que lhe deu origem” (MELLO, 2012, p. 165). Assim, o ato humano participa, em relação aos fatos jurídicos stricto sensu, tão somente de forma indireta ou acidentalmente. 33 vontade que possa ter existido, de forma que não importa se houve ou não vontade do agente na prática do ato-fato38 (MELLO, 2012, p. 168). Já categoria dos atos jurídicos lato sensu traz em seu cerne, diferentemente das demais, a exteriorização consciente da vontade humana, a qual será destinada a obter um resultado juridicamente protegido, possível e não proibido pelo Direito (MELLO, 2012, p. 178). São, pois, três os requisitos que os diferenciarão dos demais fatos jurídicos: A exteriorização da vontade é condição de possibilidade para que a vontade humana seja apreendida pelo mundo externo, podendo ser feita por simples manifestação ou declaração39. Assim, para que o suporte fáctico dos atos jurídicos em geral seja preenchido, exige-se que a vontade exteriorizada – tal como a reserva mental -, sob pena de não composição do suporte fáctico, vez que impossível sua apuração por parte de outros indivíduos caso não seja exposta ao mundo (MELLO, 2012, p. 178-179). O processo de exteriorização da vontade tem de ser, ainda, consciente, de sorte que a exteriorização da vontade tem que ser querida pelo agente (vontade de declarar ou manifestar), bem como o conteúdo de tal exteriorização tem de refletir a vontade, em si mesma, do agente: Com efeito, para compor suporte fáctico suficiente de ato jurídico a exteriorização da vontade há de ser consciente, de modo que aquele a declara ou manifesta deve saber que a está declarando ou manifestando com aquele sentido próprio. Por essa razão é que um indivíduo que, comparecendo a um leilão, em localidade cujos usos desconhece, exprime, involuntariamente, gesto que signifique lance (por exemplo: acena com a cabeça para cumprimentar uma pessoa conhecida que identificou na plateia), não está, efetivamente, ofertando. A inexistência da vontade negocial, na sua manifestação, leva à inexistência do ato. (MELLO, 2012, p. 181). Por fim, é elemento essencial para a configuração do ato jurídico que este se dirija a um objeto que seja protegido pela ordem jurídica - ou pelo menos, não proibido - e possível: é a fórmula do objeto lícito e possível. Isto pois a todo ato jurídico se confere uma atribuição específica (objeto do ato jurídico) e de cunho prático, não se justificando que se considere como ato jurídico aquele ato do qual não decorra ou não possa decorrer atribuição jurídica, a qual, por sua vez, leva à modificação nas esferas jurídicas dos interessados (MELLO, 2012, p. 183-185). 38 Escapa dos limites da presente dissertação maior da análise do ato-fato jurídico, tal como sua classificação em atos reais, atos-fatos jurídicos indenizativos e atos-fatos jurídicos caducificantes. Para tanto, remete-se a Marcos Bernardes de Mello, “Teoria do fato jurídico: plano da existência” (2012, p. 168-177). 39 Embora ambas sejam formas de exteriorização de vontade, a simples manifestação de vontade e a declaração são modalidades distintas de exteriorização. Se quela se exterioriza pelo mero comportamento dos indivíduos, esta representa manifestação qualificadas da vontade (MELLO, 2012, p. 179-180). 34 Em suma, aponta-se que a categoria dos atos jurídicos lato sensu é assim caracterizada por conter, no cerne de seu suporte fáctico, a vontade da parte ou das partes que o praticam. Tal categorização ampla dos atos jurídicos lato sensu permite, assim, que estes abarquem ainda duas subespécies, as quais, por sua vez, se distinguem pela possibilidade ou não de escolha de categorias jurídicas e de definição de efeitos jurídicos: são os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos. Veja-se que ambos exprimem, como característica comum, o fato que o ato consciente de vontade integra o elemento nuclear de seu suporte fáctico, o que justifica sua inclusão enquanto espécies de ato jurídico lato sensu. Por outro lado, o traço diferencial entre as duas espécies reside no fato de que aos atos jurídicos stricto sensu não é permitido a escolha de categorias ou efeitos jurídicos, os quais são preestabelecidos em lei e inalteráveis pela vontade dos interessados; já os negócios jurídicos são marcados, exatamente, por outorgarem às pessoas a