1 IRANILDE FERREIRA MIGUEL GÊNERO, PENTECOSTALISMO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: AS PROFESSORAS DA CONGREGAÇÃO CRISTà NO BRASIL . Presidente Prudente 2008 3 IRANILDE FERREIRA MIGUEL GÊNERO, PENTECOSTALISMO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: AS PROFESSORAS DA CONGREGAÇÃO CRISTà NO BRASIL. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia/ UNESP campus de Presidente Prudente, como exigência para a obtenção do Titulo de Mestre em Educação. Orientadora: Profª Drª Arilda Inês Miranda Ribeiro. Presidente Prudente 2008 2 Miguel, Iranilde Ferreira M577g Gênero, pentecostalismo e formação de professores na construção da cidadania: as professoras da congregação Cristã no Brasil 126 f : il. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Orientador: Profª Dra Arilda Inês Miranda Ribeiro Banca: Profª Dra Rachel Silveira Wrege e Profº Dr Levino Bertam Inclui bibliografia 1. Gênero. 2. Religiosidade. 3. Cidadania. 4. Professoras da CCB. 5. Formação de professores. I. Autor. II. Título. Presidente Prudente – Faculdade de Ciências e Tecnologia. CDD(18.ed.)370 ���������� �� ������ �� ������� ������ �������������������� ������������ ���� ��� ����� ������ �� ������� ����!�� � �������" ��������� �#�$%&�'(�)*�������� '����������'�������+�claudia@fct.unesp.br 4 TERMO DE APROVAÇÃO IRANILDE FERREIRA MIGUEL GÊNERO, PENTECOSTALISMO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA: AS PROFESSORAS DA CONGREGAÇÃO CRISTà NO BRASIL. Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista - UNESP, campus de Presidente Prudente, pela seguinte banca orientadora: Orientadora: Profª Drª Arilda Inês Miranda Ribeiro. Departamento de Educação – Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista - UNESP, de Presidente Prudente Profº Dr Levino Bertan Universidade do Oeste Paulista Profª Dra Rachel Silveira Wrege Departamento de Educação – Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista - UNESP, de Presidente Prudente Presidente Prudente 2008 5 Dedico este trabalho Aos meus pais, Lídia e Targino. À minha mãe que não teve a oportunidade de tornar -se uma professora, mas dedicou sua vida ensinando o significado das palavras coragem e determinação. Ao meu pai, que com sabedoria soube enxergar, que as mulheres, principalmente “elas” nunca poderiam ficar sem a educação escolar. À minha tia Joana (in memorian), minha outra mãe, com quem aprendi que “Deus é bom e a sua benignidade dura para sempre”. Quanta saudade! Ao meu marido e amigo Rogério, que com paciência soube administrar nossa casa, nossas contas, ser pai e mãe e ainda conseguiu cuidar da Igreja. E ao meu filho querido, meu menino Gabriel, por ter sido privado de minha atenção em momentos importante de sua vida de criança. E a todas as mulheres crentes que encontram na religião o significado maior da vida. 6 AGRADECIMENTOS A realização deste trabalho só foi possível graças á colaboração direta de muitas pessoas. Manifestamos nossa gratidão a todas elas e de forma particular agradecemos: À Professora Dra Arilda Inês Miranda Ribeiro por ter acreditado em meu projeto, e dado “voz” as professoras da CCB, através deste trabalho. Obrigada, professora pela sua competente orientação. À Professora Dra Eunice Ladeia Guimarães Lima, grande incentivadora e colaboradora nesse trabalho, que me fez enxergar e acreditar que minhas indagações poderiam chegar à academia, e que sempre esteve pronta a ouvir, ler e sugerir alterações. Aos Professores, profº Dr Levino Bertan , Profª Dra Rachel Silveira Wreger, profº Dr Divino José da Silva e profº Dr Cesar Nunes, por aceitarem fazer parte de minha banca de defesa. À Maria José e José Miguel, minha sogra e meu sogro, que muito me ajudaram incentivando, apoiando e cuidando do meu filho em momentos que precisei estar só para escrever. Às minhas irmãs Cleusa e Cleonice, também professoras crentes da CCB, e ao meu irmão José Luiz, com quem dividi meus questionamentos, e que muito me incentivaram durante todo meu trabalho de pesquisa. Às professoras da CCB, minhas queridas “irmãs” e companheiras, que colaboraram com essa pesquisa, concedendo-me a honra de entrevistá-las e pela preciosa colaboração com suas falas, com as quais foi possível completar esse trabalho. Aos irmãos que preferiram ficar no anonimato, mas muito colaboraram com esse trabalho cedendo relatos sobre a origem da CCB em São Paulo, que me foram muito úteis. 7 Aos meus colaboradores virtuais, Nilceu Jacob Deitos, Daniel Soares Simões e Leonardo Marcondes Alves, pesquisadores, que mesmo sem me conhecer colaboraram com materiais e sugestões, através de e-mails. Ao meu colega Osvaldo José, vice - diretor da E.E Fleurides Cavallini Menechino em Adamantina, pelo companheirismo, compreensão e profissionalismo, com quem nos momentos mais críticos pude contar sempre. Aos meus colegas supervisores de ensino da Diretoria Regional de Ensino de Adamantina, com os quais pude contar, não só com apoio moral, mas pude provar da solidariedade da cada um, em momentos muito difíceis. À dirigente regional de ensino da Diretoria Regional de Ensino de Pindamonhangaba, Profª Gicele Paiva Giudice, que num momento de extrema dificuldade muito me ajudou. À minha querida amiga de curso, Elizabeth Ângela dos Santos, a quem carinhosamente chamo de “minha fada madrinha”, por ter me socorrido inúmeras vezes nas variadas situações, dada a distância de minha residência. À secretaria da Educação do Estado de São Paulo pela Bolsa Mestrado. 8 “O silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento. Silêncio das mulheres na Igreja ou no templo; maior ainda na sinagoga ou na mesquita, onde elas não podem nem mesmo penetrar na hora das orações. Silêncio nas assembléias políticas povoadas de homens que as tomam de assalto com sua eloqüência masculina. Silêncio no espaço público onde sua intervenção coletiva é assimilada à histeria do grito e a uma atitude barulhenta demais com a da ‘vida fácil’”. (Michelle Perrot, 2005) 9 RESUMO Esse trabalho apresenta alguns questionamentos sobre religiosidade e as relações de gênero dela decorrentes que merecem um espaço nas pautas das discussões cujo tema é a construção da cidadania e da emancipação humana. Procuramos mostrar que tais questões embora presentes no cotidiano escolar, foram se tornando corriqueiras a ponto de tornarem-se imperceptíveis aos sujeitos que as vivenciam. O texto trata das relações de gênero instituídas por meio da religião, com enfoque nas professoras crentes da Congregação Cristã no Brasil, uma igreja que conta com um número considerável de fiéis e que apresenta características diferenciadas das demais igrejas pentecostais. Discute-se alguns conceitos que se cruzam e entrecruzam ao longo do trabalho, e se encerra concluindo que embora o discurso circulante afirme que “religião não se discute”, se faz necessário incluir na pauta das discussões as questões referentes à identidade/diferença, produzidas pelas religiões, apesar da complexidade dessa tarefa já que não se constitui numa questão gerada no interior de movimentos sociais, e nem possui características reivindicatórias de nenhum grupo social. Palavras-chave: gênero; religiosidade; cidadania; professoras da CCB. 10 ABSTRACT This paper presents some queries about religiosity and the gender relations related to them that deserve to be discussed whose theme is the construction of citizenship and human emancipation. However, such queries are present in school routine; they were so common that became imperceptible to the ones who lived it, The text deals with gender relations instituted by religion, focusing on protestant teachers from “ Congregação Cristã no Brasil” a church which has a great number of followers and has different characteristics from other Pentecostal churches. Some concepts that crossed and intercrossed throughout the paper are discussed, and it ends concluding that, although circulating speech claims that “we must not discuss religion”, it is an issue needed to be discussed referring to identity/differences, created by religions, in despite of complexity of this task because it is not a query generated inside social movements, and neither has characteristics of vindication from any social group. KEY-WORDS: Gender relations; religiosity; citizenship; CCB’s teachers. 11 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01- Declaração dos direitos dos homens e do cidadão........................................ 48 Figura 02- Capa da revista veja de 02 de julho de 2002 ............................................... 53 Figura 03- Mulher sendo lançada de um lugar alto ....................................................... 57 Figura 04- Malleus Maleficarum – edição de 1669 ...................................................... 58 Figura 05- Capa do livro O anjo das trevas ou lampejos de doutrina de ciência e de bom senso contra os erros modernos........................................................... 62 Figura 06 – Carta escrita por Luigi Francescon – março de 1962 ................................ 64 Figura 07 – Rua Azusa/ Los Angeles/ EUA – 1906 ..................................................... 75 Figura 08 – Rua Azusa, 312, nos dias atuais e pastor Seymour e Jenny Moore .......... 76 Figura 09 – Jornal Los Angeles Times de 18 de abril de 1906 ..................................... 77 Figura 10 – Jornal The Apostolic Faith – setembro de 1906 ........................................ 77 Figura 11 – Luigi Francescon e sua esposa Rosina Balzano ........................................ 80 Figura 12 – Rio Boi Pintado em Santo Antonio da Platina ( PR) ................................. 82 Figura 13 – Primeira família de “crentes” da CCB em Santo Antonio da Platina (PR) 82 Figura 14 – Primeira Igreja da CCB em Santo Antonio da Platina (PR) ...................... 83 Figura 15 – Igreja Central da CCB em Santo Antonio da Platina (PR) ....................... 83 Figura 16 – Congregação Cristã no Brasil no Bairro do Brás em São Paulo ............... 84 Figura 17 – Culto de ordenação de um ancião na CCB do Brás em São Paulo ............ 91 Figura 18 – Igreja Flutuante da CCB no Rio Negro (AM) ........................................... 95 Figura 19 – Púlpito de uma das igrejas da CCB ............................................................ 95 Figura 20 – Interior de uma Igreja da CCB: “EM NOME DO SENHOR JESUS” ...... 96 Figura 21 – Culto na CCB do Brás em São Paulo na década de 1950 .......................... 97 Figura 22 – Orquestra da CCB – ensaio musical .......................................................... 98 Figura 23 – Mulheres usando o véu durante o culto na CCB na década de 1950 ......... 109 Figura 24- Tiradentes esquartejado – Museu Mariano Procópio .................................. 122 Figura 25- O massacre de São Bartolomeu (1572) ...................................................... 125 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 14 CAPÍTULO 1 - FUNDAMENTOS TEÓRICOS METODOLÓGICOS ................ 19 1.1 - Algumas considerações sobre a História Oral ................................................... 19 1.2 - Por que história oral ........................................................................................... 20 1.3 - Alguns marcos da teoria das representações sociais ......................................... 22 1.4 - Representação social, imaginário e pentecostalismo ......................................... 26 1.5 - Imaginário social ............................................................................................... 27 1.6 - As representações sociais .................................................................................. 30 CAPÍTULO 2 - CULTURA, CIDADANIA, RELIGIÃO E RELAÇAO DE GÊNERO .......................................................................................... 32 2.1- Sobre a cultura ................................................................................................... 32 2.2 - A escola como canteiro de obras na construção da cidadania: adequações à agenda de reformas neoliberais ......................................................................... 37 2.3 - Revisitando o conceito de cidadania ................................................................. 42 2.4 - A cidadania que queremos ................................................................................ 49 2.5 - Relações de gênero e religiosidade: uma questão de cidadania ........................ 55 2.6 - A cidadania do ponto de vista dos pentecostais da CCB ................................... 59 2.7 - Relações de gênero ............................................................................................ 67 2.8 - Marcas biológicas do corpo “macho” ou fêmea” na determinação do gênero: uma questão cultural .......................................................................................... 70 2.9 - O patriarcado e as diferenças de sexos .............................................................. 71 2.10 - As igrejas pentecostais no Brasil ....................................................................... 73 2.11 - Luigi Francescon e o pentecostalismo no Brasil ............................................... 79 2.12 - Nasce uma igreja em São Paulo: a Congregação Cristã no Brasil .................... 84 13 CAPÍTULO 3 - O DISCURSO RELIGIOSO, IMAGINÁRIO PENTECOSTAL E SUAS IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO FEMININA NA CCB 88 3.1 - A organização Institucional da CCB como prática discursiva ........................... 90 3.2 - Os templos .......................................................................................................... 94 3.3 - A orquestra .......................................................................................................... 97 3.4 - O culto ................................................................................................................. 99 3.5 - As coletas ............................................................................................................ 102 3.6 - A obra da piedade: uma obra feminina ............................................................... 103 3.7 - O lugar da mulher na CCB .................................................................................. 103 CAPÍTULO 4 - O COTIDIANO ESCOLAR: RELAÇÕES DE GÊNERO E RELIGIOSIDADE NO COTIDIANO ESCOLAR ....................... 110 4.1 - Mulher, professora e crente da CCB ................................................................... 110 4.2 - Tensões e conflitos provocados pela religiosidade no cotidiano escolar ............ 115 4.3 - Algumas considerações sobre as questões de gênero/religiosidade e a formação das professoras .................................................................................... 125 4.4 - A reflexão na formação das (os) professoras (es): algumas palavras... ............. 129 4.5 - Considerações finais ........................................................................................... 131 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 134 14 INTRODUÇÃO Este trabalho é resultado de uma necessidade de repostas a uma série de perguntas levantadas ao longo de minha história de vida, e que foram ganhando outros significados à medida que, no processo de minha formação docente, foram redefinidas de um ponto de vista teórico e metodológico. Devo acrescentar que as questões de gênero, religiosidade e as relações de poder no interior da escola, sempre me inquietaram. Sentia a tensão, a batalha travada, entretanto não conseguia enxergar o funcionamento das engrenagens do poder, e tampouco compreender as conexões que se formavam com os diferentes níveis da sociedade. No final da década de 1970 e início da década de 1980, como aluna do Ensino Fundamental (5ª a 8ª série), percebia que o espaço escolar não era laico. A neutralidade religiosa propalada pelos professores não existia de fato. Nas festas juninas, nos finais de ano, ou em eventos durante o ano letivo, a presença de elementos religiosos católicos era constante. Não escolhi ser professora. Minha grande paixão era a música, o piano. Paixão que nasceu nos cultos freqüentados e no contato com o órgão tocado só por mulheres na Congregação Cristã no Brasil. Esta Paixão me fez uma organista na CCB.1 A realidade que me cercava numa pequena cidade do Oeste Paulista e a falta de dinheiro me apontavam o magistério como o único caminho profissional. Ainda ouço a voz do meu pai, na década de 1970, em conversa com o vizinho dizendo: “Mulher tem que estudar, porque se um dia o casamento não der certo, ela tem como se virar na vida. Eu não deixo minhas filhas sem estudo”. O Estudo a que ele se referia era o magistério. Somos uma família de três filhas professoras e um filho. Para o meu pai o casamento representava segurança para uma mulher, entretanto, ele não descartava a possibilidade de uma profissão. Tornei-me professora. Encantei-me com a história quando Dona Elisa, professora de História2, na primeira série do Ensino Médio, nos apresentou a História da América. Até então, História era, para mim, apenas matéria decorativa, conforme os professores a intitulavam. Decidi que seria professora de História. Na faculdade, as leituras e, principalmente, a descoberta de Karl Marx e a luta de classe fizeram antigas inquietações 1 A sigla CCB será usada para fins de simplificação sempre que me referir a Igreja Pentecostal Congregação Cristã no Brasil. 2 Quando se tratar de um componente curricular dentro do currículo escolar a grafia será em maiúscula. Quando se tratar da ciência, será em minúscula. 15 ganharem novos significados. Como professora, meu discurso e minhas práticas se davam com o intuito de levar os alunos a compreenderem os mecanismos de poder que provocavam as desigualdades sociais. Eu me considerava uma professora marxista, que acreditava e defendia a luta de classes, mas, além disso, eu trazia em minha bagagem minha religiosidade: eu era antes de tudo uma mulher pentecostal3 da CCB. Pertencer à CCB implicava ser uma mulher diferente: cabelos compridos, saias, roupas com mangas, ausência de jóias ou pinturas. Eu carregava, conforme diz Guacira Lopes Louro (2004), a multiplicidade de sinais, códigos e atitudes, que me definiam como o sujeito – professora da CCB. Cabe ressaltar que essa multiplicidade de sinais e códigos, são elementos que estabelecem as relações de gênero no interior da igreja e definem os sujeitos, mulheres e homens. O olhar pela história (PERROT, 2005) me desvelava, pouco a pouco, as relações de poder e os mecanismos de dominação que me cercavam, gerando em mim uma vontade de saber. Os discursos que faziam parte do meu cotidiano - o religioso - me recomendavam submissão e aceitação da ordem aparentemente natural e previamente estabelecida pela vontade divina. Já o da história produzia em mim uma inquietante vontade de saber. Sentia-me alcançada, tocada e transformada pela experiência de mulher pentecostal e professora, e segundo Larrosa (2002) somente o sujeito da experiência consegue se abrir para essa transformação. Passei a observar os movimentos da escola e suas práticas. Ouvir mais atentamente as palavras que não eram ditas, os sons que não eram ouvidos, mas que se faziam presentes no cotidiano escolar. Nesse movimento de escuta e observação, ouvi uma conversa entre duas professoras que se referiam a uma outra, que é protestante pentecostal. Ela era chamada de coitada, entre outras razões, por causa de suas roupas, de sua aparência, de sua religião. Comecei a entender que o exercício do credo religioso não é tarefa fácil no terreno escolar. Perguntas sem respostas que carregava comigo deram lugar a questões inquietantes. Comecei a investigar e a levantar hipóteses. Elaborava conclusões preliminares de que a escola não era um espaço neutro, mas um palco de tensões e conflitos sob diversos aspectos: étnicos, de classes, de sexualidade, etc. Dentre esses, a religiosidade e as divisões de fé se faziam muito presentes. Somam-se a isso, as relações de gênero estabelecidas no interior da Igreja Pentecostal CCB e que ecoavam no cotidiano da escola. 3 Cf. capítulo 2, desse trabalho sobre o pentecostalismo. 16 Esses questionamentos me levaram a repensar o conceito de cidadania e a função da escola nessa construção. Na construção do projeto de cidadania, que tem como princípio a participação e a emancipação humana, qual é o lugar da religião ou da religiosidade de cada um no cotidiano escolar? Qual o papel da religião nas relações de gênero? Como as professoras pentecostais da Congregação Cristã no Brasil são vistas no espaço escolar? De que maneira as relações de gênero produzidas no interior da igreja atravessam o projeto educativo, permeando o trabalho pedagógico realizado pelas professoras pentecostais? O pentecostalismo exerce influências na formação das professoras? Meu primeiro contato com a história das mulheres e relações de gênero, aconteceu com os livros: A Educação da mulher no Brasil-Colônia e a Educação feminina durante o século XIX: o Colégio Florence de Campinas 1863-1889, quando a autora, Profª Dra Arilda Inês Miranda Ribeiro,ministrava cursos de capacitação a professores da região em que eu trabalhava, em 1998. As leituras desses livros me davam algumas respostas às minhas antigas inquietações, provocavam novos questionamentos e mostravam como as relações de gênero eram desiguais, e se estabeleciam por meio dos mais variados mecanismos, dentre eles a educação e a religião. Inquietava-me saber que em minhas aulas de História não havia espaço para o estudo ou questionamento dessas relações. Enfim, não havia lugar para as mulheres no currículo escolar e livros didáticos. A partir daí, comecei a refletir sobre a possibilidade de aprofundar estudos sobre o tema, nascendo daí meu objeto de pesquisa. Relações de gênero, educação e religiosidade seriam as palavras chave do meu trabalho. Nessa trajetória a profª Dra Arilda aceitou orientar esse trabalho. Não é nossa4 pretensão esgotar a complexidade envolvida na discussão das questões levantadas, já que se trata de uma dissertação de mestrado. Estabelecemos como objetivo dessa dissertação provocar reflexões sobre a religiosidade e relações de gênero no contexto escolar, lugar escolhido como canteiro de obras na construção da cidadania e emancipação humana. Isto posto esclarecemos o leitor que ao longo desse trabalho não abordaremos aspectos sobre a essência da religiosidade e do cristianismo no interior da CCB. Nossa atenção estará voltada para as diferenças, produzidas nas mulheres, pela religiosidade e seus desdobramentos no espaço escolar. Além disso trata-se de uma pesquisa em Educação sem pretensões de aprofundamento nas teorias da religião e da religiosidade. 4 Passo a usar o pronome nós, pois a partir daqui passo a ter orientação da profª Dra Arilda. 17 Esta dissertação está dividida em quatro capítulos: No primeiro capítulo, explicitamos os procedimentos metodológicos utilizados, a saber a história oral. Justificamos nossa opção pelo uso da história oral, porque julgamos necessário dar voz às mulheres professoras da CCB, na medida em que a história de vida nos possibilita captar, nas entrelinhas dos relatos individuais de cada professora, seus valores, suas angústias, suas tensões, seus silêncios e sonhos vividos cotidianamente, nos permitindo uma melhor compreensão e interpretação da sociedade. Foram feitas entrevistas semidirigidas com cinco professoras da CCB; diretores de escola; um ancião5 da igreja CCB e uma aluna da CCB do ensino fundamental. Recorremos à teoria das representações sociais associadas ao imaginário social, na medida em que reconhecemos que as representações das professoras da CCB, não podem ser entendidas desvinculadas do sistema simbólico do grupo a que pertencem. Para nós as professoras da CCB expressam, em suas representações, o sentido que dão ao mundo, as formas como o enxergam, a partir de suas crenças, de seus valores dos seus códigos e das interpretações que compõem o imaginário de seu grupo. No segundo capítulo, procuramos contextualizar nosso objeto de pesquisa, estabelecendo as relações existentes entre cultura, cidadania, religião e relação de gênero. Preocupamo-nos em trabalhar inicialmente com os conceitos de cultura e cidadania já que do nosso ponto de vista a cidadania é um conceito histórico e cambiante, que depende do tempo e da cultura. Por outro lado, procuramos situar a religião como elemento formador e transformador do indivíduo e, conseqüentemente, da cultura, sem nos descuidar das relações de gênero estabelecidas e mantidas pela religiosidade. Ainda no segundo capítulo, fez necessário apresentar informações sobre o que é a CCB bem como algumas de suas peculiaridades. No terceiro capítulo, optamos por trabalhar com a educação feminina na CCB, considerando que os processos educativos acontecem e se desenvolvem a partir de diferentes contextos. Entendemos que as religiões são poderosos instrumentos de formação dos indivíduos, por isso, de início, buscamos nos aproximar e apresentar as práticas religiosas e o funcionamento da instituição religiosa CCB. Em seguida, procuramos evidenciar as implicações do discurso religioso da CCB na educação feminina. O quarto capítulo trata dos conflitos e tensões provocados pela religiosidade, os quais permeiam o espaço escolar. Nosso olhar recai sobre as professoras da CCB e a forma como se movem no espaço/escola. Ainda nesse capítulo, tratamos brevemente da formação 5 Ancião cargo que equivale ao de pastor ou do padre. Na CCB, não se usa o termo pastor. 18 das (os) professoras (es) numa perspectiva do conceito de professor reflexivo, como possibilidade de descontrução da ordem instituída nas relações de gênero e religiosidade, bem como no estabelecimento do diálogo inter-religioso. Finalmente, encerramos nosso trabalho com algumas considerações que julgamos relevantes acerca do que conseguimos aprender com a pesquisa e dos caminhos que se abrem para novas reflexões a partir dela. 19 CAPÍTULO 1 - FUNDAMENTOS TEÓRICOS METODOLÓGICOS 1.1 - Algumas considerações sobre a história oral Nos últimos tempos temos ouvido com freqüência as expressões: “nova história”, “história vista de baixo”, “história das mulheres”, dentre outras tantas. A história oral seria uma nova história? Para François (2005), a história oral não é uma “outra história”. François diz: De fato, longe de serem próprias da história oral, a atenção dada a novos objetos a adoção de novas abordagens são, pelo contrário, observadas muito além dos seus limites – da história antiga à história urbana ou da história das representações políticas à história social – e constituem apenas um aspecto entre outros das redefinições os metodológicas e das mutações internas da pesquisa histórica atualmente em curso. (FRANÇOIS, 2005, p.5) A história oral surgiu nos Estados Unidos nos anos 50, quando um grupo de historiadores passaram a reunir material que pudesse ser utilizado no futuro: “seria um instrumento para os biógrafos vindouros” (JOUTARD, 2005, p. 45). No final dos anos 60, uma nova geração de historiadores orais que têm como objetivo dar voz aos “povos sem história”. Essa história se pretende militante e se acha à margem do mundo universitário (ou é por este rejeitada). É praticada por não -profissionais, feministas, educadores, sindicalistas (Dunaway). Surgida em meio ao clima dos movimentos de 1968, prega o não conformismo sistemático, inclusive em relação às estruturas tradicionais dos partidos de esquerda. (JOUTARD, 2005, p. 46). Em meados dos anos 70, já aconteciam os encontros internacionais que afirmavam a história oral como uma nova metodologia em pesquisa histórica. A partir de 1975, já se ouve falar em terceira geração de historiadores orais e o surgimento de projetos historiográficos de história oral. Na América Latina, o avanço da história oral seguiu o mesmo ritmo de desenvolvimento na Europa, com criação de projetos e programas que trabalhavam com depoimentos e fontes orais. Nos anos 80 multiplicaram-se os colóquios internacionais, o que possibilitou a 20 criação de uma “verdadeira comunidade de história oral”, segundo Joutard (2005). A década de 1990 marca o advento da quarta geração, que alguns consideram como o ressurgimento da primeira geração, que além de contar com o restabelecimento da democracia no Leste europeu, carrega as marcas do mundo pós-moderno, onde sons e imagens ganham espaços nos documentários de televisão. Uma grande parte dos historiadores profissionais, vêem com reserva esse advento, chegando até mesmo a desacreditar do valor das fontes orais na escrita da história: “na batalha sobre as fontes orais na história contemporânea, a linguagem imoderada revela que profundas paixões estão comprometidas de ambos os lados” (PRINS,1992, p.165). Em meio às batalhas travadas sobre o status da história oral no âmbito das ciências sociais, percebemos que esta foi ganhando espaço e legitimidade, e suas contribuições para a pesquisa histórica vão além de uma ‘simples ciência auxiliar’ (FRANCOIS, 2005). Isso posto, concluímos que as potencialidades da historia oral como metodologia são inegáveis, entretanto, não nos enganamos com os limites e as fragilidades que fazem parte dessa moeda. Entretanto, nos interessa ouvir a voz e ver parte da nossa realidade social, através do que falam e vêem uma minoria de mulheres, professoras, e crentes, que do nosso ponto de vista são pouco ouvidas e vistas. 1.2- Por que história oral Os seres humanos são os únicos que falam, que possuem a palavra: “com a palavra o homem se faz homem” (FREIRE, 1987, p. 13). A palavra falada é anterior aos outros signos que compõem a linguagem humana. Os relatos, as histórias contadas, as memórias também antecederam as várias formas de se fazer e de contar a história dos homens. Segundo Neves (2000), na Grécia antiga, a memória era uma forma de conferir a imortalidade ao homem, com a função de evitar que o esquecimento se impusesse sobre o futuro. Nossa opção pela metodologia da história oral, justifica-se pela necessidade de dar voz às mulheres professoras da CCB, na medida em que a história de vida nos possibilita captar nas entrelinhas dos relatos individuais de cada professora seus valores, suas angústias, suas tensões, seus silêncios e sonhos que vivem cotidianamente, nos permitindo uma melhor compreensão e interpretação da sociedade. Interessam-nos as potencialidades da história oral como método de pesquisa que permite o diálogo entre as mais diversas áreas do conhecimento. Além disso, a história 21 oral é um poderoso instrumento que confere aos excluídos das grandes narrativas escritas e dos dados estatísticos, o poder de mostrar a história de um lado que só os excluídos puderam enxergar por que viveram ali. Entendemos que no caso específico das mulheres da CCB, a história oral nos possibilita penetrar num recanto escondido no que diz respeito às relações de gênero estabelecidas no interior da Igreja CCB e as extensões dessas relações no interior da escola que, interligadas às questões concernentes à religiosidade, provocam tensões e conflitos no espaço escolar. Atentar para os relatos das professoras, nos permite ouvir o outro lado da história, ouvir o outro lado da história de algumas mulheres que causam pouco ou nenhum interesse político ou social. No exercício da rememoração, é possível articular biografia e história, compreender como o individual e o social estão interligados, e como as pessoas se movem nas malhas da estrutura social mais ampla, do que as “dadas a cada dia” como cotidiano, e que se transformam em espaços de imaginação, luta, subversão, resignação, sofrimento, alegria e realização. A história oral se coloca para nós como um espelho de olhar a vida, pois nos permite que nos enxerguemos na história. Relatar o que passou é ver-se no tempo, conversar consigo mesmo. A imagem que vemos nos fala, nos mostra como nos fabricamos, onde nos calamos, o que desejamos, de que forma subvertemos, como cada tijolo de existência social foi colocado e os rumos que podem ser dados nessa construção. Na imagem refletida das histórias de vida, enxergamos sentimentos que foram mascarados, ou sequer permitidos, comportamentos e valores que fazem parte de nossa identidade, mas que não eram percebidos pelo sujeito agora refletido, na memória. A história oral pode, ainda, abrir brechas ou portas de compartimentos fechados cheios de silêncios e proibições, lançando luz em lugares escondidos e criando espaços de esperança, celebrações e promessas de outros rumos. Assim, o falar das professoras permitir-nos-á identificar as representações sociais que têm de si mesmas, de seu grupo religioso e da instituição escola. Neves diz: O ser humano, tem múltiplas raízes: familiares, étnicas, regionais, nacionais, religiosas, partidárias, ideológicas... Sua vida é uma totalidade, na qual entrecruzamentos diversos conformam a dinâmica do viver. Dessa forma, a memória e a história são, cada uma a seu modo, registros desta pluralidade, ao mesmo tempo em que são, também antídotos do esquecimento. [...]. Portanto, em muito contribui para a construção das representações da 22 memória coletiva e da própria representação da identidade, em seu caráter paradoxalmente plural e também definidor do que lhe é específico, peculiar. (NEVES, 2000, p.114). Cada um de nós somos parte de pequenas coletividades (etnia, religião, sexo, dentre outras), que compõem a sociedade, por isso cada um fornece seu olhar sobre os mundos vividos, experiências provadas e representações que têm de si e dos outros. O uso da história oral, nessa pesquisa, tem, ainda, o objetivo de projeção do futuro, empenhando-se em impedir que práticas desumanizadoras se perpetuem e promovam a perda da identidade de uma minoria. Neste sentido, fundamentamos-nos nas palavras de Neves: Em suma, os historiadores são movidos por um imperativo ético que os motiva a contribuir para o impedimento de que a memória histórica se desvaneça e de que as identidades se percam no fluir inexorável do presente contínuo. [...]. Em última instância, buscam cumprir uma função social de especial relevância: fazer do saber histórico tanto fundamento do conhecimento do passado, como da projeção do futuro e, além disso empenhar-se para impedir que o consumo diuturno do esquecimento e da perda da identidade se constitua no signo maior da modernidade. (NEVES, 2000, p. 115). Ao nos referirmos à projeção do futuro, nossa intenção é rompermos com a resignação e o conformismo presentes nos cotidianos escolares e nas representações sociais das mulheres da CCB, no que tange às relações de gênero e religiosidade. A projeção ao futuro, para nós representa um convite à reflexão, à dúvida, à convicção de que não há certezas. Para nós significa ainda uma redescoberta do passado com perspectivas para o futuro. 1.3 - Alguns marcos da teoria das representações sociais O conceito de representação social foi desenvolvido por Serge Moscovici, através de estudo intitulado La Psicanalyse: Son image et son public, publicado em 1961, na França, porém o trabalho não teve grandes repercussões e as idéias moscovicianas só ganharam notoriedade no início dos anos 80. O termo representações tem sua gênese, na sociologia com Émile Durkheim. Entretanto Moscovici (2001, p. 47) reconhece que o “verdadeiro inventor do conceito é 23 Durkheim”. Para Durkheim a sociedade não pode ser explicada por meio das consciências individuais. Os indivíduos são atravessados e organizados pela coletividade, ou seja, pela sociedade. Ora, também a sociedade provoca em nós a sensação de perpétua dependência. [...]. Exige que esquecidos de nossos interesses façamo-nos seus servidores e submete-nos a todo tipo de aborrecimentos, privações e sacrifícios sem os quais a vida social seria impossível. É assim que a todo instante somos obrigados a sujeitar-nos a regras de conduta e de pensamento que não fizemos nem quisemos, e que, inclusive, são às vezes contrárias a nossas inclinações e nossos instintos fundamentais. (DURKHEIM, 2003, p. 211). Segundo Durkheim, a coletividade desempenha a função de produzir representações. A consciência da coletividade age coercitivamente sobre a consciência individual. Embora o indivíduo seja indispensável para a formação da consciência coletiva, para Durkheim, o indivíduo é dependente do grupo. As representações coletivas são portanto fenômenos exteriores aos indivíduos. As representações individuais só se comunicam por meio de “estados exteriores”, e os sentimentos individuais se fundem e dão origem a uma única resultante. Com efeito, as consciências individuais, por elas mesmas estão fechadas umas às outras; não podem se comunicar senão por meio de signos que traduzem estados interiores. Para que o comércio que se estabelece entre elas possa levar a uma comunhão, isto é, a uma fusão de todos os sentimentos particulares num sentimento comum, é preciso que os signos que as manifestam venham se fundir, eles próprios, numa única resultante. É o aparecimento dessa resultante que indica aos indivíduos que eles estão uníssono e que os faz tomar consciência de sua unidade moral. É soltando um mesmo grito, pronunciando uma mesma palavra, executando um mesmo gesto relacionado a um mesmo objeto, que eles se põem e se sentem de acordo. (DURKHEIM, 2003, p. 240). Para Moscovici (2003, p. 47), “Durkheim, fiel à tradição aristotélica e kantiana, possui uma concepção bastante estática dessas representações – algo parecido com a dos estóicos”. Para o autor, a teoria das representações sociais são fenômenos da sociedade atual. As representações sociais que me interessam não são nem as das sociedades primitivas, nem as suas sobreviventes, no subsolo de nossa cultura, dos tempos pré-históricos. Elas são as da nossa sociedade atual, de nosso solo 24 político, científico, humano, que nem sempre têm tempo suficiente para se sedimentar completamente para se tornarem tradições imutáveis. (MOSCOVICI, 2007, p. 48) Apesar de ter como berço a sociologia, é na psicologia social que a representação social ganha destaque, no entanto o conceito6 de representação social, segundo Jodelet (2001, p. 25) interessa a todas as ciências humanas, possibilitando a articulação com diversos campos de pesquisa. Mas a autora nos alerta para a complexidade que envolve a definição e o tratamento das representações sociais. Mas é preciso dizer: as representações sociais devem ser estudadas articulando-se com elementos afetivos, mentais e sociais e integrando – ao lado da cognição, da linguagem e da comunicação- a consideração das relações sociais que afetam as representações e a realidade material, social e ideativa sobre a qual elas têm de intervir. (JODELET, 2001, p. 26). Nesse sentido, os contextos em que estão inseridos os indivíduos e os grupos sociais a que pertencem, acrescido das formas de comunicação, os processos cognitivos dos indivíduos na construção do conhecimento social e a subjetividade, são elementos importantes no estudo das representações sociais. Assim sendo, o senso comum passa ser considerado como conhecimento produzido na sociedade. Moscovici, questiona a racionalidade e se diz contrário à idéia de que o povo é incapaz de pensar. Diz Moscovici: Desse modo, depois da guerra, eu reagi de certo modo a esse ponto de vista e tentei reabilitar o conhecimento comum, que esta fundamentado na nossa experiência do dia a dia, na linguagem e nas práticas cotidianas. Mas bem lá no fundo, reagi contra a idéia subjacente que me preocupou a certo momento, isto é, a idéia de que o “povo não pensa”, que as pessoas são incapazes de pensar racionalmente, apenas os intelectuais são capazes disso. (MOSCOVICI, 2007, p. 310). Isso posto, ressaltamos a importância da teoria das representações sociais nesse trabalho, à medida que consideramos as representações das professoras da CCB, estão vinculadas aos sistemas simbólicos do grupo religioso a que pertencem – a CCB. Essas representações são criadas e recriadas à medida que se articulam com os elementos afetivos, mentais, sociais e cognitivos, sofrendo, ainda, os efeitos da comunicação, da linguagem e dos conhecimentos do senso comum. 6 Moscovici vê as representações sociais como um fenômeno. 25 Detenhamo-nos um instante nas perguntas que fizemos às professoras da CCB, durante o trabalho de entrevistas. Nossas perguntas foram as seguintes: As professoras da CCB são diferentes? Por que? As respostas foram as seguintes: (Professora 1) - Professoras da CCB são diferentes nos aspectos físicos e comportamentais. Trajam –se em um estilo padrão da Igreja: sempre roupas comportadas com mangas, saias ou vestidos de comprimento no joelho ou abaixo do mesmo. Calça comprida, nunca. Pinturas, jóias, brincos não fazem uso. Os cabelos são compridos, quase sempre no estilo preso. Enfim, diferem completamente dos não evangélicos. Quanto ao comportamento, são professoras recatadas, tímidas às vezes, não abertas à ousadia do novo. (Professora 2) – Não diria que são diferentes, mas posso afirmar que talvez o traje, o cabelo sem corte definido, a ausência de maquiagem provoquem uma pequena distância entre os colegas. Observando que essa postura é em relação às professoras da CCB mais conservadoras, pois no meu caso NÃO me enquadro, pois sou meio vaidosa, e cuido do meu cabelo, aparando as pontas; uso batom discreto e acessórios que enriquecem o visual. As respostas nos dão pistas de como essas professoras se enxergam no mundo. A professora 1 estabelece as diferenças físicas e comportamentais. As roupas definem a representação de uma mulher da CCB no que se refere aos aspectos físicos. Notamos que nas duas respostas essa referência de roupas pouco difere. No que diz respeito ao comportamento, a professora 2, apesar de declarar que não se enquadra como conservadora, também enxerga outras professoras como conservadoras. Consideramos oportuno destacar que a professora 2 não admite as diferenças de imediato, mas, em seguida, ela aponta as diferenças. Nessa observação, devemos atentar para as relações que se estabelece entre os signos, significados, comunicação e linguagens. A linguagem do ritual dos cultos, dos hinos e das pregações se fundem, assegurando comportamentos individuais e coletivos e das mulheres. Em suas representações, são elas, as mulheres, que devem renunciar o uso de determinados trajes, adereços. Essa renúncia está intrinsicamente ligada ao escape da vida profana. Delas é exigido um esforço a mais na busca do mundo sagrado. Não nos aprofundaremos nessa questão, pois a retomaremos no capítulo 4 desse trabalho, quando abordaremos a questão da identidade e da diferença das professoras da CCB, no interior da escola a partir das respostas das entrevistas. 26 1.4 -Representação social, imaginário e pentecostalismo As questões levantadas ao longo dessa pesquisa apontam conflitos, tensões e desafios que se fazem presentes no cotidiano escolar, resultantes das relações de gênero, divisões de credo religioso, além de ressaltarmos a importância da escola no processo de construção da cidadania. Dessa forma, julgamos pertinente buscar compreender os processos simbólicos e os sistemas de significação socialmente construídos, mantidos e partilhados pelo grupo CCB que norteiam e orientam as formas de ver e posicionar-se no mundo. Em outras palavras, recorremos ao estudo das representações sociais e do imaginário numa tentativa de investigar como funcionam os sistemas que utilizamos para interpretar os acontecimentos da realidade cotidiana. Como vemos o mundo? Como nos vemos no mundo? Como vemos o outro? As representações sociais são elementos simbólicos que os homens utilizam como formas de expressão por meio das palavras, dos gestos, enfim de suas ações. Por meio da linguagem, os homens manifestam o que pensam, como pensam ou agem diante de determinadas situações que lhes são apresentadas. Essas visões de mundo se desenvolvem sustentadas na realidade concreta dos indivíduos que as vivem e as transmitem. Assim, podemos concluir que as representações são socialmente construídas mediante as interações sociais: “Todas as interações humanas, surjam elas entre duas pessoas ou entre dois grupos pressupõem representações.”. (MOSCOVICI, 2007). Jodelet (2001, p. 17), diz que para participarmos do mundo em que vivemos, precisamos dominá-lo física e intelectualmente, o que significa ajustar-nos a ele, aprender a nos comportar nele, compreendê-lo, administrá-lo e partilhar esse mundo com os outros. Sobre as representações ela afirma: Eis por que as representações são sociais e tão importantes na vida cotidiana. Elas nos guiam no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, no modo de interpretar aspectos, tomar decisões e, eventualmente, posicionar-se gente a eles de forma defensiva. (JODELET, 2001, p. 17). Optamos por utilizar o conceito de representação social e sua estreita relação com o imaginário social, uma vez que nossa investigação se dá no campo das relações de gênero e religiosidade. Sobre a relação entre representações sociais e imaginário, Mazzotti diz que 27 Há muitas formas de conceber e de abordar as representações sociais, relacionando-as ou não ao imaginário social. Elas são associadas ao imaginário quando a ênfase recai sobre o caráter simbólico da atividade representativa de sujeitos que partilham uma mesma condição ou experiência social: eles exprimem em suas representações o sentido que dão a sua experiência no mundo social, servindo-se dos sistemas de códigos e interpretações fornecidos pela sociedade e projetando valores e aspirações sociais (Jodelet, 1990). (MAZZOTTI, 1994, p. 61). Assim sendo, entendemos que as representações das professoras da CCB não são opiniões sobre, mas estão vinculadas ao conjunto de normas, valores, ritos, crenças, discursos, signos, enfim, ao imaginário social do grupo religioso CCB. Muitos dos conflitos e tensões resultantes das relações de gênero e religiosidade na escola advêm de ações e crenças que se cristalizaram no cotidiano naturalizando práticas, que são verdadeiros entraves à construção da cidadania tal qual ela é pensada pela escola. Desta forma, ocupamos-nos em traçar breves considerações sobre o conceito de imaginário e representações sociais, numa tentativa de contextualizar as representações das professoras da CCB e o imaginário pentecostal. 1.5 - Imaginário social O mundo esteve por vários séculos mergulhado na racionalidade técnica, onde os sonhos, os mitos e as ilusões eram pouco considerados pela ciência. O racionalismo preocupou-se com a realidade palpável do universo, ignorando o que era irracional: “pouco a pouco , o divino desapareceu completamente da visão científica do mundo, deixando um vácuo espiritual que se tornou característico de nossa cultura.” (MORAES, 2001, p. 39). Durand (2001, p. 12) afirma que “[...] a partir do século 17, o imaginário passa a ser excluído dos processos intelectuais”. Após longos anos de cientificismo, começamos a perceber que as certezas e verdades instituídas passam a ceder espaço às incertezas e a visão mecanicista do mundo começa a perder o seu poder de influência como teoria absoluta. É num contexto de mudanças no paradigma das ciências que palavra imaginário social ganhou notoriedade nas últimas décadas do século 20. Bronislaw Backzo (1985), nos alerta para a complexidade que envolve o estudo da imaginação social, como um campo de investigação. O imaginário social ainda não dispõe de uma teoria definida, além disso, é preciso atentar para o ecletismo do termo. 28 Apesar da complexidade que envolve o estudo do imaginário social, é preciso ressaltar que o imaginário não é um campo novo. O imaginário tem sua história. Numa rápida viagem pela história queremos destacar alguns pontos que podem nos ajudar a compreender essa questão. Podemos perceber que a imaginação ocupou papel importante no início da história. Podemos destacar aqui a importância do mito para assegurar coesão social e legitimar as hierarquias sociais já definidas, nas civilizações antigas. Platão e Aristóteles reconhecem as verdades indemonstráveis que escapam da lógica do método. Ao contrário de Kant, e graças à linguagem imaginária do mito, Platão admite uma via de acesso para as verdades indemonstráveis: a existência da alma, o além, a morte, os mistérios do amor... Ali onde a dialética bloqueada não consegue penetrar, a imagem mítica fala diretamente à alma. (DURAND, 2001, p. 16-17). Na Idade Média, podemos perceber que o simbolismo esteve vinculado à religião e as imagens consideradas sagradas. Mais tarde, durante o século XVI Galileu e Descartes fundaram as bases da física moderna e segundo Durand (2001, p. 12), o exclusivismo de um único método capaz de descobrir a verdade nas ciências invadiu todas as áreas de pesquisa, excluindo o imaginário dos processos intelectuais. A imagem, produto de uma “casa de loucos”, é abandonada em favor da arte de persuasão dos pregadores, poetas e pintores. Ela nunca ascenderá à dignidade de uma arte demonstrativa.[...]. A mecânica de Galileu e Descartes decompõe o objeto estudado no jogo unidimensional de uma única causalidade: assim, tomando como modelo de base bolas de sinuca que se chocam, o universo concebível seria regido por um único determinismo, e Deus é relegado ao papel de “dar um empurrãozinho” inicial a todo o sistema. (DURAND, 2001, p. 13). No século XVIII, o século das luzes, a crítica contra a igreja católica, fez surgir a necessidade de substituir os antigos símbolos, e o imaginário foi colocado a serviço da razão manipuladora. Quando as antigas legitimidades foram postos em causa e dessacralizadas no século XVIII, criou-se a necessidade de pensar e imaginar novos objetos legítimos, assim como os meios de os inculcar nas mentalidades. A atitude 29 técnico-instrumental perante os imaginários sociais alimentava-se muito da crítica racionalista contra a Igreja. (BACKZO, 1985, p. 301). O século XIX é marcado por grande quantidade de idéias sobre a imaginação e suas funções. Os conflitos sociais e políticos desse período provocam debates nas variadas direções. A obra de Marx, segundo Backzo marca um dos momentos mais significativos no estudo dos imaginários sociais. Backzo (1985), destaca, ainda, a relevância dos trabalhos de Emile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, no campo de investigação sobre a imaginação social, destacando as acentuadas oposições metodológicas entre eles. “As idéias de Marx, Durkheim e Weber definem aquilo a que podemos dar o nome de campo clássico das pesquisas sobre os imaginários sociais.”, afirma Backzo (1985, p. 307). Nossa pretensão com esse sucinto relato histórico é a de mostrar que apesar do termo imaginário social reaparecer no final do século XX, o termo não é novo e carrega um caráter pluridisciplinar e a diversidade de abordagens. Além disso, é possível perceber que o imaginário social tem sido usado, em diferentes períodos da história como “uma das forças reguladoras da vida coletiva.” (BACKZO, 1985, p. 309). Mas em que consiste o imaginário social? Trata-se de uma complexa rede de sentidos que circula, cria e recria, instituindo/instituindo-se na luta pela hegemonia. Mas vale dizer que o imaginário não é a soma, nem tampouco a justaposição de aspirações coletivas. Como um sistema simbólico, o imaginário social reflete práticas sociais em que se dialetizam processos de entendimento e de fabulação de crenças e de ritualizações. Produções de sentidos que circulam na sociedade e que permitem a regulação de comportamentos, de identificação, de distribuição de papéis sociais. Isso é vivido de tal forma pelos agentes sociais que passa a representar para o grupo o sentido de verdadeiro. (FERREIRA e EIZIRIK, 1994, p. 6-7). Por tratar-se de uma complexa rede de sentidos, devemos considerar que o imaginário é produzido e difundido por meio dos discursos e utiliza-se das mais variadas linguagens como instrumento de produção e difusão das referências simbólicas. Como produção discursiva, o Imaginário Social fala mediante as linguagens religiosas, filosófica, política, arquitetônica. Nessas linguagens mais diversas, onde estão presentes à metáfora e a metonímia, apreende-se a dimensão retórica das palavras e das coisas, das imagens e dos gestos. Cores, sons, gestos, sinais como signos de uma coletividade nos remetem a múltiplos efeitos de sentidos onde a semiótica se entrecruza com a 30 semântica, dando lugar ao enriquecimento da leitura. Os corpos, os objetos, falam têm suas lógicas próprias de sedução na medida em que são produções sociais. (FERREIRA e EIZIRIK, 1994, p. 8). Neste sentido, para nós, a compreensão das representações da mulher e professora da CCB, passa pela compreensão dos símbolos, das linguagens, dos rituais, das coisas que são ditas, da forma como são ditas e como são consumidas pelo grupo religioso. Trata-se de uma tentativa de enxergar os fios que tecem a complexa malha do imaginário das crentes da CCB. No Capítulo 3, trabalharemos o discurso religioso da CCB, como um dos instrumentos de produção e difusão do imaginário da CCB. 1.6 - As representações sociais Nossa opção pela compreensão do imaginário religioso da CCB, se dá na medida em que reconhecemos que as representações das professoras da CCB, não podem ser entendidas desvinculadas do sistema simbólico do grupo a que pertencem. As professoras da CCB expressam em suas representações o sentido que dão ao mundo, as formas como o enxergam a partir de suas crenças, de seus valores, dos seus códigos e das interpretações que compõem o imaginário de seu grupo. Perguntamos a duas professoras da CCB, qual era o significado de ser crente da CCB, e uma delas nos respondeu: Ser crente na minha opinião, significa renunciar a muitas coisas que o mundo (grifo nosso) oferece, mas que para mim não faz falta, pois na CCB, por ser uma obra ímpar, sei que a gente louva um Deus vivo e nós precisamos de alimento espiritual para vivermos, por isso minha opção de criança prevalece até o momento. Essa renúncia de que falei, posso citar como exemplo: ir a bailes, freqüentar quermesses e outras. A outra nos deu a seguinte resposta: Ser crente da CCB para mim é ser uma pessoa diferente na fé e na doutrina cristã. É sentir-me também completa em apoio espiritual, na ligação com Deus. Observemos ainda, o que diz a 3ª estrofe do hino 99 e o coro do hino 334, do 31 hinário usado pela CCB, muito cantado em seus cultos reproduz o mesmo discurso das duas professoras. 99. Novos céus nós aguardamos 3. Não somos mais deste mundo; dele Jesus nos comprou; Oh! Que amor tão profundo Ele por nós demonstrou! Quer que nós todos subamos para com Ele estar Na glória que aguardamos, glória que vamos gozar, 334. Deus é por mim Do mundo já separado estou, Foi Jesus que me separou; Com seu sangue precioso me resgatou. (HINOS; 99 e 334) A forma de ser e ver o mundo pelas professoras entrevistadas, não está desvinculada da linguagem do grupo. A CCB é entendida pelas professoras como ímpar, que não tem par, que não tem comparação, e o alimento espiritual pressupõe que o mundo físico, se desdobra em uma dimensão com significações e sentidos que permite às pessoas reconfigurarem sua existência. É comum, durante os cultos à repetição por vários fiéis da expressão “o Senhor me tirou do mundo de pecado e me colocou nesta fileira santa”. Nesse ponto, recorremos a Durkheim (2003, p.19), que nos fala sobre a necessidade dos homens em classificar as coisas em reais ou ideais, em gêneros opostos [...] designados geralmente por dois termos distintos que as palavras, profano e sagrado, traduzem bastante bem. A divisão do mundo em dois domínios que compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é profano, tal é o traço distintivo do pensamento religioso: as crenças, os mitos, os gnomos, as lendas, são representações ou sistemas de representações que exprimem a natureza das cosias sagradas, as virtudes e os poderes que lhes são atribuídos, sua história, sua relações mútuas com as coisas profanas. (DURKHEIM, 2003, p. 19). Percebemos, nas falas das professoras, a divisão do mundo em dois domínios - “Ser crente é renunciar tudo o que o ‘mundo’ oferece”, e que essa fala não esta desvinculada do imaginário do grupo religioso a que pertence. Neste sentido, a noção de representação social, desenvolvida por Moscovici a partir dos anos 60, nos permite entender a função dos símbolos na construção do que entendemos como realidade. 32 CAPÍTULO 2 - CULTURA, CIDADANIA, RELIGIÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO Há pouco mais de duas décadas, nós os “cidadãos de fin-de siècle”, aguardávamos com apreensão o fim do século XX e chegada do século XXI. Aguardávamos o futuro, cheios de incertezas e perplexidade. Para Hobsbawn (1998), o século XX foi breve, extremado e catastrófico: “o breve século XX acabou em problemas para os quais ninguém tinha, nem dizia ter soluções”. (HOBSBAWN, 1998, p. 537). Chegamos ao século XXI e o cenário mundial que se descortina diante de nós é composto por um desenvolvimento científico e sofisticação tecnológica inimaginável, e com um quadro humano permeado de personagens dos mais variados. Mas o que mais assusta é a legião de miseráveis e excluídos, vítimas das mais diversificadas e requintadas formas de preconceitos, intolerâncias e exclusão. Somos afrontados cotidianamente com os graves conflitos étnicos, religiosos, sexuais, econômicos e políticos, dentre outros, que comprometem a construção da cidadania e da emancipação. Em meio às perplexidades, incertezas e desafios que o futuro nos coloca à frente, herdamos do catastrófico século XX a árdua tarefa de construção de uma cidadania para todos. Sabemos que trabalhar com o conceito de cidadania não é uma tarefa fácil. Mas não é nossa pretensão esgotar o assunto. Nosso objetivo é apenas situar as relações existentes entre religião, educação e relações de gênero, como parte constitutiva da cidadania. Ao longo desse capítulo, trabalhamos com o conceito de cidadania numa perspectiva de que cidadania é um conceito histórico, cambiante que depende do tempo e da cultura. Por isso, ao longo da pesquisa, sentimos a necessidade de trabalharmos também o conceito de cultura, já que, para nós, a religião é elemento formador e transformador dos indivíduos e da cultura. 2.1 – Sobre a Cultura A religião e a educação são fenômenos eminentemente humanos e portanto não poderíamos entendê-los fora da cultura. Entretanto, conceituar ou até mesmo escrever algo sobre as relações entre cultura, educação e religião é um desafio. As formas de se entender, 33 nos dias atuais sobre o que seja cultura, sobre o que seja educação e suas estreitas ligações são complexas e geram discordâncias das mais variadas. Nossa atenção se volta para a questão da cultura por que se assiste atualmente a um crescente interesse pelas questões culturais. Considerando que a cultura perpassa tudo o que acontece nas nossas vidas, não podemos deixar de admitir que a religião e a educação são componentes da cultura, que atuam como formadores, transmissores, mantenedores e transformadores da cultura ou de elementos da cultura. Julgamos, porém, importante atentar para a polissemia existente em torno do conceito de cultura. Por cultura se entende muita coisa, logo, cultura é uma palavra que abriga muitos significados e sentidos. Cultura- tesouro coletivo de saberes possuído pela humanidade ou por certas civilizações: a cultura helênica, a cultura ocidental etc. [...]. Num sentido mais filosófico, a cultura pode ser considerada um feixe de representações, de símbolos, de imaginário, de atitudes e referências suscetível de irrigar, de modo bastante desigual, mas globalmente, o corpo social. (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2006, p. 63 Na busca das origens dos significados das palavras, percebemos que as elas têm sua história. A palavra cultura vem do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar. Assim, a palavra tem seu sentido original ligado à natureza, à lavoura, à agricultura, ao cultivo. Nossa palavra para a mais nobre das atividades humanas, assim, é derivada de trabalho e agricultura, colheita e cultivo. [...]. “Cultura” denotava de início um processo completamente material, que foi depois metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. (EAGLETON, 2006, p. 12). A partir do século XVIII, cultura passa a ser entendida como sinônimo de civilização. Os pensadores iluministas passam a defender a idéia da necessidade de aperfeiçoamento do homem através da educação. Eagleton (2006, p. 20) diz: “[...] cultura pertencia ao espírito geral do iluminismo, com o seu culto do autodesenvolvimento secular e progressivo.”. Na virada do século XIX, cultura e civilização tornam-se termos antagônicos, já que segundo Eagleton (2006, p. 22), o termo civilização tinha adquirido uma conotação 34 imperialista, e foi preciso substituir o termo por outra palavra capaz de emprestar um novo significado para o que deveria ser a vida social no lugar do que fora. Assim, os alemães recorreram ao termo Kultur, numa alusão ao termo francês culture, ou cultura. Eagleton, (2006, p. 22) diz que “Kultur” ou “cultura” tornou-se assim o nome da crítica romântica pré- marxista ao capitalismo industrial primitivo. Para Veiga- Neto (2003, p. 9), ao longo da modernidade, o conceito de cultura manteve três características: o caráter diferenciador e elitista que atribuía a cultura a um grupo de pessoas superiores; o caráter único e unificador de cultura segundo o qual uma escola única para todos seria capaz de construir um padrão cultural único; e, o caráter idealista de cultura, em que se buscava uma cultura perfeita, única e universal. Um mundo limpo seria aquele em que, junto coma civilidade, se desenvolvesse também uma cultura universalista, em relação à qual as demais manifestações e produções culturais dos outros povos não passariam de caso particulares – como que variações em torno de um ideal maior e mais importante -, ou de simples imitações, o de degenerescências lamentáveis. [...]. Em outras palavras, isso significa o rebatimento de tudo e de todos a um Mesmo; em termos culturais, significa uma identidade única e a rejeição de toda e qualquer diferença. (VEIGA-NETO, 2003, p. 10). Em meados do século XX, abriam-se as primeiras fendas no conceito moderno de cultura, resultantes do ataque dos golpes das várias áreas do conhecimento. Passou-se a falar de culturas, no lugar de cultura. Numa visão antropológica, a cultura pode ser entendida em vários níveis. Chegamos ao século XXI, e os significados e sentidos da palavra cultura não estão prontos e acabados, ao contrário, a ressignificação permanece viva dinâmica e cambiante, atravessada por relações de saber/poder e práticas de dominação e imposições de um grupo sobre os demais. No novo conceito de cultura que se firma, as religiões e as religiosidades ganham novos espaços e novos contornos. O mundo globalizado aproximou os povos e as culturas, mas provocou com a mesma intensidade o acirramento das diferenças. Um número significativo dos atuais conflitos mundiais são de origem religiosa e étnica. Nossa proposta de discussão nesse texto consiste em situar a questão religiosa como elemento da cultura e suas implicações dentro da proposta de formação para a cidadania. Desta forma, a cultura não é algo que acontece independente da vida social: “cultura é um território bem atual das lutas sociais por um destino melhor”, (SANTOS, 2007, p. 45). Assim, o território da cultura é também espaço dos novos sujeitos gerados nos 35 clamores dos movimentos sociais e das minorias excluídas, e onde se situam as relações de gênero, as religiões e a religiosidade. Entendemos a religiosidade como um elemento humano e da cultura, por isso recorremos às teorias da religião para sustentar nosso argumento. Fraas (2006) nos coloca diante de principais linhas de fundamentação sobre a religiosidade, a saber: ação de Deus, a natureza humana e a sociedade. Sobre a ação de Deus, segundo Fraas (2006), a religiosidade é resultado da fé em Deus ou nos deuses e surge por meio de uma revelação. Sobre a fundamentação da religiosidade pela natureza humana, Fraas diz: O ser humano é, por excelência, tido com homo religiosus. Essa premissa baseia-se na filosofia do neoplatonismo: o ser supremo se derrama na criação. O ser humano tem parte nesse ser, sendo, portanto, ele próprio divino. A religiosidade é por conseguinte, parte integrante e essencial do ser humano. (FRAAS, 2006, p. 43). Sobre a fundamentação da religiosidade pelo ambiente/ da sociedade, segundo Fraas (2006, p. 45), a religião provém do culto aos ancestrais, e tinha como objetivo integrar o grupo à tribo/ à sociedade. Isso posto, trabalhamos com o argumento de que produzimos e somos produzidos pela cultura, transformamos e somos transformados por ela, e que a religião e /ou a religiosidade de cada um faz parte desse processo. Retomando a definição de cultura como “feixe de representações”, “de símbolos” e de “imaginário”, podemos concluir que as religiões com seus feixes de representações constroem os indivíduos que por sua vez são construtores da cultura. Dessa forma, as formas de ver e estar no mundo, o modo de vida pentecostal, faz parte do ser cultural de cada crente. Considerando que, ao longo da história, as civilizações desenvolveram, criaram seus usos e costumes, roupas, enfeites, cortes de cabelos, formas de ser e viver, não podemos ignorar que as religiões ao determinarem regras de usos e costumes também produzem um modo de viver, produzem representações e um imaginário diferente. Entretanto, não podemos deixar de sinalizar as relações de dominação e submissão presentes nas relações de gênero existentes no interior das religiões. Chamamos a atenção para a existência de um “mundo religioso”, representado de acordo com o imaginário de cada grupo religioso, que está inserido no “mundo mundano”. Retomemos a já mencionada fala de uma professora da CCB: “[...] ser crente na minha opinião significa renunciar a muitas coisas que o mundo oferece.”. Também nos já mencionados hinos cantados pelos crentes da CCB fica clara a separação entre os dois 36 mundos: “Não somos mais deste mundo; dele Jesus nos comprou.”. Diante disso, concluímos que os pentecostais (de modo geral), ao criarem um modo de viver pressupondo uma renúncia ao mundo, rejeitam a cultura mundana, embora sejam invadidos por ela cotidianamente. Em contrapartida, também invadem a cultura do mundo. Diante do exposto, no território da cultura há o conflito, a acomodação, o amálgama . Uma cultura inunda outra, e já não é possível dizer que o pentecostalismo (de modo geral) não faz parte de forma significativa, na produção da cultura brasileira. A forma como os pentecostais vêem o mundo e se posicionam nele são de extrema importância para construção da cidadania e da sociedade. Follmann (2006, p.14) chama atenção para dados estatísticos do censo demográfico brasileiro de 2000, que revelam que o catolicismo perdeu mais de 20% de seus fiéis ao longo de últimos 60 anos. A causa de tal fato é atribuído ao aumento do número de evangélicos nas últimas décadas, mas o autor chama a atenção para um dado importante; a freqüência dos evangélicos nos cultos pelo menos uma vez na semana. No que diz respeito a CCB, podemos destacar a grande quantidade de templos espalhados pelo país, com cultos distribuídos em três dias semanais, sendo que a maioria dos fiéis freqüenta os cultos pelo menos uma vez na semana. Isso significa que os fiéis não ficam alheios às orientações e apelos do discurso religioso, como acontece com um número significativo de fiéis que se classificam como católicos, mas que freqüentam a Igreja poucas vezes durante o ano. Neste ponto chamamos atenção para um fato de extrema relevância: o caráter apolítico, antidizimista7 e a forma como a CCB lida com a questão financeira na instituição. No que diz respeito ao caráter apolítico, não significa que os crentes da CCB são indiferentes à política, significa que repudiam as disputas, intrigas e acordos que envolvem as disputas eleitorais. Porém, seus membros têm autonomia e são orientados a votar e escolher seus candidatos sem interferência da igreja, ou de quem quer que seja. Sobre o caráter antidizimista, a CCB mantém uma posição rígida de não remunerar o trabalho de qualquer um dos seus obreiros. A igreja se mantém com as coletas ocultas e sigilosas que são feitas pelos fiéis. Cada coleta já tem finalidade específica que envolve manutenção dos prédios, Obra da Piedade8, construções e reformas de templos e viagens missionárias previamente autorizadas pelo conselho de anciães. Além disso, o montante arrecadado é anunciado mensalmente, e feita uma prestação de contas anualmente. Sobre essa questão 7 A CCB não admite a cobrança do dízimo. Abordaremos esta questão no capítulo 3. 8 Cf. no capítulo 3, sobre a Obra da Piedade. 37 Freston escreve: Os anciães que dirigem as reuniões não podem ter contato com o dinheiro das contribuições , evitando acusações desgastantes (Nelson 1984:548-553). Aliás em matéria de dinheiro a CC se distancia o máximo da imagem atual dos pentecostais. Não tendo funcionários pagos ou seminários teológicos, suas despesas são reduzidas (FRESTON, 1996. p. 106) Outra questão relevante levantada por Freston diz respeito ao distanciamento da CCB da mídia. Para Freston (1996, p. 108), “[...] a abstenção da mídia protege a CC da tentação política corporativista.”. Observa-se que a CCB não se preocupa em ganhar visibilidade. O anonimato é uma posição assumida e defendida pela instituição. Há um forte pudor com respeito ao elemento na obra religiosa. Essa característica, uma barreira para o pesquisador, no entanto produz um purismo que contrasta com a manipulação do status religioso para fins pessoais e políticos que se observa cada vez mais em outras igrejas. O extremo “afastamento do mundo” protege a CC da ânsia de reconhecimento e status social. Tal ânsia deixa algumas igrejas pentecostais expostas a aproveitadores esternos e internos. Querem ser diferentes da sociedade, mas querem desesperadamente ser procuradas pela mesma sociedade. (FRESTON, 1996. p. 106-107). Decorre de tudo isso que desconsiderar o modo de vida dos crentes da CCB, ou de qualquer outra denominação religiosa é lançar mão de um conceito redutor de cultura. 2.2- A escola como canteiro de obras na construção da cidadania: adequações à agenda de reformas neoliberais O processo de globalização, inspirado nas determinações do chamado Consenso de Washington passou a determinar as reformas e as políticas públicas das economias emergentes, e principalmente dos países da América Latina. As instituições financeiras mundiais, como o FMI e o Banco Mundial, entre outras, passaram a comandar as propostas de reestruturação de programas sociais nos países latino-americanos. 38 Nos países latino-americanos, submetidos (ou em vias de) aos rigores dos ajustamentos macroeconômicos e à devastação social que vêm provocando, a receita neoliberal parecia estar contida no conjunto de prescrições de reformas dos sistemas de proteção social orientadas para a sua privatização, descentralização, focalização e programas (fundos) sociais de emergências. (DRAIBE, 1993, p. 92). O receituário neoliberal recomendava a redução das despesas públicas, a privatização, a flexibilização das relações de trabalho, a disciplina fiscal como forma de eliminação de déficit público, a reforma tributária e abertura de mercado. Todavia, os efeitos dessas medidas têm agravado o aumento das desigualdades sociais e do desemprego, acentuando as marcas da pobreza absoluta e da exclusão social. Num contexto de mudanças, incertezas e novas propostas, os países latino- americanos, nos anos 90, adequaram-se à agenda de reformas propostas por organismos internacionais, principalmente pelo Banco Mundial. O Brasil, assim como os demais países, implementaram as adequações e ajustes econômicos propostos pelos países mais ricos. As políticas públicas propostas pelo estado brasileiro às instituições foram redefinidas com o objetivo de atender às exigências da dinâmica neoliberal. Neste sentido, os argumentos internacionais ressaltam o papel da educação na redução da pobreza e na promoção do desenvolvimento econômico. As receitas de reformas educacionais, de acordo com os fundamentos do neoliberalismo, deixam clara a função da educação e dos professores. [...] a mão-de-obra deve ser antes de tudo educada e sua educação deve apoiar –se no desenvolvimento da capacidade lógico-abstrata para decodificar instruções, calcular, programar e gerenciar processos. [...]. Há, em primeiro lugar, razões de ordem econômica que propõem a eliminação da pobreza. Através de políticas que, de forma duradoura, capacitem os setores destituídos a produzirem e adquirirem independência, inclusive do assistencialismo emergencial. (DRAIBE, 1993, p. 93). A partir da década de 90, a educação pública brasileira passa por uma verdadeira avalanche de discursos e mudanças. E como não poderia deixar de ser, as diretrizes educacionais brasileiras apresentadas não demonstram maiores preocupações com a emancipação, mantendo-se alinhadas às orientações estabelecidas pelos órgãos internacionais, dentre os quais podemos citar: a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada na Tailândia, em março de 1990, promovida pela organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura- (UNESCO), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) , Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Banco Mundial 39 (BM), que formulou as diretrizes para a área educacional, conferindo à educação básica centralidade no que se refere às políticas públicas e o Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI. Concluímos, assim, que a reforma educacional implementada no Brasil nos anos 90 está intimamente ligada aos interesses mercadológicos que regem a política neoliberal, entretanto, é preciso admitir que outras importantes questões ganharam centralidade nas discussões educacionais no Brasil: respeito às diferenças, sexualidade, inclusão das minorias, multiculturalismo dentre outras. É nesse contexto que o Ministério da Educação (MEC) elabora um documento, os Parâmetros Curriculares Nacionais que passa a nortear os currículos no Brasil. Na apresentação do documento fica claro a adequação da política educacional brasileira aos moldes das orientações neoliberais. Este documento tem a finalidade de apresentar as linhas norteadoras dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental, que constituem uma proposta de reorientação curricular que a Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação e do Desporto oferece a secretarias de educação, escolas, instituições formadoras de professores, instituições de pesquisa, editoras e a todas as pessoas interessadas em educação, dos diferentes estados e municípios brasileiros. Uma análise da conjuntura mundial e brasileira revela a necessidade de construção de uma educação básica voltada para a cidadania. (BRASIL, 1998, p. 9). A partir daí, as escolas públicas brasileiras passaram a sofrer um verdadeiro bombardeio de ações e discussões sobre a construção da cidadania. Cidadania, respeito às diferenças, inclusão, multiculturalismo, passaram a ser expressões de ordem no cotidiano escolar. As práticas educativas, porém, e os mecanismos de poder instituídos permaneceram inalterados, e arriscamo-nos a dizer que os novos discursos se transformaram em novas engrenagens de poder no interior da escola. As reflexões que desenvolvemos a seguir dizem respeito às questões de gênero e religiosidade no cotidiano escolar como elementos importantes na construção da cidadania e da emancipação. Entendemos que a educação para a cidadania requer a construção de contextos, situações e práticas democráticas de exercício de cidadania no interior da escola que possibilite aos envolvidos no processo educativo, principalmente professores e alunos, a formação de um quadro de valores, objetivos, atitudes e projetos políticos que tenham como referência a emancipação e/ou a humanização. 40 Consideramos, preliminarmente, porém, que por trás do discurso de multiculturalismo, respeito às diferenças, inclusão e direito de todos, circulante no interior da escola ainda se escondem práticas e relações de poder que impedem a construção da cidadania dentro dos ideais propostos de desenvolvimento da humanidade, e, nas palavras de Paulo Freire (1997: 30), “[...] pela afirmação dos homens como pessoas, como seres para si.”. Freire afirma ainda: Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão”. Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens, vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de lutas dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada. (FREIRE, 1987, p. 30). Entendemos que se existem práticas e relações de poder que impedem a humanização. É preciso que a educação viabilize a recuperação desta “humanidade roubada”. Em meio aos ajustamentos macroeconômicos e propostas de reestruturação dos programas sociais, educação e cidadania tornam-se termos indissociáveis e a educação escolar passou a ser uma prioridade revisitada no mundo inteiro. Em meio a conferências mundiais, pressões internacionais e reformas educativas, a palavra cidadania assumiu novos contornos e passou a fazer parte de um discurso proferido por governos, entidades e cidadãos comuns. O termo cidadania passou a ser usado indiscriminadamente com os mais variados sentidos e significados, porem, não podemos desconsiderar o fato de que cidadania passou a ser um meio e um fim, uma promessa e uma dívida, uma conquista e uma perda. No Brasil, o “exercício da cidadania” passou a ser um ideal a ser perseguido e conquistado. Nos documentos oficiais que tratam da Educação Nacional, formar para o exercício da cidadania tornou-se uma obrigatoriedade, entretanto uma questão que se coloca diante do exposto é: O que entendemos por cidadania? Afinal, o que é ser cidadão? Ou ainda, o que é ter cidadania? Buscamos a resposta nas palavras de Pinsky: Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e 41 políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais. (PINSKY, 2006, p. 9). Uma rápida viagem pela história, no entanto, nos mostra que cidadania não é uma definição pronta e acabada. È um conceito histórico, variante, dependente do tempo, do espaço e da cultura. Cidadania é um conceito construído e reconstruído a cada dia, em cada luta, em cada conquista. É, pois, um conceito que pode alargar-se ou reduzir-se em seu sentido. Significa dizer que não há uma essência única ao conceito de cidadania, seu conteúdo e seu significado na são universais, não estão definidos e delimitados previamente, mas respondem à dinâmica dos conflitos reais, tais como vividos pela sociedade num determinado momento histórico. (DAGNINO, 2004, p. 107). Assim, o conceito de cidadania percorreu os séculos sempre vinculado às mudanças econômicas, políticas e sociais, chegando ao século XXI carregando os desafios e perspectivas da contemporaneidade e da globalização. Embora, estejamos conscientes da complexidade que envolve a construção da cidadania nos dias atuais, faz-se necessário atentarmos para o fato de que é consenso que a escola passa a ser o canteiro de obras da construção dessa cidadania e do cidadão do século XXI, e os professores são convocados a reconfigurar e assumir seus papéis diante das exigências que se colocam. No entanto, como garantir um projeto educativo de emancipação, frente aos interesses econômicos e à problemática que se apresenta? Como educar para a cidadania se convivemos com um exército de excluídos que não têm acesso a direitos sociais básicos (emprego, saúde e educação) que fazem parte dos direitos humanos? Nosso olhar, entretanto, recai sobre as questões que dizem respeito às relações de gênero e religiosidade no interior da escola. De que maneira as relações de gênero e religiosidade podem estar relacionadas com a construção desta cidadania? Ou, de que maneira gênero e religiosidade no interior da escola podem contribuir para o alargamento ou redução deste conceito? Entendemos que as relações de gênero e religiosidade na escola são elementos formadores da cidadania, emancipação e humanização. Procuraremos responder a essas questões por desse trabalho mas para isso 42 consideramos importante conhecer a história do conceito de cidadania, pois entendemos que cidadania não é um conteúdo pronto e acabado, mas um conceito cambiante e multiforme, capaz de agregar aspectos sócio-econômicos, étnicos, de gênero, de religião, de sexualidade, etc. O conceito de cidadania, tal qual conhecemos hoje, como já afirmamos acima, é um conceito construído e reconstruído a cada dia, em cada luta, em cada conquista. 2.3 - Revisitando o conceito de cidadania A cidadania é um termo associado à vida em sociedade. As palavras cidadania e democracia nos remetem de imediato a idéia da polis grega (Cidades- Estado Antiga), mas, se dissemos que cidadania é um conceito histórico, podemos pensar que a história humana tem sido uma constante busca pela cidadania. Nós, os ocidentais, assim entendemos. Além de ocidentais, vivemos num mundo cristão, onde a Bíblia e a história dos judeus, desde a mais tenra idade, povoa nosso imaginário. Qual de nós, não conhece a história de Davi, o menino músico, que derrotou o gigante Golias?, ou Daniel na cova dos leões? Creio que esses heróis povoaram e povoam a imaginação de um grande número de crianças ocidentais e cristãs. Nossa história esta intimamente ligada à história dos hebreus. O velho testamento bíblico é a fonte de referência da história desse povo. Pinsky (2006), num texto intitulado Os profetas sociais e o deus da cidadania, chama nossa atenção para a contribuição dos hebreus com o que ele chama de pré-história da cidadania: Seu grande legado foi à concepção de um deus que não se satisfazia em ajudar os exércitos, mas que exigia um comportamento ético por parte de seus seguidores. Um deus pouco preocupado em ser o objeto da idolatria das pessoas e com o sacrifício de animais imolados em seu holocausto, mas muito comprometido com problemas vinculados à exclusão social, à pobreza, à fome, à solidariedade. (PINSKY, 2006, p.16). É pertinente analisar um trecho bíblico escrito no livro do profeta Isaías, no Capítulo 10, versículos 1 a 4, que confirma as declarações de Pinsky 1 Ai dos que decretam leis injustas, e dos escrivães que escrevem perversidades, 2 Para prejudicarem os pobres em juízo, e para arrebentarem o direito dos 43 aflitos do meu povo; para despojarem as viúvas e para roubarem os órfãos! 3 Mas que fareis vós outros no dia da visitação, e da assolação, que há de vir de longe? A quem recorrereis para obter socorro, e onde deixareis a vossa glória, 4 Sem que cada um se abata entre os presos, e caia entre os mortos? Com tudo isso a sua ira não se apartou, mas ainda está estendida a sua mão. (BÍBLIA, 1987, cap. 10, vers. 1-4, p. 659). O texto informa que o profeta Isaías estaria falando em nome do Deus dos exércitos, aquele que sempre esteve do lado do povo eleito, o povo de Israel, mas este mesmo Deus que esteve ao lado do povo no deserto não admite, segundo o texto, que o povo se desvie dos seus mandamentos, porém se houver arrependimento “[...] ainda está estendida sua mão.”. No livro de Levítico, o terceiro dos cinco livros, cuja autoria se atribui a Moisés, encontramos uma verdadeira legislação religiosa, civil e moral que teria sido proferida por Deus, para o povo de Israel. No capítulo l, versículos 1 e 2 está escrito: “Chamou o Senhor a Moisés e, falou da tenda da congregação, dizendo: Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: (BÍBLIA, 1987). No capítulo 25 do mesmo livro, nos versículos 39 a 43, é importante destacar a lei em favor dos pobres e lei dos escravos, o que se repete no livro de Deuteronômio, capítulo 15, versículos 7 a 23. Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades, na tua terra que o SENHOR, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás as mãos a teu irmão pobre; Antes, lhe abrirás de todo a mão e lhe emprestarás o que lhe falta, quando baste para a sua necessidade. [...]. Livremente, lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lho deres; pois, por isso, te abençoará o SENHOR, teu Deus em toda a tua obra e em tudo o que empreenderes. Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na tua terra. (BÍBLIA, 1987, cap. 25, vers.39-43, p.202-203). Leis a favor dos escravos Também se teu irmão empobrecer, estando ele contigo, e vender-se a ti, não o farás servir com escravo. Como jornaleiro e peregrino estará contigo; até ao Ano do Jubileu te servirá; [...]. Não te assenhorearás dele com tirania; teme, porém, ao teu Deus. (BÍBLIA, 1987, cap, 15, vers. 7-23, p.133). Para Pinsky (2006, p. 27), “[...] os hebreus desistem do deus do templo, de qualquer templo e criam o deus da cidadania”. 44 Notamos, portanto, que a busca pela igualdade pela humanização homens9, não é um fenômeno recente, mas que faz parte da natureza humana, desde tempos remotos, há pelos menos cinco mil anos. É, na Grécia Antiga que o termo Cidadania ganha status de participação política. Guarinello (2006), entretanto, afirma que “Indivíduo e comunidade, portanto, não se negavam reciprocamente na cidade-estado antiga, mas se integravam numa relação dialética.” (GUARINELL0, 2006, p. 33) . As relações sociais no interior das cidades-estado gregas não eram pacíficas. Os conflitos internos eram constantes. Tinham de ser resolvidos comunitariamente, por mecanismos públicos, abertos ao conjunto dos proprietários. Aqui reside a origem remota da política, como instrumento de tomada de decisões coletivas e de resolução de conflitos, e do Estado, que não se distinguia da comunidade, mas era sua própria expressão. (GUARINELLO, 2006, p. 33) Nas pólis gregas, cidadania estava ligada ao pertencimento à comunidade: “Pertencer à comunidade era participar de todo um ciclo próprio da vida cotidiana, com seus ritos, costumes, regras, festividades, crenças e relações sociais” Guarinello (2006. p. 35). Ficavam excluídos da vida pública os escravos e os estrangeiros, que não eram considerados pertencentes à comunidade, e constituíam uma vasta população sem cidadania. As relações de poder nas pólis só se alteraram à medida que as demandas sociais internas solaparam as estruturas do “pacto comunitário10”. É possível perceber que o direito de pertencer à comunidade e participar da vida púbica era concedido por meio de lutas. Pertencer, e ou participar, não era considerado um direito natural do homem. Cabe ainda atentar para o fato de que essas lutas se deram em função de interesses econômicos. Não havia uma preocupação com a condição humana pois o escravo era considerado um bem móvel11. A participação popular nos destinos da coletividade era restrita. Apenas 10% do povo possuía o direito de participação12, um direito atrelado à posição social e às posses 9 Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 1987. 10 Os conflitos que surgiam nas cidades-estados eram resolvidos comunitariamente, por mecanismos públicos, apenas ao conjunto de proprietários. Cf. Guarinello (2006, p. 33). 11 “Dos vários termos gregos que significavam “escravo”, alguns eram de uso corrente, mas pelo menos um deles tem um significado bastante exato. A palavra andrapodon, “escravo como bem móvel”, significa literalmente criatura vivente “com pés humanos”, sendo formada por analogia com tetrapoda, isto é, animal “de quatro pés.”. Cf. (ANDERSON, 1986, p. 197). 12 Em Atenas, no século (508-507 a.C.), os cidadãos somavam 40 mil, numa população de 400 mil; os 100 mil metecos, os 200 mil escravos e as 60 mil mulheres e crianças não tinham direitos políticos. Cf. (ARRUDA, 1990, p. 149). 45 do indivíduo. A idéia que temos da cidadania grega como uma cidadania de participação popular nos destinos da polis é, portanto, uma visão idealizada. A cidadania grega era a cidadania da minoria e a exclusão da maioria. Em Roma, em todos os períodos da história, a situação pouco se diferia. A história romana é permeada de lutas travadas entre a elite patrícia, formada pelos membros das famílias mais tradicionais e a classe plebéia formada pelos estrangeiros, artesãos, comerciantes e pequenos proprietários de terras pouco férteis. Os escravos sequer eram considerados seres humanos e eram chamados de instrumento vocal. A luta dos plebeus pelos direitos civis se constituiu no grande motor das transformações históricas. A substituição da Monarquia pela República, ocasião em que Tarquínio foi deposto por um grupo de aristocratas e expulso de Roma, pode ser entendido como uma reação dos patrícios contra a aproximação da realeza com as camadas inferiores. No período republicano, os conflitos internos da sociedade romana tornaram-se mais evidentes. Nesse período, os plebeus passaram a fazer exigências, uma vez que o exército romano dependia dos soldados plebeus. O monopólio do poder pelos patrícios levou os plebeus a sucessivas revoltas: a primeira revolta da plebe (494 a.C) pode ser considerada um marco na conquista da cidadania. A retirada dos plebeus para o Monte Sagrado, deixando a cidade desprotegida e obrigando os patrícios a fazer concessões, nos leva a concluir que mesmo a cidadania antiga fora construída num longo processo de lutas e exigências de um grupo que se preocupava com direitos sociais e políticos. Os plebeus urbanos preocupavam-se, portanto, com os direitos políticos e sociais: queriam ocupar cargos, votar no Senado e até mesmo casar-se com patrícios, o que lhes era vedado. Em um movimento paralelo, parte da plebe rural teve suas terras confiscadas pelo endividamento e lutava pelo fim da escravidão por dívida e pelo direito a parte da terra conquistada de outros povos. (FUNARI, 2006, p. 52). Foi, portanto, por meio de embates que os plebeus conseguiram avançar em direção a conquista da cidadania. O século II a.C. testemunhou grandes progressos na cidadania romana e trouxe benefícios diretos para as camadas plebéias superiores, que passaram a integrar a elite aristocrática. Os grandes conflitos sociais deslocaram-se do choque entre patrícios e plebeus para os confrontos entre dominantes e 46 subalternos, romanos e não romanos aliados, senhores e escravos. De uma forma ou de outra , a questão da cidadania sempre esteve em jogo nesses embates, pois mesmo os escravos, por meio da alforria, passavam a fazer parte do corpo cidadão e lutar por direitos. (FUNARI, 2006, p. 52). Assim, a história de Roma é permeada de lutas pela cidadania e conquistas importantes. Dentre essas conquistas convém destacar as campanhas do irmão Graco e a tentativa de reforma agrária, as eleições e a introdução do voto secreto no final da República. Nas citas romanas era considerado cidadão aquele que estivesse integrado na vida política da cidade. Roma construiu um modelo próprio de civilização voltado para a conquista e expansão. Virtudes cívicas baseadas no sacrifício e dedicação absoluta a um código de valores rígido e invariável eram, portanto, características essenciais de um cidadão. Para o cidadão romano, o Estado estava acima de tudo, e o bem do povo deveria ser o interesse de todo o cidadão. Toda pessoa que estivesse a serviço da comunidade (res publica)13, deveria ter coragem, respeito aos deuses, lealdade e fidelidade e gosto pela glória. A preocupação com o bem do povo e o engrandecimento da pátria levou os romanos a desenvolverem o direito. Percebemos que, tanto na Grécia como em Roma, a noção de cidadania esteve ligada à idéia de privilégio, pois o direito de cidadania era explicitamente restrito a determinadas classes e grupos. Assim, a cidadania greco-romana estava firmada no conceito de responsabilidade pública, poder social exercido por aqueles que possuíam status econômico e intelectual. Ser livre era a condição para ser considerado cidadão, uma vez, que a sociedade antiga tinha como traço fundamental a escravidão, e o escravo era considerado, na antiguidade o instrumento animado da produção, e como tal ele não era parte integrante da sociedade de homens, ele estava fora do quadro da cidade. Durante a Idade Média, entendemos que houve uma ruptura na evolução do conceito de cidadania tal como as civilizações greco-romanas entendiam. As invasões dos povos bárbaros inauguravam novas instituições, formas de pensamento e de relações sociais. Os servos não reivindicavam o status de cidadãos. O homem medieval vivia sob o signo do medo. Medo da morte e da destruição trazidas pelo inimigo, medo das pestes e a fome e, sobretudo, um medo sobrenatural da noite, das tentações e do pecado. A insegurança e o medo faziam o homem medieval buscar proteção no clero e na nobreza, permanecendo alheio aos privilégios do cidadão. O contexto medieval marcado pela intensa religiosidade não 13 Coisa pública; as instituições do Estado 47 permitiu que o conceito de cidadania evoluísse. Apesar do medo, no entanto, mesmo na Idade Média a luta pela humanização se fez presente através das revoltas camponesas, as jacqueries.14 Nos séculos XVII e XVIII o conceito de cidadania se alarga. O fortalecimento da burguesia mercantil e a sua consolidação como classe atuante na economia e na política, bem como a formação dos Estados Nacionais, reconfiguravam o antigo conceito de cidadania, retomando a idéia de participação, porém com novos elementos: a igualdade, a liberdade e a fraternidade. Dentre os mais importantes acontecimentos históricos ocorridos ao longo do século XVIII, talvez o mais importante seja o que deu início ao processo de construção do indivíduo comum, sujeito de direitos civis15. Foi com a Revolução Francesa que Liberdade, Igualdade e Fraternidade passaram a fazer parte da natureza do novo cidadão. A Igualdade passava a ser uma possibilidade real dentro da nova realidade social e histórica da época. A declaração de que os homens são iguais passava a ser pública e universa