UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” MARCO AURÉLIO RODRIGUES UM CONCEITO PLURAL: a ἄτη na tragédia grega ARARAQUARA – S.P. 2015 MARCO AURÉLIO RODRIGUES UM CONCEITO PLURAL: a ἄτη na tragédia grega Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara e Programa de Pós-Graduação em Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários e Estudos Clássicos (cotutela). Linha de pesquisa: Teorias e Crítica do Drama e Mundo Antigo. Orientadores: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos e Profa. Dra. Maria de Fátima Sousa e Silva. Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES ARARAQUARA – S.P. 2015 MARCO AURÉLIO RODRIGUES UM CONCEITO PLURAL: a ἄτη na tragédia grega Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara e Programa de Pós-Graduação em Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários e Estudos Clássicos (cotutela). Linha de pesquisa: Teorias e Crítica do Drama e Estudos Clássicos. Orientadores: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos e Profa. Dra. Maria de Fátima Sousa e Silva. Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES Data da defesa: 31/07/2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos Faculdade de Ciências e Letras(FCL) Universidade Estadual Paulista Orientadora (cotutela): Profa. Dra. Maria de Fátima Sousa e Silva Faculdade de Letras (FLUC) Universidade de Coimbra. Membro Titular: Prof. Dra. Susana Marques Pereira Faculdade de Letras (FLUC) Universidade de Coimbra. Membro Titular: Prof. Dr. Ricardo de Souza Nogueira Faculdade de Letras da UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Membro Titular: Profa. Dra. Filomena Yoshie Hirata Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Universidade de São Paulo Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Imagem de Capa: Máscara mortuária de Agamêmnon, artefato em ouro, 1550-1500 a.C., Museu Arqueológico Nacional de Atenas, Grécia. Técnica de carvão sobre papel, 2015. À minha família, por tudo e para sempre. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço aos meus pais e irmãos: Mario Nival Rodrigues, Edna Scarpini Rodrigues, Milena Maria Rodrigues, Mário Sérgio Rodrigues e Matheus Eduardo Rodrigues pela confiança e paciência comigo ao longo de todos estes anos. Agradeço também aos meus familiares que sempre demonstraram orgulho e incentivaram meu trabalho. Em particular à minha avó Cezarina Lopes Scarpini, minha tia Elza Scarpini, minha tia Érgia Pereira de Moraes e meu tio Aparecido Pereira de Moraes. Ao meu orientador e amigo Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos, pela confiança em meu trabalho e pelas lições valiosas que carrego para o resto de minha vida. À minha orientadora Profa. Dra. Maria de Fátima Sousa e Silva que, em Coimbra, além de todo esforço para que eu me sentisse em casa, pontuou questões importantes, deu-me motivação e demonstrou confiança em minha capacidade. À Profa. Dra. Filomena Yoshie Hirata por certa vez ter me indagado sobre a ἄτη e, dessa forma, ter feito com que eu me interessasse pelo estudo do conceito. Mas, além disso, por toda gentileza e amabilidade dedicadas a mim ao longo de meu percurso. Aos meus amigos da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, pelos cafés, risadas e conversas. Em particular agradeço a Stefano Stainle, Emerson Cerdas, Gabriele Morais e Lucas Zaffani dos Santos. “De modo geral”, agradeço ao amigo Gesiel Prado e, de modo muito especial, agradeço às minhas queridas irmãs de coração: Cristiane Passafaro Guzzi, Marcela Magalhães, Márcia Regina Rodrigues e Mariana Bravo de Oliveira. Aos professores-amigos da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, em especial à Profa. Dra. Juliana Santini, minha amiga e “porto seguro”, ao Prof. Dr. Brunno Vinícius Gonçalves Vieira e ao Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, amigos e estimados conselheiros. Aos funcionários da Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara pela gentileza, presteza, amizade e paciência que tiveram comigo nos últimos meses de elaboração da tese. Em especial a Ana Paula Meneses Alves, Camila Domingos Peres Serrador, Elaine Martiniano Teixeira, José Luis Avelino, Luciana Viana Dias, Luiz Gustavo Gonçalves, Marcela Rodrigues dos Santos Bassi, Sandra Pedro da Silva e Silva Helena Oliveira. Aos funcionários da Pós-Graduação, em especial a Rita Enedina Benatti Torres, Clara Bombarda, Lidiane Mattos Maurício Garcia, Alzira Aparecida Gomes da Silva Castanharo, Ana Luisa F. S. Borges, Leda Regina Santiago de Oliveira e Natália de Melo Castilho, por terem sido sempre tão gentis comigo e demonstrarem excelente competência na execução de seus trabalhos. Aos funcionários da Gráfica da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara pelo profissionalismo e simpatia. Em especial a Dario Guilherme Pessoa de Azevedo, Janaina Claudia Torres Barbosa e Aos funcionários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, principalmente pela amizade que tornava os dias de trabalhos mais leves e prazerosos. Em especial a Lourdes Rodrigues de Oliveira Derissi, Maria Lúcia Militão da Silva, Iraci Maria Norato Barbosa, Keli Serrano e Larissa Aparecida. Aos funcionários da Universidade de Coimbra e do Instituto de Estudos Clássicos, em especial a Filipa Morão Machado, Neusa Silva, Marta Teixeira Anacleto e Maria Marmé que, com muita gentileza e profissionalismo, acompanharam o processo de cotutela. Aos meus amigos de Araraquara, pessoas que acreditaram no meu esforço, torceram por mim e nunca me desampararam. Agradeço, principalmente, ao meu estimado amigo Pedro Luis Fagá Celli, incentivador do meu trabalho e companheiro de tantas jornadas. Aos meus amigos de Portugal, de modo muito particular a José Carlos Duarte Rodrigues Avelãs Nunes, amigo que, embora distante e também nos momentos finais de sua tese de doutoramento, sempre se mostrou disponível, atento e um excelente ouvinte. Agradeço também por ele ter resolvido compartilhar com o mundo seu talento e ter se oferecido para desenvolver, com muito bom gosto, a capa de minha tese. Aos meus amigos e professores do 2nd Ancient Greek Drama Summer School pelos vinte e três dias de lições, aprendizados e amizades inesquecíveis. Agradeço especialmente a Marios Kallos, por todo carinho, atenção, companheirismo e amizade. Agradeço, por fim, a Capes pela bolsa PDSE de um ano, que me possibilitou uma experiência única em Coimbra-Portugal, além da bolsa de doutorado dos últimos quatro anos. “Se nós agora ou mais tarde prestamos atenção às palavras da língua grega, penetramos num domínio privilegiado. Lentamente, vislumbramos em nossa reflexão que a língua grega não é uma simples língua como as europeias que conhecemos. A língua grega e, somente ela, é lógos...o que é dito na língua grega é, ao mesmo tempo e de modo privilegiado, aquilo que em dizendo se nomeia. [...]” (HEIDEGGER, 1956, p.06) RESUMO Na primeira metade do século XX, E. R. Dodds não apenas estimulou novas perspectivas com o livro The Greeks and the irrational (1953), como tornou-se referência aos futuros estudiosos ao discutir o conceito de ἄτη na Ilíada. Extremamente complexo, o vocábulo ἄτη designa, em primeira instância, um estágio de cegueira do pensamento humano e, mais tarde, a própria desgraça consumada. Suzanne Saïd (1978), acrescenta que, posteriormente, na tragédia clássica, o conceito passaria a fazer referência a toda sorte de infortúnios. Foi R. Doyle (1984) quem fez a análise do conceito em todas as tragédias clássicas, apenas tentando estabelecer seus diferentes sentidos. Dessa forma, a presente tese tem por objetivo defender que o conceito de ἄτη, ao longo da tragédia clássica grega, no século V a.C., passa por mudanças, assumindo diferentes acepções de acordo com o contexto apresentado, podendo, inclusive, ter perdido seu sentido original, aquele que a épica e toda a literatura anterior registravam. Para além disso, ao estar unido a outros termos, o conceito de ἄτη ganha novos contornos e significados diferentes, o que impede que sua tradução seja fixada em um único campo semântico. Daí a proposta, também, de pontuar que sua tradução respeite o uso adequado feito em cada uma das tragédias por seus autores. Para tanto, a tese perpassa todas as tragédias clássicas de Ésquilo Sófocles e Eurípides em que o vocábulo está presente (vinte e oito), nas quais o termo indica mudança ou acréscimo de valor semântico, fato este que será fundamentado na análise da transformação de pensamento do homem grego que, ao longo do século V, passou por mudanças extremas, desde a fundação da democracia e a vitória contra os persas, até o fim da Guerra do Peloponeso, com a queda do poderio ateniense e o desenvolvimento do pensamento racional. Palavras-chave: tragédia grega, ἄτη, Ésquilo, Sófocles, Eurípides ABSTRACT In the first half of the twentieth century, E. R. Dodds not only stimulated new perspectives through the book The Greeks and the irrational (1953), but also has become the benchmark for future scholars to discuss the concept of ἄτη in the Iliad. Extremely complex, the word ἄτη means in the first instance a blinding stage of human thought and, later, the very accomplished disgrace. Suzanne Saïd (1978) adds that later in classical tragedy, the concept would refer to all sorts of misfortunes. It was R. Doyle (1984) who analyzed the concept in all classical tragedies, just trying to establish its different meanings. Thus, this thesis aims to defend that the concept of ἄτη, along the classical Greek tragedy in the fifth century BC, undergoes changes, assuming different meanings according to the context presented, and may even have lost its original meaning, that the epic and all previous literature recorded. In addition, being united with other terms, the concept of ἄτη achieves new contours and different meanings, which prevents its translation to be fixed at a single semantic field. Hence the proposal, also, to point out that the translation respects the proper use made in each of the tragedies by their authors. Therefore, the argument permeates all the classic tragedies of Aeschylus, Sophocles and Euripides in which the word is present (twenty-eight), in which the term indicates change or addition of semantic value, a fact that will be based on the analysis of the transformation of thought of the Greek man, along the fifth century, underwent extreme changes from the foundation of democracy and the victory against the Persians, until the end of the Peloponnesian War, the fall of the Athenian power and the development of rational thought. Keywords: Greek tragedy, ἄτη, Aeschylus, Sophocles, Euripides SUMÁRIO   INTRODUÇÃO ............................................... 13   1.   O CONCEITO DE ATH ........................................ 22   1.1.   O Mito ............................................... 22   1.2.   Mito e Tragédia ...................................... 33   1.3.   O mito da Ἂτη ........................................ 40   1.4.   A expressão do divino ................................ 42   1.5.   A etimologia e semântica da palavra .................. 46   1.6.   O erro trágico e a falta trágica ..................... 50   2.   ANTECEDENTES LITERÁRIOS .................................. 54   2.1. A poesia épica ....................................... 54   2.1.1. O tratamento mítico da Ἄτη: a deusa malévola ..... 55   2.1.2. Influência sobre o líder ......................... 71   2.1.3. Influência sobre outras personagens .............. 78   2.1.4. Influência de ἄτη sobre as mulheres .............. 85   2.2. A poesia didática .................................... 93   2.2.1. O tratamento mítico de Ἄτη: a filha de Ἔρις ...... 95   2.2.2. Vítimas da ἄτη .................................. 100   2.3. Poesia Lírica e os primórdios da historiografia ..... 103   2.3.1. A tétrade: ὄλβος – κόρος - ὕβρις – ἄτη ............ 105   3. A ATH NA TRAGÉDIA GREGA ................................. 130 3.1. A abordagem inovadora de alguns temas tradicionais ... 141 3.1.1. A guerra entre os gregos ......................... 142 3.1.2. As mulheres gregas ............................... 146 3.2. A ἄτη e o contexto bélico ........................... 150 3.3. A ἄτη e o contexto feminino ......................... 234 3.4. A ἄτη e contextos diversos .......................... 329 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................... 383 5. BIBLIOGRAFIA ............................................ 396 5.1. Edições, traduções e comentários .................... 396 5.2. Estudos e referências ............................... 400 6. ÍNDICE REMISSIVO ........................................ 414 13 INTRODUÇÃO Da mesma forma que as duas Grandes Guerras Mundiais transformaram a sociedade atual e, ainda hoje, é possível sentir os impactos que tais eventos tiveram na comunidade internacional, os acontecimentos bélicos na Antiguidade não eram diferentes. Se por um lado as guerras antigas moldaram, de certa forma, a organização espacial do mundo, por outro, foram as principais responsáveis por sólidas mudanças de pensamento, significativas para a reflexão do homem moderno. Não é uma tarefa fácil eleger os momentos precisos em que as grandes mudanças sociais ocorrem; todavia, no século V a.C., as Guerras Médicas, entre persas e gregos, resultaram em transformações profundas, que fizeram os helenos olharem para as suas próprias atitudes e para as dos outros de forma a conseguir distingui-las e estabelecer padrões e posturas em relação aos demais habitantes do mundo, os βάρβαροι. O fato é que a postura que os gregos passam a assumir, a partir de então, contribui para a formação de sua identidade e resulta, em pouco tempo, na configuração daquilo que chamamos de Grécia. em pouco tempo, na configuração daquilo que chamamos de Grécia. No entanto, essa mesma consciência de uma identidade comum não foi suficiente para evitar, em décadas subsequentes, um outro conflito, com contornos de guerra civil, que desta vez fraturava os helenos: a Guerra do Peloponeso. Valores sociais outrora presentes em Homero e Hesíodo passam a agregar novos significados na sociedade grega; muitos deixam um plano de expressão mítica e referente a um modelo arcaico de organização social, para serem incorporados ao novo ideal de mundo dos helenos, nas diferentes πόλεις. Para Adkins (1972, p. 59), ἀρετή, que significa “virtude”, “mérito” próprio do herói, lidera inúmeras outras noções como τιµή “honra”, ἀγαθός “bom”, δίκαιος “justo”, τύχη “fortuna” “boa 14 sorte”, que estavam presentes na sociedade grega. No início do século V a.C., poetas líricos como Baquílides e Píndaro, seguidos pelo tragediógrafo Ésquilo e, mais tarde, por Sófocles e o historiador Heródoto, passariam a valorizar e retomar, em suas criações, conceitos já estabelecidos, porém, a partir de pressupostos culturais diversos. Justamente por causa dessa evolução do pensamento grego, que durante o período clássico encontra amparo nos mais diversos discuros filosóficos e retóricos, é que palavras como ἀρχή “princípio”, “origem” e φύσις “natureza”, “qualidade natural”, “propriedade constitutiva”, que possuem uma proximidade de significados, assumem distintas acepções dentro do contexto em que serão empregadas, estando vinculadas à ideia que o filósofo pretende transmitir através delas. A esse respeito, Moura Neves (2004, p. 25) esclarece que, para Tales (625/4-548/6 a.C.), por exemplo, sendo a água o princípio de todas as coisas, ela é a própria ἀρχή. Por sua vez, Anaximandro (610-547 a.C.) irá empregar a noção de φύσις, pois o sentido de ἀρχή não corresponde ao “princípio” ao qual se refere o filósofo. Sendo assim, à medida que o pensamento exige do homem, a tradição da linguagem já presente na épica homérica e na poesia de Hesíodo vai se adequando às novas correntes, quer elas filosóficas ou retóricas. Em consequência, tais quais suas sociedades, as línguas também sofrem transformações ao longo dos anos. Sobre esse assunto, discorre Yaguello (2001, p. 279): Na língua se inscreve a passagem do tempo. Lentamente, inexoravelmente, a língua evolui. Mas, a cada instante de sua evolução, a língua, enquanto permanece viva, isto é, falada, realiza um sutil equilíbrio entre ganhos e perdas. Ela não é nem jovem nem velha, mas constantemente renovada. [...] 15 O título de βασιλεύς “rei” “governante” e sua carga semântica, por exemplo, que remonta à época micênica, passa a denominar uma nova forma de governante que não mais condiz com aquele soberano deificado de outrora. Acrescenta Vernant (2009, p. 45) que “à imagem do rei, senhor de todo poder, substitui-se a ideia de funções sociais especializadas, diferentes umas das outras e cujo ajustamento cria difíceis problemas de equilíbrio.” À medida que novos ajustes ocorrem, a sociedade passa a apresentar funções sociais mais delineadas, até mesmo rigorosas que, com a efervescência do pensamento religioso no século VI, tornam mais profunda a reflexão moral e política. Nesse âmbito, a ὕβρις, o “excesso” ou “desmedida”, por exemplo, em oposição a δίκη “justiça”, instaura-se no espaço político. O homem que almeja riqueza ou poder de forma descontrolada, ou seja, o homem ὑβριστής, precisa passar por um processo de reequilíbrio e, assim, sua arrogância será extinta. Entretanto, se algumas noções são acrescidas de novas definições, outras como σωφροσύνη “prudência” ou “temperança”, sofreram uma renovação. Segundo Vernant (2009, p. 92), em Homero, o termo não possui um valor específico, é o bom senso, que os deuses restituem a quem o perdeu. Todavia, mesmo passando por um sentido religioso, a σωφροσύνη assume uma significação moral e política distinguida em duas correntes: uma relacionada aos aspectos da salvação individual e outra que está ligada à vida pública, uma forma positiva de política. Assevera Vernant (2009, p. 97) que o papel dos Sábios em traduzir na arte valores sociais da vida grega, passou a apresentar noções novas e modificadas em diversas camadas da vida pública: […] Envolvidos nas lutas civis, preocupados em pôr- lhes um termo por sua obra de legisladores, é em função de uma situação social de fato, no quadro de uma história marcada por um conflito de forças, um choque de grupos, que os Sábios elaboraram sua 16 ética e definiram de maneira positiva as condições que permitem instaurar a ordem no mundo da cidade. O desenvolvimento de um pensamento moral, de uma nova forma de encarar os outros e a si próprios, continuará nessa linha de raciocínio. Outras mudanças, provenientes do século VI, como a instituição dos Festivais Teatrais, trouxeram o espaço oportuno para os homens estabelecerem suas identidades por meio da poesia, da música, por meio de um novo ambiente que surgia e, agora, tornava-se comum a todos, o espaço da πόλις. A tragédia e a comédia tornaram-se, ao longo do século V, o centro do debate de questões próprias da cidade democrática grega. O uso do tema mítico, a par do tema “histórico”, inspirado na realidade imediata, tornava-se o veículo condutor para os poetas exporem também uma nova forma de pensamento. Toda essa evolução cultural tem sido motivo, entre os estudiosos contemporâneos, de inúmeras e oportunas reflexões.1 Dentre diversas expressões do pensamento grego presente na tragédia, o conceito de ἄτη mereceu atenção especial no século XX. Seu cuidado deve-se ao fato de a palavra, que aparece na literatura grega, pela primeira vez, em Homero, tanto na Ilíada como na Odisseia, ter uma recorrência frequente dentro da tragédia 2 , perdendo pouco a pouco seu uso na literatura posterior. Por isso esta tese doutoral pauta-se, principalmente, na frase de Doyle (1984, p. 01) “any study of ἄτη must have Greek tragedy as its center”3. Na tragédia grega, o termo passa por uma expansão de significado. Como esta tese pretende demonstrar, é perceptível que o conceito de ἄτη deixa de possuir a mesma relevância de 1 Vide: PELLING, C. Greek Tragedy and the Historian. Oxford: Clarendon Press, 2001. MCCOSKEY, D. E.; ZAKIN, E.(orgs.) Bound by the City: Greek 2 O conceito de ἄτη não possui nenhuma ocorrência nas comédias de Aristófanes. 3 “qualquer estudo sobre ἄτη deve ter a tragédia grega como seu núcleo.” Todas as traduções, salvo quando devidamente referidas, são de minha lavra. 17 Homero a Eurípides. Segundo Saïd (1976, p. 76), após a tragédia, o termo assume um sentido ainda mais enfraquecido e passa a designar “um temor próprio do homem supersticioso”. Esse fato ganha maior vigor no drama euripidiano, cujo pensamento recebe contornos racionais mais evidentes e influenciados pela contemporaneidade da reflexão socrática. A noção de ἄτη, exposta por Ésquilo, torna-se muito próxima à apresentada por Homero e Hesíodo. Entretanto, para Dodds (1963, p. 38), o termo deixa de significar apenas um “estado de espírito”, para ser aplicado também aos desastres decorrentes da ação da ἄτη sobre o homem. Essa percepção concreta do termo ἄτη possui contornos mais definidos em Sófocles, cujo mote político é evidente. Sendo assim, instaura-se uma nova forma de se conceber o vocábulo. É o que será chamado ao longo deste trabalho de uma noção “subjetiva” e “objetiva” para o termo. O que é perceptível na obra de Sófocles, por exemplo, é que a ἄτη não possui mais o elo profundo de uma responsabilidade “vertical”, face à divindade e ao destino, que marcava a existência do homem em Ésquilo. Não se trata mais de uma “Justiça” que se legitima pela punição de um ato, justificada pela ἄτη. No drama de Sófocles, é possível perceber que os “erros” familiares, morais e sociais, e a ἄτη tornam-se apenas mais um dos muitos pesares que se abatem sobre o ser humano. Muito embora Atena, por exemplo, interfira nas ações de Ájax, suas ações pautam-se em seus próprios atos e escolhas, o que reflete uma condição “horizontal” nas atitudes do ser humano, ou seja, transferir a responsabilidade de um ato para os deuses, e as desgraças decorrentes disso, não são mais ações que se justificam. A mudança que ocorre entre os dois poetas, Ésquilo e Sófocles, ainda é sutil perto do valor que o vocábulo ἄτη assume em Eurípides, muito embora já estejam no autor da Oresteia as evidências destas transformações. 18 Em Eurípides, a palavra ἄτη é atestada apenas 34 vezes em todas as suas tragédias remanescentes, sendo que em algumas o vocábulo não aparece, diferentemente das 38 vezes em que encontramos o termo nas 7 tragédias de Ésquilo. Segundo Romilly (1980, p. 86), as diferenças entre as tragédias, desde Ésquilo até Eurípides, são gritantes. Para a helenista, além das mudanças que envolvam a dinâmica de cena e a escolha do enredo, os universos psicológicos e sociais são outros. No mundo de Eurípides (c. 480-406 a.C.) a guerra entre “compatriotas” é um fato real, a tragédia passa a vivenciar um princípio de decadência e o homem passa a tentar compreender o mundo de maneira lógica, mais racional, sem a preocupação constante de que os deuses são agentes modificadores do ambiente. Agora, novas forças regem a vida humana e, nesse âmbito, a τύχη, “sorte, “fortuna” ou “acaso”, se sobressai como agente influenciador das ações. A esse respeito, Werner (2004, p. LII) esclarece: Dos poetas trágicos, Eurípides é o que mais se preocupa com a ingerência da tykhe nos negócios humanos. Em Troianas, também o comportamento dos deuses não é independente de seus mecanismos. Aos homens nada resta senão assumir determinada postura em face dos acontecimentos. É necessário saber lidar com a tykhe. [...] É a onipresença da tykhe que acaba revelando Odisseu e Helena como “vilões” dotados de um certo caráter positivo, já que não procuram impor algo imortal nos negócios humanos intrinsecamente mortais: eles conseguem preservar suas vidas apesar das ameaças que sofreram; eles navegam procurando as sinuosidades próprias do trajeto da tykhe. De fato, há mudanças consideráveis entre as tragédias de Ésquilo e Eurípides. No entanto, não é possível deixar de citar o importante trabalho de Aélion (1983), pois em uma análise apurada do sentido de ἄτη nas tragédias, já se torna evidente que há muito de Ésquilo na obra de Eurípides. Dessa forma, conclui Aélion (1983, p. 399): 19 Il [Euripide] est aussi l'hériter d'Eschyle, parce qu'il a voulu, comme lui, utiliser les vieux mythes comme une source de méditation sur la condition humaine. Nos analyses ont montré, il est vrai, que sa méditation se développe dans une autre direction que celle d'Eschyle. Euripide n'est pas le poète d'une vérité, il ne parvient pas à trouver ce qui donne un sens à la vie humaine. Mais il ne s'est pas résigné à rester dans l'ignorance et l'obscurité.4 A consideração de Aélion reflete justamente o que se poderá encontrar na análise do conceito de ἄτη nas tragédias de Ésquilo e Eurípides. Embora houvesse outra espécie de preocupação, principalmente sobre a relação entre homem e divindade e um processo de desenvolvimento do pensamento racional, a preocupação com a condição humana torna-se o elo fundamental entre os dois poetas. Como ficará claro na análise das tragédias, será possível perceber que até mesmo o contexto em que se insere a ἄτη nos dois poetas respeita, com frequência, um mesmo grupo de palavras e qualificativos. Portanto, estabelecer a relação entre os três tragediógrafos é, também, conceber os processos pelos quais o vocábulo passou e compreender o sentido que o conceito de ἄτη assumiu em cada uma das tragédias, para depois passar a um sentido globalmente mais restrito. No entanto, não é uma tarefa fácil demonstrar os motivos que fizeram o termo ganhar novas acepções ao longo do século V a.C. Como ponto de partida, pode-se pensar, por exemplo, no que diz Vernant (2008, p. 07) em relação à tragédia: 4 Ele [Eurípides] é o herdeiro de Ésquilo, porque gostaria, como ele, utilizar os velhos mitos como fonte de reflexão sobre a condição humana. Nossas análises mostraram, é verdade, que sua reflexão se desenvolve em uma direção diferente da de Ésquilo. Euripides não é o poeta de uma verdade, ele não consegue encontrar o que dá sentido à vida humana. Mas ele não se resigna a permanecer na ignorância e escuridão. 20 A tragédia surge na Grécia no fim do século VI. Antes mesmo que se passassem cem anos, o veio trágico se tinha esgotado e, quando no século IV, na Poética, procura estabelecer-lhe a teoria, Aristóteles não mais compreende o que é o homem trágico que, por assim dizer, se tornara estranho para ele. Esse homem trágico, ao qual se refere Vernant, é o espectador do teatro de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, mas, também, é o próprio personagem das peças, fato esse que leva ao reconhecimento da cidade diante do espetáculo encenado. Ora, se esse homem trágico acaba por, gradativamente, desaparecer, é importante estabelecer que relação o conceito de ἄτη possuía com esse homem e a nova forma de encarar o mundo, própria do século V.a.C. No primeiro capítulo, denominado O CONCEITO DE ATH, explora-se, de modo geral, as diversas possibilidades de tradução para o conceito, principalmente as definições dadas pelos dicionários e algumas questões ligadas ao mito. No segundo capítulo, denominado ANTECEDENTES LITERÁRIOS, procurou-se elencar os principais momentos da Literatura, predecessores da tragédia, nos quais o conceito de ἄτη apresenta importantes acepções e torna-se parte de uma intrincada rede do pensamento humano que justifique, em parte, a evolução e uso do vocábulo no drama. No terceiro capítulo, A ATH NA TRAGÉDIA GREGA, foco principal desta tese doutoral, é realizada a análise de todos os 118 passos nos quais ocorre o conceito de ἄτη nas tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, respeitando três contextos básicos: bélico, feminino e diversos. Em relação ao âmbito bélico, procurou-se elencar as tragédias em que o conceito de ἄτη estabeleça forte ligação com os problemas decorrentes da guerra; é por isso que tragédias como Ifigênia em Áulis, cujo foco central é a personagem Ifigênia, não pertencem ao contexto feminino, mas a ἄτη empregada na peça refere-se de forma crucial ao sofrimento 21 de Agamêmnon e ao sacrifício da filha para a vitória dos gregos em batalha. Por sua vez, uma tragédia como Hécuba, analisada no subcapítulo correspondente às tragédias de contexto feminino, mesmo que a Guerra de Tróia seja o principal motivo de todo o desenvolvimento da narrativa, a presença do conceito de ἄτη está intimamente ligada às paixões das mulheres. No subcapítulo correspondente aos diversos contextos, procurou-se listar as peças cujos mitos fazem referência a episódios isolados, como é o caso de Édipo Rei, em que o conceito de ἄτη é utilizado em um âmbito que não corresponde exatamente a uma guerra, nem está relacionado às figuras femininas, mas aponta para o sofrimento íntimo do próprio herói. Sendo assim, tal divisão implicou considerações importantes e na percepção de que o conceito de ἄτη também se molda de uma carga de sentido diferente de acordo com a personagem envolvida. Mais do que isso, tornou-se possível encontrar a razão principal para toda a mudança ocorrida no conceito de ἄτη ao longo da tragédia clássica: as inferências de um processo que envolvem a responsabilidade do homem, o elo entre o divino e o humano e, principalmente, o reconhecimento de sua posição no mundo e liberdade de escolhas. 22 1. O CONCEITO DE ATH 1.1. O Mito Para que seja possível analisar o conceito de ἄτη na tragédia grega, é importante entender em que posição a palavra se desenvolve e quais os limites que se pode alcançar com sua análise. Para tanto, uma primeira necessidade é a de esclarecer algumas teorias sobre o mito e seu entendimento na antiguidade clássica. Aqui, o que se pretende é apenas recordar algumas correntes de pensamento, principalmente no século XX e, dessa forma, entender em que posição o mito da ἄτη pode se desenvolver na tragédia grega em total coerência com o drama proposto em cena. Muito além de histórias fantásticas, como o senso-comum costuma definir o mito, ele tampouco é um texto sagrado, embora seja moldado de elementos que constituem o pensamento religioso. O mito é mais do que isso, ele se encontra no cerne da sociedade grega e, portanto, é natural que inúmeros estudiosos desenvolvam teorias a esse respeito. Acerca dessa discussão, Dowden (1994, p. 38) tece um esclarecedor comentário, indicando as preocupações atuais e em que ponto situam-se os estudos sobre o assunto: Se não é história, nem entretenimento, nem religião, o que é então? Este é o impasse do qual as distintas teorias do mito procuram nos tirar. A mitologia grega é enriquecida e ao mesmo tempo complicada pelas tentativas de autores modernos de nos convencer sobre uma determinada concepção do mito. No entanto, não existe escapatória a esse dilema. Kirk [...] sem dúvida está certo ao dizer que nenhuma teoria isolada pode explicar todos os mitos gregos. Mas, sem adotar judiciosamente uma teoria sobre cada questão, compreendendo o que ela pode explicar e onde pode falhar, simplesmente não saberemos o que estamos fazendo. Não existe nenhuma 23 abordagem do mito isenta de teoria, e é mera ilusão supor os mitos, tal como qualquer outro tipo de dado empírico, de certo modo fornecerão suas próprias explicações, desde que se tenha suficiente paciência na pesquisa. Todas as explicações são hipóteses emanadas na esperança de que auxiliem a compreensão do mundo. Em nenhum outro tema isto se aplica de modo tão claro como quanto à mitologia. Um livro sobre as mudanças na maneira de abordar a mitologia grega ainda está por ser escrito. [...] Inserido no âmago de toda e qualquer sociedade, o conceito de mito, muitas vezes, remete-nos imediatamente ao mundo greco-romano. Isso se deve ao fato de que, ainda hoje, ecoam em nossa sociedade reminiscências daquele período. Não é para menos que expressões reconhecidas atualmente como “presente de grego” e “tendão de Aquiles”, bem como o adjetivo “hercúleo”, remetam à mitologia grega. No entanto, recorda Vernant (1999, p. 171), que, nos dias atuais, o Ocidente possui uma tradição de pensamento que coloca o mito em uma dupla oposição, de um lado ao real, visto que o mito é considerado ficcional e, de outro, ao racional, já que o mito é considerado absurdo. Cassirer (2006, p. 55), por sua vez, explica que o mito é parte integrante da vida do homem, desde o nascimento da comunicação. Ao desenvolver sua teoria, o filósofo expõe que o mundo linguístico e o mundo mítico, em seus processos evolutivos, tornam-se cada vez mais articulados e intrínsecos: Este vínculo originário entre a consciência lingüística e a mítico-religiosa expressa-se, sobretudo, no fato de que todas as informações verbais aparecem outrossim como entidades míticas, providas de determinados poderes míticos e de que a Palavra se converte numa espécie de arquipotência, onde radica todo o ser e todo acontecer. Em todas as cosmogonias míticas, por mais longe que remontemos em sua história, sempre volvemos a deparar com essa posição suprema da Palavra. Se para o homem contemporâneo ainda estão presentes esses traços, fica-nos clara a dimensão que o mito possuía na Grécia 24 antiga. Veyne (1983, p. 32), apresenta um interessante argumento que, de forma simples, traça um parâmetro da experiência que o mito representava para os gregos: Partamos do fato de que todas as lendas, guerra de Tróia, Tebaida, ou expedição dos argonautas na sua totalidade passem por autênticas; um ouvinte da Ilíada estava portanto na posição em que está hoje um leitor de história romanceada. Esta última se reconhece no fato de que seus autores encenam os fatos autênticos que relatam; se descrevem os amores de Bonaparte e Josefina, irão transformá-los em diálogos, pondo na boca do ditador corso e de sua amada palavras que literalmente não têm nenhuma autenticidade; seus leitores sabem disso, fazem brincadeiras a respeito e nem pensam nisso. Nem por isso esses mesmos leitores verão esses amores como uma ficção: Bonaparte existiu e realmente amou Josefina; esta confiança total lhes basta e não irão esmiuçar o detalhe que, como se diria em exegese neo-testamentária, é apenas “redacional”. Os ouvintes de Homero acreditavam na verdade total e não se privavam do prazer da narração do conto de Marte e Vênus. É importante ressaltar que se, ainda hoje, encara-se um romance histórico quase como que factual em suas falas, esse processo para os gregos possuía uma dimensão muito maior. Trata-se de uma sociedade que possuía uma rica tradição oral e, no princípio, o mito transmitido pelos ancestrais continha uma carga de veracidade gigantesca, podendo ser ampliado ou reduzido conforme fosse passado adiante. Atualmente, entende-se o mito como uma narrativa que pode ou não conter estratos de verdade e que, em sua maioria, esteja ligada a um pensamento religioso. Acrescenta Burkert (1991, p. 19) que “mitos são estruturas de sentido” e que sua construção, por não ser estática, pode se apresentar em diversas formas, tais como a poesia, a prosa, etc. Essas estruturas de sentido foram analisadas, na década de 60, pelo estruturalista Lévi-Strauss. Para o autor (2008, p. 223), as construções míticas, embora possam englobar uma variedade infinita de histórias e relações, seguem um mesmo 25 padrão, nas mais variadas sociedades. Essa importante reflexão leva o antropólogo a pensar sobre um interessante aspecto do mito, marcado também por outros autores: Um mito sempre se refere a eventos passados, “antes da criação do mundo”, ou “nos primórdios” – em todo caso, “há muito tempo”. Mas o valor intrínseco a ele atribuído provém do fato de os eventos que se supõe ocorrer num momento do tempo também formarem uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro. (LEVI-STRAUSS, 2008, p. 224) Sendo assim, se com Homero e Hesíodo estabelecem-se padrões mítico-históricos, o que temos no período clássico, século V a.C., são as retomadas daquelas narrativas já consagradas pelo povo, porém de forma dramatizada, ou seja, revestidas de uma nova intenção e contadas de acordo com o pensamento da época. O que se mantém são os mitemas (LÉVI- STRAUSS, 2008, p. 226), as menores partículas do mito revestidas de sentidos que incorporam novos fatos, criando novas histórias mitológicas. A teoria estruturalista de Lévi-Strauss, dessa forma, propõe que as diferentes versões do mito podem mostrar mudanças em suas ordenações superficiais, mas as estruturas de base serão sempre as mesmas. Todavia, para Kirk (1973, p. 66), Lévi-Strauss equivoca-se em alguns momentos de sua análise por pensar, em grande parte, apenas nos mitos gregos e deixar de lado toda uma gama de mitos de outras sociedades que não se enquadram em sua análise estrutural. Além disso, continua o autor (1973, p. 64), em partes, o antropólogo procura rechaçar certas teorias, em especial a de Durkheim 5 , de que os mitos 5 Émile Durkheim é considerado um dos pais da Sociologia. Seus estudos acerca do mito procuraram demonstrar que o mito é uma projeção da vida do homem em sociedade; DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Kirk (1973, p. 65) corrobora Durkheim visto que, por exemplo, se pensarmos nos mitos que se relacionam ao ato de cozinhar e as funções dentro do ambiente do lar, esse fato remonta a uma sociedade que acabava de dominar o fogo e a 26 refletem representações ou ideias coletivas de um grupo social, porém, suas próprias análises acabam por retomar uma perspectiva de que os mitos referem-se às dificuldades da vida social e econômica. O vocábulo µῦθος, traduzido também como “palavra”, a princípio possui uma frequência maior que a de λόγος, o termo que designaria de forma mais específica “discurso”, “palavra”(jamais em sentido gramatical), a partir do final do século VI a.C. Essa dissociação entre os dois termos marca um importante processo do pensamento grego. No final do século VI a.C., mais ou menos dois séculos após a passagem para a escrita dos poemas homéricos e do processo de cunhagem da moeda, uma nova reflexão sobre o mundo no qual se estava inserido e, principalmente, a organização política, passaram a estimular de forma contundente uma nova dimensão da reflexão helênica. A vida do homem não estava mais somente ligada à subsistência, mas a uma nova forma de reagir diante do mundo. Na Ilíada, µῦθος e os seus derivados aparecem em sua acepção primordial, ou seja, como “palavra”, através da presença do verbo µυθήσασθαι: [...] ‘Ἰδαῖ᾽ Ἕκτορα ταῦτα κελεύετε µυθήσασθαι: αὐτὸς γὰρ χάρµῃ προκαλέσσατο πάντας ἀρίστους.6 [...] Ideu, a Heitor obrigai a dizer essas palavras: pois foi ele que convocou os melhores para o combate.(Il., VII.284-285, grifo nosso) Segundo Chantraine (2009, p. 691), µῦθος pode, além de designar um discurso, referir também uma intenção, um estrutura da vida matrimonial. Nessa linha de raciocínio pode-se pensar no caso de Medeia, de Eurípides. Muito do que se encontra na tragédia diz respeito ao papel social do homem e da mulher dentro de um determinado grupo. 6 As traduções do grego são de minha lavra, exceto quando devidamente referenciadas. Privilegia-se em toda a tese doutoral o uso das edições de Oxford, salvo quando mencionado. Homer. Homeri Opera in five volumes. Edited by David B. Monro e Thomas W. Allen. Oxford: Oxford University Press. 1994. 27 pensamento ou mesmo uma história. Dessa forma, na Odisseia, uma de suas composições - µυθολογεύω - já apresenta os traços do conceito ligado a uma narrativa, mesmo que verdadeira: [...] τί τοι τάδε µυθολογεύω; ἤδη γάρ τοι χθιζὸς ἐµυθεόµην ἐνὶ οἴκῳ σοί τε καὶ ἰφθίµῃ ἀλόχῳ: ἐχθρὸν δέ µοί ἐστιν αὖτις ἀριζήλως εἰρηµένα µυθολογεύειν. [...] Mas por que contar-te esta história? Já a falei ontem, em tua casa, e à tua vigorosa esposa. É desgosto para mim contar novamente aquilo que já foi com clareza dito. (Il., XII.450-453, grifo nosso) As duas únicas ocorrências do verbo µυθολογεύω “contar” “narrar” em Odisseia estão justamente no passo em questão (Od. XII.450, XII.453). Tal fato é de extrema importância visto que os versos pertencem ao canto que privilegia o fim da narrativa para os Feácios, dos feitos de Odisseu no reino de Circe. O que Odisseu está fazendo é justamente contando as histórias, ainda que vivenciadas por ele e seus homens, mas que já pertecem a um plano anterior, passado. Cabe ressaltar que, ao se referir àquilo que havia contado, Odisseu utiliza o verbo µυθέοµαι “falar” (Od. XII.450), cuja raiz está ligada a µῦθος. No entanto, ao dizer que não caberia ficar repetindo o que já havia sido “dito com clareza” εἰρηµένα (Od. XII. 453), o herói faz uso do verbo ἐρῶ “dizer” que é substituído no dialeto ático pelos verbos φηµί, λέγω e ἀγορεύω, todos com o sentido de “falar”, “dizer”, “falar em assembleia”, respectivamente. Dessa forma, há uma clara diferença entre aquilo que Odisseu narra e o fato de ter proferido aquelas palavras diante da corte. Sendo assim, no final do século VI a.C., com o advento da especulação racional proposta pelos filósofos da Iônia, foi necessário diferenciar o trato que uma narrativa, em que elementos poderiam ou não fazer parte de uma verdade racional, 28 receberia para que não fosse confundida com as palavras proferidas por aqueles que buscavam a verdade, a palavra proferida de forma objetiva. A esse respeito, pontua Vernant (1990, p. 453): Na religião, o mito exprime uma verdade essencial; é saber autêntico, modelo de realidade. No pensamento racional, inverte-se a relação. O mito já não é senão a imagem do saber autêntico, e seu objeto, a génesis, uma simples imitação do modelo, o Ser imutável e eterno. O mito define o domínio do verossímil, da crença, πίστις, por oposição à certeza da ciência. Nesse âmbito, o conceito de λόγος, segundo Chantraine (2009, p. 601), passa a designar não apenas a palavra, a explicação, mas a razão imanente. Não são poucas as referências ao termo na tragédia clássica. Em Sófocles, por exemplo, toda alusão a um discurso enunciado e ao diálogo entre as personagens amplia o uso do termo λόγος: Νεοπτόλεµος7 ἀλλ᾽ ἔρχεταί τε καὶ φυλάξεται στίβος. σὺ δ᾽, εἴ τι χρῄζεις, φράζε δευτέρῳ λόγῳ. NEOPTÓLEMO Mas ele já vai e o rastro será vigiado. Tu, se queres, revela uma segunda ordem. (Ph., 48-49, grifo nosso) Λόγος pontua de forma clara que Neoptólemo refere-se expressamente às “palavras proferidas”, no caso, uma “ordem”, ou seja, a um processo de enunciação imediata e que corresponde justamente ao uso corrente da “palavra” como meio de comunicação entre os homens. No entanto, é preciso ressaltar que o uso de λόγος, durante o período clássico, também está relacionado à “intriga” da peça, bem como ao “argumento” do debate retórico; o fato é que, o vocábulo agora 7 SOPHOCLIS. Sophoclis Fabulae. Edited by H. Lloyd-Jones, N. G. Wilson. Oxford: Clarendon Press, 1990. 29 transita entre o sentido ficcional e o racional, mas consolida µῦθος, por sua vez, em um patamar distinto e não imediato de enunciação. Sendo assim, o que se apreende é que µῦθος, nesse período, corresponde, sem dúvida, a uma instância narrativa que perpassa gerações e está ligada aos valores que a pólis admite como importantes no convívio dos homens. Esse conceito abrange os elementos que transitam entre o político, o social e o religioso e refletem as regras que mantêm a harmonia dos ambientes nos quais estão inseridos. A esse respeito, discorre Vernant (1999, p. 175): Não se trata mais de vencer o adversário enfeitiçando-o ou fascinando-o com a potência superior do verbo de que se dispõe; trata-se de convencê-lo da verdade levando-se pouco a pouco o próprio discurso interno, segundo sua própria lógica e de acordo com seus próprios critérios, a coincidir com a ordem das razões expostas no texto que lhe é submetido. Desse ponto de vista, tudo o que dava à palavra falada seu poder de impacto, sua eficácia sobre outrem, se acha dali em diante rebaixado à classe do mythos, do fabuloso, do maravilhoso, como se o discurso só pudesse ganhar na ordem do verdadeiro e do inteligível perdendo ao mesmo tempo na ordem do agradável, do emocionante e do dramático. Quando o grego canta as façanhas em Tróia, tem-se um dos primeiros registros escritos dos antepassados dos gregos e é, a partir deste ponto, que o homem possui a possibilidade de transmitir, para as gerações futuras, ideias mais elaboradas sobre os acontecimentos do passado. É, por exemplo, em Homero, que encontramos o primeiro registro mítico da história de Héracles, personagem que, de forma indireta, sofreu com a influência da deusa Ἄτη. Este fato, por sinal, desencadearia os acontecimentos que levarão a deusa a passar a agir diretamente na vida de um outro Héracles, o que passa a encarnar a experiência do homem comum. 30 As construções míticas, dessa forma, têm sua primeira organização a partir das epopeias de Homero. Para Snell (1975, p. 60), mais do que Hesíodo, é Homero o grande responsável por dar aos gregos os seus deuses e cunhar os princípios do pensamento e da religião grega. Todavia, com Hesíodo, tempo depois, embora não tenha sido o único em seu período a tratar do assunto 8 surge a necessidade de se catalogar a cosmogonia grega, ou seja, elencar os deuses e sua natureza para que o homem também pudesse se situar no mundo no qual estava inserido. As histórias míticas não tratam somente dos seres fantásticos presentes na religião grega. Se por um lado, os deuses permeiam boa parte das histórias e são responsáveis por façanhas gigantescas, por outro lado, os homens também aparecem como protagonistas de miraculosos feitos e atitudes. Ou ainda, caso não sejam dignos de tais proezas, estão cristalizados no pensamento do homem grego por conta da tradição. A presença humana no mito grego é algo natural, visto que o grego vê no mito parte de sua própria história. Todavia, o que transforma o mito e o eleva a outro patamar de discussão é a presença dos deuses e as relações que se estabelecem entre humanos e divinos. Dizer que a religião e o pensamento social caminhavam, por muito tempo, lado a lado não é satisfatório. Dessa forma, Otto (2005, p. 207-208) esclarece que, sendo o divino a perfeição, o humano nada mais pode ser do que o reflexo disso e os gregos possuíam uma relação íntima com essa noção: Para os gregos, as formas divinas não são, como para outros povos, meros signos secundários e sem 8 Vide: KÕIV, M. A note on the dating of Hesiod. The Classical Quarterly, vol. 61, n. 02, pp. 355-377, 2011. WALCOT, Peter. Hesiod and the Near East. Cardiff: University of Wales Press, 1966. GRIFFIN, J; BOARDMAN, J; MURRAY, O (orgs.). Greek Myth and Hesiod. The Oxford History of the Classical World. Oxford: Oxford University Press (1986). 31 correspondência com a verdade divina; nesta religião natural e não-dogmática, elas são em si mesmas os profetas autorizados. Os deuses se colocam diante dos poetas em ações e palavras; aos artistas plásticos, eles se apresentam diretamente diante de seus olhos. As obras dos grandes mestres das artes plásticas costumam provocar a mais forte impressão no espectador. Mas este nem por isso acha fácil explicar com clareza tais impressões. Pelo contrário, assim bem se previne de julgar as representações dos deuses gregos segundo histórias agradáveis e frívolas como as que vieram a ser narradas em época tardia. Pois aquelas imagens respiram uma elevação e uma grandeza que devem acordar-se com veneração e que somente nos antigos cânticos e nas invocações ora jubilosas ora pavorosas das tragédias encontram outras semelhantes. Caso se consiga captar o sentido dessa elevação e dessa grandeza, estará respondida a pergunta a respeito de como o espírito grego divisou a perfeição do homem e, com isso, igualmente a imagem da divindade. Assim sendo, pode-se supor que em um estágio inicial, muitas atividades do âmbito social dos gregos estivessem ligadas pelo pensamento religioso. O homem grego reconhece-se na figura divina e também sabe de sua diminuta posição diante das divindades; embora tenha noção de suas capacidades enquanto homem, ele sabe de suas limitações. Heródoto, por exemplo, já imbuído do espírito dos filósofos da Iônia, marca claramente o que ele distinguiria de uma construção mítica para um fato concreto. Para o historiador, os fatos que podem ser comprovados fisicamente pertenciam à “idade dos homens”, ou seja, fatos históricos que o tempo não conseguiu apagar e que ainda eram “palpáveis” na história dos gregos. É por essa razão que, no prólogo de Histórias, o próprio Heródoto fala em “exposição das informações” ἱστορίης ἀπόδεξις (Hdt. I.1) como uma espécie de compromisso com a enunciação de relatos verídicos. Como ressalta Rocha Pereira (2002, p. XIX), a própria palavra ἱστορία, pertencente à família de ἵστωρ “juiz de uma contenda” “testemunha”, está ligada etimologicamente ao verbo οἶδα “eu sei porque vi”. 32 No entanto, o autor não deixa de falar sobre os outros acontecimentos, como a presença de Minos de Cnosso que, em outros tempos, havia dominado os mares: [...] Então Oretes, que se encontrava na Magnésia, terra situada sobre o rio Meandro, enviou a Samos um lídio chamado Mirso, filho de Giges, para levar uma mensagem, conhecendo de antemão a mentalidade de Polícrates. Entre os Gregos, tanto quanto sabemos, Polícrates foi de facto o primeiro que sonhou dominar os mares, se exceptuarmos o caso de Minos de Cnosso e de algum outro que antes dele tenha sido senhor dos mares; mas da chamada “idade dos homens”, o primeiro foi realmente Polícrates, que tinha fortes esperanças de vir a governar a Iónia e as ilhas. [...] (Hdt. III.122)9 Mesmo que faça referência a uma história pertencente à tradição, a preocupação de Heródoto no prólogo demonstra a consciência do autor diante de eventos que fossem controlados pelo testemunho, visto que seus relatos buscavam a αἰτία “motivo” (Hdt. I.1) da guerra entre gregos e persas e, portanto, fatos verídicos. Um dos estudos mais proeminentes nos últimos anos é o trabalho de Calame (2009), em que o helenista francês discute as relações míticas desde os poetas antigos até a estrutura elaborada por Apolodoro, no século II a.C. Em seu livro (2009, p. 266), o autor conclui que se o mito é um discurso ficcional, não é possível dissociá-lo de um “regime de verdade” estabelecido de acordo com os paradigmas sociais e culturais e que se modificam de acordo com a intenção poética ou literária de uma obra, que se justifica por seu distanciamento espaço-temporal. Logo, pode-se pensar no mito como uma estrutura de sentidos real, em algum momento do passado, que é revestida de elementos diversos conforme a passagem do tempo e a intenção 9 HERÓDOTO. Histórias. Livro VI. Introd. versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira e Delfim Ferreira Leão. Lisboa Edições 70, 2000. 33 própria de um período. Para Calame (2009, p. 266), essas construções são afetadas por circunstâncias históricas e sociais, o que permite que sejam reproduzidas novamente de acordo com o que se pretende ressaltar em um determinado momento. Não é difícil traçar um paralelo com nossa própria sociedade. Se pensarmos na figura de Jesus Cristo, podemos estabelecer uma relação parecida com o que acontece na tragédia grega em relação aos mitos. Repousando em um período distante da história do homem, a tradição cristã constantemente recria as passagens de sua Paixão10, mesmo sendo uma parte da história que é de conhecimento de todos, cristãos ou não. Portanto, ir a uma encenação ou assistir a um filme da vida e morte de Jesus sempre despertará uma nova descoberta e, é claro, de acordo com o ponto de vista impresso pela direção, um novo olhar sobre os acontecimentos. No filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, é exatamente isso que acontece. O diretor, além de tentar recriar a linguagem do período, tenta transmitir ao espectador um novo impacto visual, superestimando as cenas de tortura e sofrimento. Trata-se de uma obra única nos últimos tempos, pois, apesar da história já ser conhecida, um aspecto antes nunca abordado deu novo fôlego à leitura cristalizada da história retratada. 1.2. Mito e Tragédia O conceito de ἄτη se insere em uma tradição que merece ser recordada e, assim sendo, que possa dar os parâmetros necessários para que se compreenda como surge o mito que vigora por trás do complexo vocábulo ao qual esta tese se dedica. Destarte, é possível compreender a complexidade que 10 Denomina-se Paixão, com letra maiúscula, o sofrimento de Jesus Cristo na Cruz. (HOUAISS, 2008, p. 2105) 34 envolve o conceito de ἄτη e sendo, de certa forma, intrínseco ao desenvolvimento da tragédia grega, como ele se incorpora ao processo de desenvolvimento do drama. Tratava-se de um novo período na história de toda a Grécia e é preciso entender em que medida o drama trágico vem para se aliar a essa nova sociedade. Relativamente a isso, disserta Vernant (2008, p. 04): O momento da tragédia é, pois, aquele em que se abre, no coração da experiência social, uma distância bastante grande para que, entre o pensamento jurídico e social de um lado e as tradições míticas e heroicas de outro, as oposições se delineiem claramente; bastante curta, entretanto, para que os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e para que o confronto não deixe de efetuar-se. Esse embate, no entanto, entre um pensamento da cidade e a tradição oral e familiar, é combinado de forma magistral pelos trágicos gregos. De certo modo, há uma nova forma de se encarar a realidade e questioná-la, por outro lado, as histórias passadas de geração em geração reforçam a tradição, quando utilizadas como motivo para o desenvolvimento do drama. Se, por um lado, a experiência de encenar assuntos históricos pudesse gerar a histeria pública e falhar em seu objetivo, 11 mesclar os relatos tradicionais com as novas ideias e reflexões da cidade só reforçaria, no palco, a evolução deste πολίτης. Não obstante, não é tarefa fácil lidar com temas conhecidos e que, seguindo apenas a tradição, poderiam soar enfadonhos. É por isso que não é unicamente por uma herança arqueológica que a tríade trágica é formada por Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Analisados individualmente, cada qual serviu à tragédia de forma peculiar, inserindo no mito os elementos necessários 11 A respeito da Queda de Mileto, citada em Histórias por Heródoto, tratar- se-á em momento oportuno. 35 para atrair o público e atingir o sentimento de tensão e exaltação, marcando etapas relevantes no desenvolvimento da história e do gênero trágico. Por conta do que já foi dito, não é difícil compreender o porquê do uso do mito como mote da tragédia clássica. Assim como a cultura cristã renova dramaticamente as passagens da vida de Jesus Cristo, incorporando a ela elementos que respeitem a intenção de cada uma das representações, os mitos eram, pelos autores trágicos, revisitados constantemente em suas peças. É a tragédia de Ésquilo Persas, a mais antiga peça conservada, que já aponta para o conhecimento do autor sobre o mito, sua estrutura e os elementos que o distanciavam da realidade. Se Frínico foi multado por sua apresentação da Queda de Mileto, o mais correto seria que nenhum outro autor buscasse amparo em um relato histórico que pudesse causar identificação temporal para o público. No entanto, não é o que acontece. Embora Persas, das trinta e duas tragédias clássicas que chegaram completas até os dias de hoje, seja a única cujo tema baseia-se em uma passagem recente da história dos gregos, ela é posterior à peça de Frínico e demonstra todo o potencial e conhecimento do autor em relação ao mito, fato este que o possibilita desenvolver uma tragédia sobre um evento recente com elementos próprios do mito, quer eles sejam o intervalo espaço-temporal, uma riqueza de detalhes imagéticos, a interpretação simbólica e universalista ligada aos fatos, aspectos do maravilhoso em relação à corte persa ou mesmo a presença de uma figura fantástica (o espectro do rei). Dessa forma, o tragediógrafo proporciona o distanciamento apropriado entre a veracidade histórica e a identificação com os espectadores. A tragédia e a comédia tornaram-se, ao longo do século V, o centro do debate de questões próprias da cidade democrática grega. O uso do tema mítico, embora não único, tornava-se o 36 veículo condutor para os poetas exporem, também, uma nova forma de pensamento. A trama desenvolvida pelo autor acaba por explorar diferentes aspectos dos mitos. Vidal-Naquet (1999, p. 233) discorre que, na tragédia, “é preciso que a cidade ao mesmo tempo se reconheça e se questione”. Esta preocupação, no caso de Ésquilo, faz com que o homem enquanto indivíduo passe inteiramente a segundo plano. O vencedor da batalha de Salamina não é um grego em particular, mas a comunidade como um todo. O mesmo ocorre com Agamêmnon; embora a tragédia a que dá título relate os momentos finais da vida do comandante grego, destacando o drama familiar, é o coletivo que se evidencia, em um debate acirrado sobre as questões que envolvem o público e o democrático em relação à justiça. E é justamente no momento em que o autor precisa justificar os acontecimentos ocorridos entre os antepassados que a presença de conceitos, como o de ἄτη, satisfaz a necessidade dos tragediógrafos em buscar no pensamento grego a identificação com a audiência. Por conseguinte, se em Ésquilo a composição mítica é trabalhada com elementos visuais que saltam aos olhos e uma linguagem primorosa, em Sófocles atinge-se um novo patamar de experimentação. O autor ousa em transformar o mito conhecido, acrescentando elementos que alterem sua estrutura. Dentre suas tragédias conservadas, o mito de Édipo é o que merece maior atenção e sem dúvida que a leitura que fez do mito tebano o definiu para toda a posteridade. O autor ousa em transformar o mito conhecido, acrescentando elementos que alterem sua estrutura. Dentre suas tragédias conservadas, o mito de Édipo é o que merece maior atenção e sem dúvida que a leitura que fez do mito tebano o definiu para toda a posteridade. No entanto, a interpretação estabelecida por Sófocles deste mito tradicional não inibiu outras releituras. Será talvez Sófocles o autor que em 37 definitivo coloca “o Homem” no centro do seu pensamento dramático. Segundo Grimal (1993, p. 128), diferentemente do que acontece na versão tradicional do mito, a versão imortalizada por Sófocles teria sido posteriormente modificada por Eurípides e, ainda, na forma épica da lenda, a morte de Jocasta não teria impedido o herói de continuar seu reinado, inclusive sem que ele tivesse se tornado cego. Girard e Ouellet (1980, p. 181) também atentam a essa questão. Para os autores, Sófocles é quem transforma o drama mítico em drama trágico, eliminando e inserindo informações que lhe fossem convenientes. A esse respeito, corrobora Vernant (1999, p. 54) afirmando que Sófocles omite, também, a questão da diferença de idade entre Jocasta e Édipo. Logo, a maleabilidade no tratamento de informações pormenorizadas flexibiliza o sentido final de cada versão dramática. Aristóteles, embora não tenha presenciado a efervescência da tragédia clássica, como conhecedor e classificador dos primeiros gêneros literários, faz uma ressalva extremamente pertinente à composição da tragédia: É, pois, necessário ter presente o que já por várias vezes dissemos, e não fazer uma tragédia como se ela fosse uma composição épica (chamo composição épica à que contém muitos mitos), como seria o caso do poeta que pretendesse introduzir numa só tragédia todo o argumento da Ilíada. Na epopeia, a extensão que é própria a tal gênero de poesia permite que as suas partes assumam o desenvolvimento que lhes convém, enquanto nos dramas o resultado do desenvolvimento seria contrário à expectativa. Que bem o mostraram todos os poetas que quiseram incluir em uma tragédia todo o argumento da Ruína de Tróia, em vez de uma só parte, como o fez Eurípides [na Hécuba], ou toda a história de Níobe, contrariamente ao que fez Ésquilo. Todos esses poetas falharam ou foram mal 38 sucedidos nos concursos, e o próprio Agatão falhou pelo mesmo defeito. (Poética, 1456ª 11)12 O que Aristóteles quer deixar claro ao seu leitor é que a Tragédia e a Épica são dois gêneros distintos e, portanto, se ocupam de matérias de abrangência diferentes para suas composições. No entanto, se a tragédia não necessita de um relato extenso e se dedica a trechos específicos de uma história muito maior, isso se deve, também, ao conhecimento que o público detinha do mito grego. É o que ocorre, para citar apenas uma tragédia como exemplo, com Antígona de Sófocles. A tragédia, que conta o sofrimento da irmã de Etéocles e Polinices, em profundo conflito entre os ditames da cidade e os valores familiares da tradição, começa in medias res 13 , o que demonstra que os espectadores já eram familiarizados com aqueles contextos. Diferentemente de uma história detalhada do mito, para além das marcações presentes nas falas das personagens, que situam a plateia sobre início da ação, há também que se levar em consideração os vários monólogos de abertura como, por exemplo, a fala da nutriz no início de Medeia (Med. 1-48), estes têm por função sintetizar os dados do mito e contextualizar os espectadores sobre o momento concreto em que a ação inicia-se. É conhecida, em contrapartida, a preferência de Sófocles pelas cenas dialogadas de abertura, que substituem o tradicional monólogo. Em Antígona, nos primeiros versos, é a própria heróina quem lamenta para Ismênia e introduz o fato de elas estarem sofrendo pela herança herdada de Édipo. Nos versos seguintes, Antígona falará sobre o enterro de seu irmão 12 Tradução de Filomena Yoshie Hirata em: HIRATA, F. Y. A hamartía aristotélica e a tragédia grega. In: Anais de Filosofia Clássica, vol. 2, n. 3, Universidade de São Paulo, 2008. 13 Segundo Moisés (1974, p. 287) trata-se de uma convenção própria da poesia épica clássica, que preconizava que a ação do poema deveria começar pelo meio, no pressuposto de que o trecho inicial não só carecia de interesse para o leitor como poderia perfeitamente ser narrado mais tarde. 39 Polinices, que se encontra morto e jogado ao relento; no entanto, detalhes da história de seu pai e da batalha entre os irmãos não são descritos, indício que confirma o conhecimento do público da saga dos Labdácidas. Há que se recordar ainda, o efeito causado pelos cantos corais que, em muitos momentos, retomam questões pertinentes ao mito como forma de rememorar a audiência e, é claro, sublinhar informações que sejam oportunas ao drama. É o caso, por exemplo, do coro de anciãos de Maratona em Heráclidas (Heracl. 232-235), em que o canto coral se compadece da aflição de Iolau e dos filhos de Héracles, lembrando a linhagem das crianças e a heroicidade do pai. Para se ter uma ideia da potência da criação de um autor, de acordo com Asheri (2006, p. 60), a imagem que Ésquilo criou de Xerxes e seu império, através de Persas, foi tamanha que ainda foram sentidos na sociedade os efeitos de sua criação. Segundo o historiador, inúmeros detalhes da vida de Dario e outros comandantes aquemênidas serão deixados de lado, ao longo dos anos, em detrimento da imagem tirânica e incômoda de Xerxes. A imagem construída por Ésquilo de Dario, em contrapartida, fez com que o rei fosse inocentado e inclusive idealizado quando comparado ao filho. O incêndio de templos jônicos seria, por muito tempo na própria Pérsia, erroneamente atribuído a Xerxes, fato este que se deve, em parte, à imagem construída por Ésquilo. Portanto, é possível perceber como os autores lidarão com o mito dentro da tragédia. A arte de cada um deles será explorada em toda sua magnitude, porém, sem esquecerem da tradição. Esta tradição possibilita leituras plurais e, mais do que isso, permite que as preocupações do período possam ser inseridas dentro do discurso do drama para a identificação direta do espectador com os antepassados gloriosos. Além de um resgate do passado fica evidente, também, o impacto que o 40 drama instaurava na sociedade, até mesmo perpetuando imagens construídas no ambiente do teatro. 1.3. O mito da Ἂτη Antes de começar a pensar propriamente no conceito de ἄτη e as implicações existentes nesse complexo vocábulo, é necessário entender em que momento da narrativa mítica ele se insere. É possível, logo pela análise do mito, já entender o porquê de o termo estar sempre ligado a questões malignas ou que remetam a uma punição ao homem. Moreau (1986, p. 152) denomina como “demônios infernais” àqueles presentes na obra de Ésquilo que propagam a violência e a desordem no mundo dos homens. Dentre estes demônios, encontra-se a Ἄτη que, para o autor (1986, p. 158), pode ser definida com uma frase: “Le démon caressant est un démon maléfique”. A frase de Moreau contém em seu significado uma gama de explicações pertinentes ao funcionamento do conceito de ἄτη na tragédia grega. É possível perceber o motivo pelo qual o vocábulo passeia de forma tão ampla dentro do curto espaço de tempo que o drama trágico foi produzido na Grécia antiga. Para um teatro que luta entre dois pólos, o de mobilizar e de intrigar seu espectador, nada mais normal que, constantemente, as personagens envoltas em conflitos tenham na ἄτη a justificativa ou os argumentos que os impeçam de cometer erros. Grimal (1993, p. XXXV) ressalta a dificuldade em se alcançar para os mitos uma única via de explicação coerente, que não esbarre em algum momento em conflito com outras versões. Posto isto, assevera o autor: A mitologia helénica resulta da acção de influências ainda mais diversas, entre as quais o papel dos elementos indo-europeus parece bastante 41 limitado. Foi em todo o caso recoberto por contribuições decisivas oriundas do mundo semita e, mais vagamente, dessas civilizações “mediterrâneas” de que começamos a ver os estratos sucessivos nessa encruzilhada que foi sempre o Mediterrâneo oriental. Nesta espantosa síntese, é difícil discernir a parte que pertence a cada um. As lendas formam-se, evoluem, tornam-se matéria literária ou “histórica”, mudam de carátēr à medida que os centros de difusão se deslocam de ilha em ilha, de continente em continente, passando da Síria para Creta, de Rodes para Micenas, de Mileto para Atenas. Não é de estranhar que, nestas condições, se assista a uma fusão de tradições, de contos, de mitos, cada um referente a um episódio ou a um momento, e misturando-se todos na confusão total. Dessa forma, o que fica evidente nos manuais de mitologia é que os mitos expostos são uma síntese das versões mais recorrentes ao longo da tradição. Mesmo se considerarmos a questão da livre criação poética dos autores para os mitos inseridos na tragédia grega, o fato de existirem outras variantes ratifica a escolha do autor quando da criação de seu drama. Deste modo, Grimal (1993, p. 52) apresenta, no verbete referente à ἄτη, a seguinte versão para o mito: Personificação do Erro. Divindade leve e ágil, seus pés só poisam sobre a cabeça dos mortais, sem que eles se apercebam. Aquando do juramento de Zeus, em que este se comprometeu a dar a supremacia ao “primeiro descendente de Perseu que ia nascer” e submeteu desse modo Héracles a Euristeu, foi Átē quem o enganou. Zeus vingou-se, precipitando-a do Olimpo. Áte caiu na Frígia, sobre uma colina que recebeu o nome de Colina do Erro. Foi ali que Ilo construiu a cidadela de Ílion (Tróia). Zeus, precipitando Átē do alto do céu, cortou-lhe para sempre a possibilidade de residir no Olimpo. É por isso que o Erro constitui a triste partilha da humanidade. Homero, no Canto XIX da Ilíada, faz uma detalhada narrativa dos acontecimentos que antecedem o nascimento de Héracles e a influência que a deusa Ἄτη teve no seu destino, motivando seu 42 desterro14. É, dessa forma, Homero o primeiro a apresentar aos gregos ou, pelo menos, a registrar os motivos que levaram a deusa Ἄτη a se instalar entre os homens. Nota-se que o poder da deusa não mede vítimas, desrespeitando até mesmo o pai dos deuses, visto que sua única finalidade é causar a confusão mental em seu escolhido. Hesíodo, por sua vez, sendo um dos primeiros a teorizar sobre a Cosmogonia grega, relata o nascimento da deusa Ἄτη, justificando a que família ela pertence e, portanto, confirmando sua origem obscura. Para Roisman (1983, p. 494), “Hesiod’s innovation is not in the perception of átē but in her function and sphere of operation”. No contexto de Hesíodo é interessante notar como a Ἄτη, uma das filhas de Νύξ “Noite”, une-se a outras divindades, todas com aspectos negativos15. Sendo assim, a partir de Hesíodo, uma nova face da deusa vai se delimitando e, mesclando-a com a noção apresentada por Homero, chegamos ao conceito vigente na tragédia. 1.4. A expressão do divino No século XIX, Hermann Usener, conceituado filólogo alemão, já tinha uma preocupação que voltou a chamar a atenção dos estudiosos apenas no final do século XX. Segundo Cassirer, Usener desenvolveu a teoria de que a camada mítica mais antiga que se possa distinguir é a dos “deuses momentâneos”. Essa teoria configura-se como uma necessidade do homem de exteriorizar suas impressões na forma de deidades. Continua Cassirer (2006, p. 34): 14 Vide infra, pp. 58-60. 15 Vide infra, pp. 93-94. 43 Usener mostrou, como exemplos da literatura grega, o quanto ainda era vivo entre os helenos do período clássico este sentimento religioso básico e primitivo, e como volveu a ser eficaz algumas vezes. “Por causa desta vivacidade e excitabilidade do sentimento religioso qualquer conceito, qualquer objeto que por um instante dominasse todos os pensamentos, podia ser exaltado, independentemente, da hierarquia divina: Inteligência, Razão, Riqueza, Casualidade, o Instante Decisivo, Vinho, a Alegria do Festim, o Corpo de um Ser Amado...Tudo o que nos vem repentinamente como envio do céu, tudo o que nos alegra, entristece ou esmaga, parece um ser divino para o sentimento intensificado. Até onde pode remontar nosso conhecimento dos gregos, contam eles para expressar tais experiências com o conceito genérico de daimōn. O conceito de ἄτη, assim sendo, por sua natureza primitiva, estabelece dentro do mito uma relação, ora de influência, ora de ação concreta e física na vida do grego, aspecto que será discutido mais adiante. No entanto, a relação entre o significado e a ação torna-se intrínseca e, por diversos momentos, o conceito vocabular confunde-se com a figuração do divino, como se efeito e causa não possuíssem uma relação de completa distinção. Todavia, a discussão é mais profunda do que possa parecer. Otto (2006, p. 110) dedica atenção a essa questão, especulando sobre um ente de natureza impessoal que passaria para o nível pessoal. Para tanto, conclui: Na verdade, não há personificação e sim, apenas, despersonificação – assim como inexiste mitificação, mas tão somente desmitificação, e tampouco faz sentido, segundo a célebre sentença de Schelling, indagar como o homem teria chegado a Deus, quando antes só caberia indagar como é que d’Ele pôde se afastar. (2006, p. 111) Dessa forma, corroborando a teoria de Otto, podemos afirmar que o conceito da deusa Ἄτη precede o conceito que depois dará origem aos termos que serão usados para classificar qualquer influência sofrida por intermédio da ação divina. Esse tipo de pensamento, assim sendo, sugere uma perspectiva interessante: 44 por mais que o vocábulo se apresente em seu sentido abstrato, ele está intimamente ligado a uma perspectiva divina, fator que será decisivo para compreender os motivos que levam ao distanciamento de sentido, para o termo, entre as obras de Ésquilo e Eurípides. Se em Homero, por exemplo, a quantidade de personificações são inúmeras, passando depois pela esquematização cosmogônica realizada por Hesíodo, o teatro, no século V a.C., possui uma nova responsabilidade e, sendo uma arte visual, qualquer que fosse a hipótese poderia se materializar. Destarte, acrescenta Webster (1954, p.12): Art must also be regarded as one of the forces which helps to keep personification alive. The artist and the dramatist must personify if they want to represent something immaterial instead of restricting themselves to showing its effects on visible things.16 No entanto, uma questão, que deve ser esclarecida, é a diferença entre a personificação e a deificação ou, como denominamos, expressão do divino. A personificação mostra-se uma prática recorrente na literatura grega desde os tempos de Homero. A construção de imagens fortes, aliadas quase sempre ao discurso metafórico, possibilitava ao autor passear livremente com elementos que lhe eram caros naquele momento e precisavam ser, ao máximo, enfatizados. Essas situações, em que a ênfase dada à personificação ultrapassa os limites da humanização de um ente inanimado, resultam na deificação. Dessa forma, como esclarece Webster (1954, p. 15), geralmente, as deificações aparecem com termos relacionados a um conceito ético. 16 A arte também deve ser considerada como uma das forças que ajuda a manter a personificação viva. O artista e o dramaturgo devem personificar, caso eles queiram representar algo imaterial, ao invés de se restringirem a mostrar seus efeitos sobre as coisas visíveis. 45 Não é para menos que, segundo Moreau (1985, p. 155), o vocábulo ἄτη seja extremamente ambíguo. Para o autor torna-se muito difícil estabelecer a distinção entre a abstração e a abstração personalizada (ou seja, o demônio). E, se levarmos em conta sua carga semântica, é possível entender porque, em muitos momentos, não basta apenas que o vocábulo se apresente como pura abstração, faz-se necessária sua presença física e perturbadora. Essa relação ambígua é delicada até mesmo para o editor do texto grego grafar o termo. A esse respeito, Duchemin (1980, p. I) faz um apontamento pertinente: Le passage de l'entité, fruit de l'abstraction émanent de la réflexion humaine, à l'être perçu comme une divinité, présente et agissante, animée de tous les pouvoirs d'un statut surnaturel, est, aux différentes époques et au sein de différentes groupes humains, malaisé à cerner. [...] L'éditeur [...] est souvent mal à láise pour choisir entre le substantif, simple nom commun, commençant par une minuscule, et le nom propre désignant une personnalité divine, et auquel il convient, dans nos habitudes, de mettre une majuscule. Ce problème, qui n'existait pas pour les Grecs, existe pour nous et, nous obligeant à préciser, il témoigne à merveille, par surcroît, de la ligne continue qui en réalité unit, sans vraie ligne de démarcation, les deux faces d'un même vocable.17 Posto isto, podemos concluir que o entendimento da presença ou ação da divindade depende da forma como se analisam os trechos que fazem referência ao vocábulo. Este aspecto é de 17 A passagem da entidade, fruto da abstração que emana da reflexão humana, ao ser que é percebido como uma divindade, presente e ativa, animada pelos poderes todos de um estatuto sobrenatural, é, em diferentes épocas e no seio de diferentes grupos humanos, difícil de delimitar [...]. O editor [...] sente frequentemente desconforto em escolher entre o substantivo, simples nome comum, iniciado por uma minúscula, e o nome próprio que designa uma personalidade divina, à qual convém, pelos nossos hábitos, pôr uma maiúscula. Esse problema, que não existia para os Gregos, existe para nós e, obrigam-nos a precisar, o reflexo perfeito, além disso, da linha contínua que em realidade unia, sem uma verdadeira demarcação, as duas faces de um mesmo termo. 46 extrema importância para a compreensão do sentido que o dramaturgo pretendia atingir com sua composição. 1.5. A etimologia e semântica da palavra Quando uma palavra é traduzida de inúmeras formas diferentes, para um mesmo verso, é de se pensar o que ocorre em relação à sua etimologia. O que ocorre com o termo ἄτη não é uma exceção na tradução de um texto que, além da língua, indissociavelmente apresenta também uma leitura particular do tradutor. Dodds, na introdução de seu livro (1963), elege o conceito de ἄτη como um dos temas para sua discussão inicial sobre a questão do irracional na Grécia antiga. O autor vem sendo retomado, desde então, como parâmetro inicial de uma discussão acerca dos conceitos de ἄτη. Sua contribuição deve-se ao fato de ter feito relevantes apreciações que, inclusive, apontam para uma profunda discussão sociológica em voga nos dias atuais. Diz Dodds (1963, p. 03): “for early Greek justice cared nothing for intent, it was the act that mattered”, ou seja, para um senso de justiça primário, entre os gregos, o ato consumado é que, de fato, tem relevância. Por essa importância de um ato consumado, para Dodds (1963, p. 17), os gregos já possuíam uma noção, que mais tarde seria debatida entre os antropologistas, de “culturas da culpa” (guilty-cultures), em contraposição às “culturas da vergonha” (shame-cultures). Segundo o autor, a noção de ἄτη alimenta uma sociedade baseada no sentimento de vergonha, ou seja, que transfere para um fato externo aquelas sensações que lhe são insuportáveis. Benedict (1972, p. 188) discute a diferença básica entre o mundo oriental e o ocidental, a qual se fundamenta na cultura grega: 47 Nos estudos antropológicos de culturas diferentes, é importante a distinção entre as que profundamente enfatizem a vergonha ou a culpa. Uma sociedade que incute padrões absolutos de moralidade e orienta-se no sentido do desenvolvimento de uma consciência por parte do homem é uma cultura de culpa por definição, no entanto, alguém pode numa sociedade dessas, como a dos Estados Unidos, padecer ainda mais na vergonha quando se auto-acusa de grosserias que nada têm de pecados. [...] Onde a vergonha constitui outra sanção importante, não se experimenta alívio quando se divulga uma transgressão, ainda que seja a um confessor. [...] As culturas de vergonha, portanto, não prescrevem confissões ainda que aos deuses. Dispõem mais de cerimônias para boa sorte do que para expiação. Sendo assim, será possível compreender porque os heróis de Homero e Ésquilo, mesmo deixando claro uma percepção de que foram tomados pela ἄτη, acabam por não conseguir se livrar de uma dependência auto-punitiva, do sentimento de constrangimento diante do mundo. No entanto, esses heróis transferem para uma força maior os atos que eles próprios não conseguem suportar sozinhos, embora tal estratégia não surta o efeito de expurgação necessária ao alívio da consciência. Não são poucas as definições que a noção de ἄτη admite nos mais variados contextos e ao longo dos anos. Segundo Dodds (1963, p. 05), em Homero, é impossível contabilizar os acontecimentos atribuídos à ἄτη, ou ligados ao verbo ἄσασθαι “saciar-se”, “exceder-se”. No entanto, o autor deixa explícito que de forma alguma, como acontece na tragédia, o conceito será atribuído a um desastre, sempre ocorrendo como um “state of mind – a temporary clouding or bewildering of the normal consciousness”. Para Saïd (1978, p. 75-76) existe uma dificuldade em traduzir a palavra que, muitas vezes, está ligada a uma condição de erro, mas também passa a designar toda sorte de infortúnios. Completa Dawe (1968, p. 95) que o sentido mais comum de ἄτη é ruína, destruição, desastre, infortúnio. 48 Todavia, a palavra pode admitir, para o autor, um sentido mais restrito, mais especializado. Prieto (1965, p. 197), por sua vez, com um trabalho dedicado a Eurípides, faz menção ao contexto geral em que se insere o vocábulo e, em particular, sua presença no tragediógrafo: 1. Engano, erro, desvario, alucinação, extravio da razão ou dos sentidos, funesta obnubilação do julgamento que conduz à ruína e à morte – tal é a deusa, Ἄτη, companheira perene da humanidade, cujo pé, alado e breve, roçando um instante apenas a fronte dos mortais, os precipita no irreparável. O vocábulo ἄτη figura na obra de Eurípides mais de trinta vezes, nos vários casos gramaticais. Só três vezes, porém, na acepção de alucinação, desvario enviado pela divindade. E em nenhum caso se pode identificar com uma esperança traiçoeira. A esperança, contudo, é que, nalguns passos, se pode identificar com a ἄτη. A acepção de ἄτη dada por Magnien e Lacroix (1969, p. 258) entende o termo como a “cegueira”, a “confusão”, a “perturbação” que resulta na perda do controle pelo homem. Reitera e acrescenta Chantraine (2009, p. 3) que o verbo ἀάω, que significa “conduzir ao erro”, por contração do nominativo ἀάτη, dá origem à palavra ἄτη, vocábulo pouco corrente na prosa ática, porém de grande presença na tragédia, em que significa o “erro”, a “ruína”, o “dano causado”. Na poesia, principalmente Alceu de Mitilene faz uso da forma αὐάτα. Liddell e Scott (1996, p. 270) definem o vocábulo ἄτη como “bewilderment, infatuation, caused by blindness or delusion, sent by the gods, mostly as the punishment of guilty rashness”. Entretanto, Dodds (1963, p. 07) se opõe à definição dada pelos autores por entender que a ἄτη é o próprio ato, ou seja, the rashness, e não a punição divina por conta do ato imprudente do homem. O sentido de “ofuscação” parece recorrente em todos os autores, em uma tentativa de equilibrar o primeiro sentido de cegueira, sem confundi-lo com a cegueira física. Beekes (2010, 49 p. 162), dessa forma, também apresenta para o termo os sentidos de “dano” e “penalidade”. Algumas traduções de tragédias esquilianas para a língua espanhola optam por uma tradução por ofuscamiento, o que, no caso de Persas, foi uma solução satisfatória encontrada pelo autor.18 De acordo com Malta (2006, p. 13) uma definição pertinente, tanto na tragédia como na poesia épica, seria a de “perdição”, ou seja, o resultado de alguém ter se perdido (no sentido figurado). E continua discorrendo sobre o assunto: [...] sabemos que, aqui [Brasil], esse sufixo “- ao”, assim como em destruição e construção, indica não só o resultado, mas também a própria ação; assim sendo, a palavra “perdição”, a rigor, para além do seu uso corriqueiro, indica tanto a conseqüência quanto o ato de alguém se perder – e dessa forma pode servir de equivalente, tanto quanto isso é possível, para áte grega, indicando, ao mesmo tempo, a deusa (a causa), a desrazão do homem e a destruição daí recorrente. [...] No entanto, como ficará claro nas análises, há uma clara distinção entre sofrer a ação da deusa ou uma punição divina e apenas padecer de algum outro mal. Os trágicos demarcaram de forma clara, principalmente Eurípides, quando, de fato, o conceito de ἄτη refere-se ao dano causado e não à influência maligna. As traduções em língua portuguesa, em sua maioria, mesmo em Ésquilo que se aproxima de forma mais clara da noção homérica de um “state of mind” (DODDS, 1963, p. 05), não costumam utilizar o vocábulo “cegueira” e suas variações. Essa tendência encontra-se mais nitidamente nas traduções de língua espanhola e italiana. No entanto, como acontece na tradução de Troianas de Eurípides, por Werner (2004), o tradutor possui a preocupação em padronizar, mesmo respeitando os mais diferentes sentidos, todas as ocorrências de ἄτη, como 18 Vide: ESQUILO. Persas. Introducción, traducción y notas de Pablo Cavallero. Buenos Aires: Editorial Losada, 2007. 50 “desgraça”, nas seis vezes que o termo aparece na tragédia. Esse feito é raro, pois com um campo semântico amplo, a tendência é que o conceito apresente diversas acepções em um único drama, como acontece na tradução de Torrano (2009) e Oliveira (2006). 1.6. O erro trágico e a falta trágica Destacam-se, dentre os muitos textos que discutem o conceito de ἄτη na tragédia grega, aqueles que procuram demonstrar a relação que existe entre um erro trágico (ἄτη) e uma falta trágica 19 - ἁµαρτία. Aspecto de grande importância para Aristóteles, é na Poética que o filósofo discute, dentro da tragédia, como o conceito de ἁµαρτία é parte essencial no drama: Como a composição das tragédias mais belas não é simples, mas complexa, e além disso deve imitar casos que suscitam o terror e a piedade (porque tal é o próprio fim desta imitação), evidentemente se segue que não devem ser representados nem homens muito bons que passem da boa para a má fortuna - caso que não suscita terror nem piedade, mas repugnância -, nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna, pois não há coisa menos trágica, faltando-lhes todos os requisitos para tal efeito; não é conforme aos sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade. O mito não deve representar um malvado que se precipite da felicidade para a infelicidade. Se é certo que semelhante situação satisfaz o sentimento de humanidade, também é certo que não provoca terror nem piedade; porque a piedade tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, o terror, o respeito do nosso semelhante desditoso, pelo que, neste caso, o que acontece não parecerá terrível nem digno de compaixão. 19 Há uma confusão na definição dos dois termos, que parecem designar somente a hamartía como falta ou erro trágico. Quem faz uma distinção é Suzanne Saïd (1978). Hirata (2008) também faz uso do termo “falta trágica” quando se refere à ἁµαρτία. 51 Resta, portanto, a situação intermediária. É a do homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece, não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro; e esse homem há-de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo ou Tiestes ou outros insignes representantes de famílias ilustres. (Poética, 1452 b 30-1453 a 12).20 Como se pode perceber, a ἁµαρτία acontece por uma falta cometida pelo herói em algum momento, falta esta que se aproxima da noção de ἄτη simplesmente por serem dois conceitos que se apresentam como marcadores de um revés na tragédia. No entanto, é importante ressaltar que, sutilmente, eles se distinguem entre si, fato este que se explicita na força e na forma como esses seres são atingidos. Dentre os estudiosos, Saïd (1978) procurou demonstrar que o erro trágico é um estágio inicial daquilo que viria a ser denominado “falta trágica”. Para a autora (1978, p. 76) não é possível compreender o conceito de ἁµαρτία sem fazer uma apresentação da noção de ἄτη. Isso acontece, principalmente, porque “le malheur (átē) se charge de culpabilité, tandis que la faute (qu’on l’appelle hamartía ou amplakía) prend l’allure d’um desastre.” Este aspecto, apontado por Saïd, esclarece duas confusões na hora de se analisar os dois conceitos. Pensando, primeiramente, em relação à ἄτη, é perceptível que ela desperta no homem a culpa, por um erro cometido por ação divina ou não, que o deixa, muitas vezes, sem mesmo entender os motivos dos acontecimentos posteriores. Em segundo lugar, a ἁµαρτία, dessa forma, torna-se uma falta humana, motivada por erros que não competem a uma instância divina, mas ao próprio homem. 20 Tradução de Filomena Yoshie Hirata em: HIRATA, F. Y. A hamartía aristotélica e a tragédia grega. In: Anais de Filosofia Clássica, vol. 2, n. 3, Universidade de São Paulo, 2008. 52 Essa tênue diferença entre os dois conceitos é o que marca a discussão entre os estudiosos. Para Dawe (1968), o maior obstáculo é compreender como um conceito excludente do papel dos deuses, que é o da ἁµαρτία, pode se encaixar em uma arte (tragédia) sobre figuras heróicas que caem na desgraça por forças divinas e irresistíveis. E é justamente realizando essa investigação que o autor conclui a evolução de um conceito para outro, como se a ἄτη representasse os primórdios da noção de ἁµαρτία, que surgiria posteriormente. Acerca da questão da responsabilidade divina e humana, que caracteriza a principal diferença entre os dois conceitos, discorre Dawe (1968, p. 100): The division of responsibility between men and gods has long been properly understood to be an irresolvable problem in Homer: or to speak more realistically, it has long been understood that the Homeric poets did not recognize any contradiction between assigning responsibility for a particular event to the gods in one line and to men in the next.21 Logo, para o autor, uma ausência de diferenciação entre uma responsabilidade humana e uma divina é o que faz com que não haja a necessidade de outro termo que compita com a ἄτη na justificativa do erro ou falta trágica. A ausência da ἁµαρτία em Homero e nas primeiras tragédias de Ésquilo, reflete uma necessidade posterior de separar o erro cometido pelo homem por ação dos deuses e aquele que é motivado por ações puramente humanas. Por sua vez, Golden (1978, p. 12), amparado pelos estudos de Bremer (1969), contraria a aproximação da ἄτη com a ἁµαρτία por acreditar que se trata de duas esferas antagônicas. Para o 21 A divisão da responsabilidade entre homens e deuses tem sido propriamente entendida há muito tempo como um insolúvel problema em Homero: ou para falar de forma mais realista, foi entendido há tempos que os poetas homéricos não reconhecem qualquer contradição entre atribuir responsabilidade de um evento em particular para os deuses em uma linha e para os homens na próxima. 53 autor, se o conceito de ἄτη é causado por uma ação externa (divina) ao homem, a ἁµαρτία, por sua vez, é motivada por uma ação interna, ou seja, de ordem humana. Essa explicação corrobora a tese de Bremer (1969) de que há uma mudança de pensamento na formação do homem grego e, portanto, uma mudança de cultura. No entanto, não é que Dawe discorde por completo dessa afirmação. Se isso ocorresse, o autor não citaria em seu trabalho a forte colaboração que Adkins (1960) realiza ao discutir a ἁµαρτία justamente como uma parte do processo evolutivo do pensamento do homem grego que, tomando consciência de sua posição no mundo, assume sua culpabilidade diante dos acontecimentos trágicos. Sendo assim, a visão de Dawe também se aproxima da perspectiva apontada por Dodds (1963) da diferença entre uma Shame-Culture em contraposição a uma Guilt-Culture. Embora Dodds não entre no mérito da relação entre ἄτη e ἁµαρτία, ao discutir os dois conceitos antropológicos, o autor estabelece a relação da mudança de pensamento que posteriormente faria com que o conceito de ἄτη se tornasse cada vez menos popular. Destarte, Saïd (1978, p. 142) conclui que não se pode deixar de perceber a relação intrínseca entre os dois conceitos, e que a única forma de compreender claramente as diferenças entre ἄτη e ἁµαρτία é realizando um estudo da responsabilidade que se exprime entre os trágicos. Ao longo da análise das passagens em que a presença do conceito de ἄτη se constata, será possível entender de forma mais clara o debate proposto pelos autores. 54 2. ANTECEDENTES LITERÁRIOS Quando a tragédia grega alcança seu auge no século V a.C., já havia na Grécia uma tradição oral e literária que não pode ser ignorada. Não é para menos que, ao discorrer sobre o conceito de ἄτη inserido no drama, é sempre necessário que se recorra a Homero, Hesíodo ou, ainda, a outros poetas anteriores, por exemplo Píndaro e Sólon, como modelos de comparação ou mesmo de diálogo existente entre dois períodos distintos de cultura. É dessa forma que é possível, também, traçar uma marca do processo de mudança do conceito de forma sincrônica. 2.1 A poesia épica É na Ilíada e na Odisseia, séculos antes do nascimento do drama, que se encontra o testemunho fundamental para a reflexão acerca das questões relativas ao pensamento grego. Questões que envolvem os valores pelos quais se rege o herói arcaico e a postura do homem diante dos percalços da guerra e de sua própria vida em sociedade são insistentemente delineadas na poesia homérica, bem como, de forma densa e coesa, é possível compreender como os deuses e os homens agem no mundo grego antigo e, mais do que isso, como essa relação pode afetar determinantemente o destino do ser humano; ou seja, enfatizam muito mais valores do que apenas a bravura dos homens gregos em sua busca por reparação ao rapto de Helena, a mais bela grega. A esse respeito, por exemplo, Lourenço (2012, p. 10) sublinha que a Ilíada, embora pareça tratar exclusivamente da questão bélica entre gregos e troianos, começa justificando pela µῆνις, ou seja, “a cólera” de Aquiles diante da desfeita de Agamêmnon em lhe tirar Briseida, sua escrava e concubina, a 55 narrativa que se propõe fazer. Justamente por isso, dentre os estudos realizados acerca do conceito de ἄτη no pensamento do homem grego antigo, muitos são os autores que dedicam particular interesse à noção na poesia épica. O tema bélico e a assiduidade constante de diversos heróis que permeiam a tradição mítica tornam o espaço épico propício à presença da ἄτη. Nos poemas homéricos, há uma gama de ocorrências que podem ser apreendidas nas diversas passagens, mais na Ilíada do que na Odisseia, e, além disso, é possível encontrar os traços principais da complexidade que envolve a interpretação do conceito. Lourenço aponta, na introdução de sua tradução da Ilíada, a opção por uma e não por outra tradução para ἄτη. Essa ressalva demonstra a dificuldade do estudioso diante do conceito: [...] E num momento que mais tarde Agamémnon qualificará de “desvario” ou “obnubilação” (utilizo em desespero de causa, estas duas traduções da introduzível palavra grega “áte”, consoante as exigências do contexto pendem mais para o campo semântico da insânia ou da cegueira)[...] (2012, p. 11) Como será visto, o que Lourenço chama de “desespero de causa” é o que Dodds (1953), cujo primeiro capítulo do livro The Greeks and the Irrational tornou-se referência no assunto, desenvolve acerca de um conceito que possui um vasto campo semântico para um único verbete, sentidos que ora se complementam ora se opõem. 2.1.1. O tratamento mítico da Ἄτη: a deusa malévola É já na Ilíada, nos Cantos IX e XIX, que o conceito de Ἄτη apresenta-se como divindade. Em ambas as situações, trata-se de discursos diretos destinados a alertar o homem sobre a 56 deusa que, presente entre os humanos, tem o poder de confundir os sentidos e para a qual o homem não possui escolha. No Canto IX, após a vantagem troiana no embate contra os gregos, Agamêmnon começa a entender todos os sinais que são narrados desde os versos iniciais da epopeia acerca da obcecação que o acometeu ao não honrar Aquiles, retirando-lhe Briseida. No entanto, quando o rei chega à conclusão de sua ἄτη é o velho cavaleiro Fênix quem intercede por ele diante de Aquiles, oferecendo-lhe honras para que o herói retornasse à guerra. Diante da recusa de Aquiles, Fênix alerta o herói sobre seu θυµὸν µέγαν “espírito presunçoso” (Il. IX.496) e as consequências dessa atitude: ἀλλ᾽ Ἀχιλεῦ δάµασον θυµὸν µέγαν: οὐδέ τί σε χρὴ νηλεὲς ἦτορ ἔχειν: στρεπτοὶ δέ τε καὶ θεοὶ αὐτοί, τῶν περ καὶ µείζων ἀρετὴ τιµή τε βίη τε. καὶ µὲν τοὺς θυέεσσι καὶ εὐχωλῇς ἀγανῇσι 500λοιβῇ τε κνίσῃ τε παρατρωπῶσ᾽ ἄνθρωποι λισσόµενοι, ὅτε κέν τις ὑπερβήῃ καὶ ἁµάρτῃ. καὶ γάρ τε Λιτα