LEANDRO BUTIER LEITE Alfabetização e letramento no 5º Ano do Ensino Fundamental: problemas de aprendizagem e proposta de intervenção ASSIS 2021 LEANDRO BUTIER LEITE Alfabetização e letramento no 5º Ano do Ensino Fundamental: problemas de aprendizagem e proposta de intervenção Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras - Assis, para obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Linguagens e Letramentos) Orientadora: Drª Kelly Cristiane Henschel Pobbe de Carvalho. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 ASSIS 2021 Dedico a toda minha família... Fonte infindável de amor e de toda minha inspiração. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a Deus por toda força e sabedoria que sempre emanou em minha vida. Amo-te de todo coração! A toda minha família que sempre me apoiou, principalmente nos momentos difíceis. À minha esposa pela paciência, compreensão e amor dedicados em cada segundo. Aos meus alunos, por entenderem os benefícios de todo este processo. Em especial, aos alunos do 5° ano C que foram os protagonistas desta obra: vocês são especiais! À equipe da Secretaria Municipal de Educação, especialmente ao atual secretário Celso Iversen, por acreditar e apoiar toda a pesquisa. Sou grato, ainda, a toda equipe da EMEF “Professor Antonio de Pádua Martins de Melo” pela ajuda e compreensão. Aos meus queridos amigos do mestrado, pelo tempo de estudo, pela estrada e pelos conselhos. Foi uma jornada muito árdua para mim, um fardo pesado que se tornou mais leve devido a essas amizades. Em especial, à Karina e à Graziela que foram companheiras, em todos os momentos. Aos professores do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), do campus UNESP – Assis: as aulas foram valiosos momentos de aprendizagem e reflexões. Aos professores da banca, Dr. Odilon Helou Fleury Curado e Dra. Ana Luzia Videira Parisotto: muito obrigado pelas sinceras e inestimáveis contribuições. Finalmente, à minha querida orientadora, professora Dr Kelly Cristiane Henschel Pobbe de Carvalho, que com sábias palavras pode conduzir com maestria este projeto. Muito obrigado pela paciência e por toda tranquilidade transmitida em cada fase da pesquisa. Sou eternamente grato! O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, muito contribuindo para o desenvolvimento dessa pesquisa. Letramento é, sobretudo um mapa do coração do homem, um mapa de quem você é, e de tudo que pode ser. (Magda Soares) LEITE, Leandro Butier. Alfabetização e letramento no 5º Ano do Ensino Fundamental: problemas de aprendizagem e proposta de intervenção. 2021. 176 fls. Dissertação (Mestrado Profissional em Letras) – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021. RESUMO No Brasil, ao longo da história, o fracasso perante os processos de alfabetização e letramento evocam problemas relacionados a uma escola que parece não ser eficiente no ensino da língua materna, fato que implica uma troca recorrente de paradigmas teóricos para se estabelecer uma mudança no cenário educacional brasileiro, mesmo sem o consenso de especialistas no assunto. Tendo isso em vista, procuramos, nesta pesquisa, desenvolvida no âmbito do ProfLetras, responder a seguinte questão: como compreender melhor o processo de alfabetização buscando refletir sobre formas de interferir no trabalho pedagógico de modo mais consciente, responsável e incisivo, apoiados em referenciais teóricos, considerando como diferencial, o período que compreende a etapa final dos anos iniciais do Ensino Fundamental? Dessa forma, o estudo recorre à teoria da “Psicogênese da escrita”, exposta por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985), aos trabalhos mais recentes de Magda Soares (2004, 2016), e à perspectiva da teoria Fonológica (ADAMS, 2004 e MORAIS, 2012, 2019). A pesquisa teve como objetivo, mais especificamente, diagnosticar e analisar o processo de aprendizagem da escrita, por alunos que não foram alfabetizados, ou plenamente alfabetizados, e já cursam o 5º ano do Ensino Fundamental. Para tanto, foram elaboradas sondagens diagnósticas iniciais de modo a revelar a realidade de alunos de um contexto específico, oriundos de uma escola municipal da cidade de Porto Feliz (SP). Mediante os resultados analisados, foi apresentada uma proposta de intervenção (DAMIANI, 2012), embasada na pesquisa de Morais (2012, 2019) e Soares (2016, 2020), buscando entrelaçar a perspectiva psicogenética com a fonológica e observando pressupostos de uma vertente sociocognitivista. Desta forma, adotamos a abordagem metodológica quanti-qualitativa observando a proposta conceitual da pesquisa do tipo intervenção (DAMIANI, 2012) para delinear este trabalho. A partir deste estudo, foi possível observar a relevância de práticas dialógicas que possam promover reflexões sobre a parte fonológica da língua e como tais reflexões são importantes no processo de alfabetização. Por fim, este trabalho apresenta uma proposta interventiva para sala de aula observando os problemas linguísticos levantados durante a pesquisa, sem deixar de destacar o letramento ressaltando a perspectiva social interativa. Palavras-chave: Alfabetização. Letramento. Consciência Fonológica. Práticas Sociais. LEITE, Leandro Butier. Alphabetization and Literacy in the 5th grade of elementary school: learning problems and intervention proposal. 2021. 176 pages Dissertation (Professional Master in Letters) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculty of Sciences and Letters, Assis, 2021. ABSTRACT In Brazil, throughout history, failure in the face of literacy and literacy processes evokes problems related to a school that does not seem to be efficient in teaching the mother tongue, a fact that implies a recurrent exchange of theoretical paradigms to establish a change in the scenario Brazilian educational system, even without the consensus of experts on the subject. With this in mind, we seek, in this research, developed within the scope of ProfLetras, to answer the following question: how better understand the literacy process seeking to reflect on ways to interfere in the pedagogical work in a more conscious, responsible and incisive way, supported by theoretical references, considering as a differential, the period that comprises the final stage of the initial years of Elementary School? Thus, the study uses the theory of “Psychogenesis of writing”, exposed by Emília Ferreiro and Ana Teberosky (1985), the most recent works by Magda Soares (2004, 2016), and the perspective of phonological theory (ADAMS, 2004 and MORAIS, 2012, 2019). The research aimed, more specifically, to diagnose and analyze the writing learning process, by students who were not literate, or fully literate, and are already in the 5th year of elementary school. To this end, initial diagnostic surveys were prepared in order to reveal the reality of students from a specific context, from a municipal school in the city of Porto Feliz (SP). Through the analyzed results, an intervention proposal (DAMIANI, 2012) was presented, based on the research of Morais (2012, 2019) and Soares (2016, 2020), seeking to intertwine the psychogenetic perspective with the phonological one and observing the assumptions of a socio-cognitive aspect. In this way, we adopted the quantitative- qualitative methodological approach, observing the conceptual proposal of the intervention-type research (DAMIANI, 2012) to outline this work. From this study, it was possible to observe the relevance of dialogic practices that can promote reflections on the phonological part of the language and how such reflections are important in the literacy process. Finally, this work presents an interventionist proposal for the classroom, observing the linguistic problems raised during the research, while highlighting the literacy, emphasizing the interactive social perspective. Keywords: Alphabetization. Literacy. Phonological awareness. Social practices. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Pré-silábico – J.P............................................................................... 42 Figura 2: Pré-silábico II – N. C. ........................................................................ 44 Figura 3: Silábico – K.P.................................................................................... 45 Figura 4: Silábico-Alfabético – S.C................................................................... 47 Figura 5: Alfabético – L. S................................................................................. 49 Figura 6: Correlação das perspectivas psicogenéticas e fonológicas ............. 59 Figura 7: Capa do livro da Coleção Ler e Escrever e disposição do conteúdo 103 Figura 8: Parlenda “Rei, capitão” ..................................................................... 104 Figura 9: Trava-língua “Pintor português” ........................................................ 105 Figura 10: Coleção de histórias em quadrinhos da Turma da Mônica ............ 112 Figura 11: Participantes do estudo piloto lendo gibis ...................................... 115 Figura 12: Letra da música “O rato” ................................................................. 120 Figura 13: Coleção de jogos promovidos pelo CEEL ....................................... 126 Figura 14: Objetivos do jogo 6 ......................................................................... 127 Figura 15: Dinâmica do jogo 6 ......................................................................... 128 Figura 16: Objetivos do jogo 9 ......................................................................... 128 Figura 17: Dinâmica do jogo 9 ......................................................................... 129 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Reconhecimento de números, letras e imagens............................... 88 Gráfico 2: Reconhecimento de sequência de números e letras........................ 89 Gráfico 3: Hipóteses de Escrita......................................................................... 92 Gráfico 4: Hipóteses de Escrita (porcentagem)................................................ 91 Gráfico 5: Hipóteses de Escrita (porcentagem concentrada) .......................... 91 Gráfico 6: Consciência Silábica........................................................................ 92 Gráfico 7: Consciência Fonêmica..................................................................... 93 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Hipóteses de Escrita ....................................................................... 41 Quadro 2: Ordem de apresentação das rimas ................................................ 77 Quadro 3: Ordem de apresentação das aliterações ....................................... 77 Quadro 4: Identificação da sílaba medial ........................................................ 78 Quadro 5: Teste de exclusão silábica ............................................................. 79 Quadro 6: Identificação de fonema inicial ....................................................... 80 Quadro 7: Identificação de fonema final ......................................................... 80 Quadro 8: Teste de exclusão fonêmica .......................................................... 81 Quadro 9: Atividades e objetivos .................................................................... 100 Quadro 10: Qualidades das personagens da Turma da Mônica .................... 112 Quadro 11: Palavras dentro de palavras ........................................................ 113 Quadro 12: Identificação de rima no contexto das histórias ........................... 113 Quadro 13: Aliteração presente na letra ......................................................... 121 Quadro 14: Anáfora presente na letra ............................................................ 121 Quadro 15: Rimas presentes na letra ............................................................. 122 LISTA DE ABREVIATURAS ANA: Avaliação Nacional de Aprendizagem BNCC: Base Nacional Comum Curricular CAAE: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética CEEL: Centro de Estudos em Educação e Linguagem CEALE: Centro de alfabetização leitura e escrita CEP: Comitê de Ética em Pesquisa C: Consoante CCV: Consoante, Consoante, Vogal CV: Consoante, Vogal CVC: Consoante, Vogal, Consoante CVV: Consoante, Vogal, Vogal CCVV: Consoante, Consoante, Vogal, Vogal CONFIAS: Consciência fonológica instrumento de avaliação sequencial EMAI: Educação Matemática nos Anos Iniciais EMEI: Escola Municipal de Educação Infantil EMEF: Escola Municipal de Ensino Fundamental FCL: Faculdade de Ciências e Letras HTPI: Horário de Trabalho Pedagógico Individual HTPC: Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEB: Índice de Desenvolvimento da Educação Básica INAF: Indicador de Analfabetismo Funcional INEP: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais MEC: Ministério da Educação e Cultura PISA: Programme for International Student Assesment PME: Plano Municipal da Educação PNA: Política Nacional de Alfabetização PNAIC: Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa PNE: Plano Nacional de Educação PNLD: Programa Nacional do Livro Didático PROFLETRAS: Mestrado Profissional em Letras V: Vogal SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................... 15 CAPÍTULO I - FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................... 22 1.1 Alfabetização: a evolução de conceitos................................................ 23 1.1.1 Um novo termo: Letramento................................................................ 23 1.1.2 Novos caminhos.................................................................................... 27 1.2 Breve panorama histórico da Alfabetização no Brasil......................... 30 1.2.1 Métodos de Alfabetização Tradicionais.............................................. 33 1.2.2 Algumas reflexões sobre os métodos tradicionais........................... 36 1.3 Psicogênese da Língua Escrita.............................................................. 37 1.3.1 Características formais do grafismo................................................... 40 1.3.2 A evolução da escrita........................................................................... 41 1.3.2.1 Nível 1 (Pré-silábico: escrita indiferenciada) ................................. 42 1.3.2.2 Nível 2 (Pré-silábico: diferenciação da escrita) .............................. 43 1.3.2.3 Nível 3 (Silábico)................................................................................ 44 1.3.2.4 Nível 4 (Silábico-Alfabético) ............................................................. 47 1.3.2.5 Nível 5 (Alfabético)............................................................................. 48 1.4 A consciência metalinguística e a aprendizagem da língua escrita... 50 1.4.1 Desenvolvimento da consciência fonológica..................................... 51 1.4.1.1 Consciência fonêmica ....................................................................... 54 1.4.1.2 Habilidade grafofonêmica ................................................................. 56 1.5 Conciliando perspectivas psicogenéticas e fonológicas..................... 59 1.6 Cognição e interação: a perspectiva sociocognitivista ....................... 61 CAPÍTULO II - METODOLOGIA..................................................................... 66 2.1 Abordagem metodológica ..................................................................... 66 2.2 Contextualização da pesquisa .............................................................. 69 2.3 Participantes da pesquisa ..................................................................... 72 2.4 Procedimentos éticos ............................................................................ 73 2.5 Instrumentos de pesquisa ..................................................................... 74 2.5.1 Avaliação de reconhecimento de imagens, letras e números ........ 74 2.5.2 Avaliação da consciência fonológica ................................................ 75 2.5.3 Avaliação das hipóteses de escrita ................................................... 82 2.6 Procedimentos de coleta de dados ....................................................... 83 2.7 Formas de análise ................................................................................... 84 CAPÍTULO III - ESTUDO PILOTO: AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA ................. 86 3.1 Avaliação de reconhecimento de imagens, letras e números ............. 88 3.2 Avaliação das hipóteses de escrita ........................................................ 90 3.3 Avaliação da consciência fonológica ..................................................... 92 CAPÍTULO IV - PROPOSTA DE INTERVENÇÃO........................................... 96 4.1 Atividade 1: reproduzindo, gravando e refletindo ................................ 101 4.2 Atividade 2: lendo e refletindo ................................................................ 110 4.3 Atividade 3: cantando e refletindo .......................................................... 117 4.4 Atividade 4: jogando e refletindo ............................................................ 125 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 133 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 137 APÊNDICE ....................................................................................................... 145 Apêndice A: Ficha de diagnóstico individual............................................... 145 Apêndice B: Reconhecimento de imagens................................................... 146 Apêndice C: Reconhecimento de letras e números..................................... 147 Apêndice D: Reconhecimento de sequência de letras e números............. 148 Apêndice E: Reconhecimento de letras cursivas......................................... 149 Apêndice F: Ficha de avaliação da consciência fonológica individual...... 150 Apêndice G: Imagens de referência .............................................................. 151 Apêndice H: Folha de sondagem .................................................................. 152 ANEXOS............................................................................................................ 153 Anexo A: Parecer de responsabilidade ética ............................................... 153 Anexo B: Protocolo de avaliação da consciência fonológica- Rimas........ 156 Anexo C: Material tarefa 1............................................................................... 157 Anexo D: Protocolo de avaliação da consciência fonológica- Aliteração. 163 Anexo E: Material tarefa 2............................................................................... 164 Anexo F: Protocolo de avaliação da consciência fonológica- Silábica..... 170 Anexo G: Protocolo de avaliação da consciência fonológica- Fonêmica.. 172 Anexo H: Autoditado – Sílabas simples ....................................................... 173 Anexo I: Autoditado – Sílabas complexas.................................................... 174 Anexo J: Resolução do Profletras ................................................................ 175 15 INTRODUÇÃO Na história da Educação no Brasil, o fracasso perante os processos de alfabetização e letramento1 invoca problemas relacionados a uma escola que não é eficiente no ensino da língua materna, motivando periódicas mudanças de paradigmas teóricos e de concepções metodológicas que se alternam como referenciais, tanto nos documentos oficiais como no contexto escolar. Essas alternâncias contribuem para reforçar a rotulação de uma escola pública rudimentar, ineficiente e atrasada em suas práticas. Tais concepções metodológicas são definidas por Soares (2016, p.16) como “um conjunto de procedimentos que, fundamentados em teorias e princípios, orientam a aprendizagem inicial da leitura e da escrita, que é o que comumente se denomina alfabetização”. A partir de 1980, ocorre uma mudança de paradigma determinada pelo conceito de construtivismo, teoria psicológica da aprendizagem que tem como objeto a psicogênese da inteligência e dos conhecimentos, portanto, voltada para compreender como o sujeito aprende (FERREIRO e TEBEROSKY, 1985). A escrita começa a ser concebida para além da cópia ou ditado, sendo entendida como produção textual com papel muito importante para a alfabetização. Enfatiza-se a função da escrita, sobretudo de uma escrita “espontânea” ou “inventada”2, “[...] considerada como processo por meio do qual a criança se apropriaria do sistema alfabético, tornando desnecessário o ensino explícito e sistemático [...]” (SOARES, 2016, p.26). A teoria criada por Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1979), por sua vez, conhecida como “Psicogênese da Escrita”, insistiu na ideia de que a tarefa de alfabetizar não consistia em aprender um código, mas sim de se apropriar de um sistema notacional (MORAIS, 2012). E esta apropriação não acontece facilmente, é 1 Para o presente trabalho de pesquisa, nos apoiamos na conceituação proposta por Magda Soares (2016, p.27) que considera que alfabetização é “um processo complexo que envolve várias facetas” sendo a faceta linguística (mais centrada na alfabetização em si) voltada aos processos de assimilação e apropriação das convenções da escrita; e as facetas interativa e sociocultural (dedicadas ao letramento) que promovem as capacidades de interação com o texto (e outras produções) e relaciona os eventos sociais e culturais que envolvem a escrita. Mais detalhes e aprofundamento estarão presentes no capítulo de Fundamentação Teórica. 2 O conceito de “Escrita Inventada” é proposto por Soares (2016, p.69), pois a autora considera que a expressão “escrita espontânea” (proposta por Ferreiro e Teberosky -1985) nem sempre acontece de forma espontânea. 16 necessário que a criança reflita sobre o sistema de escrita de forma que, aos poucos, ela compreenda as propriedades do alfabeto como sistema notacional. Outro conceito que concebe mudanças de paradigmas é o de letramento e suas implicações para uma aprendizagem significativa. Considera-se o fato de a criança exprimir conhecimentos que partam de seu mundo, de suas vivências, inseridas em práticas sociais. É inevitável não destacar ou não considerar o quanto esse processo contribuiu para a alfabetização e para a reelaboração de práticas educativas mais coerentes e relevantes. Nas palavras de Geraldi (2014, p.26), observamos a dificuldade de estabelecer uma definição para tal termo e a amplitude de seu significado: O conceito de letramento é muito difícil de ser especificado, porque remete tanto a um estado a que se acede um sujeito quanto às habilidades deste mesmo sujeito de movimentar-se num mundo povoado de textos, tanto como leitor destes quanto como autor de novos textos a enriquecer o patrimônio de enunciados concretos disponível em diferentes esferas da comunicação social de uma dada sociedade. Nessa perspectiva, esse sujeito definido por Geraldi (2014) passa a ser protagonista, pois participa e interage considerando-se sua autoria como sentido de realização, em práticas sociais efetivas. Desse modo, o termo se apresenta diferentemente do que cita o autor em um “conceito anterior à modernidade”, em que se esperava um processo pontual, no qual o alfabetizado jamais viesse a fazer uso da escrita de forma concreta (como leitor ou autor de textos), atuando como um sujeito passivo (GERALDI, 2014, p.28). Esse novo conceito de letramento redimensiona os estudos sobre a alfabetização. Desse modo, alfabetizar e letrar não devem ser compreendidos como processos independentes, mas interdependentes e indissociáveis: a alfabetização desenvolve-se no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só se pode desenvolver no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema- grafema, isto é, em dependência da alfabetização (SOARES, 2004). Entender o processo de alfabetização e letramento se torna essencial numa prática que almeja a produção e o desenvolvimento do aluno na aprendizagem da escrita. O que temos observado no contexto escolar, no entanto, é uma realidade muito distante de considerar tal aspecto e que nos assombra diante das dificuldades: 17 há inúmeros alunos no Brasil que não são plenamente alfabetizados ou sequer foram alfabetizados, nesta primeira etapa do Ensino Fundamental. Dessa forma, quando esse aluno passa dos Anos Iniciais (1° ao 5° ano) para os Anos Finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano), os professores, frequentemente, não se sentem seguros para uma intervenção, pois possuem pouca base teórica e pouca prática acerca do processo de alfabetização, ou, mais especificamente, das questões relativas ao ensino da apropriação do sistema alfabético-ortográfico e das convenções da escrita. Esses alunos acabam por recomeçar todo o processo, por diversas vezes, muitas vezes sem haver avanço no método utilizado. O que acontece é que esses discentes são suprimidos pelos números oficiais e se perdem na massa “letrada”. Fato que pode também explicar por que o Brasil ainda possui números tão pífios em matéria de leitura e escrita nos exames internacionais e em dados estatísticos. Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA – sigla em inglês, 2018)3, comprovam que 50,99% dos alunos não são plenamente alfabetizados e possuem grandes dificuldades em leitura. Segundo dados do INAF4 (Indicador de Analfabetismo Funcional - 2018), 29% da população pode ser considerada como “Analfabeta Funcional”, ou seja, possuem muita dificuldade para fazer uso da leitura e da escrita e das operações matemáticas em situações da vida cotidiana, como reconhecer informações em um cartaz ou folheto. Outro fator que pode ser preocupante é de que forma é mensurada ou avaliada a efetivação do processo de alfabetização. Estabelecem-se padrões apoiados na teoria da psicogênese, embora se desconheçam sua base e preceitos. Números que podem fabricar uma realidade fictícia e que não nos dizem nada. O professor pode ter uma sala em que 90% de seus alunos sejam considerados no nível alfabético; entretanto, isto não quer dizer que tais estudantes estejam plenamente alfabetizados. Conforme dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica5 (2019), promovido pela ONG “Todos pela Educação”, metade dos alunos chega ao final do 3º ano do Ensino 3 Fonte: http://www.oecd.org/pisa/publications/PISA2018_CN_BRA.pdf. Acesso em 03/10/2019. 4 Fonte: http://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Inaf2018_Relat%C3%B3rio- Resultados-Preliminares_v08Ago2018.pdf. Acesso em 28/07/2019. 5 Fonte: https://www.todospelaeducacao.org.br/pag/iniciativa-educacao-ja.Acesso em 28/07/2019. http://www.oecd.org/pisa/publications/PISA2018_CN_BRA.pdf http://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Inaf2018_Relat%C3%B3rio-Resultados-Preliminares_v08Ago2018.pdf http://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Inaf2018_Relat%C3%B3rio-Resultados-Preliminares_v08Ago2018.pdf https://www.todospelaeducacao.org.br/pag/iniciativa-educacao-ja 18 Fundamental sem estar plenamente alfabetizada. Em muitos casos, essas crianças compreendem o sistema alfabético e fonológico da língua, mas ainda há um longo caminho a percorrer em direção a níveis mais elevados de letramento, de forma a que realmente sejam capazes de fazer uso da escrita e de suas convenções sociais. Dados da última Avaliação Nacional da Alfabetização6 (2016) indicam que 44,7% dos alunos têm proficiência em leitura considerada insuficiente e 33,8% é insuficiente na escrita. Tendo em vista as discussões, até aqui, brevemente apresentadas, a proposta desta pesquisa tem como objetivo diagnosticar e analisar o processo de aprendizagem da escrita por alunos que não foram alfabetizados, ou plenamente alfabetizados, e já cursam o 5º ano do Ensino Fundamental7. Para tanto, elaboramos sondagens diagnósticas iniciais de modo a revelar a realidade de alunos oriundos de uma escola municipal da cidade de Porto Feliz (SP). Com base na teoria da psicogênese (FERREIRO E TEBEROSKY, 1985), levantamos possíveis causas das dificuldades/desafios enfrentados por esses alunos, nesse processo. Mediante os resultados apresentados, no contexto considerado, elaboramos uma proposta de intervenção, embasada na pesquisa de Morais (2012, 2019) e Soares (2016, 2020), buscando entrelaçar a perspectiva psicogenética com a fonológica e observando pressupostos de uma vertente sociocognitivista. Entretanto, devido à pandemia de COVID-19 que enfrentamos no ano de 2020, a partir da qual escolas tiveram que fechar suas portas, não foi possível aplicar tal proposta; tal decisão também foi respaldada pela Resolução Nacional do Profletras 03/20208. Portanto, a partir do diagnóstico realizado, elaboramos uma proposta de intervenção como um encaminhamento didático em seu caráter propositivo, alicerçada nos pressupostos teóricos adotados e que, acreditamos, pode vir a contribuir para a superação das dificuldades apontadas, quer seja no contexto para o qual foi criada ou, eventualmente, em outros. 6 Fonte: http://portal.mec.gov.br/docman/outubro-2017-pdf/75181-resultados-ana-2016-pdf/file. Acesso em 28/07/2019. 7 O documento da BNCC (Base Nacional Comum Curricular, 2018, p.57) propõe a organização do Ensino Fundamental em: Anos Iniciais (do 1° ao 5° ano) e Anos Finais (do 6° ao 9° ano). Há referência ao 5° ano como “etapa final dos anos iniciais do Ensino Fundamental. 8 O Conselho Gestor do ProfLetras estabeleceu, em Resolução n° 3/2020, no Art. 1o. que: “os trabalhos de conclusão da sexta turma poderão ter caráter propositivo sem, necessariamente, serem aplicados em sala de aula presencial” (documento completo Anexo J). http://portal.mec.gov.br/docman/outubro-2017-pdf/75181-resultados-ana-2016-pdf/file 19 Assim, não pretendemos encontrar um método ou sistema de ensino que dê conta da aprendizagem, nestes casos, mas sim analisar possibilidades acerca da alfabetização, seu processo de avaliação, bem como refletir sobre diagnósticos para que tais dificuldades possam ser superadas ou amenizadas, ao menos em nosso contexto. Aqui se define, uma vez mais, o problema desta pesquisa: como compreender e interferir no trabalho pedagógico relacionado à alfabetização de forma mais consciente, responsável e incisiva, apoiados nas teorias estabelecidas e nas pesquisas, considerando o contexto em que estamos inseridos? O objetivo geral desta pesquisa é diagnosticar e analisar o processo de aprendizagem da escrita de alunos do 5º. ano do Ensino Fundamental que não foram alfabetizados, ou plenamente alfabetizados, bem como elaborar uma proposta de intervenção para contribuir com a superação das dificuldades encontradas. Este estudo, submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) – Assis – SP, com número CAAE (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética) 21757219.7.0000.5401, sob o parecer 4.367.532 9, é integrado ao Programa de Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS, linha de pesquisa Leitura e produção textual: diversidade social e práticas docentes e pertencente à área de concentração Linguagens e Letramentos. A abordagem metodológica utilizada foi a quanti-qualitativa. O método quantitativo responde pelo diagnóstico dos problemas de aprendizagem dos alunos. Foram analisados, como instrumentos de pesquisa, nesta etapa, quadros, tabelas, números, estatísticas referentes a dados das sondagens da escrita e interpretação de textos dos alunos. A pesquisa também se configura como um estudo de base qualitativa, uma vez que estabelece também uma análise reflexiva proporcionando a real relação entre teoria e prática, no contexto escolar específico, oferecendo ferramentas eficazes para a interpretação das questões educacionais (MOREIRA, 2002). Sobre os procedimentos metodológicos, inicialmente, utilizamos a pesquisa de revisão-bibliográfica que abarcou todo um embasamento teórico necessário para a reflexão e discussão do tema. Entre eles, destacamos os seguintes autores: Soares (2004, 2008, 2016, 2020), Ferreiro e Teberosky (1985), Weiz (2002), Morais (2004, 2012, 2019), Adams (2006), Mortatti (2000, 2014), Koch; Cunha Lima (2004), 9 O documento comprobatório consta no Anexo A. 20 entre outros. Adotamos também a proposta conceitual da pesquisa do tipo intervenção (Damiani, 2012; Rocha e Aguiar, 1997, 2003) que a denomina como um determinado tipo de pesquisa educacional “no qual práticas de ensino inovadoras são planejadas, implementadas e avaliadas em seu propósito de maximizar as aprendizagens dos alunos que delas participam” (DAMIANI, 2012). Segundo a autora, intervenções em Educação, que se relacionam ao processo de ensino-aprendizagem, apresentam potencial para propor novas práticas pedagógicas e, ao mesmo tempo, produzir conhecimento teórico. Infelizmente, a fase da implementação não pôde ser concretizada, conforme já observamos. A intervenção, nesse caso, constitui-se em seu caráter propositivo, apenas. O contexto desta pesquisa compreende a cidade de Porto Feliz, cidade no interior de São Paulo, com seus 53.402 habitantes. Entre as nove unidades escolares de Ensino Fundamental, escolhemos a Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Antonio de Pádua Martins de Melo, na qual o professor/pesquisador atua há treze anos, e focamos na turma do 5º ano C (2020) para delinear esta pesquisa. Assim, o presente trabalho, em sua organização, estrutura-se em quatro partes. Na primeira, apontamos as reflexões e postulados teóricos que embasam este estudo: evolução dos conceitos de alfabetização, surgimento do conceito de letramento, breve panorama histórico da alfabetização no Brasil, métodos tradicionais de alfabetização, estudos da Psicogênese da Língua Escrita (FERREIRO e TEBEROSKY, 1985), reflexões sobre a consciência metalinguística e a aprendizagem da língua escrita (SOARES, 2016, 2020), relações entre teorias psicogenéticas e fonológicas (MORAIS, 2012, 2019), e ainda pressupostos teóricos do sociocognitivismo (KOCH; CUNHA-LIMA, 2004). A segunda parte descreve a abordagem metodológica assumida neste trabalho, destacando o contexto de pesquisa, o perfil dos participantes, os instrumentos utilizados na coleta de dados e, por fim, os procedimentos e formas de análise dos dados. A terceira parte, intitulada Estudo Piloto: avaliação diagnóstica, expõe os dados e reflexões sobre o estudo realizado, inicialmente, com os participantes da pesquisa. Nesse tópico, apontamos problemas relacionados ao processo de 21 alfabetização desses alunos, com base no contexto considerado. No quarto capítulo, Proposta de intervenção, apresentamos uma proposta, dividida em quatro atividades, nas quais procuramos refletir sobre possíveis formas de trabalho em sala de aula, baseadas no diagnóstico apresentado. Constituem quatro sequências de ações que têm como objetivo conduzir os discentes a reflexões sobre o funcionamento de sua própria língua, bem como sobre as relações entre o oral e o escrito, as quais podem vir a contribuir com o processo de alfabetização. O desafio na elaboração das propostas foi buscar integrar à alfabetização (mais especificamente a faceta linguística) a dimensão do letramento, de forma a observar a relevância das práticas sociais em seu contexto. Destacamos que este material tem potencialidade para propiciar reflexão sobre as dificuldades apresentadas pelos alunos. Por fim, na quinta e última parte, apresentamos as considerações finais do trabalho, retomando pontos principais da pesquisa, discutindo sobre os apontamentos iniciais das hipóteses e ponderando sobre os dados relevantes obtidos bem como seus desdobramentos na formação do professor-pesquisador. 22 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Um olhar sobre a história da alfabetização no Brasil revela uma trajetória de sucessivas mudanças conceituais e metodológicas. O fato é que muitas pesquisas desvelam problemas nos processos e resultados da alfabetização de crianças, insegurança entre alfabetizadores e descaso na insistência de políticas educacionais que promovem o fracasso da escola em alfabetizar. A aprendizagem da língua escrita tem sido objeto de muitos pesquisadores que buscam entender os processos e apontar caminhos que possam contribuir para a resolução desta importante questão. Porém, a definição de conceitos que atendam a tantas perspectivas teóricas, muitas vezes, dificulta o entendimento e a compreensão de tais abordagens, especialmente por parte dos profissionais envolvidos. Alfabetização passa a ser um termo que compreende somente a assimilação das habilidades de apropriação do sistema alfabético. O termo letramento surge como o novo olhar que pode promover mudanças e contribuir na superação de dificuldades e inconstâncias. Kleiman (2005, p.18) declara que letramento é um termo complexo que envolve muito mais que uma habilidade ou competência do sujeito que lê. “Envolve múltiplas capacidades e conhecimentos para mobilizar essas capacidades, muito dos quais não têm necessariamente relação com a leitura”. Este capítulo de embasamento teórico será formado por quatro partes: primeiramente, pretendemos organizar uma discussão em torno desta dicotomia: alfabetização e letramento. Buscamos na literatura específica fatos que determinaram a preferência ou a estigmatização desses termos. Conceitos que, de certo modo, também refletem um momento histórico político do país e que, crucialmente, retratam um mundo de contrastes e escancaram a realidade de um povo. Em seguida, realizaremos um breve panorama sobre os processos de efetivação de uma política de Alfabetização no Brasil para entendermos quais passos foram cruciais para condicionar o fracasso nesta importante etapa de ensino- aprendizagem. No terceiro ponto, abordaremos a “Teoria da Psicogênese da Língua Escrita”, proposta por Ferreiro e Teberosky (1985). Essa teoria revolucionou e embasou grande parte da política de alfabetização de nosso país por anos, partindo de pontos construtivistas de base piagetiana. 23 Por fim, destacaremos reflexões de bases fonológicas que, atualmente, dinamizam os critérios para se entender os processos de alfabetização, conforme preconizam Soares (2016) e Morais (2012 e 2019). Em resumo, os pressupostos teóricos que sustentam nossa investigação baseiam-se nos seguintes autores: Soares (2004, 2008, 2016), Cagliari (2009), Ferreiro e Teberosky (1985), Weiz (2002), Morais (2004, 2012, 2019), Mortatti (2000, 2014), Adams (2006), entre outros. 1.1 Alfabetização: a evolução de conceitos 1.1.1 Um novo termo: letramento Segundo Soares (1998), o termo letramento aparece pela primeira vez no Brasil, vinculado à área da educação, na segunda metade dos anos 1980. Uma das primeiras ocorrências está na obra de Mary Kato de 1986 (“No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”, Editora Ática). Desde então, o conceito se torna cada vez mais frequente no discurso de especialistas e, em 1995, já se torna título de livro: “Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita”, organizado por Ângela Kleiman. Soares (1998) ainda explica que etimologicamente letramento vem do inglês literacy, que significa “estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever”. A autora cita que “implícita nesse conceito está a ideia de que a escrita traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas quer para o grupo social [...] quer para o indivíduo que aprenda a usá-la” (SOARES, 1998, p. 17). Em outras palavras, envolver-se nas práticas sociais de leitura e escrita tem consequência sobre o indivíduo e altera seu estado ou condição em todos os aspectos. Nesta primeira visão proposta, fica evidente a separação e identificação de dois termos: ALFABETIZADO nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e escrever e LETRADO aquele que adquiriu o estado ou a condição de quem se apropriou da leitura e escrita incorporando as práticas sociais que as demandam (SOARES, 1998, p. 19). A autora destaca que o termo analfabeto era utilizado para se referir ao sujeito que não possuía a tecnologia do ler e escrever e, por isso, não podia exercer em toda a sua plenitude os seus direitos de cidadão e consequentemente era marginalizado 24 pela sociedade. Porém, no final da década de 1980, surge uma nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também fazer uso destas práticas, saber responder às exigências de leitura e escrita que a sociedade faz continuamente (SOARES, 1998, p.20). Outro ponto considerável é que o indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, ser analfabeto, mas ser, de certa forma, letrado. Dessa forma, o sujeito poderia, por exemplo, gostar de ouvir a leitura de um jornal, ditar cartas para que outro escreva, pedir para que outro leia avisos ou placas de que ele faz uso. Ele pode ser marginalizado por não saber ler e escrever, mas vive em um ambiente em que a leitura e a escrita têm presença constante e assim as utiliza bem como reconhece seu uso em determinadas práticas sociais. Ângela Kleiman (1995, p.16) afirma que “o conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos como tentativa de separar os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos sobre a alfabetização”. Os estudos sobre letramento tratavam do desenvolvimento social que acompanhou a expansão dos usos da escrita desde o século XVI. O interesse era político, econômico e social relacionado com a massificação da escrita na sociedade. Aos poucos, a preocupação deixou os efeitos universais desta prática e passou a estudar os efeitos relacionados às práticas sociais e culturais dos diversos grupos que usavam a escrita (KLEIMAN, 1995). De acordo com Kleiman (1995, p.18), um fator que justificaria o termo letramento no lugar de alfabetização seria o fato de certas classes sociais possuírem conhecimento oral letrado antes mesmo de serem alfabetizadas. Como exemplo, uma criança que relaciona uma personagem de contos de fadas com um evento do seu cotidiano. A autora conceitua tal fato como evento de letramento, pois o sujeito está aprendendo uma prática discursiva letrada, mesmo antes do reconhecimento do ler e escrever. Kleiman (1995 p.19) define letramento como “um conjunto de práticas sociais que usa a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. A autora deixa evidente que as práticas específicas da escola, que ditavam e classificavam os sujeitos como alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser apenas uma prática de letramento, ainda dominante, mas não única. 25 Naquele contexto, Kleiman (1995, p.20) define que letramento extrapola o mundo da escrita e considera que a escola ainda destacava a alfabetização, ou seja, o processo de aquisição de códigos concebido em uma competência individual necessária para promoção escolar. Conforme Street (1984), podemos estabelecer dois modelos de letramento: o autônomo e o ideológico. O modelo autônomo pressupõe que haveria apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, associado com causalidade do progresso, a civilização e a mobilidade social. O modelo ideológico afirma que práticas de letramento ocorrem no plural, são social e culturalmente determinadas. Kleiman (1995, p.21) cita que neste modelo “os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida” Segundo Rojo (2009, p.99), no enfoque do letramento autônomo, “o contato (escolar) com a leitura e a escrita, pela própria natureza da escrita, faria com que o indivíduo aprendesse gradualmente habilidades que o levariam a estágios universais de desenvolvimento (níveis)”. Observa-se a natureza instrumentalizada e o caráter técnico que este modelo demanda. É um enfoque que considera o individual e a apropriação da escrita alheia ao uso, de forma isolada, ou seja, em níveis, como menciona Rojo. Já o enfoque ideológico, segundo Street (1984), “vê as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos”. Dessa forma, o significado de letramento mudaria através do tempo e das culturas, possibilitando práticas diferenciadas e poderes também diversos. Outra dicotomia é proposta por Soares (1998), a partir das reflexões de Street (1984), contrastando o conceito de letramento em uma versão fraca e uma versão forte. A versão fraca estaria relacionada ao enfoque autônomo e se refere ao mecanismo de adaptação da sociedade perante as necessidades e exigências sociais do uso de leitura e escrita. É uma proposta muito ligada a resultados de exames e mensuração de competências e habilidades, ou seja, a escola deve preparar o cidadão de alguma maneira fazendo com que o sujeito domine (mesmo que artificialmente) tais habilidades. O conceito de versão forte do letramento (Soares, 1998), por sua vez, estaria relacionado à concepção de letramento ideológico, ligado a uma visão mais crítica de 26 educação e se aproxima da visão de Paulo Freire. A escola deveria preparar o cidadão proporcionando condições de refletir e criticar o cenário a “sua volta” promovendo a possibilidade de emancipação do sujeito e potencialização do seu caráter e empoderamento. Com o surgimento do novo termo letramento e suas variedades conceituais, começam a surgir na década de 90 trabalhos que tentam estreitar a relação entre alfabetização e letramento de forma que, embora compreendidos separadamente, propõem a necessidade de fundi-los na prática. Assim, tem-se a compreensão de que é preciso alfabetizar letrando. De acordo com Franchi (2012, p.8), este novo entendimento pretende, já nesse momento, estabelecer uma “prática pedagógica sem perder característica de cada um desses processos, mas reconhecendo as múltiplas facetas e a diversidade de métodos e procedimentos para o ensino de um e de outro”. A autora (2012) defende que alfabetizar letrando não se constitui em um processo mecânico de mera relação entre dois sistemas de representação. É necessário considerar o caráter social e constitutivo da linguagem permitindo ao sujeito perceber sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Mesmo assim, deixa bem claro que não desconsidera os aspectos técnicos da escrita estabelecendo em sua obra processos de análise e síntese e de exercícios sistemáticos de fixação. Fica evidente na leitura da obra que alfabetização, segundo a autora, é sinônimo da assimilação das convenções iniciais da língua presentes na relação entre grafemas e fonemas. Toda vez que se refere a uma prática consistente e que recobre as habilidades de manejar a língua e relacionar o seu uso, aparecem os dois termos juntos: alfabetização e letramento. Penso que colocando o aprendizado da norma escrita no pano de fundo da oralidade, consegui reunir as vantagens de duas vertentes técnicas: tendência a explorar as possibilidades combinatórias do sistema gráfico [...] e a tendência que respeita o pressuposto da escrita inicial já como representação significativa. Conciliei, ainda, a necessidade de partir-se de palavrinhas vinculadas à cotidianidade das crianças nas suas práticas sociais e a importância de tornar cotidianas novas e surpreendentes palavras, num trabalho concomitante de alfabetização e letramento (FRANCHI, 2012, p.205, grifo nosso). 27 O termo alfabetizar letrando também aparece em Soares (1998, p.47) e é relevante como é exposto como duas ações distintas, ou seja, dois elementos: [...] teríamos alfabetizar e letrar como duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário. O ideal seria alfabetizar letrando ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado. Alfabetizar letrando seriam ações concomitantes e indispensáveis podendo ser comparados como os dois lados de uma mesma moeda. Porém, se destaca a necessidade de ancoramento nos dois termos ficando evidentemente claro que só alfabetizar ou somente letrar seria um processo falho e incompleto. 1.1.2 Novos Caminhos Se a palavra letramento surge em um contexto de necessidade de se configurar e nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e escrita (SOARES, 2004, p.96), alfabetizar, em seu sentido tradicional, revela-se insuficiente mediante a importância que tais práticas representam no uso constitutivo da língua escrita. Ainda que em 1998 Soares destaque o termo alfabetizar letrando, em 2004 a autora considera que a palavra alfabetização passou por tentativas de ampliação de seu significado como: “alfabetização não é apenas aprender a ler e escrever”, “alfabetizar é muito mais que apenas ensinar a codificar e decodificar” (SOARES, 2004, p.97). De fato, Soares (2004) considera que devido ao letramento ter surgido de uma necessidade de ampliar o significado de alfabetizar, esses dois processos têm sido confundidos e até mesmo fundidos. Pode-se admitir que, no plano conceitual, talvez a distinção entre alfabetização não fosse necessária bastando que se ressignificasse o conceito de alfabetização, como sugeriu Emília Ferreiro [...]; no plano pedagógico, porém, a distinção torna-se conveniente, embora também seja imperativamente conveniente que ainda que distintos, os dois processos sejam reconhecidos como indissociáveis e interdependentes. (SOARES, 2004, p.97). 28 Portanto, a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida em contextos de práticas sociais de leitura e escrita e por meio dessas práticas. E de certo modo, não se espera que isso aconteça de outra forma. O problema, como explica Soares (2004, p.98), é que a palavra alfabetização, até a década de 1980, se tornou sinônimo de aprendizagem do sistema convencional da escrita. Nesse cenário, surgem os métodos que se alternavam ora pelo princípio de síntese (como por exemplo fônico, método silábico), ora pelo princípio da análise (método da palavração, método da sentenciação, método global). Em ambas as opções, a meta sempre foi a aprendizagem do sistema alfabético e ortográfico da escrita. A partir da década de 80, Soares (2004, p.98) revela que a perspectiva psicogenética da língua escrita trouxe uma grande mudança de conceitos teóricos e “apagou a distinção entre aprendizagem do sistema de escrita e práticas efetivas de leitura e de escrita”. Mudança que contribuiu para explicar o processo através do qual a criança constrói o conceito de língua escrita. Neste contexto, acrescentando-se os dados sobre a realidade da Educação Brasileira referente a uma alfabetização precária (MORTATTI, 2014) e um grande número de analfabetos “funcionais”, surge a necessidade da criação de um novo termo e sua posterior difusão: letramento. Segundo Goulart (2014, p.41), as expressões alfabetizar letrando (SOARES, 1998) e letrar alfabetizando (GOULART, 2010) são duas ações e “concebê-las como dois processos determina uma cisão, ainda que sejam considerados indissociáveis”. Ou seja, há uma ruptura no entendimento do conceito de alfabetizar. Busca-se refletir “como se trabalhar com o letramento, isto é, como transformá-lo em conteúdo”. O termo repercute no meio escolar “esvaziando-se muitas vezes do sentido cultural, socialmente referenciado”. Kleiman (2005) defende a manutenção dos termos alfabetização e letramento. A autora não concorda com a posição de que o conceito de letramento estaria implícito no conceito de alfabetização, pois o primeiro é carregado de significados e associações, como, por exemplo, em relação com a oralidade e com linguagens não verbais, não incluídos nem previstos no termo alfabetização. Conforme Kleiman (2005, p. 13), a alfabetização é uma prática em que “um especialista se encarrega de ensinar sistematicamente as regras de funcionamento e uso do código alfabético”. Denota também um conjunto de saberes sobre o código escrito da sua língua que é mobilizado pelo indivíduo para participar de práticas 29 letradas. Para a autora, a alfabetização é uma prática necessária, porém não é suficiente por si mesma e por isso é inseparável do letramento. Conclui que a prática da alfabetização precisa do ensino sistemático, o que a torna diferente do letramento, pois, por exemplo, algumas práticas podem ser possíveis de assimilar apenas olhando. Goulart (2003) afirma que a dupla alfabetização-letramento não seria necessária, mas circunstancial, concordando com a posição de Soares (2004). O termo alfabetização comportaria as facetas social e linguística e o letramento foi criado na expectativa de tornar clara esta dupla perspectiva. Entretanto, analisando as obras mais recentes das autoras, nota-se uma nova mudança conceitual marcada em suas produções. Magda Soares (2016, p.27) considera que alfabetização é “um processo complexo que envolve vários componentes, ou facetas, e demanda diferentes competências”. Três facetas principais se destacariam: faceta linguística, faceta interativa e faceta sociocultural. A primeira relacionada ao termo alfabetização e as outras duas facetas se referindo ao letramento. Ou seja, a autora opta por uma separação de conceitos bem definidos e relacionados. A faceta linguística estaria voltada aos processos de assimilação e apropriação das convenções da escrita. Enquanto caberia ao letramento as capacidades de interação com o texto e outras produções e uma perspectiva sociocultural, que relaciona os eventos sociais e culturais que envolvem a escrita. Para Goulart (2014) e Brandão (1998), o conceito de letramento veio como medida compensatória, como várias promoções políticas (cotas, correção de fluxos, promoção automática etc...). Ou seja, a criança não consegue ser alfabetizada, mas pelo menos dominará conceitos mínimos podendo ser funcionalmente analfabeta, mas, por outro lado, minimamente letrada. A ideia de compensação faz crer que haja déficits a reparar e não desigualdades que põem grupos populares em desvantagem. Segundo Goulart (2014), o risco é “contribuir para perpetuar o que é considerado defasagem”. Para tanto, Goulart (2014) reconsidera sua conceituação e define que: O processo de alfabetização envolve conhecimento fundamental para o processo de escolarização, vinculado ao valor social da leitura e da escrita e a abertura para a inserção dos sujeitos no vasto mundo da escrita. Envolve outros aspectos também: novas formas de existência e participação política, ligadas à compreensão de múltiplas linguagens sociais e gêneros discursivos e à possibilidade de transformação dessas linguagens e gêneros, e também de criação de novos (p. 49). 30 Portanto, Goulart (2014, p.47) conclui que “os processos de alfabetizar e letrar não podem perder o vínculo de pertencimento a esferas de conhecimento superiores”, conceito proposto por Bakhtin (1988). A aprendizagem da escrita precisa fazer sentido na vida do sujeito. 1.2 Breve panorama histórico da Alfabetização no Brasil Buscar referências da história da alfabetização no Brasil, muitas vezes, nos conduz somente à ordenação dos métodos praticados para ensinar ao longo do tempo. No entanto, a obra de Mortatti (2000, 2010, 2014) revela um detalhamento sobre a política, organização, formação, dentre outros fatores que desvelam todo o processo de alfabetização por estas terras. Segundo Mortatti (2000), a primeira lei geral brasileira sobre o ensino primário foi a Lei das Escolas das Primeiras Letras, aprovada em 1827, deliberando que a instrução ocorreria seguindo o método de ensino mútuo (Lancasteriano10) nas capitais das províncias. Em 1834, com a aprovação do Ato Adicional à Constituição Imperial de 1823, promoveu-se a descentralização da educação elementar e regulamentou que as províncias deveriam promover a formação de seus professores. Dados da biblioteca do IBGE11 mostram que, em 1872, 82,3% da população brasileira era analfabeta. Mortatti (2014, p.11) afirma que o ensino de língua portuguesa nos anos iniciais do ensino fundamental, desde o final do século XIX, tratou-se não de uma disciplina escolar, mas de matérias de ensino, “com um corpo relativamente estável de saberes, porém com menor grau de complexidade em termos de conteúdo a ser ensinado e como maior grau de flexibilização em termos de organização desses conteúdos e sua sequência metodológica”. Gradativamente, se escolarizaram práticas sociais de leitura e escrita, envolvendo também o ensino destas práticas, no período da alfabetização. A partir de 1890, inicia-se um movimento de organização de sistemas de instrução pública e tais matérias de ensino começam a receber nomes diferentes: 10 Esse método, baseado na obra de Joseph Lancaster, dividia os alunos em classes segundo a ordem de seus conhecimentos e defendia o fim de castigos físicos na aplicação da disciplina. (MORTATTI, 2000) 11 https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv2434.pdf 31 ensino inicial da leitura, ensino da leitura corrente, leitura expressiva, caligrafia, composições escritas (MORTATTI, 2000). Nas primeiras décadas do século XX, o ensino é consolidado utilizando-se séries de leitura graduada que se iniciavam a partir de cartilhas de alfabetização seguidas de três ou quatro livros de leitura. Mudanças políticas e sociais, ocorridas no Brasil, nas décadas de 30 e 40, acentuaram modificações na educação em nível nacional. Entretanto, os programas de ensino primário não sofreram alterações significativas nestas ocasiões. Uma das primeiras reformas educacionais no Brasil, datada de 1920, a reforma educacional Sampaio Doria, buscava avançar com o ensino público no país. Mortatti (2000) mostra que a educação pública era tema secundário, chegando a estar vinculada ao Ministério do Correios e Telégrafos. Sampaio cria as delegacias de ensino e as “Escolas de Alfabetização” com o objetivo de erradicar o que considerava o mais grave problema educacional do país. Mortatti (2014) ainda destaca os cursos de formação geral de professores, situados em Niterói - RJ e São Paulo - SP que se estabeleciam quanto a saberes didático-pedagógicos compreendidos nos manuais de ensino – livros didáticos que continham os saberes necessários ao professor. Tal prática torna-se rotineira entre as décadas de 40 e 60, em decorrência dos princípios e métodos de ensino difundidos pelo movimento Escola Nova. Apresentavam-se neste momento, como inovação, os processos psicológicos de aprendizagem em confronto com modelos tradicionais de compreensão do ensino escolar. Dificuldades e problemas se acentuaram como a criação e disseminação da Habilitação Específica para o Magistério (HEM), a partir da lei nº 5692/71. Somente com a nova LDB nº 9394 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) de 1996, modificou- se para Pedagogia o curso que formaria o professor para os primeiros cinco anos do Ensino Fundamental (além da atuação na educação infantil). Em 2006, a lei nº 11.274 estabelece no Brasil o Ensino Fundamental de Nove Anos. O objetivo era garantir a todas as crianças um tempo maior de convívio escolar iniciando os pequenos a partir dos 6 anos. Em 2012, é criado o Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Compromisso do governo federal, o programa tinha o objetivo de oferecer formação para todos os professores alfabetizadores do Brasil para assegurar que todas as crianças estivessem alfabetizadas ao final do 3º ano do Ensino Fundamental. 32 Recentemente, em 2019, o governo federal lançou o decreto nº 9765 que institui a Política Nacional de Alfabetização (PNA12). A lei enfatiza a preocupação com o processo de alfabetização nas escolas; entretanto, destaca subjetivamente a predileção ao uso do método fônico, método controverso entre os especialistas em Educação. Por outro lado, a PNA ressalta pontos interessantes como a participação das famílias no processo de alfabetização, o desenvolvimento da linguagem oral e o estímulo aos hábitos de leitura. Também articula a promoção de um ensino de alfabetização “baseado em evidências científicas”, tendo como premissa a “consciência fonêmica” (art. 2º, § IV) e “instrução fônica sistemática” (art. 2º, § V). Segundo Morais (2019, p.38), essa nova proposta do governo aposta em conceitos que “parecem ignorar alguns documentos de estudos e políticas públicas para alfabetização, além de outras perspectivas teórico-epistemológicas do aprendizado inicial da língua escrita, tais como aquelas ligadas aos estudos do letramento”. De acordo com Mortatti (2019, p. 26), essa nova tendência governamental parece “negar fatos do passado e tentar reescrever a história, desconsiderando ser também científico o conhecimento produzido no Brasil e no exterior com base em outras evidências também científicas [...]”. A autora menciona que é fácil apresentar fatos usando estratégias de persuasão; o difícil é a concretização considerando a realidade de um povo: Como se sabe, tematizações e normatizações sobre alfabetização e correspondentes estratégias de persuasão podem ser facilmente inventadas, convincentemente formuladas em documentos oficiais e atraentemente apresentadas em “Power points”. Sua eficácia, no entanto, depende de concretização e execução por sujeitos sócio-históricos que vivem no “mundo real” da escola pública brasileira e do ensino e aprendizagem da leitura e escrita, constituído de contradições entre tradições operantes, de modo menos ou mais silencioso, que já foram inovações impostas e posteriormente condenadas [...] (MORTATTI, 2019, p. 47). Em entrevista ao site Nova Escola (2019)13, Magda Soares comenta o posicionamento do novo governo “em relação a pasta” de Alfabetização: 12 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Alfabetização. PNA: Política Nacional de Alfabetização. Brasília: MEC, SEALF, 2019. 13 SOARES, Magda. Vivi o Estado Novo e passei pela ditadura, mas nunca vi um período tão assustador como este na Educação. [Entrevista concedida a] Lais Semis. Nova Escola, 10 jan. 2019. 33 Isso é mais do que um retrocesso, é um atraso de 50 anos na Educação no Brasil. No que diz respeito ao método fônico, realmente, há um momento no processo de alfabetização da aprendizagem na língua escrita pela criança em que, sim, ela tem que dominar as relações das letras com os sons que representam porque isso é fundamental da língua escrita. Mas transformaram isso em fazer a criança conhecer e pronunciar os fonemas, uma coisa que, linguisticamente, é absolutamente impossível [...] (SOARES, 2019) Para a autora é um retrocesso desconsiderar a maior parte das pesquisas e citá-las como crenças, sem embasamento científico, como aparece no documento PNA. Para Soares (2019), o destaque deve se aplicar a formações continuadas que enfatizem a prática de sala de aula. Como a autora promove, “tem que ser um movimento diferente. Se a gente não mexer aí, tudo vai continuar igual – ou piorar se eles treinarem os professores para o método fônico, porque aí continuaremos o fracasso da alfabetização” (SOARES, 2019). Contudo, essas políticas que incidem do séc. XIX ao XXI mudaram o rumo da alfabetização no país. Caminhos, que segundo, Soares (2004), muitas vezes se mostraram pouco profícuos, mas que nos ensinaram a repensar as metodologias adotadas para tal fim. No próximo tópico, destacaremos métodos e práticas que influenciaram as políticas adotadas em relação à alfabetização no Brasil. 1.2.1 Métodos de Alfabetização Tradicionais De acordo com a pesquisa de Mortatti (2000), a história da constituição da alfabetização como prática cultural e objeto de estudo pode ser dividida em quatro momentos: • 1876 a1890 – referente aos defensores do método sintético (soletração e silabação) e o “método João de Deus”; • 1890 a 1920 – disputa entre os defensores do método sintético e o novo método analítico; • 1920 a 1970 – embate entre os métodos tradicionais (anteriores) e a nova “alfabetização sob medida”, proposta por Lourenço Filho. • 1970 a 2019 – implantação da teoria da “Psicogênese da Língua Escrita” baseada no referencial teórico do construtivismo. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/15004/vivi-o-estado-novo-e-passei-pela-ditadura- mas-nunca-vi-um-periodo-tao-assustador-como-este-na-educacao Acesso em: 26/03/2020. https://novaescola.org.br/conteudo/15004/vivi-o-estado-novo-e-passei-pela-ditadura-mas-nunca-vi-um-periodo-tao-assustador-como-este-na-educacao https://novaescola.org.br/conteudo/15004/vivi-o-estado-novo-e-passei-pela-ditadura-mas-nunca-vi-um-periodo-tao-assustador-como-este-na-educacao 34 O método Sintético de alfabetização consiste em um processo que vai das partes para o todo, ou seja, primeiro a criança aprende as unidades menores (fonemas), para depois conquistar as unidades maiores. “Em outras palavras, primeiro aprende o processo de codificação e decodificação para, em uma fase mais avançada, passar à compreensão da leitura e da escrita” (FONTES e BENEVIDES, 2012, p.3). Esse método se divide em três correntes: alfabético, fônico e silábico. De acordo com Morais (2012, p.28), os três métodos pressupõem que a criança deve partir de unidades linguísticas menores (letras, sílabas ou fonemas) e, na “ótica de aprendizagem acumulativa, ir fazendo sínteses ou somando os pedaços para poder chegar a codificar e decodificar unidades maiores que as primeiras que aprendeu”. O método alfabético relaciona o nome das letras à forma visual, as sílabas são memorizadas e com elas se formam palavras isoladas. Aqui se combinam letras e sons. Exemplo: B com A = BA; B com E = BE, etc. Soares (2016, p.17) cita que o método alfabético também ficou conhecido como método da soletração e teve grande apoio nas chamadas Cartas de ABC. A autora menciona que “era uma aprendizagem centrada na grafia, e que ignorava as relações oralidade-escrita, fonemas-grafemas, como se as letras fossem os sons da língua, quando, na verdade, representam os sons da língua”. O método silábico ou silabação trabalha de forma que a criança aprenda as sílabas para depois formar palavras. Eram apresentadas as sílabas mais fáceis que conduzia o aluno para as mais difíceis, sempre destacando sistematicamente em famílias silábicas. Exemplo: BA, BE, BI, BO, BU, BÃO. Escrita por Thomaz Galhardo, a “Cartilha da Infância” adotava este princípio, em meados da década de 1880. O método fônico é composto por um trabalho a partir do som das letras, unindo som da consoante ao da vogal pronunciando a sílaba formada. Neste método, iniciava-se pelo som das vogais e em seguida as consoantes mais fáceis quanto à sonoridade. Exemplo: /a/, /e/, /f/, /v/, etc. Uma cartilha que exercitava o método era a de Hilário Ribeiro intitulada “Cartilha Nacional”. De acordo com Morais (2012, p.28), o grupo dos métodos sintéticos, historicamente, influenciaram muito na alfabetização praticada nas escolas brasileiras. Muitos materiais, baseados numa perspectiva tradicional, até hoje 35 permeiam as salas de aula de nosso país, apostando em atividades de repetição, memorização e cópia. Segundo Mortatti (2011), o método Analítico baseava-se na necessidade de tornar a aprendizagem significativa considerando a realidade psicológica da criança. Com isso, partia da compreensão da palavra escrita, para alcançar o valor sonoro de sílabas e grafemas, ou seja, partia do todo para as partes. Neste grupo, temos três tipos: a palavração, a sentenciação e o método global. A ideia era começar com unidades maiores que “teriam um significado” como palavras, frases e histórias, e aos poucos levar o aluno a analisá-las. O método da palavração teve como grande destaque a utilização da Cartilha Maternal (também conhecida como Cartilha Arte da Leitura) de João de Deus (1ª edição de 1876), de que Antônio Silva Jardim14 foi o grande divulgador. Este material foi incorporado pela Escola Normal de São Paulo em 1883. A partir daí, seu método passou a ser adotado principalmente nas províncias de São Paulo e do Espírito Santo. A Cartilha Maternal apresenta o método analítico da palavração, considerado revolucionário na época, em que o método mais adotado era o da soletração, seguido da silabação (sintético). Morais (2012, p.30) cita que, na prática, os alunos eram ensinados a identificar e copiar uma coletânea de palavras durante um longo período e só depois partiam para a análise das partes menores. O método da sentenciação consistia na memorização de sentenças completas para depois identificar e tratar as unidades menores. Utiliza-se a comparação entre as palavras, isolando elementos conhecidos para assim ampliar seu vocabulário. Por fim, o método global ou dos contos pretendia direcionar a criança a narrativas artificiais (sem qualidade literária) para do todo seguir os passos do método anterior. Assim, seguia-se texto, frase, palavra, sílaba e fonemas. Destaca-se neste período, década de 20 e 30, o projeto de educação renovada proposta pelo movimento Escola Nova. Tinha como objetivo de romper com a tradição e adaptar a educação à nova ordem política e social desejada. Mortatti (2000, p. 144) destaca que começam a se defender soluções voltadas à função socializadora e adaptadora da alfabetização no âmbito da educação popular. Manoel Lourenço Filho, um dos pioneiros do movimento da Escola Nova, apresenta a hipótese da existência 14 Silva Jardim foi um eminente educador paulista que viveu entre 1860 e 1891. (SOARES, 2016) 36 de um nível de maturidade, passível de medida, como requisito para aprendizagem da leitura e escrita. Esta verificação seria realizada pelo “Testes ABC”. Lourenço Filho ainda se destaca pela publicação da “Cartilha do Povo”, lançada em 1928. Teve ampla adoção nas escolas, como prova o número de edições (a última, 2.204ª edição, datada de 1994). No prefácio da 116ª edição (1939), o autor explicita que sua cartilha é destinada à alfabetização de crianças e adultos de forma mais simples, ou seja, não adotada metodologia específica para o público adulto. Com o tempo, apareceram obras que misturavam os métodos sintéticos e analíticos denominados de Método Misto ou Ecléticos. Segundo Mortatti (2000, p.207), com orientação da psicologia, de não descartar a validade do método analítico, e de se utilizarem as vantagens oferecidas por outros métodos e processos, o método misto ganha rapidamente muitos adeptos a partir da década 30 e se estende até nossos dias. Uma das cartilhas de grande sucesso, que utilizava tal método, foi a Caminho Suave, de Branca Alves de Lima (1ª edição de 1948). Calcula-se que, até a década de 1990, a cartilha vendeu 40 milhões de exemplares. O ensino se iniciava pelas vogais, formava encontros vocálicos e partia para a silabação. Seu diferencial era associar imagens e letras, com o objetivo de facilitar a aprendizagem. Exemplo: a letra B tinha o formato de uma barriga, o V associado aos chifres de uma vaca. Em razão dessa estratégia, criada pela própria autora, tornou-se conhecida como "alfabetização pela imagem”. 1.2.2 Algumas reflexões sobre os métodos tradicionais Segundo Soares (2016, p.19), o objetivo do método sintético e do analítico era a aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico da escrita. Embora no analítico se observe a intenção de partir do significado, textos, palavras e sentenças são intencionalmente escolhidos para servir à decomposição em sílabas e fonemas. Assim, nas duas orientações, o domínio do sistema de escrita é considerado condição e pré-requisito para que a criança desenvolva habilidades de uso da leitura e da escrita, lendo e produzindo texto reais, isto é: primeiro, é preciso aprender a ler e escrever, verbos nesta etapa considerados intransitivos, para só depois de vencida essa etapa tornar esses verbos transitivos, atribuir-lhes complementos: ler textos, livros, escrever histórias cartas...(SOARES, 2016, p. 19) 37 A autora ainda menciona que o pressuposto para aprender o sistema de escrita depende de estímulos externos selecionados e artificialmente construídos. Desta forma, embora estes métodos tradicionais fossem opostos, eles seguem o mesmo paradigma pedagógico e psicológico: o empirista/associacionista. De acordo com Morais (2012, p.27), tal perspectiva considera o aprendiz “uma folha em branco” o qual adquire novos conhecimentos “[...] recebendo informações prontas do exterior (explicações sobre as relações entre letras e sons) que, através da repetição do gesto gráfico (cópia) e da memorização (das tais relações entre letra e som), passariam a ser suas”. A aprendizagem é concebida como um simples processo de acumulação de informações recebidas do meio, sem que o sujeito necessite processar esquemas ou mesmo pensar para compreender os conteúdos que alguém lhe transmite. Estes métodos concebem a escrita como “mero código de transcrição da língua oral: uma lista de símbolos (letras) que substituem fonemas que já existiriam como unidades isoláveis na mente da criança não alfabetizada” (MORAIS, 2012, p.27). Soares (2016, p.20) conclui que, tanto no método sintético como no analítico, o ensino prevalece sobre a aprendizagem reduzindo o processo de alfabetização a uma escolha de método. Ambos se apoiam em estratégias: perceptiva, o primeiro, no auditivo (correspondências entre oral e escrito); o segundo, no visual (correspondências entre escrito e oral). O aprendiz sempre como sujeito passivo que somente recebe o conhecimento. Assim, surge o quarto momento da constituição da alfabetização em nosso país, conforme Mortatti (2000). Baseado na perspectiva da teoria do cognitivismo de Piaget, a teoria psicológica de base construtivista propõe a prevalência da aprendizagem sobre o ensino. É o tema do próximo subitem: a teoria da Psicogênese da Língua Escrita. 1.3 PSICOGÊNESE DA LINGUA ESCRITA “Psicogênese da Língua Escrita” é um livro que foi escrito por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, tendo como título original Los sistemas de escritura en el desarrollo del niño e traduzido no Brasil por Diana Myriam Lichtenstein, Liana Di Marco e Mário 38 Corso. A primeira edição é de 10 de dezembro de 1985, posteriormente havendo várias reimpressões. O objetivo da pesquisa de Ferreiro e Teberosky era tentar explicar os processos e as formas que levam as crianças a ler e escrever. É notável destacar que, baseadas na obra de Piaget (1973), as autoras entendem processo como “o caminho que a criança deverá percorrer para compreender as características, o valor e a função da escrita, desde que esta se constitui no objeto de sua atenção” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985, p.15). Ao pesquisarem sobre estes processos de construção, descobriram hipóteses realizadas pelas crianças diante das tarefas propostas. São estas hipóteses que alicerçaram a teoria que levaria o mesmo título do livro “Teoria da Psicogênese da Língua Escrita”. Segundo Morais (2012, p.45), a teoria criada por Ferreiro e Teberosky teve grande divulgação no Brasil, geralmente sob o rótulo de “construtivismo”, sendo bastante difundida na formação inicial e continuada de professores constituindo parte de documentos do MEC que se referiam à alfabetização; como exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa de 1996. Como vimos no tópico anterior, a visão tradicional de alfabetização se baseia no pensamento de a criança aprender repetindo e memorizando. De acordo com Morais (2012, p. 46), o tradicional ditava que decorando a equivalência entre as formas gráficas (letras) e os sons que elas substituem (fonemas), as crianças viriam a ser capazes de “decodificar” ou “codificar” palavras. Para tal função, seria apenas uma questão de treino, de prática repetitiva e acúmulo (de formas e sons). Para o autor, “por trás dessa visão associacionista/empirista, a escrita alfabética é reduzida a um código”. As expressões código, codificar e decodificar apresentariam uma ideia errônea e falsamente simplificada do trabalho cognitivo que o aprendiz realiza para se alfabetizar. A Teoria da Psicogênese, por sua vez, destaca dois pontos que parecem essenciais para entendermos por que a tarefa do aprendiz não é assimilar um código, mas se apropriar de um sistema de escrita alfabético. Morais (2012, p. 48) destaca que, em primeiro lugar, devemos reconhecer que as regras de funcionamento ou propriedades do sistema não estão prontas na mente. O educando não sabe como as letras funcionam e tampouco veem os fonemas como unidades isoladas. Por isso, o 39 autor reforça que não faz sentido na etapa pré-silábica15, por exemplo, ficar pronunciando fonemas isolados e repetindo a leitura de sílabas, como observamos em muitos materiais didáticos que defendem o método fônico16. Em segundo lugar, a Teoria da Psicogênese mostra que, assim como a humanidade levou muito tempo para inventar o sistema alfabético, “a internalização das regras e convenções do alfabeto não é algo que se dá da noite para o dia, nem pela mera acumulação de informações” (MORAIS, 2012, p. 48). Dessa forma, a teoria pressupõe que o aprendiz tem que resolver um quebra-cabeça, compreendendo as propriedades do alfabeto como sistema notacional. É uma construção que acontece com a evolução do indivíduo e que denota a superação de conflitos cognitivos de acordo com o processamento de tal informação. Ferreiro e Teberosky (1985) destacam, em sua obra, este postulado piagetiano: um novo conhecimento sobre o sistema alfabético não origina, simplesmente, do exterior, a partir de informações dadas pelo meio (a escola, o professor), mas: [...] é fruto da transformação que o próprio aprendiz realiza sobre seus conhecimentos prévios sobre o mesmo sistema, ao lado das novas informações com que se defronta e que não se encaixam naqueles conhecimentos prévios. E que, por isso, funcionam como fonte de desafio e conflito. (MORAIS, 2012, p. 53) Esta percepção de Ferreiro revolucionou o conceito do que era estabelecido sobre alfabetizar. Observar os passos da criança e apostar na decifração das suas primeiras produções foram os trunfos que inovaram as teorias sobre alfabetização. A autora provou que o aprendiz mostra uma matriz evolutiva quanto à assimilação da escrita e que os conflitos são essenciais e contribuem de forma decisiva em todo o processo. Aliado a isso, as pesquisadoras recorreram a outro ponto importante da teoria Piagetiana: o erro. O erro para Piaget não era algo que se sedimentava e impedia o avanço do aprendiz. Pelo contrário, a partir dos conhecimentos que os alunos já possuem, o erro permitia ao indivíduo refletir sobre o conceito ou problema, não 15 Segundo a Psicogênese, a primeira etapa de aprendizagem em que a criança lança hipóteses sobre a língua escrita. Detalharemos todas as etapas mais adiante. 16 Como exposto no subitem anterior, o método fônico é um método de alfabetização que primeiro ensina os sons de cada letra e então constrói a mistura destes sons em conjunto para alcançar a pronúncia completa da palavra (MORAIS, 2012). 40 buscando resultados, mas sim gerando conflitos cognitivos que o permitiriam construir conhecimento, evoluindo a partir de sua superação. Ferreiro e Teberosky (1985, p.22) citam o exemplo com os verbos regulares e irregulares. Trazendo para o Português (pois os exemplos estão em espanhol), um indício seria o uso, pelas crianças, das formas das 1ª, 2ª e 3ª conjugação dos verbos: Eu comi, Eu bebi, Eu fugi, Eu assisti, *Eu di (verbo dar). Esta última forma mostra que a criança faz uma assimilação devido à constância nas formas das 2ª e 3ª conjugação, estendendo-a à 1ª também. Isso ocorreria normalmente no desenvolvimento da linguagem da criança. Foi o que as pesquisadoras denominaram de “erros construtivos”. Ou seja, não seria algo patológico, mas sim um indício de que o indivíduo reflete sobre os elementos da língua. A autoras resumem esta ideia e acrescentam algo imprescindível que marcaria a evolução desta teoria: “não se trata de transmitir um conhecimento que o sujeito não teria fora desse ato de transmissão, mas sim fazer-lhe cobrar a consciência de um conhecimento que o sujeito possui, porém sem ser consciente de possuí-lo” (FERREIRO e TEBEROSKY, 1985, p. 24).17 1.3.1 Características Formais do grafismo A pesquisa de Ferreiro e Teberosky (1985) apontou, a partir das entrevistas com as crianças, características formais que definem o ato de leitura. O sujeito, mesmo ainda sem saber ler, tem ideias sobre os elementos formais que um texto deve apresentar para a fruição da leitura. Dois critérios apareceram como essenciais para o avanço do aprendiz: A – Quantidade suficiente de caracteres As pesquisadoras realizaram testes de leitura, usando o método clínico piagetiano, em que se questionava se uma palavra “servia” para ler ou não. O resultado apresentado foi que a maioria considerava três caracteres um número ideal para se ler. Para muitos não era possível ler quando se apresentava somente 1 (um) caractere. É evidente na pesquisa “a exigência de uma quantidade mínima de caracteres que é totalmente independente das denominações que a criança seja capaz de 17 Esta “consciência” sobre os processos, que abordaremos como metalinguísticos, será abordada com detalhes no próximo subitem. 41 empregar ou que chamem a estes caracteres ‘letras’, ‘números’, ‘palavras’ ou ‘coisas” (FERREIRO e TEBEROSKY,1985, p.42). Fato é que a legibilidade de um texto aparece associada à quantidade de caracteres. B – Variedade de caracteres As pesquisadoras apresentaram formas como MMMMMM, AAAAAA e MANTECA (manteiga) para que as crianças dissessem quais seriam próprias para leitura. A conclusão destacada foi que se os caracteres são iguais, ainda que haja um número suficiente, não seria possível sua leitura. Portanto, permitiu que as autoras avançassem na pesquisa, pois ficou evidente o processamento cognitivo demonstrado pelos aprendizes conseguindo distinguir formas, sejam letras, palavras, sílabas, mesmo ainda não lhes constituindo uma representação. 1.3.2 A evolução da Escrita Embora a leitura tenha tomado a maior parte do livro que alicerçou a teoria da Psicogênese, foram os apontamentos sobre a escrita que mais se difundiram no Brasil e em outros países. Segundo Ferreiro (2004), as marcas que resultam da escrita possuem um resultado observável e, por isso, são permanentes, ao passo que a leitura “não dá resultado: ela não introduz nenhuma modificação ao objeto que acaba de ser lido”. Desta forma, Ferreiro e Teberosky (1985) propõem uma teoria de desenvolvimento da criança em seu processo de construção de escrita. As autoras definem cinco níveis sucessivos e ordenados. Quadro 1: Hipóteses de escrita NÍVEL 1 PRÉ-SILÁBICO NÍVEL 2 NÍVEL 3 SILÁBICO NÍVEL 4 SILÁBICO-ALFABÉTICO NÍVEL 5 ALFABÉTICO Fonte: baseado em Ferreiro (1985)18 18 Inicialmente Ferreiro propõe dois níveis para a hipótese pré-silábica sendo o nível 1 considerado por Magda Soares (2016) como garatuja. Em trabalhos posteriores, é o nível silábico que possui duas 42 1.3.2.1 NÍVEL 1 (Pré-silábico: escrita indiferenciada) Uma das principais características deste nível é a baixa diferenciação entre a escrita de uma palavra e outra. Muitos traços são semelhantes entre si e dependem muito da interação que criança teve com a escrita, ou seja, às vezes repetem-se as letras do próprio nome, usa movimentos realizados na confecção de desenhos etc... Por serem muito semelhantes, o que difere uma forma da outra é a intenção do produtor. Somente ele pode realizar a interpretação tornando a leitura instável, pois em outro momento pode interpretar de outra maneira. Figura 1: Pré-Silábico - J.P19 (9 anos)20 Fonte: Arquivo do autor Observamos, nesta primeira figura, que a criança reconhece certo número de letras e alterna o seu uso para cumprir com a variedade de caracteres necessária para a escrita de uma palavra. Outro ponto interessante é a elaboração de hipóteses do aprendiz. Neste caso, ele acredita ser necessário preencher a linha para que haja algo escrito. Vale destacar novamente que estas hipóteses não são transmitidas por alguém, e sim elaboradas e testadas pelos próprios indivíduos. fases: Nível 1- Pré-silábico, Nível 2 – Silábico sem valor sonoro, Nível 3 – Silábico com valor sonoro, Nível 4 – Silábico- Alfabético e Nível 5 – Alfabético. 19 Usamos somente as iniciais para a identificação dos discentes. 20 Todos os exemplos serão tirados da minha prática docente, preferencialmente do estudo piloto que será apresentado adiante. Vale destacar também que são alunos que já estariam na fase de consolidação da escrita, porém notamos as dificuldades em alunos que já cursam o 5º ano. TARTARUGA RINOCERONTE BORBOLETA CAVALO CAMELO CORUJA VACA PATO PÉ 43 Nesta etapa, é normal surgirem formas que imitam o modelo da escrita convencional. Se aparecem linhas onduladas, denominam-se garatujas. Se o modelo é a forma cursiva, prevalecem formas curvas e retas. Se for uma combinação entre elas, se baseia na escrita de imprensa (SOARES, 2016, p. 65). De acordo com Azenha (2002, p.65), de um modo não sistemático, uma estratégia usada pelo aprendiz para diferenciar os grafismos é reproduzir o tamanho do objeto referido. Por isso, para escrever palavras como “elefante”, “girafa” e “boi” a criança usa letras grandes e para escrever “formiga”, “abelha” e “minhoca” usaria letras menores. A palavra “formiga” é mais extensa que a palavra “boi”, porém a criança, nesta fase, está atenta ao referente da linguagem, ao objeto que ela nomeia. Este fenômeno recebe o nome de “Realismo Nominal”21 na obra de Piaget, intitulada “A representação do mundo da criança” (1926). É comum ainda haver momentos em que a criança escreve e em outros desenha o que se pede, mostrando indecisão quanto ao que a escrita representa: registro do significado ou registro de palavras? (AZENHA, 2002, p.67). 1.3.2.2 NÍVEL 2 (Pré-silábico: diferenciação da escrita) Neste nível, a principal característica está na tentativa sistemática de criar diferenciações entre os grafismos produzidos. Para tanto, o aprendiz percebe que a hipótese da quantidade mínima de caracteres para compor uma escrita e a necessidade da variá-los continuam como exigências presentes. Quando a disponibilidade de letras é restrita, o indivíduo obriga-se a gerar novas formas alterando a ordem linear das letras, ou seja, as letras devem variar de forma a garantir um conjunto distinto do outro. 21 Refletiremos mais especificamente sobre este fenômeno no subitem sobre consciência fonológica. 44 Figura 2: Pré-silábico II - N. C. (9 anos) Fonte: Arquivo do autor Neste exemplo, evidencia-se claramente a tentativa de variação dos caracteres na escrita de novas palavras. A criança utiliza as letras C, M, O, G, S, A, I, E para compor as formas: COSSPE, COPAS, COPAI, COAS, COMG. Mesmo começando com as mesmas iniciais, ela teve o cuidado de variar as outras letras. Prova do esforço cognitivo para elaborar novas hipóteses de escrita. Não há correspondência das letras com seus valores sonoros. O aprendiz nesta fase já pode ter se apropriado de algumas formas fixas estáveis, como o próprio nome ou palavras simples. Segundo Azenha (2002, p. 69), o efeito desta apropriação pode ter resultados inversos. O primeiro pode ser “um bloqueio momentâneo em realizar a escrita de outras palavras, sustentado pela ideia de que se aprende copiando”. O segundo, um efeito positivo, “é a capacidade de prever outras escritas, utilizando estas palavras como base”. 1.3.2.3 NÍVEL 3 (Silábico) De acordo com Azenha (2002, p. 74), um elemento essencial para o processo de alfabetização se apresenta neste nível: a criança tenta estabelecer o contato entre o contexto sonoro da linguagem e o contexto gráfico de registro. Este fator representa uma evolução muito grande no processo de desenvolvimento do aprendiz, uma vez que o mesmo tende a considerar que a escrita pode representar a parte sonora da fala. 45 Um equívoco de interpretação em relação à teoria é considerar que só ocorre a hipótese silábica quando o indivíduo demonstra conhecer e empregar o valor sonoro das letras. O fator crucial nesta etapa é a atribuição de uma marca produzida como parte de uma totalidade registrada (AZENHA, 2002, p. 74). Ou seja, o importante é o aprendiz tentar atribuir uma letra, pseudoletra, número ou outro caractere para cada parte da sílaba. Vale aqui destacar, como menciona Soares (2016, p. 185), que a capacidade de divisão da palavra em sílabas manifesta-se de forma espontânea e muito cedo na criança. Segundo os estudos de Ferreiro (2013), a sílaba parece ser a unidade fonológica mais acessível às crianças, por serem a menor unidade da fala que pode ser produzida isoladamente, com independência.22 Figura 3: Silábico - K. P. (10 anos) Fonte: Arquivo do autor No exemplo acima, observamos bem a marcação da sílaba. A criança utiliza uma letra para representar cada sílaba (VC: va-ca). Em alguns casos, parece-nos que ela já fixou a sílaba LO, fato que gera um grande conflito cognitivo contribuindo na evolução das hipóteses. Outro caso foi a marcação BLA: bor-bo-le-ta, o que pode ter sido um descuido ou falta de atenção, uma vez que o discente assimilou bem os 22 Mais detalhes sobre o que denominaremos de consciência silábica serão discutidos no próximo subitem. BORBOLETA CAMELO CAVALO VACA BOI 46 critérios deste nível e já se prepara para o próximo. Na linha 5, mostra-se uma palavra que o mesmo já conhecia e, por isso, se torna mais fácil. Neste nível, ainda há dificuldade causada por conflitos cognitivos referentes a palavras dissílabas e monossílabas. A criança compreende que necessita de um caractere para escrever, por exemplo SOL (S), porém ela entende que uma letra pode não contemplar a escrita de uma palavra. De acordo com Azenha (2002, p. 75), tais contradições entre dois esquemas de assimilação: podem engendrar mecanismos de ampliação da estrutura cognitiva por perturbações decorrentes de fatores endógenos ou de soluções de compromisso momentâneo que evitem acomodações bruscas. O conflito gerado, e a consciência desta contradição que a criança enfrenta quando realiza a leitura de sua produção, costumeiramente produz um visível desconforto. [...] Essas contradições endógenas acabam por levar a criança a abrir mão da quantidade mínima de letras, fazendo predominar apenas a lógica da hipótese silábica. Morais (2012, p.60) destaca que, no meio educacional brasileiro, é comum a análise das escritas silábicas em dois subgrupos: silábicas quantitativas (ou sem valor sonoro) e silábicas qualitativas (ou com valor sonoro)23. É notável que em línguas como Espanhol e Português, devido à maior regularidade nas correspondências entre letra e som, as crianças usem mais as vogais para marcar as sílabas.24 Assim, temos AEO para ca-me-lo ou AEA para ja-ne-la. Porém, como vimos na figura 3, é comum o uso de consoantes ou a mescla de vogais e consoantes. Ainda de acordo com Morais (2012, p.61), observa-se uma discordância de Ferreiro (1985) quanto ao papel da consciência fonológica como um requisito para a escrita silábica: Quando pensamos uma criança com escrita silábica quantitativa, que produziu as notações MIC para janela e TOIB para computador, entendemos que, para alcançar de forma tão rigorosa o cumprimento da regra “uma sílaba oral, uma letra”, aquele menino ou aquela menina esteve analisando fonologicamente as palavras em pauta, para o que acionou duas habilidades de consciência fonológica a de segmentar uma palavra oral em suas sílabas e a habilidade de contar aquelas sílabas orais (MORAIS, 2012, p.61). Portanto, como veremos no próximo subitem, esta fase é de grande importância para a evolução da criança, pois à medida que se torna consciente a habilidade de se refletir sobre a parte fonológica da língua, ocorre a internalização dos processos 23 Inclusive, nossa proposta de trabalho para as análises posteriores utilizará estas nomenclaturas. 24 A pesquisa de Morais (2012, p. 60, nota de rodapé) sugere mais detalhes. 47 primordiais para a sua alfabetização. Como cita Morais (2012), é muito difícil uma criança que esteja neste nível no começo do ano, não estar no nível alfabético no final dos doze meses. 1.3.2.4 NÍVEL 4 (Silábico-Alfabético) Este nível contempla a utilização das hipóteses silábica e alfabética de escrita as quais, por serem utilizadas ao mesmo tempo, caracterizam o nível silábico- alfabético. Azenha (2002, p.82) define como “um momento de transição, em que a criança, sem abandonar a hipótese anterior, ensaia em alguns segmentos a análise da escrita em termos de fonemas (escrita alfabética)”. Muitas vezes, esta escrita pode ser confundida com falhas pela ocorrência de omissões no registro de letras. É frequente que se pense até em patologia ou em falhas de percepção (visual, auditiva ou articulatória), embora numa análise mais profunda se note o acréscimo de letras ao invés de omissão. A criança mostra que domina algumas sílabas, mas ainda encontra dificuldades em algumas relações. Observe a figura 4: Figura 4: Silábico-Alfabético - S. C. (9 anos) Fonte: Arquivo do autor É uma criança que já está bem próxima do nível seguinte, mas ainda possui conflitos interessantes: • na palavra 3, faz a relação desta forma B-O-LETA = bor-bo-le-ta. Por mais que já possua sílabas já plenamente realizadas (LE – TA), a outra parte da palavra ainda está no nível anterior; 48 • na palavra 1, ocorre a troca do GA pelo HÁ (que é muito comum nesta fase, devido à relação com o nome da letra (AGÁ); • a difícil realização das palavras monossílabas: vez e mãe. Percebe-se a instabilidade para a superação do conflito. Neste caso da produção da criança na figura 4, outro fator importante que se pode constatar é a estabilidade. A 1ª versão foi realizada em sala de aula juntamente com os outros colegas e a 2ª versão, sozinho, uma semana depois. Nota-se que as formas se mantêm demonstrando que a criança testa novas possibilidades, mas condiciona a sua escrita de uma maneira estável, ou seja, com as mesmas características que conferiu outrora. De acordo com Azenha (2002, p.85), apenas esta contradição interna é insuficiente para o avanço na descoberta da escrita. Sem as informações fornecidas pelo meio (escola, família) para refinar a aprendizagem do valor sonoro das letras e das oportunidades de comparar os diversos modos de escrita, o avanço pode não acontecer. Aqui enfatizamos a necessidade de professores bem formados para que consigam contribuir para a concretização do papel da escola neste momento: favorecer as situações educativas que levem à reflexão do uso da língua escrita e da oralidade na prática social. 1.3.2.5 NÍVEL 5 (Alfabético) Segundo Soares (2016, p.66), neste estágio o aprendiz já venceu todos os obstáculos conceituais para a compreensão da escrita – “cada um dos caracteres da escrita correspondente a valores sonoros menores que a sílaba – e realiza sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever”. O próximo desafio é a preocupação com as normativas da ortografia. Observe um outro aluno na figura 5: 49 Figura 5: Alfabético - L. S. (10 anos) Fonte: Arquivo do autor A criança recém-chegada a uma hipótese alfabética acredita que prevalece a lógica de que cada letra deveria equivaler a um (único) som e cada som deveria ser escrito por uma (única letra). Já considera palavras com a formação consoante – vogal (CV) bem frequentes, mas observa que desconhece alguns sons, algumas convenções ortográficas e outras formações silábicas (VC, CVC e CCV) mais complexas. Por isso, Morais (2012, p.65) critica o engano a que professores e até políticas públicas de alfabetização são lev