1 Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP ANDERSON BOMBARDA DILEMAS E CONTRADIÇÕES DA AUTONOMIA DOCENTE ARARAQUARA – S.P. 2018 2 ANDERSON BOMBARDA DILEMAS E CONTRADIÇÕES DA AUTONOMIA DOCENTE Dissertação de Mestrado, apresentado ao Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista- Campus de Araraquara como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Estudos históricos, filosóficos e antropológicos sobre escola e cultura. Orientador: Profº Dr. Denis Domeneghetti Badia ARARAQUARA – SP 2018 3 4 ANDERSON BOMBARDA DDDIIILLLEEEMMMAAASSS EEE CCCOOONNNTTTRRRAAADDDIIIÇÇÇÕÕÕEEESSS DDDAAA AAAUUUTTTOOONNNOOOMMMIIIAAA DDDOOOCCCEEENNNTTTEEE Dissertação de Mestrado, apresentada ao Conselho do Programa de Pós em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras-UNESP/Araraquara como requisito para obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de pesquisa: Estudos históricos, filosóficos e antropológicos sobre escola e cultura. Orientador: Profº Dr. Denis Domeneghetti Badia Data da defesa: 25/01/2018 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profº Dr. Denis Domeneghetti Badia Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Membro Titular: Profª Dr. Paula Ramos de Oliveira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Membro Titular: Profª Dr. Lígia de Almeida Durante Correa dos Reis Coordenadora Pedagógica - Prefeitura Municipal de Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara 5 Dedico este trabalho a todos os meus familiares e amigos, ao meu avô João Laurindo (in memoriam) que sempre foi um grande incentivador pessoal. 6 AGRADECIMENTOS Primeiramente gostaria de agradecer a Deus por ter me dado forças para superar momentos difíceis nessa caminhada. Aos meus pais, familiares e amigos que contribuíram direta ou indiretamente para a concretização desse sonho pessoal. Ao meu orientador, Professor Denis, por ter acreditado no meu potencial e ter me dado a oportunidade para os estudos. 7 “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que mais me preocupa é o silêncio dos bons!” (Martin Luther King) 8 RESUMO O presente trabalho objetivou, através de pesquisa qualitativa, problematizar o papel da escola e do docente para a construção de uma educação autônoma, opondo-se às heteronomias formativas do sistema capitalista, criador de desigualdade através do processo hegemônico burguês. Como referência teórica para a categoria de análise, apropriamo-nos dos embasamentos de Kant e Paulo Freire, realizando convergências entre ambos, para compreender os mecanismos inerentes para uma educação que esteja estruturada sobre os preceitos autônomos. Como contribuições e possibilidades, apropriamo-nos do projeto educacional de Gramsci, trazendo em sua tônica a escola “unitária” como uma concebível resolução para os antagonismos existentes frentes à edificação da autonomia, criando uma linha tênue entre onilateralidade e autonomia. Palavras – chave: Autonomia. Cultura. Educação. Filosofia Reflexiva. Hegemonia 9 ABSTRACT The present work aimed, through qualitative research, to problematize the role of the school and the teacher for the construction of an autonomous education, opposing the formative heteronomies of the capitalist system, creating inequality through the bourgeois hegemonic process. As a theoretical reference for the category of analysis, we take the basics of Kant and Paulo Freire, making convergences between the two, to understand the inherent mechanisms for an education that is structured on the autonomous precepts. As contributions and possibilities, we take Gramsci's educational project, bringing in its tonic the "unitary" school as a conceivable resolution to the existing antagonisms towards the construction of autonomy, creating a tenuous line between onilaterality and autonomy. Keywords: Autonomy. Culture. Education. Reflective Philosophy. Hegemony 10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS PCN- Parâmetros Curriculares Nacionais 11 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 12 2 DO CONCEITO DE AUTONOMIA E SUA EDUCAÇÃO AUTÔNOMA 14 2.1 As raízes históricas e filosóficas 15 2.2 Jusnaturalismo e Contratualismo, do estado de Natureza ao estado político 17 3 EDUCAÇÃO, AUTONOMIA E PRÁTICAS DOCENTES 3.1 O contexto político histórico da pedagogia do oprimido de Freire. 3.2 A crítica à concepção de educação bancária e a oposição à Heteronomia 3.3 Convergências teóricas entre Kant e Freire 3.4 A questão dos Círculos Culturais 3.5 O Contexto histórico e político do pensamento Gramsciano 3.6 Pensamentos, prática e educação em Gramsci 3.7 Escola única ou unitária, segundo os pressupostos Gramscianos 3.8 As Etapas escolares e a organização da escola segundo Gramsci 3.9 O papel do docente e a importância da autonomia no projeto unitário de Gramsci 4 CURRÍCULO: MECANISMO PARA UMA EDUCAÇÃO AUTONÔMA 4.1 As origens da criticidade do currículo 4.2 A educação como controle social 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 29 31 34 36 38 40 43 52 58 63 72 72 76 79 REFERÊNCIAS 81 12 1. INTRODUÇÃO A questão da autonomia docente é muito abordada no contexto educacional hodiernamente. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que visam o estabelecimento de diretrizes para a educação brasileira, citam em sua introdução aos conteúdos disciplinares, que é necessário “aprender a aprender”, sendo também um dos pilares da educação segundo o relatório da UNESCO (2010). Mas até que ponto podemos realmente aprender, visto que a escola é comandada por estruturas heteronômicas, que inibem as possibilidades de criar vínculos autônomos? Sobre essa corrente pedagógica contemporânea, intitulada “Pedagogia das competências”, DUARTE (2001) denomina de pedagogias do “aprender a aprender”, que na sua interpretação nada mais é que o multiculturalismo facetado, gerador de uma ilusão que configura a suposta sociedade do conhecimento, voltada para a formação adaptativa do indivíduo frente ao capitalismo neoliberal. “A sociedade do conhecimento é uma ideologia produzida pelo capitalismo, é um fenômeno no campo da reprodução ideológica do capitalismo” (DUARTE, 2001, p.39). Na primeira seção deste trabalho, discutiremos o conceito de autonomia, tendo como base sua etimologia e sua estruturação filosófica. Inicialmente, para começar a pensar sobre autonomia, temos que ter a ressalva que cabe a ela vários processos interpretativos e sua relatividade, ou seja, sua parcialidade quanto às dimensões aplicativas desse conceito. BODEN (1996, p.95) afirma: “autonomia não é uma propriedade tudo ou nada. Possui muitas dimensões, e muitas gradações”, deixando claro que qualquer tentativa genérica de reduzi-la simplesmente a uma conceituação única é errônea, fazendo-se necessário adquirirmos consciência sobre o seu entendimento, o que é um exercício parcial. Acerca das concepções de autonomia em Kant, ocorre a necessidade de analisarmos previamente duas correntes teóricas filosóficas: o jusnaturalismo e o contratualismo. Ambas as correntes serão de extrema importância para compreendermos o movimento iluminista que terá em Kant uma das grandes figuras simbólicas, visto que o mesmo embasou este movimento no “século das luzes”. Inseridos nessa questão, iremos interpretar as modernas doutrinas contratualista e jusnaturalista, na tentativa de explicar o surgimento e a manutenção do Estado, sendo de suma importância dentro da pesquisa a relação estabelecida entre Estado e educação. 13 Na seção seguinte, partindo da premissa de Kant, ao relacionar a construção do ser autônomo ao ligamento da capacidade de raciocinar sem sofrer influências de meios externos, consideramos viável “conversar” com o conceito de autonomia em Paulo Freire. Para construirmos uma reflexão em torno da autonomia e da liberdade a partir de Freire, acreditamos ser importante destacar o que os (PCN), orientam em torno dessa temática, haja vista que, como já relatamos, é o referencial que norteará a educação brasileira: “a autonomia é tomada ao mesmo tempo como a capacidade a ser desenvolvida pelos alunos e como princípio didático geral, orientador das práticas pedagógicas” (PCN, vol:1, p. 94). Segundo FREIRE (2010), “essa relação dialética entre opressores e oprimidos, a qual irá nos remeter a um processo contínuo de desumanização, leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutarem contra quem os fez menos” (Ibid., p. 33). Cabe à escola, portanto, ser o local de transformação desse processo revolucionário. Posteriormente, buscamos trazer as contribuições teóricas de Gramsci e seu projeto educacional. Esse caminho teórico foi percorrido com o intuito de realizar uma aproximação entre autonomia e onilateralidade, como princípios relevantes para a construção de uma nova ordem social, destacando o papel do docente no meio desse cenário. Na última seção deste trabalho, dedicaremos atenção especial aos currículos, por entendermos que estes se configuram como parte indispensável para a conquista de uma educação livre e autônoma. Desta forma, utilizaremos como referências, textos de PARO (2007), SILVA (2001) e MOREIRA e SILVA (1994) por discutirem a questão curricular e a partir do materialismo histórico dialético, a fim de elucidarmos a relação intrínseca do currículo com o controle social. 14 2. DO CONCEITO DE AUTONOMIA E SUA EDUCAÇÃO AUTÔNOMA Ao pesquisarmos sobre a etimologia da palavra autonomia, encontramos sua origem no grego, que significa autogoverno ou governar-se a si próprio. Etimologicamente, autonomia significa o poder de dar a si a própria lei, autós (por si mesmo) e nomos (lei). Autonomia é oposta à heteronomia, que, em termos gerais, é toda lei que procede de outro, hetero (outro) e nomos (lei). Caracteriza-se autônomo a condição de quem determina a própria lei, já quem é determinado por algo além de si, que seja oposto às questões que envolvam a liberdade de autodecidir, a esse antagonismo é dado o nome de heteronomia. “Etimologicamente, autonomia é a condição de uma pessoa ou de uma coletividade cultural, que determina ela mesma à lei à qual se submete”. (LALANDE,1999, p.115) e heteronomia é: “condição de uma pessoa ou de uma coletividade que recebe do exterior a lei à qual se submete”. (LALANDE,199, p.115), sendo necessário o diálogo entre os dois termos, para a existência de uma condição autônoma e não podendo acontecer fora das relações sociais e essa ser confundida com autossuficiência. Autonomia atribui ao sujeito que ele seja capaz de fazer uso de sua liberdade e determinar-se, criando uma linha tênue com a liberdade, porém não sendo ambos, considerados sinônimos (ZATTI, 2007). Neste sentido, uma escola ou docência autônoma é aquela a qual governa a si própria. No âmbito da educação, o debate moderno em torno do tema remonta ao processo dialógico de ensinar contido na filosofia grega, que preconizava a capacidade do educando de buscar resposta às suas próprias perguntas, exercitando, portanto, sua formação autônoma. Segundo DARWALL (2006) apud NARDI (2010), temos quatro existências de processos autônomos. 1. Autonomia Pessoal: O agente determina sua conduta, pelos seus valores mais estimados e próprios. 2. Autonomia Moral: O agente escolhe de acordo com suas convicções próprias ou princípios. 3. Autonomia Racional: O agente age com base no que ele acredita serem as mais fortes razões. 4. Autonomia Agencial: O comportamento do agente é uma ação genuína e consequentemente atribuível a ele como um agente. (DARWALL, 2006, p.265 apud NARDI, p.17). Diante desses vários mecanismos dialógicos necessários para que se obtenha a existência de uma autonomia plena ou completa, faz-se necessário buscarmos as raízes históricas que envolvem o conceito de autonomia e estabelecer as “pontes” que ligam as 15 definições e discussões contemporâneas em torno do mesmo. Para tanto, haja vista que é necessário um apuramento refinado e cuidadoso, todavia, estamos propondo-nos à discussão e reflexão sobre um dos temas centrais dentro do ambiente escolar nos dias atuais, seja a sua inserção nos cursos de formação de docentes, ou suas interfaces dentro do trabalho realizado pelos docentes frente às estruturas de trabalho ligadas ao âmbito do Estado. 2.1 As Raízes Históricas e Filosóficas É notório o saber que na atualidade as discussões e as concepções acerca do processo autônomo são um dos temas abrangentes da educação no século XXI. Porém, faz-se necessário a busca por suas raízes históricas na antiguidade clássica, para que, posteriormente, possamos estar melhores embasados para o seu entendimento, bem como para que suas divergências e dimensões atinjam um processo de autonomia. Retomaremos nossas reflexões a respeito da autonomia pelo classicismo, com as concepções platônicas de educação acerca do ideal educacional grego, a Paidéia, e consequentemente o período iluminista, com a concepção de um novo ideal de formação humana, baseando-se na concepção educacional pensada por Rousseau (1968) e por Kant (2008,1996). Ambos os filósofos apontam para a humanização e para o aperfeiçoamento do homem por meio da educação, destacando a importância da formação autônoma. Na Grécia, notamos uma perspectiva mais voltada para a formação do governante, do filósofo, do pensador, do sábio e, na concepção iluminista, uma perspectiva mais humanista, tendo no desenvolvimento da razão, a possibilidade do homem atingir seu potencial natural, seja para suas aptidões individuais ou coletivas de cidadão. Ao pesquisarmos as raízes históricas desse conceito tão mencionado na educação, a partir da história da educação, encontramos o conceito de autonomia com seu início na antiguidade clássica, em sociedades que visavam a construção de uma nova civilização, e consequentemente a elaboração de um novo homem. “Esse projeto visava a “construção” do Homem em todas as suas dimensões. A partir desse Homem, seria possível lançar as bases de uma nova civilização” (BRAGA, 2000, p. 40). Buscando uma nova configuração social em torno da polis, essa nova proposta de formação educacional, a Paidéia, tornou-se até os dias atuais, uma grande fonte de inspiração àqueles que buscam discutir temas relacionados à educação, sobretudo, relacionando-os aos contextos da história do pensamento educacional e à filosofia da educação. 16 De acordo com Jaeger, o conceito de Paidéia está nesse contexto totalmente relacionado à formação do homem grego em sua totalidade, sendo elas, físicas, sociais e históricas. A Paidéia trata da criação de um novo ideal, caracterizando-se pela busca do ser humano mais elevado. Jaeger ainda afirma quanto aos gregos, que “a mais alta obra de arte que o seu anelo se propôs foi a criação do Homem vivo. Os Gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de construção consciente” (JAEGER, 1994, p. 13). Dentro dessa formulação, os ensinamentos socráticos canalizados e inclinados para os cuidados da alma, divergiam em muito da colocação cultural de sua época, que privilegiava o ter em detrimento do ser, assim, como Platão (1999) nos descreve: Nada mais faço a não ser andar por aí convencendo-vos, jovens e velhos, a não cuidar com tanto afinco do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não provém a virtude para os homens, mas da virtude provêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos” (PLATÃO, 1999, p. 57). Dentro desse contexto, buscando convergências, vale afirmar que, conforme a visão platônica, na qual Sócrates está inserido, o objetivo principal da educação grega era a formação política do homem, a construção do futuro governante. “A premissa fundamental da qual Sócrates parte (...) é a de que toda educação deve ser política. Tem necessariamente de educar o Homem para uma de duas coisas: para governar ou ser governado” (JAEGER, 1994, p. 546). Sócrates nos propõe em suas concepções, uma educação que esteja baseada em uma formação política, que prepara o cidadão para ser governante da sua cidade, da sua casa, da sua própria vida, em outras palavras, resumidamente ele propõe que o cidadão, as pessoas necessitam governar-se a si mesmas, ou seja, exercer a autonomia dentro desse contexto que nos remete. A estruturação filosófica do conceito de autonomia tem suas bases no movimento liberal iluminista, pautado no uso da razão. Segundo Zatti (2007): A filosofia iluminista possui uma confiança decidida na razão humana, propõe um despreconceituoso uso crítico da razão voltada para a libertação em relação aos dogmas metafísicos, aos preconceitos morais, às superstições religiosas, às relações desumanas e tiranas políticas, os quais representam para os iluministas a heteronomia. A libertação dessas heteronomias por meio do uso crítico da razão possibilitaria experiências de autonomia (ZATTI, 2007, p.18) 17 Esse movimento conhecido como Iluminista ou Ilustração do século XVIII, “compôs o chamado “Século das Luzes” e teve, dentre as suas características principais, a defesa da capacidade humana de conhecer e agir mediante o uso da razão” (NARDI, 2010, p.18), libertando o homem das superstições e da ignorância, vestígios históricos da idade média que ainda assolavam a população e a sociedade do século XVIII, fazendo do homem o centro de suas decisões, livrando-se das contestações religiosas que ainda vigoravam tais como as Heresias, que tem sua origem grega e o significado de “escolher”. Porém, diferente do seu significado, não permitia que o homem pensasse e divergisse dos dogmas religiosos tornando- os criminosos (Macedo, 1996). Segundo Nardi (2010), a corrente jusnaturalista tem importante influência nas concepções que irão guiar o século ou movimento das luzes, configurando dentro desse ideal ou concepção, a defesa da existência de direitos advindos da natureza humana quer sejam eles a “manifestação pessoal ou coletiva, independente de contextos, convenções sociais e ou, qualquer outro expediente criado pelo homem” (NARDI, 2010, p.19). Na Idade Média, este conceito adquire estruturação teológica em razão da vinculação do direito natural à lei divina. Todavia, é com o pensador John Locke (1632-1704) que as concepções jusnaturalistas adquirirão os contornos atuais, tais como os conhecemos hoje em dia, e que inspiraram a maioria dos pensadores iluministas. Entre esses, Kant, sendo, nas interpretações desse autor, a definição de que o estado de natureza possui uma lei da natureza ou natural para governá-lo, que assim a todos obriga, e sendo a razão, “essa lei, ensinando a todos os homens que tão só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deva prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses” (LOCKE, 1978, p.36). 2.2 Jusnaturalismo e Contratualismo, do estado de Natureza ao estado político. Diante das concepções de autonomia em Kant que pretendemos mais a frente destacarmos, faz-se necessário empreendermos previamente sobre essas duas correntes teóricas filosóficas: o jusnaturalismo e o contratualismo, que, como antevimos, serão de extrema importância para compreendermos o movimento iluminista que terá em Kant uma das grandes figuras simbólicas que irão embasar as correntes teóricas do século das luzes. Inseridos nessa questão, dialogaremos e nos apropriaremos das modernas doutrinas contratualista e jusnaturalista por Thomas Hobbes, em Leviatã, e John Locke, em Segundo Tratado sobre o Governo, para apresentar o surgimento e a manutenção do Estado, sendo de suma importância para a pesquisa esta relação tênue estabelecida entre Estado/educação, que 18 consequentemente irá inibir a criação de vínculos autônomos os quais futuramente destacaremos dentro do trabalho, relacionando com a questão hegemônica em Gramsci, bem como sua concepção de educação e autonomia. O jusnaturalismo e contratualismo trazem em suas tônicas os conceitos de “contrato social” e “direito social”. Começaremos por definir o contratualismo e, posteriormente o jusnaturalismo. O Contratualismo é uma teoria que engloba as políticas que definem a origem da sociedade e a fundamentação do poder político, dependendo do período histórico conhecido como potestas, regnum, imperium, governo, soberania ou Estado, onde a criação de formulações de mecanismos sociais em torno de um pacto social, também denominado de contrato, origina assim, o termo contratualismo. Este pacto nada mais é do que um acordo entre os indivíduos que se encontram em uma mesma localidade geográfica e que mais tarde farão parte do mesmo corpo político. Marcando por consequência no contrato, uma passagem de um estado natural para um estado social e político artificial. Esse pensamento tem grande influência no período medieval, onde o governo era algo relacionado ao divino, devido ao terreno ser uma passagem que nos levaria à vida eterna. Conforme Santo Agostinho (1990), o governo na terra teria por função auxiliar as pessoas a levarem uma vida regrada para que quando morressem pudessem encontrar morada junto ao criador em uma vida além da vida terrena, após a morte material do corpo, uma vida celestial. Tal pensamento perdurou até a modernidade, que retomaria o contratualismo com o advento do racionalismo, com a necessidade de conferir uma organização política e social, possibilitando a necessidade de explicar a origem e a função do governo, confundindo-se nesse momento com o jusnaturalismo que Fassó (1998) define como: O Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um “direito natural” (Jus naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O Jusnaturalismo é, por isso, uma doutrina antitética à do “positivismo jurídico”, segundo a qual só há um direito, o estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos. Às vezes o termo é reservado, por antonomásia, a doutrinas que possuem algumas características específicas comuns [...] e que defenderam as mesmas teses nos séculos XVII e XVIII: tanto que se gerou a opinião errônea de que a doutrina do direito natural teve a sua origem apenas nesse período. (Fassó, 1998, p. 655-656). 19 Como podemos observar, a primeira dá conta do conceito de que os direitos naturais, assim o são, porque foram estabelecidos e revelados aos homens por Deus, através da Graça. A segunda tem como norte que esses direitos são puramente físicos e, portanto, identificáveis ao se analisar mais detidamente os instintos humanos. Resumidamente, o jusnaturalismo moderno trás em suas concepções os seguintes conceitos-chave: direitos inatos e individuais, estado de natureza e contrato social, ainda que entendidos de formas diversas pelos vários autores. Por último, o sentido que irá prevalecer na maioria dos autores modernos, é lei ditada pela razão e que cabe somente ao homem - único ser dotado de razão - descobri-la e segui-la. Após essas informações, “pinceladas” de maneira geral, cujo aprofundamento não nos cabe agora, pois o alvo da nossa pesquisa possui outros entornos, faz-se necessário esse breve resumo para termos uma pequena compreensão, ainda que generalista, dos processos histórico-filosóficos que levam aos conceitos que pretendemos analisar nesse trabalho. Tendo explicado de forma geral esses dois conceitos, explanaremos sobre a teoria hobbesiana do Leviatã. Hobbes (1979) descreve o estado de natureza humana como sendo de igualdade de condições e, por conta desse deferimento, de aspirações da realização de seus desejos. Sendo os homens igualmente capazes a estimar as mesmas coisas, o que sempre ocorrerá, ainda que em teoria, não há meios de não se enfrentarem. O enfrentamento não é, contudo, somente o próprio ato da luta entre indivíduos, mas também a disposição para a batalha, seja para atacarem seus semelhantes a fim de se apoderarem de suas posses ou de sua reputação, seja para defenderem-se de quem queira lhes usurpar ou ofender-lhes. Nesse combate de todos contra todos, não há melhor forma de assegurar-se de uma paz momentânea, senão com a morte do outro. Segundo Hobbes (1979), as paixões que fazem os homens tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere as normas de paz, por meio das quais os homens podem chegar a um acordo. Esses acordos ou normas são aqueles a que por outra face denominam-se leis de natureza. A passagem desse estado natural para o social se dará por conta da desproporção existente entre as suas necessidades, do homem, e dos meios de satisfazê-los, sem o percurso de uma força superior sujeitando a todos. 2.3 O Conceito de educação em Kant Ao analisarmos autonomia pelo conceito kantiano, ocorre à existência a uma subjetiva regra, o ser autônomo, se dará pela compreensão e concordância com sua validade universal 20 que serão explanadas pelas três fórmulas do imperativo categórico e não apenas pelo medo à punição ou interesses nas vantagens a serem obtidas pessoalmente. Segundo ABBAGNANO (2007), o termo autonomia foi introduzido na filosofia por Kant para “determinar a interdependência da vontade em relação a qualquer desejo ou objeto do desejo e a sua capacidade de determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão” (Ibid, p. 97). Na retórica de Immanuel Kant, ao obedecermos às prescrições ou regras ditas “morais”, delimitadas pelo ostracismo existencial da conformidade, interesses ou prudência, os imperativos que nos orientaram são hipotéticos e a moral é heterônoma. A heteronomia, na qual “a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar, os ideais morais de felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade porque supõem que ela seja determinada pelo desejo de alcançá-los e não por uma lei sua” (ABBAGNANO, 2007, p.97). Assim sendo, serão três os motivos pelos quais dedicaremos uma atenção especial para Kant com a definição de autonomia nesse trabalho. O primeiro refere-se à importância de sua obra, pois a “máxima expressão do pensamento iluminista encontra-se em Kant” (ARANHA, 2003, p. 354 apud NARDI, p.22). As principais características desse período dar-se-ão pela ênfase no poder da razão. Neste contexto podemos colocar a ideia de crítica como um dos ideais deste tempo, pois “ela constituía a aspiração fundamental dos iluministas” (ABBAGNANO, 2007, p. 223). Com este propósito Kant buscava, não apenas submeter todo o conhecimento à crítica da razão, mas também confrontar a razão à crítica, para, com isso, ter a possibilidade de determinar os seus limites. Essa postura crítica frente à própria realidade exige que o sujeito seja o detentor do próprio conhecimento e não um ser passivo, que apenas recebe informações e as manipula de forma pejorativa, sem refletir criticamente sobre as mesmas. “Um convite à razão para de novo empreender a mais difícil de suas tarefas, a do conhecimento de si mesma” (KANT, 1989, P. 5). Visando discutir e relacionar a construção autônoma e as formulações que impedem para a construção do conhecimento dentro dos processos educacionais vigentes, ocorre a necessidade de salientarmos que ainda vigora dentro das práticas educacionais, a leitura do educando como um ser passivo, uma Tabula Rasa, que sua etimologia, segundo o dicionário de latim: “Tábua raspada, expressão muito empregada em linguagem filosófica de origem aristotélica. Aristóteles admitia que o espírito humano fosse, antes de qualquer experiência, inteiramente vazio como as tabuinhas cobertas de cera em que nada fora escrito”. Posteriormente, o segundo motivo ao utilizarmos a retórica kantiana, dá-se em razão do fato de que este pensador irá fundamentar as bases filosóficas - como antevimos - cujos preceitos irão respaldar os elementos construtivos da nossa argumentação em relação à 21 configuração construtiva para a prática autônoma. Diante destes entornos, a terceira formulação, que muito nos interessa, é, segundo SCHERER (sem data), a do imperativo categórico que é a chamada formulação da autonomia, representando um conceito central na filosofia moral de Kant. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, antes de expressar essa terceira formulação, Kant enfatiza que “o princípio de toda a legislação prática reside objetivamente na regra e na forma da universalidade que a torna capaz (segundo o primeiro princípio) de ser uma lei (sempre lei da natureza); subjetivamente, porém, reside no fim” (GMS, AA, 04: 431 apud SCHERER, p.2); e é o segundo princípio que se ocupa da questão do fim da ação. O sujeito de todos os fins é todo o ser racional entendido como fim em si mesmo. É a partir de então que Kant formula o terceiro princípio prático da vontade, submetendo-o a ser realizado sob a “condição suprema da concordância desta vontade com a razão prática universal”, ou seja, “a ideia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal” (GMS, AA, 04: 431 apud SCHERER, p.2). Esta terceira formulação, do imperativo categórico é exposta por Kant em forma de ideia, não como um imperativo, e é denominado princípio de autonomia da vontade. Em Kant, o conceito de autonomia está presente fundamentando toda a ética. Cassirer, um dos maiores comentadores de Kant, salienta o que é a autonomia para o autor: "a autonomia é aquela vinculação da razão teórica e da razão moral em que esta tem a consciência de vincular-se a si mesma". (CASSIRER, 1968, p. 287 apud CHRISTINO, p.73). Assim, podemos concluir que, para Kant, a autonomia nos remete à vontade própria. É governar-se por si mesmo. É a escolha racional e emocional. É a escolha que não leva em conta as consequências externas e imediatas dos atos e nem as regras, por pura prudência, inclinação, interesse ou conformidade. Ou, ainda, para aclararmos mais o conceito de autonomia exposto, basta lembrarmo-nos dos pareceres tradicionais dos comandos de Deus, com a renovação de que em Kant, a vontade legislativa está atribuída a cada agente racional e não mais a um Deus externo (CHRISTINO, 1997). Essa resignação, “a decisão de agir moralmente é a decisão de agir com o propósito de conformar a minha ação com a lei universal. Isso corresponde a agir segundo minha verdadeira natureza racional, e agir de acordo com as exigências de minha razão é ser livre” (ZATTI, 2007, p.25). Isso é liberdade, porque agir moralmente é agir de acordo com o que realmente somos, agentes morais/racionais. A lei da moralidade, em outras palavras, não é imposta de fora. É ditada pela própria natureza da razão. Ser um agente racional é agir por razões. Por sua própria natureza, as razões são 22 de aplicação geral. Uma coisa não pode ser uma razão para mim agora sem ser uma razão para todos os agentes numa situação relevantemente semelhante. Assim, o agente de fato racional age com base em princípios, razões que são entendidas como gerais em sua aplicação. É isso que Kant quer dizer por agir de acordo com a lei. (TAYLOR, 1997, p. 465 apud ZATTI, p.24-25) As concepções de Kant em torno da dimensão moral será o que irá lhe opor aos demais iluministas do período, Segundo ZATTI (2007), essas formulações não abrem espaço para a dimensão moral e, dessa forma, consequentemente para a liberdade, pois a liberdade necessita de uma dimensão moral. “Para Kant, a moralidade não deve ser definida segundo qualquer resultado, mas sim, segundo o motivo, que é a conformidade da ação com a lei moral” (ZATTI, 2007, p. 24). A partir da máxima do pensamento de Kant, podemos concluir que tudo que há na natureza se conforma com suas leis, exceto o homem. Isso porque o homem, na condição de ser racional, “conforma-se às leis universais que ele próprio formula. Por isso, os seres racionais são autônomos e têm uma dignidade particular, destacam-se da natureza por serem livres e autodeterminantes” (TAYLOR, 1997, p. 467 apud ZATTI, p.25). A visão Kantiana dimensiona uma autonomia radical dos agentes racionais, não fragmentando a mera satisfação dos desejos, pois isso é algo vago e também oposto ao processo de construção do ser autônomo, classificando-se como um processo heteronômico, não configurando uma vida plenamente significativa que é aquela escolhida pelo próprio sujeito. Segundo Kant, “a razão não percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo o seu próprio projeto” (KANT, 1983, p. 11). Isto é, o sujeito no ato de conhecer coloca no objeto elementos a priori contidos neles mesmos, ou seja, não é a estrutura cognitiva humana que se molda às coisas, mas as coisas que se moldam a esta. Dentro dessa concepção, acreditamos que Kant apresenta a essência do seu conceito de autonomia, posto que os princípios adotados por pessoas racionais autônomas serão as que não são motivadas por influências ou fatores externos, dependem unicamente de uma decisão pessoal do indivíduo. O indivíduo possui a “habilidade” de fazer uso do entendimento e das suas concepções mais extremas, sem a persuasão de outro indivíduo ou de estruturas externas como: governo, sociedade, igreja, sem o uso de mecanismos mediáticos do mundo contemporâneo. Todavia, os que sofrem a influência de meios externos, que não possuem a aptidão para tal conhecimento, estão condicionados a viverem em um processo de menoridade. “A menoridade é a incapacidade de fazer uso do entendimento sem a condução de outro.” (KANT, 1989, p. 83). Diante disso, cabe somente ao homem sair ou não de seu estado de menoridade, pois, segundo Kant, a falta de coragem e a covardia são as principais 23 razões para que grande parte da humanidade continue nesse estado de menoridade, mesmo depois que a natureza a libertou, devida sua falta de ação diante da conformidade existencial. O homem é o próprio culpado dessa menoridade quando sua causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de resolução e coragem para usá- lo sem a condução de outro... Preguiça e covardia são as razões pelas quais uma tão grande parcela da humanidade permanece na menoridade mesmo depois que a natureza a liberou da condução externa (KANT, 1989, p. 83). A autonomia irá caracterizar-se pela capacidade de autodeterminação. Uma pessoa ou indivíduo só pode ser considerado autônomo quando suas ações são verdadeiramente suas e não motivadas por relações, fatores ou influências externas. Ao afirmar que a autonomia do indivíduo é a manifestação desta em seu exercício pessoal, “advogaria a ideia de que qualquer decisão é válida quando é tomada pelo indivíduo, ou seja, adentraríamos em um individualismo sem limites” (NARDI, 2010, p. 27). Acerca do individualismo, Kant salienta-nos, a saber, que: Entretanto, nada além da liberdade é necessário à ilustração; na verdade, o que se requer é a mais inofensiva de todas as coisas às quais esse termo pode ser aplicado, ou seja, a liberdade de fazer uso público da própria razão a respeito de tudo... A pedra de toque para o estabelecimento do que devem ser as leis de um povo está em saber se o próprio povo poderia ter-se imposto às leis em questão (p. 84 apud NARDI, 2010, p.27). Em sua obra: Crítica da Razão Prática, Kant irá demonstrar que a razão pura será a praticada por si mesma, ou seja, ela estruturaria a lei que alicerceará a moralidade, a razão fornece as leis práticas que guiam a vontade. Leis práticas são princípios práticos objetivos, regras essenciais e válidas para todo ser racional. Porém, essas regras práticas se distinguem das máximas que são os princípios práticos subjetivos, que irão compor as regras que o sujeito considera como válidas ou essenciais, apenas para sua vontade própria. Dentro desse contexto, Kant relata-nos que: “Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a determinação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas” (KANT, sd, p. 31 apud ZATTI, p.27). Para Kant, se os desejos, os impulsos, impressões, ou qualquer objeto da faculdade ligado ao ato de desejar forem condições que estabelecerão o princípio da regra prática, então o princípio se caracterizará em um total empirismo, não sendo lei prática, não havendo unidade nem incondicionalidade do agir, e assim, não permitindo que ocorra um ato de 24 autonomia. Para ZATTI (2007), “uma moral que se deterna por causas empíricas cai no egoísmo” (ibid p. 28). Kant determina que: “Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si mesmo, ou seja, à felicidade própria” (idem, p. 33 apud ZATTI, p.28). Para Kant, a busca da felicidade própria concerne à faculdade inferior de desejar, ela se relaciona às inclinações da sensibilidade e não à razão. O princípio do amor por si ou da felicidade jamais poderiam servir de fundamento para uma lei prática, tendo em vista sua validade, que é apenas subjetiva. Cada um coloca o bem-estar e a felicidade em uma coisa ou outra, de acordo com sua própria opinião a respeito do prazer ou da dor. Se formulássemos uma lei subjetivamente necessária como lei natural, seu princípio prático seria contingente e não garantiria a autonomia. Somente a razão, determinando por si mesma a vontade, é uma verdadeira faculdade superior de desejar. “Um ser racional não deve conceber as suas máximas como leis práticas universais, podendo apenas concebê-las como princípios que determinam o fundamento da vontade, não segundo a matéria, mas sim pela forma” (ibid, p.37 apud ZATTI, 2007, p.28). Um ser racional não pode conceber seus princípios subjetivos práticos, suas máximas, como leis universais. A vontade para ser moral não deve determinar-se pelo objeto, deverá abstrair a matéria da lei para reter-lhe apenas a forma, a universalidade. Em suma: ou um ser racional não pode conceber os seus princípios subjetivamente práticos, isto é, as suas máximas como sendo ao mesmo tempo leis universais ou, de forma inversa, deve admitir que as simples formas dos mesmos, segundo as quais se capacitam para uma legislação universal, revestem esta de característico, conveniente e apropriado. (ibid apud ZATII, 2007, p.28). Em suma, Kant na Crítica da razão prática, formula a seguinte teoria: “A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes às mesmas” (ibid, p.43 apud ZATTI, p.29). O princípio da moralidade é a independência da vontade em relação a todo objeto desejado, ou seja, de toda matéria da lei e, ao mesmo tempo, a possibilidade da mesma vontade de determinar-se pela simples forma da lei. Assim, a liberdade irá constituir dois aspectos, o positivo e o negativo, ambos irão convergir na ideia de autonomia. A lei moral apenas exprime a autonomia da razão pura e prática, ou seja, a liberdade. Dessa forma, Kant confere ao homem duas possibilidades, dois mundos, o mundo da causalidade, no qual não é possível prever grau de liberdade para um fenômeno físico e, o mundo da liberdade, que é o âmbito da razão prática no qual é possível a autonomia. 25 A moral kantiana estabelece o seu fundamento na autonomia, cuja efetivação subentende-se na necessidade da liberdade e caracteriza-se pela capacidade de pensar e agir por si mesmo. Segundo Scherer (sem data), Kant em 1784 escreve o texto sobre o esclarecimento, cujo título é: Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento? (Beantwortung der Frage: Was ist Aufklãrung? Esclarece à luz da verdade, que todo o ser humano, à medida que ele é racional, possui a racionalidade, pode alcançar a autonomia, isto é, ele mesmo tem que definir, traçar e dar direção para a sua vida. Para que isso ocorra, exemplificando, basta que tenha coragem para fazer uso de seu próprio entendimento, ou seja, de pensar por si mesmo. Dentro deste contexto, vale ressaltarmos, que Kant em “Antropologia de um ponto de vista pragmático”, classifica a coragem como uma virtude unicamente masculina. Em contrapartida, a paciência, sendo virtude feminina. Explanando sobre essa questão: “A autonomia para Kant, segundo J. Kneller, é entendida por muitos leitores como profundamente masculina, dando a impressão de que para desenvolver essa autonomia moral, o ser humano estaria sozinho” (SCHERER, p. 6). Com base neste contexto de autonomia, entende-se por que feministas apresentam objeções em relação a esse conceito. Elucidando, a autonomia fundamenta suas premissas sobre um individualismo abstrato que retrata o paradigma de um agente moral isolado, não social e desvinculado do processo histórico. As concepções delimitadas por Kant no campo educacional serão embasadas a partir do estudo da obra “Sobre a Pedagogia” de Kant (2006), que terá em sua abordagem a educação e a moral, como princípios do processo educacional, para a constituição da autonomia. Para melhor compreender o pensamento de Kant sobre educação, faz-se necessário entender o “caminho” percorrido e consequentemente o que é recomendado, para o ser humano, no decorrer da vida. Kant relata que “quando o indivíduo nasce não traz consigo o entendimento necessário para viver em sociedade, sendo estes adquiridos por meio da educação” (KANT, 2006, p.15). Esta pessoa, ao nascer, precisa de um plano de conduta. No entanto, o ser humano é livre e as maneiras de educá-lo contribuem, mas não definem por completo o seu destino. Por essa razão, é necessário orientá-lo, para o caminho do desenvolvimento da razão e do esclarecimento, que projeta a cada ser ver-se como parte da humanidade. Kant (1996b, p. 30) fala sobre a importância de a ação educativa seguir a experiência. “A educação não deve ser puramente mecânica e nem se fundar no raciocínio puro, mas deve apoiar-se em princípios e guiar-se pela experiência” (cf. idem, p. 29). A partir da pedagogia kantiana, podemos dizer que uma educação que vise formar sujeitos autônomos, deve unir lições da experiência e os projetos da razão. Buscando responder a indagação inicial, Kant 26 constrói em sua obra “Sobre a Pedagogia”, que a educação ocorre em dois momentos: o primeiro é chamado de educação física, e compreende uma análise sobre os cuidados do corpo; e o segundo momento é chamado de educação prática ou moral, o qual diz respeito à construção do ser humano, e esse indicativo é o uso cultural, afim de que possa viver como um ser livre e autônomo. Assim sendo, o primeiro estágio irá se evidenciar pelos cuidados dos pais às crianças, momento de total dependência, cuidados corporais futuros, ao longo de seu crescimento físico. Consequentemente, o segundo e terceiro estágios, são os de maior relevância para o nosso trabalho, ao tratar dos entornos da educação para a construção do indivíduo autônomo. Esse estágio diz respeito à educação intelectual, que consiste na progressão do desenvolvimento da capacidade de pensar com autonomia; e o último estágio é a cultura, que abrange tanto o corpo, como a alma, tendo a função de desenvolver as faculdades do conhecimento, proporcionando o progresso para distinguir entre o instinto e a razão (KANT, 2006, p. 25/26). Esse último estágio que o ser humano atingiria, seria de moralização, não podendo ficar meramente restrito a uma simples adição da cultura e da civilização, ela envolve também interfaces que pressupõe o caminho preparatório da cultura e da civilização. Segundo KANT (2006), a humanidade está ainda muito distante do estágio final da moralização, pois se vive em um tempo de treinamento disciplinar, de cultura e de civilização. Para Kant, a disciplina é extremamente necessária para que a vontade não seja corrompida pelas inclinações sensíveis. “No entanto, a disciplina não pode tratar as crianças como escravas, elas precisam sentir sua liberdade, mas de modo que não ofendam os demais” (Kant, p. 53 apud ZATTI, p.33) Porém, a humanidade está bem distante do “tempo” de moralização. A moralização compreenderá a educação moral, a formação de caráter do ser humano. A saída do estágio de animalidade do ser humano para a humanização aconteceria através da educação, a qual se daria por meio da moralização dos humanos. Esse processo educacional mostra a superação de um estado inicial, a saber, o estado de natureza selvagem do ser humano, para um estado esclarecido, em que a razão se sobreponha. De acordo com o pensamento de Kant, os seres humanos se diferenciam dos animais, sobretudo pela plena razão. Pois a natureza dotou o ser humano de razão, possibilitando-o se afastasse das determinações dos instintos, importância da ação educativa de seguir a experiência. A partir da pedagogia kantiana, podemos dizer que uma educação que vise formar sujeitos autônomos deve unir lições da experiência e os projetos da razão. Isso porque no caso de basear-se apenas no raciocínio puro, estará alheia à realidade e não contribuirá para a superação das condições de heteronomia e, no caso de guiar-se apenas pela experiência, não haverá 27 autonomia, pois para Kant, a autonomia dá-se justamente quando o homem segue a lei universal que a sua própria razão proporciona. O objetivo de Kant com o seu pensamento sobre a educação propõe a formação de um ser humano ideal, para isso é necessário estabelecer a disciplina e a coação como princípios fundamentais da educação. Segundo Kant, a disciplina e coação são apresentadas como fundamento necessário para a liberdade e a moral. A autonomia, princípio básico do bom uso da razão, depende da saída da menoridade, em que o ser humano não se encontra esclarecido. Esclarecimento significa ser livre, possuir autonomia, ser senhor de si mesmo por um processo de uma melhoria moral e cultural. Esclarecimento é à saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade, se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo, sem a direção do outro. “E ter a coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento” (KANT, 1974, p.100). Por essa razão, Kant insiste na ideia de que o ensino deva levar o lema: “pensar por si mesmo”, ou seja, julgar e analisar as questões segundo o exame próprio, segundo a autonomia intelectual e a ousadia moral. Aprender a pensar não significa, portanto, aprender pensamentos ensinados pelo professor, absorver as informações transmitidas. Mas, pode-se aprender a filosofar, aprendendo a exercer o talento da razão. Aprende-se a filosofar pelo exercício e pelo uso que se faz para si mesmo de sua própria razão. O papel da reflexão ou da razão autônoma não está em treinar a memória e nem a erudição, porém, está na possibilidade da formação de um indivíduo esclarecido. A educação para a autonomia como o agir livremente, baseado no querer de cada indivíduo supera a divisão entre os usos públicos e privados da razão. A educação acaba se comprometendo em desenvolver as capacidades individuais, para formar os seres racionais, conscientes de si, conhecedores e capazes. E, quando diante das paixões, agir conforme a orientação da razão de viver em sociedade. Esse processo educacional que valoriza a autonomia evidencia que: A educação é definida não no ponto de vista da sociedade, mas do ponto de vista do indivíduo: as formações do indivíduo, sua cultura, tornam-se o fim da educação, e também porque ela acontece em cada indivíduo e em cada contexto histórico. A definição de educação na tradição pedagógica do Ocidente obedece inteiramente a essa exigência. É definida como formação do homem, amadurecimento do indivíduo, consecução da sua formação 28 completa ou perfeita, etc., portanto, como passagem gradual – semelhante a uma planta -, mas livre da potência ao ato dessa forma realizada. (ABBAGNANO, 2007, p. 306) A educação tem como função encaminhar o ser humano na construção da racionalidade, em construir um cidadão crítico e ativo, que reflete sobre a práxis e não se influencia por antagonismos existentes dentro da pluralidade, existentes em uma sociedade. Portanto, uma educação que atinja sua finalidade cumpre, ao mesmo tempo, a finalidade da filosofia moral e política. O ser humano moral é o ideal a ser atingido dentro do campo educacional, e apenas uma sociedade politicamente justa está apta a capacitá-lo a cumprir sua destinação. Com o intuito de obtermos uma sociedade justa, faz-se necessário a construção de um conjunto de cidadãos também justos, ou seja, éticos e morais. Com isso, uma sociedade justa é formada por seres morais, que por pressuposto dependem de uma sociedade justa para efetivarem-se moralmente. Cada indivíduo, enquanto ser racional, é autor das leis que impõe a si mesmo. A lei moral, universalmente válida, tem origem na razão. Sendo assim, cada indivíduo é legislador e responsável por aquilo que faz. A moralidade pressupõe, portanto, a autonomia da vontade. Em outra palavra, pressupõe a liberdade. E em que medida é que o indivíduo é autônomo? É autônomo na medida em que é capaz de agir independentemente das leis da natureza e suas influências externas. Dentro desse contexto, o papel da educação pela lógica Kantiana perpassa os dois âmbitos, a fim de possibilitar a efetivação do ser humano (PINHEIRO, 2007, p.15). “Tornar-se melhor, educar-se e, sendo mau, produzir em si a moralidade: eis o dever do homem. A educação, portanto, é o maior e o mais árduo problema que pode ser proposto aos homens” (Kant, 2006, p.20). Concluindo, a função da educação para a construção da autonomia do ser humano, tem por finalidade tornar aquilo que ele possui de mais nobre: a capacidade racional. 29 3. EDUCAÇÃO, AUTONOMIA E PRÁTICAS DOCENTES Immanuel Kant, ao relacionar a construção do ser autônomo ao ligamento da capacidade de raciocinar sem sofrer influência de meios externos, acreditou que seja de suma importância dialogar com o conceito de autonomia em Paulo Freire, levando-se em conta a opção em discutir autonomia e relacionar o mesmo à Kant, devido à importância da sua obra no cenário educacional brasileiro e mundial, ao ser considerado o patrono da educação brasileira, e ter grande notoriedade no meio acadêmico. Para construir uma reflexão em torno da autonomia e da liberdade a partir de Freire, é importante destacarmos o que os parâmetros curriculares nacionais (PCN) orientam-nos em torno desse tema: “a autonomia é tomada ao mesmo tempo como a capacidade a ser desenvolvida pelos alunos e como princípio didático geral, orientador das práticas pedagógicas” (PCN, vol:1, p. 94). As práticas educacionais necessitam possibilitar mecanismos que levem à reflexão e consequentemente à aquisição da autonomia. Dentro dessa questão, Paulo Freire, mais que um educador, um pensador comprometido com a vida, com a existência, orienta-nos a buscar a liberdade humana a qual está presa, amarrada à consciência da classe dominante. Essa classe não pode lutar pela libertação dos trabalhadores por que seria propôr o fim de sua hegemonia. Falar em hegemonia e contra-hegemonia é pensar no antagonismo entre as classes sociais que, a partir de sua posição dominante ou subalterna no interior da sociedade e do Estado de classes, exercem, sofrem e disputam permanentemente o poder (Dantas, 2008). Cabe então, ao trabalhador, ao oprimido, usando da retórica Freiriana, lutar pela sua libertação e, consequentemente a do patrão, a do opressor: “Hegelianamente diríamos: a verdade do opressor reside na consciência do oprimido”. (FIORI in FREIRE, 1982, p. 04). Assim sendo, a autonomia é, portanto, um processo dialético de construção da subjetividade individual, que depende das relações interpessoais desenvolvidas no espaço vivencial. Consiste no amadurecimento dos seres para si, que, como o autêntico vir a ser, não ocorre em data marcada (FREIRE, 1997, p. 121). A autonomia refere-se à capacidade de posicionar-se, participar de projetos coletivos, governar-se, “fala de uma relação emancipada, íntegra com as diferentes dimensões da vida, o que envolve aspectos intelectuais, morais, afetivos e sociopolíticos” (PCN, Vol 1, p.94/95), ou seja: “Está centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade” ((FREIRE, 1997, p. 121). 30 A educação tradicional, “é uma proposta de educação centrada no professor, cuja função define-se como a de vigiar e aconselhar os alunos, corrigir e ensinar a matéria” (PCN, vol 1, p.39), exatamente ao que Freire se opõe, que constitui em um processo de heteronomia e de opressão pela classe dominante. “A opressão, realidade histórica concreta da qual parte da humanidade é vítima, é a negação da vocação do homem de “ser mais” (FREIRE, 1983, p.35). Paulo Freire, no livro “Pedagogia da Autonomia” afirma que o educador que trabalha com crianças deve “estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia” (FREIRE, 2000a, p. 78), pois o sentido de autonomia como princípio, consiste na construção de seus próprios conhecimentos, valorizar suas experiências, seus conhecimentos prévios e a interação entre professor-aluno e aluno-aluno, viabilizando por outrem situações dirigidas pelo próprio aluno e constituindo assim a autonomia ao governar-se (PCN, vol 1, p.94), possibilitando situações que enfatizam uma educação libertadora ao permitir a desconstrução da alienação em que se encontram. Para Freire, uma educação popular e verdadeiramente libertadora, se constrói a partir de uma educação problematizadora, alicerçada em perguntas provocadoras de novas respostas, no diálogo crítico, libertador, na tomada de consciência de sua condição existencial. A tal investigação Freire chamou de “universo temático”, que consiste em um conjunto de temas geradores. Estes, segundo Paulo Freire, “chamam-se geradores porque, qualquer que seja a natureza de sua compreensão como a ação por eles provocada, contém em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas” (FREIRE, 1982, p. 110), sobre os níveis de percepção da realidade do oprimido e de sua visão de mundo e sobre as relações homens-mundo e homens- homens para uma posterior discussão de criação e recriação. Freire observou que dentro de cada sociedade existem temas geradores a serem discutidos que se subdividem de acordo com a época e o local. E, a sua inexistência, aparente ou oculta, “pode significar, já, a existência de uma ‘situação-limite’ de opressão em que os homens encontram-se mais imersos que emersos” (FREIRE, 1982, p. 112), ou pode significar ainda a existência do tema do silêncio. Freire aprofunda a questão afirmando que o medo da liberdade, impresso nos oprimidos ao longo de sua vida, levam-lhes a assumir mecanismos de defesa e, “através de racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental e negam a realidade concreta” (ibid., p. 112). Assim, sua tendência é ficar na periferia dos problemas, evitando o confronto com o problema. Essa questão irá iniciar-se pela busca, pelo questionamento e investigação acerca do tema gerador: situações existenciais, concretas, que encontram-se “codificadas” pela realidade, para então chegar à “descodificação”, “análise e 31 consequente reconstituição da situação vivida: reflexo, e abertura de possibilidades concretas de ultrapassagem” (FIORI in FREIRE, 1982. p. 05). 3.1 O contexto político histórico da pedagogia do oprimido de Freire. A fim de contextualizar politicamente a proposta da “Pedagogia do oprimido” de Paulo Freire, é necessário entender o seu contexto político e alguns de seus pressupostos teóricos. Paulo Freire é parte e fruto de um movimento histórico conhecido como educação popular. A educação popular tem as bases de seu surgimento lançadas na década de cinquenta. Ele (FREIRE; NOGUEIRA, 1999, p.16) enumera três fatores históricos que contribuíram para seu surgimento: 1. O populismo: a partir da crítica às manobras de políticos de grandes partidos, que utilizavam às massas conforme suas conveniências para dar verniz de participação popular aos regimes populistas da época começam a surgir concepções orientadas de educação. 2. A industrialização: que expulsou milhares de pessoas do campo para cidade e, com isso, proporcionou grande apelo na sociedade para educar essas pessoas, tendo em vista o progresso econômico do país. Contudo, percebeu-se que a escola não conseguia cumprir essa tarefa e havendo a necessidade de, então, pensar em outros processos educativos. 3. A relação estreita, que era enfatizada na época, entre educação e transformação social para o progresso da nova sociedade industrial que surgia. A partir dessa conjuntura, as pessoas que trabalhavam com grupos populares passaram a disputar as concepções educativas da época. Uma dessas disputas era travada pela “reinvenção da escola” (FREIRE; NOGUEIRA, 1999, p. 60) que irá caracterizar-se pela oposição ao tradicionalismo pedagógico existencial da época, em contramão a uma educação que buscava conscientizados para servir de mão de obra aos opressores, aos que causam sua miséria. O ato de desistir dessa escola era encarado como resistência cultural, e não evasão escolar, como se define na conjuntura atual. Aquele que é marginalizado por um sistema desigual e não frequenta os bancos escolares, é, na maior parte das vezes ou mesmo na sua totalidade, a vassalagem servil perante o sistema opressor dominante, e é o que irá ocasionar nos resultados a evasão nos dias atuais. Outro conceito que foi reinventado à época foi o de ação cultural (FREIRE; NOGUEIRA, 1999, p. 61). A cultura seria “entendida também dentro dos movimentos e 32 relações sociais dos homens”. Para as pessoas que trabalhavam com os grupos populares seria errado conceber a cultura apenas como aquilo que estava dentro dos livros e museus, deveria ser considerado também “os gestos das pessoas se esforçando nos grupos e nos trabalhos”. Ou seja, a cultura não deveria ser algo estático, produzido pela mente de alguns iluminados, mas todo o conjunto de trabalhos realizados pelos homens e mulheres, bem como suas relações para se compreenderem nesse itinerário, não restringindo a cultura apenas ao que a burguesia produz, mas valorizá-la quando produzida nas outras esferas da sociedade, ou seja, a cultura proletária. A partir desse movimento de diversos intelectuais militantes que junto com os movimentos sociais populares construíram concepções críticas acerca da educação, da escola, da cultura e da ação para transformação social, surge a educação popular. No mesmo sentido, Aduz Alder Julio Calado (2007) “Nesse terreno, a Educação Popular na perspectiva freireana revela-se por excelência, o lugar de formação dos Movimentos Sociais Populares comprometidos com as lutas por uma nova sociedade.” Paulo Freire (NOGUEIRA, 1999, p.19) entendeu esse movimento como sendo um esforço de mobilização, organização e capacitação científica e técnica das classes populares, visando a transformar a organização do poder burguês para que se possa reinventar a escola. Ele concebia que havia diferentes graus nesse esforço de mobilização da educação popular. Num primeiro momento, as pessoas aglutinam-se para discutir seus problemas individuais, mesmo sem a pretensão de mudar a sociedade como um todo. Num momento posterior, reflete-se sobre aqueles problemas individuais que estão inseridos num contexto maior da comunidade e que a solução deles talvez tenha que passar por uma ampliação das discussões, chegando a níveis mais amplos de concepção da realidade e da necessidade de transformação social. “A opressão é uma realidade “desumanizante” que atinge aos que oprimem e aos oprimidos” (ibid., p. 35). A humanização é resultado da ação da própria humanidade, é o homem que se faz homem, e isso só é possível porque possui liberdade. Para Freire (ibid., p. 52), “a consciência do oprimido se encontra geralmente dentro de um mundo mágico e mítico, o que faz com que o destino, a sina, a vontade de Deus, sejam postos como causa da opressão”. A humanização e desumanização fazem parte do mesmo processo histórico, apenas a primeira é a vocação dos homens, “afirmada no anseio de liberdade, de justiça e de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada” (FREIRE, 2010, p. 32). Essa relação dialética estabelecida entre opressores e oprimidos, a qual irá nos remeter a um processo contínuo de desumanização, leva aos oprimidos, cedo ou tarde, a lutarem 33 contra quem os fez menos. Mas a superação dessa situação, alerta ele, dar-se-á somente quando os oprimidos, ao buscarem a restauração de sua humanidade, libertarem a si e aos opressores (FREIRE, 2010, p.33). Essa restauração da liberdade não virá por acaso, “mas pela ação contra as causas da opressão e pela reflexão acerca da mesma por parte dos oprimidos e daqueles que com eles solidarizam-se na luta pela recuperação de sua humanidade” (ibid., p. 34). Esse projeto de transformação social irá possuir em sua sinopse duas etapas: a primeira em que os espoliados vão descobrindo a opressão de maneira crítica e comprometem-se como sujeitos de sua transformação, e a segunda em que, ultrapassada essa situação, passa a ser a “pedagogia dos homens em processo de permanente libertação” (FREIRE, 2010, p. 46), criando uma contra hegemonia política cultural economia em contrapartida à hegemonia dominante do opressor, que é a burguesa. Nesse sentido, Freire (1997, p. 7) já afirmava na década de noventa: “As tramas, os fatos, os debates, discussões, projetos, experiências, diálogos de que participei nos anos 70, tendo a Pedagogia do oprimido como centro me parece tão atual quanto outro a que me refiro dos anos 80 e de hoje.” Paulo Freire, como autor de influência marxista, defendeu a necessidade de “transformação das condições objetivas da situação concreta que gera a opressão” sem dispensar o papel da subjetividade nessas lutas (FREIRE, 2010, p. 40). Isso quer dizer que deve haver a superação das relações econômicas que geram o enriquecimento de poucos com a opressão e o trabalho de muitos e, para isso, é necessário o engajamento humano, apesar das dificuldades desse processo, devido os sujeitos encarregados da transformação das relações sociais, os oprimidos, “hospedarem o opressor em si” (ibid., p. 34). Os valores que sustentam a manutenção das relações vigentes, em que há opressão humana, são difundidos culturalmente pela classe e grupos dominantes através de seus instrumentos ideológicos como a educação escolar, a mídia, a Igreja etc. Segundo Freire, estão inseridos nesse contexto e, portanto, são afetados pelo mesmo pensamento de ascensão na vida através da exploração alheia, a superação desta situação só será possível quando os oprimidos descobrirem-se hospedeiros do opressor, tendo a pedagogia do oprimido como um dos meios para que isto aconteça, salientando a importância e a relevância do papel da educação como mecanismo criador de possibilidades de revelação do oprimido por tal pensamento. Freire ressalta que não basta o mero reconhecimento da situação de exploração para a transformação dessa realidade (FREIRE, 1997, p. 16), pois: “Reconhecerem-se, a este nível, contrários ao outro, não significa ainda lutar pela superação da contradição” (FREIRE, 2010, p. 35), pois pode, inclusive, significar o desejo de ocupar a posição do outro, do opressor. Nesse caso, não haveria superação da realidade opressora, apenas troca de postos. 34 3.2 A crítica à concepção de educação bancária e a oposição à Heteronomia. Paulo Freire em Pedagogia da autonomia afirma que o educador que trabalha com crianças deve estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, como já mencionamos anteriormente, pois, a “autonomia está relacionada com a libertação”. Já heteronomia é a condição de um indivíduo ou grupo social que se encontra em situação de opressão, de alienação, situação em que se é “ser para outro.” (ibid., p. 38). A concepção bancária de educação nega o diálogo, à medida que na prática pedagógica prevalecem poucas palavras, já que “o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados” (FREIRE, 2005, p. 68). Desse modo, vemos que o desobediente nunca é o educador, mas, sim, o educando, aquele que precisa ser ensinado a não violar as regras impostas. Entendemos que o professor irá “depositar” (vem daí a ideia de “bancária”) os conteúdos em suas cabeças, como se fossem recipientes a serem preenchidos. A educação bancária não é libertadora, mas, sim, opressora, pois não busca a conscientização de seus educandos. Nesse caso, a educação “é puro treino, é pura transferência de conteúdo, é quase adestramento, é puro exercício de adaptação ao mundo” (Freire, 2000, p. 101). Podemos definir essa prática de um ensino verbal como uma herança deixada pelos primeiros educadores (os jesuítas), caracterizada pela repetição e pela memorização sem criticidade. Para Freire, a inexperiência democrática está vinculada diretamente à nossa herança histórica de uma educação de caráter verbal e desumanizante, que é capaz de se sustentar na prática pedagógica até os dias de hoje. Principalmente nas sociedades latino- americanas, que apresentam um sistema educacional precário, as escolas têm o objetivo de manter o status quo, resultando em altas taxas de analfabetismo (FREIRE, 2001b). Isso só é possível de continuar ao longo do tempo, devido ao fato de que, segundo Foucault (2010), a dominação deixa marcas nos corpos, pois está vinculada a obrigações e direitos. Um professor autoritário e opressor que impõe seu conhecimento numa relação vertical e não dialógica, desconsidera o meio social e faz com que surjam marcas no corpo do aluno. Essa educação se opõe ao processo de uma educação onde a autonomia está vigente, ela se caracteriza como processo de educação baseada em heteronomia. O professor que visa buscar uma educação libertadora com base nos conceitos de autonomia Freiriana, irá possuir o notório saber, que seus educandos não são seus “recipientes 35 dóceis de depósitos” (Freire, 2005, p. 80), pois, na educação libertadora, eles são investigadores críticos que possuem um diálogo constante com o professor. São vistos como seres reflexivos, críticos e criadores. Portanto, diz o autor, a educação libertadora é diferente de uma educação domesticadora, pois não aceita o homem solto e desligado do mundo, já que a realidade é feita por seus próprios homens. É que “se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a ‘educação bancária’ pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação” (ibid., p. 71). Freire (2004) ressalta que, enquanto a educação bancária tem como objetivo realizar uma divisão entre “os que sabem e os que não sabem, entre oprimidos e opressores”, negando o diálogo, a educação problematizadora, em contrapartida, “funda-se justamente na relação dialógico-dialética entre educador e educando: ambos aprendem juntos” (ibid., p. 69). A libertação acontece por meio de uma educação que desenvolve a consciência e a humanização nos educandos e educadores, possibilitando a superação da opressão, da domesticação e da adaptação. A educação bancária mantém a “inconciliação entre educador-educando” (FREIRE, 1983, p. 71) e também sugere uma “dicotomia inexistente homens-mundo”, na medida em que põe os homens como meros “espectadores e não recriadores do mundo” (apud ZATTI, p.47/48). Para Freire (Idem, p. 37), educar é substantivamente formar, por isso o ensino dos conteúdos não pode se dar alheio à formação moral e estética do educando. Um ensino tecnicista, que visa apenas o treinamento, diminui o que há de fundamentalmente humano na educação, o seu caráter formador. Em Freire, a construção da autonomia passa pela conscientização, ele propõe a conscientização como um esforço de “conhecimento crítico dos obstáculos” que impedem a transformação do mundo, que impedem a superação das condições de heteronomia. Paulo Freire propõe uma pedagogia da autonomia na medida em que sua proposta está “fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando” (idem, p. 11). A temática da autonomia em Paulo Freire tem um sentido sócio-político pedagógico: “autonomia é a condição sócio-histórica de um povo ou pessoa que tenha se libertado, se emancipado, das opressões que restringem ou anulam sua liberdade de determinação” (ZATTI, 2007, p.53). Dentro dessa questão “A libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca, pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela” (FREIRE, 1983, p.32). 36 Segundo ZATTI (2007), “A concepção de educação de Freire está fundada no caráter inconcluso do ser humano. O homem não nasce homem, ele se forma homem pela educação. Por isso educação é formação” (ibid., p. 53). O que quero dizer é que a educação, como formação, como processo de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, se tornou, ao longo da aventura no mundo dos seres humanos uma conotação de sua natureza, gestando-se na história, como a vocação para a humanização [...] (FREIRE, 2003a, p. 20). O homem é inacabado e possui consciência de seu “inacabamento”, isso é importante para que ele se torne autônomo. Segundo Freire, (Idem, p.56), “com a liberdade o ser humano foi transformando a vida em existência e o suporte em mundo”. 3.3 Convergências teóricas entre Kant e Freire Para Kant, ser autônomo é guiar-se pela própria razão, ou seja, pensar por si mesmo. Isto não significa ter apreendido muito conhecimento no sentido de adquirir conteúdo, mas a busca da moralização (sentido) da ação humana por um processo racional, estabelecendo um princípio universal. Através deste processo racional autônomo, o homem consegue sair da menoridade e se esclarecer. Em Kant, a educação que possibilita a autonomia é a educação racional do homem. A ação racional é o bem constitutivo, só ela tem dignidade. O homem não tem instinto e precisa guiar-se pelos projetos de sua própria razão, a ação racionalmente dirigida permite ao homem ser construtor de si. A educação deve acostumar o homem a obedecer aos preceitos da razão para que ele possa ser autônomo. Analisando a obra de Paulo Freire, ele apresenta fragmentos da “Pedagogia kantiana”, ao citar a passagem da heteronomia para a autonomia pela qual o educando passa, porém Paulo Freire não apresenta um sistema filosófico idealista como o de Kant, mas uma agregação do materialismo histórico-dialético e da ontologia, quando apresenta a autonomia como ser para si a partir de uma concepção sócio-político-pedagógica, ele imprime um conceito de autonomia com caráter ontológico (enquanto modo-de-ser do ente) e fenomenológico (enquanto fenômeno a ser abstraído pelos sujeitos lançados no mundo), sendo autonomia uma condição histórica de um povo emancipado. Freire apresenta um caráter materialista (por partir do concreto “um povo alienado por alguns fatores socioeconômicos e culturais”), histórico (somos seres condicionados por nossa história, porém não determinados, pois a história é tempo de possibilidade) e dialético porque 37 parte de algo em constante transformação nada é eterno, não existe um princípio e um fim, tudo está sujeito ao contexto histórico e dinâmico, com percepção total da realidade social e de sua implicação na linguagem, pensamento e ações dos indivíduos. “A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. (...) É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade” (FREIRE, 1996, p. 107). Assim sendo, a autonomia está relacionada ao modo de manifestação do ser para si, a heteronomia apresenta o ser para outro (modo-de-ser do ente, ontologia), ou seja, apresenta as condições sócio-históricas (materialismo histórico dialético) nas quais o educando está imerso, sendo preciso o indivíduo transcender da heteronomia para a autonomia (ZATTI, 2007). A teoria de Freire sobre a autonomia apresenta uma educação que passa a ser dialógica, entre sujeitos que com curiosidade epistemológica e rigor metódico, visam o método como o caminho para a construção do saber e não como mero tecnicismo, agem e refletem sobre suas ações, para após a reflexão crítica transcenderem a curiosidade ingênua e conhecendo e assumindo como se é, para, a partir disso, partirem para a prática com a intencionalidade de mudança, ou seja, o pensamento que se torna práxis para a emancipação e criticidade dos educandos. Em Freire, fazer a si implica em fazer- se intersubjetivamente. “O sujeito, em todas as suas dimensões, constrói-se na relação coletiva, sem nada subtrair da dimensão individual. Ao contrário, o coletivo realiza o individual assim como o individual realiza o coletivo” (BECKER, 1998, apud ZATTI, p.67). Umas das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir- se. Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva por que é capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. “É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu”. (FREIRE, 1996, p.41) Assim sendo, sabemos que não podemos pensar uma sociedade e indivíduos que se fazem autonomamente a partir de uma racionalidade pura, e nem pensar uma autonomia absoluta que é garantida pela racionalidade. Freire sabe disso, mas também reconhece a importância da racionalidade ao se manifestar tantas vezes contra o irracionalismo. Também afirma que a educação deve ser usada com acento cada vez maior de racionalidade (Idem p. 38 90). Tanto para Freire quanto para Kant, o homem é construtor de si. A diferença é que para Kant o homem retira de si, da própria razão, os meios para se fazer homem, já em Freire é a ação dialógica feita no mundo com os outros que possibilita a própria construção. Há em Kant intersubjetividade na medida em que o sujeito pensa o universal, o imperativo categórico busca a intersubjetividade e, ao agir por dever já estou com os outros. Assim, a partir do pensamento de Kant, o homem autônomo ao obedecer aos preceitos da razão universal estaria sendo espontaneamente intersubjetivo. 3.4 A questão dos Círculos Culturais Os temas surgem após uma pesquisa prévia do universo das palavras faladas no meio cultural do educando. Desse meio são extraídos os vocábulos de maior possibilidade fonêmica e carga semântica. Essas palavras são chamadas de geradoras porque proporcionam a formação de outras. Aprender a dizer a palavra possibilita ao homem excluído do sistema capitalista entendê-lo, pensá-lo, decifrá-lo, decodificá-lo. Os temas geradores, que podem partir do mais geral para o particular, envolvem situações-limites em que os homens se acham “reduzidos” a uma fronteira entre o ser e o ser- mais de opressão em que as consciências dos homens se encontram “imersos”. Faz parte de uma metodologia conscientizadora que possibilita aos homens uma forma crítica de pensarem seu mundo e de se humanizarem, pois falta aos homens uma compreensão crítica da totalidade, captada apenas em pedaços pela sua consciência. Por esse motivo que a ideia de “Círculo de Cultura”, foi um dos recursos didáticos apropriados para superar a rigidez curricular do formalismo escolar e propiciar as condições indispensáveis para que seus integrantes, professores e alunos/educandos e educadores, sintam-se familiarizados para discutir temas significativos de mútuo interesse sem que estes fossem pré-estabelecidos por um regulamento curricular estático. O Círculo de Cultura desencadearia a efervescência cognitiva em torno dos problemas inerentes a um mesmo universo cultural comum, no qual os participantes poderiam refletir criticamente sobre o que antes era espontaneidade das suas atitudes cotidianas: “É que todas estas reações orais que se vão dando durante as discussões nos Círculos de Cultura, devem ser transformadas em textos que, entregues aos alfabetizandos, passam a ser por eles discutidos” (FREIRE, 1981, p. 19). Assim, o Círculo de Cultura é o local propício em que se encontram as condições favoráveis para que um grupo, em profundo processo de comunhão em torno do mútuo aprendizado, pudesse produzir conhecimento a partir dos elementos da sua cultura, os quais se tornariam sinônimos de 39 resistência às imposições da cultura dominante, a qual Freire denomina de “invasão cultural” (FREIRE, 1987, p. 49). Por isso, toda e qualquer prática educativa que se diga libertadora e comprometida com os reais problemas do povo não pode ser invasiva, mas sim, considerar a perspectiva permanente de “síntese cultural”. A síntese cultural é a investigação que vai constituindo o clima da criatividade, e que tende a desenvolver-se nas etapas seguintes da ação. Segundo Freire, uma educação popular e verdadeiramente libertadora constrói-se a partir de uma educação problematizadora, alicerçada em perguntas provocadoras de novas respostas, no diálogo crítico, libertador, na tomada de consciência de sua condição existencial. Tal investigação ele chamou de “universo temático”, que consiste em um conjunto de “temas geradores” sobre os níveis de percepção da realidade do oprimido e de sua visão de mundo sobre as relações homens/mundo e homens/homens para uma posterior discussão de criação e recriação. Para Paulo Freire, dentro de cada sociedade existem temas geradores a serem discutidos que se subdividem de acordo com a época e a localidade. E a sua inexistência, aparente ou oculta, “pode significar já, a existência de uma ‘situação-limite’ de opressão em que os homens se encontram mais imersos, que emersos” (FREIRE, 1982, p. 112). Ou pode significar ainda a existência do tema do silêncio. Freire aprofunda a questão afirmando que os medos da liberdade, impresso nos oprimidos ao longo de sua vida, os levam a assumir mecanismos de defesa e, “através de racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental e negam a realidade concreta” (FREIRE, 1982, p. 112). Assim, sua tendência é ficar na periferia dos problemas evitando o confronto com o problema. O ponto de partida freiriano inicia-se pela busca e pela investigação acerca do tema gerador: situações existenciais, concretas, que se encontram “codificadas” pela realidade, para então chegarem à “descodificação”: “análise e consequente reconstituição da situação vivida: reflexo, reflexão e abertura de possibilidades concretas de ultrapassagem” (FIORI in FREIRE, 1982. p. 05). Ou ainda uma proposta de reflexão que parte abstratamente até o concreto, uma ida das partes ao todo, sem esquecer-se de uma volta destes às partes. Tal processo levará o reconhecimento do sujeito no objeto, ou seja, fará com que o homem perceba a sua situação existencial concreta e a sua historicidade. O universo que antes era fechado agora vai abrindo-se a uma nova realidade. Segundo Paulo Freire, o Círculo de Cultura constituía-se numa estratégia da educação libertadora. Nele não haveria lugar para o professor bancário que tudo sabe, nem às aulas discursivas, o aluno passivo que nada sabe, a escola tradicional ou os programas alienados. Em seu lugar haveria o coordenador de debates, o diálogo, o participante de grupo e 40 finalmente programação compacta, reduzida e sobre tudo codificada em unidades de aprendizagem por meio do debate, do aclaramento de situações ocultas para com os oprimidos. O Círculo de Cultura seria um local onde todos tenham a palavra, onde todos leem e escrevem o mundo à sua volta. Um espaço de trabalho, pesquisa, exposição de práticas, dinâmicas, vivências que possibilitam a construção coletiva do conhecimento. Cabe ressaltarmos perante essa questão que: “no círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende- se em “reciprocidade de consciências”; não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas” (FIORI in FREIRE, 1982, p. 06). Assim, o Círculo de Cultura visa promover o processo de aprendizagem da leitura e da escrita e se realiza no interior do debate sobre questões centrais do cotidiano como: trabalho, cidadania, alimentação, saúde, esporte, organização das pessoas, liberdade, felicidade, valores éticos, política, opressão, economia, direitos sociais, religiosidade, cultura, entre outros. O importante na educação libertadora para Freire, é que os homens “sintam-se sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão de mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros”. (FREIRE, 1982, p. 141). A partir dessa conjuntura, podemos concluir embasados em Freire e Kant, que pensar a educação para a construção da autonomia, é um processo de formação contínua em que o homem faz a si próprio de acordo com projetos que estabelece racional e livremente para si, sendo a educação indispensável para o homem conquistar sua autonomia. Podemos dizer que a possibilidade de formação do sujeito constitui o núcleo do pensamento educacional de ambos, afirmando e reafirmando a importância para que todos tenham acesso à uma educação libertadora e de qualidade. “A educação possui um papel político na transformação das realidades injustas e opressoras, que aniquilam o humano, que massificam e impõem heteronomias.” (ZATTI, 2007, p. 78) 3.5 O Contexto histórico e político do pensamento Gramsciano Durante o século XIX, período de grande expansão do capitalismo e dos ideais políticos liberais, diversas partes da Europa foram alcançadas com essas novas perspectivas, promovendo um tempo de grandes transformações. Na Península Itálica, essas mudanças ganharam impacto e notoriedade, quando a grande burguesia nacional mostrou-se interessada em unificar os seus territórios com o objetivo de poder explorar os seus mercados e obter 41 lucros, através da expansão territorial. No entanto, a região era dividida em vários estados absolutistas ou tinham parte dos seus territórios dominados por outras nações. Após a conquista desses territórios com a “unificação italiana”, Gramsci chamava a atenção para a “questão meridional”, um conjunto de fatores geográficos, sociais, políticos, econômicos e religiosos que deu origem ao nome. Uma região pobre, que tinha o “estigma de sempre possuir uma terra improdutiva e estéril e um clima inóspito” (JESUS, 1998, p. 05). Gramsci, diante de suas inquietações, acreditava na existência de uma dupla constituição econômica: “uma que funcionava para os capitalistas do Norte, outra, de poupança, para o sul” (Ibid., p. 07). Para ele (Gramsci), a causa histórica daquele atraso ao sul era política, que ocasionou as diferenças e divisões regionais. Ao Norte existia uma burguesia organizada economicamente, muito similar com as dos demais estados europeus, enquanto ao sul, se configurava a inexistência de uma burguesia. Segundo Gramsci, a política “levava o dinheiro do Sul para o Norte, provocando a pobreza e a imigração” (Ibid., p.10). Os que lutavam para mudar aquela realidade local e o estado de coisas, os chamados “meridionalistas”, era composta por novos políticos, intelectuais e membros das classes subalternas que procuravam as causas daquele atraso, assim como seus responsáveis e a possível resolução do problema, atribuíam aquele atraso à herança histórica de uma unificação incompleta. Gramsci defendia que a miséria do Mezzogiorno era inexplicável para as massas populares do Norte, que não compreendiam porque a unificação não aconteceu sob uma base de igualdade. Segundo JESUS (1998): “Gramsci definia o “mezzogiorno” como uma grande desagregação social, um grande bloco constituído por três estratos sociais: a grande massa camponesa, amorfa e desagregada, os grandes proprietários de terra e os grandes intelectuais” (Ibid., p.06). Diante desse contexto histórico, político e social, a solução para Gramsci para a “questão meridional”, era a aliança entre operários do Norte e camponeses do Sul. “Essa aliança é a tese central do seu projeto revolucionário” (Ibid., p.11). Nada de problemas relacionados ao clima, ao solo ou a causas antropológicas. Ao salientar as metas dos comunistas, já que Gramsci, liderava o partido comunista italiano, para a solução do problema regional, ele irá sustentar a necessidade de se utilizar os instrumentos de cultura, para se contrapor a essa dominação, “privilegiando a escola, para se chegar à hegemonia, porque a ação política implica a ação educativa organicamente” (Ibid., p.13). A “dominação implica inferioridade. Mas a burguesia de meados do século XIX estava dividida quanto à natureza daquela inferioridade.” (HOBSBAWM, 1996, p.342). Tentativas foram feitas ao modelo da burguesa para distinguir dentro da massa subalterna, alguns que pudessem ascender socialmente, pelo menos a uma posição de baixa classe média, porém a burguesia acreditava 42 em sua maioria, que para os quais não havia “redenção possível”, já que as raízes históricas da meritocracia se configuram desde meados do século XVIII com a ascensão da burguesia. “Sucesso era devido ao mérito pessoal, o fracasso era claramente devido à falta de mérito” (Ibid., p.342). Segundo HOBSBAWM (1996), a tradicional burguesia, puritana e laica, acreditava que o fracasso social, era determinado pelas fraquezas morais e espirituais, e não a falta de inteligência ou a falta de oportunidades que o sistema se causa, pois: “Era evidente que o cérebro era uma necessidade indispensável para o sucesso nos negócios, mas que apenas ele não garantia riquezas ou opiniões sensatas” (Ibid., p. 342). Com sua prisão pelo regime fascista que irá assumir o poder, na Itália, em outubro de 1922, Gramsci começa a escrever as cartas que irá dar origem aos cadernos de cárcere. Diante desse momento histórico e social, o aparato do estado diante da escola, assume papel predominante como aparelho ideológico. “Ao Estado caberia um controle rígido sobre os programas, a escolha e a ação dos professores da escola elementar, de modo que esta preparasse também física e moralmente os futuros soldados da Itália” (HORTA, 2009, p.51). A educação passar a ter uma função específica dentro do fascismo, cabendo a ela, “elevar a capacidade produtiva da nação e criar a classe média de técnicos entre os executores e os dirigentes da produção e o Estado deveria integrar e coordenar a iniciativa privada, substituindo-a onde ela faltasse” (Ibid., p.51). Os cadernos trazem em sua tônica, o conceito de hegemonia e as implicações e meios necessários para a classe subalterna chegar a ser dirigente, defendendo a importância de se reconhecer o território do inimigo, a partir do estudo do sistema hegemônico dos estados e sua estruturação sócio política. Para Gramsci, a hegemonia operária implica uma conscientização revolucionária do processo, que tem como principais agentes o partido, em nível coletivo, e a escola, em nível molecular. Se a classe operária encontrava-se ou encontra-se despreparada culturalmente para realizar a transição através do processo revolucionário e assumir o poder, a solução era se contrapor aos modelos pré-estabelecidos culturalmente e politicamente e, difundir uma nova concepção de mundo, difundir uma “nova Cultura”. Os cadernos apresentam a “relação hegemônica em seu aspecto mais geral, como uma ciência da educação do homem, isto é, implicando uma ação educativa para o desenvolvimento da autoconsciência” (JESUS, 1998, p 41). Para esse desenvolvimento da autoconsciência, a escola tem um papel motor para que haja essa construção, sendo ferramenta de grande importância para criar uma nova cultura para se contrapor à existente, criada e mantida pela classe dominante burguesa. Gramsci 43 reconheceu a escola como um importante instrumento de construção da consciência coletiva e individual, “é o elemento específico que assegura e condiciona o valor propriamente humano de qualquer relação social. Por isso, a relação pedagógica é orgânica à relação hegemônica” (Ibid., p.42). Manacorda faz uma observação que “os temas pedagógicos não aparecem de início, entre os grandes temas de estudo que Gramsci propôs em várias ocasiões, no cárcere” (MANACORDA 1977, p.57 apud JESUS, p.42). Os grandes temas pedagógicos serão tratados especificamente apenas no caderno de número doze, escrito em 1921, um caderno especial, aonde Gramsci irá “passar a limpo”, modificando algumas notas existentes, trazendo novos pensamentos e concepção sobre educação e escola. “Sem dúvida, o documento mais importante e fundamental para quem se interessa pela concepção de Gramsci sobre a escola” (NOSELLA, 1989, p.187 apud JESUS, p. 42) 3.6 Pensamento, prática e educação em Gramsci Antônio Gramsci (1979) analisa a influência do Estado na concepção da cultura, sendo a mesma vista como uma estrutura de “adestramento” da massa. Embora Gramsci esteja analisando a particularidade italiana, encontramos uma linha em comum com a brasileira já que, assim como a Itália, que sofreu seu processo de unificação tardio, o Brasil é um país de desenvolvimento capitalista atrasado. No campo da cultura Gramsci, preocupa-se com a cultura em termos amplos, bem mais expansiva, e não unicamente ligada à cultura política. Preocupa-se também com a Cultura Política, necessária, na sua visão, ao desenvolvimento da humanidade. Segundo ele, cultura e Política são duas vias inseparáveis. A cultura é um dos instrumentos das práxis sócio-política, criadora de uma hegemonia, discutível quanto ao seu uso, mas que pode ser utilizada para criar um consenso, e , dessa forma, construir estratégias de acordo com os interesses ideológicos da classe dominante. Desta maneira, Gramsci é pontual a respeito do papel da escola. Para ele a escola não corresponde à dinâmica social, preocupada apenas em responder a uma cultura industrial e reafirmar a hegemonia de uma classe burguesa que transforma diferenças em desigualdades. A escola, por ser uma estrutura ligada ao âmbito do Estado, tem sua autonomia posta em contradição, pois é criadora de consenso comum, pautada nas ideologias do Estado Burguês. Esse Estado, mais plausivelmente o brasileiro, é, na interpretação de Florestan Fermandes (2002), uma extensão de interesses patriarcais. 44 Ao enlaçar-se à fundação de um Estado independente e à constituição de uma sociedade nacional, a dominação patrimonialista passou a preencher funções que colidiam com as estruturas sociais herdadas da Colônia, com base nas quais ela própria se organizava e se legitimava socialmente e as quais ela deveria resguardar e fortalecer (Fernandes, 2002, p.1543). Gramsci (1979) reitera a criação de uma escola única, de sentido humanista, destinada a criar um espaço livre para aquisição de uma cultura geral, bem como a concepção de educar para a vida. Na formação geral, destacando-se filosofia, história e língua nacional, ocupa posição privilegiada, visto que constitui instrumento imprescindível à análise, elaboração e expressão da concepção de mundo propulsora de ação coletiva para a transformação da sociedade. Realizando, através da conscientização reflexivo-filosófica, uma crítica aos conteúdos do consenso comum e criando uma ruptura com seu papel passivo, assumindo a compreensão do papel de ator social. A tendência hoje é a de abolir qualquer tipo de “escola desinteressada” (não imediatamente interessada) e “formativa”, ou conservar delas tão somente um reduzido exemplar destinado a uma pequena elite de senhores e de mulheres que não devem pensar em se preparar para um futuro profissional, bem como a de difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura atividade são predeterminados. A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo. (GRAMSCI, 1979, p. 118). Cabe ao docente, dentro desse contexto histórico social que está inserido, ter ousadia ao compreender a sua importância na elaboração de possibilidades de transformações, buscando ferramentas críticas e reflexivas de oposição ao sistema excludente ideológico da classe burguesa, criando estratégias e mecanismos que possibilitem a construção e o desenvolvimento de um sujeito histórico, tendo arrojo às formas e maneiras que possibilitem a aquisição autônoma dentro da sala de aula e do ambiente escolar, opondo-se aos mecanismos de heteronímia pré-estabelecidos, caminhando rumo a uma educação autônoma e consciente sobre o agente transformador da sociedade, o aluno. O desenvolvimento da consciência crítica que Gramsci nos condiciona, desvincula a educação dos papéis heteronômicos, e desempenha um papel fundamental para Gramsci, na 45 consolidação da hegemonia como formulação da contra-hegemonia. Falar em hegemonia e contra-hegemonia é pensar no antagonismo entre as classes sociais que, a partir de sua posição dominante ou subalterna no interior da sociedade e do Estado de classes, exercem, sofrem e disputam permanentemente o poder (Dantas, 2008). Para Gramsci, a hegemonia das classes dominantes passa pela dominação ideológica cultural, cabendo à educação criar a hegemonia da classe trabalhadora para se contrapôr à hegemonia burguesa, gerando a contra- hegemonia na construção de uma concepção de mundo própria da classe trabalhadora para a superação do capitalismo. A escola era, para Gramsci, uma instituição destinada por missão histórica, a preparar o novo intelectual para a sociedade socialista como JESUS (1998) nos esclarece. Marx e Engles, influenciadores das premissas e do pensamento Gramsciano, já em 1848, em o “Manifesto”, defendia a abolição do trabalho das crianças, e a adequação entre trabalho e educação, reivindicando a educação pública e gratuita para todos. “A necessidade de unir instrução e produção, ciência e trabalho, estão presentes nesse documento como a “constatação de um processo real, natural e espontâneo” (MANACORDA, 1976 apud JESUS, p.46)”. Segundo Manacorda (1976), para Marx e Engles, lhes parecia uma ilusão utopista transformar a sociedade pela educação, Engles não negava o valor da educação, mas não acreditava que ela, por si só, mudasse a sociedade. Isso reflete também o pensamento unilateral de Marx, no qual o homem exige, para seu desenvolvimento unilateral, um conjunto de elementos além da escola/educação. Porém, a educação iria permitir aos jovens a possibilidade de assimilar rapidamente, na prática, todo o sistema de produção, permitindo- lhes evoluir de um ramo de produção para o outro, segundo a necessidade da sociedade e suas inclinações sociais. “Por conseguinte, a educação os libertará desde caráter unilateral que a divisão atual do trabalho impõe a cada indivíduo” (MARX, apud JESUS, 1998, p. 46). Esse fundamento na defesa da necessidade do saber, é reconhecê-lo e condicioná-lo como imprescindível para a condição de passar da unilateralidade para onilateralidade do homem, na obtenção de um homem completo e integral, sendo a educação uma arma valiosa e muito importante para acabar com a divisão entre trabalhadores e intelectuais, pois, através dela e por ela, o trabalhador ter