UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes – Campus São Paulo FELIPE GUSTAVO CAVALCANTE SALLES A IMAGINAÇÃO VIGOTSKIANA E REFLEXÕES ACERCA DO ENSINO DA ARTE São Paulo 2023 FELIPE GUSTAVO CAVALCANTE SALLES A IMAGINAÇÃO VIGOTSKIANA E REFLEXÕES ACERCA DO ENSINO DA ARTE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como parte dos requisitos para a conclusão do Curso de Licenciatura em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP, sob a orientação da Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli São Paulo 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S168i Salles, Felipe Gustavo Cavalcante, 2000- A imaginação vigotskiana e reflexões acerca do ensino da arte / Felipe Gustavo Cavalcante Salles. -- São Paulo, 2023. 44 f. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti Bredariolli. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte - Estudo e ensino. 2. Imaginação. 3. Psicologia educacional. 4. Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934. I. Bredariolli, Rita Luciana Berti. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 701.15 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 FELIPE GUSTAVO CAVALCANTE SALLES A IMAGINAÇÃO VIGOTSKIANA E REFLEXÕES ACERCA DO ENSINO DA ARTE Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como parte dos requisitos para a conclusão do Curso de Licenciatura em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP Trabalho provado em: 30/11/2023 Banca Examinadora ___________________________________________ Profa. Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli Instituto de Artes – UNESP Orientadora ___________________________________________ Profa. Dra. Fernanda Pereira Medeiros Instituo de Artes – UNESP A todos os meus ancestrais, em especial, os que conversei em vida E, sempre, ao leitor. AGRADECIMENTOS A quem me possibilitou o percurso e, nele, acompanhou-me; à minha mãe, ao meu pai e às minhas amigas, Beatriz Anhaia e Laís, pela escuta e acolhida nos tormentos. RESUMO Pensa-se a imaginação elaborada por L. S. Vigotski, na teoria histórico- cultural, como sistêmica na transformação da consciência pela generalização e estruturação dos elementos perceptíveis nos conceitos, os símbolos. As bases dessa imaginação pela memória, o pensamento e o manejo da matéria, como a fala ou o desenho a se ter como linguagem. Com as imagens, a imaginação possibilita uma relação mais complexa com a realidade, uma vivência(perezhivanie): o meio e a consciência. A vivência, ao se imaginar com coesão, produz, entre outras coisas, a arte. Daí, ter a imaginação e buscar a vivência transformadora da realidade, pela imaginação com os educandos, é central no ensino da arte. Palavras-chave: imaginação; teoria histórico-cultural; vivência(perezhivanie); ensino da arte; L. S. Vigotski. ABSTRACT The imagination elaborated by L. S. Vygotsky, in cultural-historical theory, is presented as systemic in the transformation of consciousness through generalization, and structuring of perceptible elements in concepts, through symbols. The bases of this imagination, through memory, thought, and a handling of matter, such as speech or drawing to be used as language. From these images, imagination enables a more complex relationship with reality, with the environment and consciousness, a conscience in reality(perezhivanie). The conscience in reality that you imagine with cohesion produces, among other things, art. Hence, having imagination as central in the art education, and seeking a conscience in reality transformative of reality through imagination with students. Keywords: imagination; cultural-historical theory; perezhivanie; art education; L. S. Vygotsky; SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO……………………………………………………….……………… 9 2. A IMAGINAÇÃO NA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL..………....………..… 11 2.1 O Sistema psicológico da imaginação..……………….……………………… 11 2.2 Feituras da imaginação………………….……………..……………………..… 15 2.3 Nos meandros do real…………………..……………………………………….. 22 2.4 Coesão da imaginação...………………………………………………………… 27 3. O ENSINO DA ARTE E ESSA IMAGINAÇÃO.....……………………………….. 31 3.1 A arte para Vigotski..………….……………………..……………………………. 31 3.2 Reflexões e importantes correlatos……..………….…..……………………... 34 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.…………….…………………………………..……… 40 REFERÊNCIAS.…………….…………………………………..……………………….. 42 9 1. INTRODUÇÃO Realiza-se uma revisão bibliográfica acerca da noção de imaginação elaborada por Lev Semionovitch Vigotski(1896-1934) posta na psicologia que surge de seus estudos, explorando suas amplitudes e relação com outros conceitos da chamada teoria histórico- cultural. Num segundo momento, relaciona-se as discussões sobre a elaboração desse conhecimento, a partir do estabelecido acerca da imaginação e sua abrangência, já presente na teoria histórico-cultural, ao ensino da arte; e, por fim, os possíveis direcionamentos para a atuação da docência em arte com essa imaginação. Partimos de textos de Vigotski disponíveis publicamente em língua portuguesa, buscamos dar preferência às traduções diretas da língua original; quando não foi possível, utilizamo-nos de outras; em todos os casos, consideramos as discussões sobre estas, em especial, alguns termos, agregando elaborações pertinentes anteriores às revisões das traduções mais recentes. O recorte do levantamento, da leitura e da escrita desta monografia focaliza-se na imaginação, em seu papel no psiquismo, e na arte; direciona-se ao ensino da arte, especificamente, como atividade da imaginação; e sua importância. Assim, da importância da imaginação para a vivência (perezhivanie), entre as pessoas, para o fazer arte e seu ensino depreendendo-se concepções gerais e amplas, sem um enfoque específico a prática. Ao longo do primeiro capítulo, buscamos expor o entendimento que construímos da imaginação como sistema psicológico, ao mobilizar a personalidade e a consciência; e, com esta última, sua relação de maneira breve. O funcionamento e as características da imaginação que a fazem como tal, e seu arranjo de funções psíquicas superiores, como nos descreve Vigotski. Segue-se uma elaboração da importância da imaginação como interface entre a realidade e a consciência, dando ênfase na relação com o meio em sua atuação na vivência. E então, as atuações da imaginação como atividade, encontrando, o artístico entre outras que remetem a um desenvolvimento cultural. No segundo capítulo, partimos de uma apresentação da arte nas elaborações de Vigotski, como essa visão se desenrola pela emoção e a criação. A partir de outras elaborações, segue-se para uma discussão própria do chamado ensino da arte e a atuação da imaginação nela. Dos pensamentos apresentados quanto à imaginação, seu papel no ensino da arte, e as ideias da abordagem histórico-cultural, terminamos por apresentar as relações feitas da imaginação com o ensino da arte visual em reflexões. Percorrendo às discussões que achamos pertinentes, a partir da imaginação apresentada por Vigotski e o que dela depreendemos, reforça-se sua importância no 10 envolvimento com o meio como possibilidade para o fazer o ensino da arte, com as imagens, os conhecimentos e emoções na produção da linguagem. 11 2. A imaginação na teoria histórico-cultural 2.1 A imaginação como sistema psicológico A teoria histórico-cultural é reconhecida por formular, no começo e ao longo do século XX, uma psicologia histórico-cultural. Essa psicologia geral (VYGOTSKY,2004) tem, por método, o materialismo dialético e, por objeto, o psiquismo, seu comportamento e desenvolvimento, e, em especial, pelo pensamento e a fala. Entre seus principais formuladores está o crítico literário bielorrusso(REGO,1995), Lev Semionovitch Vigotski(1998,2000,2003,2004,2010,2018,2021a,2021b)1, que fundamentou a conceitualização da imaginação, que teremos como cerne de nossa análise. Ao olhar o desenvolvimento humano, à época, nos encargos da chamada pedologia2, Vigotski(1998,2004) desenvolve sua metodologia partindo da “encruzilhada” (VYGOTSKY,2004,p.203) entre três concepções psicológicas3, e da história vista aos olhos do materialismo histórico dialético, propondo um diálogo unificado dessas percepções e as colocando em um desenvolvimento simultâneo, isso fica evidenciado ao caracterizar a personalidade4: O crescimento da criança normal na civilização geralmente representa um único processo misturado com os processos de sua maturação orgânica. Ambos os planos de desenvolvimento - o natural e o cultural - coincidem e se misturam. Ambas as mudanças se interconectam e formam essencialmente uma única ordem de formação sociobiológica da personalidade da criança. Na medida em que o desenvolvimento orgânico ocorre em um ambiente cultural, ele se transforma em um processo biológico historicamente condicionado. Ao mesmo tempo que o desenvolvimento cultural adquire um caráter único e incomparável, uma vez que ocorre simultaneamente com a maturação orgânica, pois o que o conduz é o crescimento, a mudança, a maturação do organismo da criança. O desenvolvimento da fala na criança pode ser utilizado como um bom exemplo de tal combinação dos dois planos de desenvolvimento – o natural e o cultural (VIGOTSKI, 2021a, p.37-38) 1 Adotamos única e exclusivamente essa grafia, por ser a utilizada nas traduções correntes, e uniformizaremos com ela, eventuais discrepâncias podem ser em razão e solucionadas pelas referências. 2 A saber: “chamada ‘pedologia’(ciência da criança que integra os aspectos biológicos, psicológicos e antropológicos). Ele [Vigotski] considerava essa disciplina como sendo a ciência básica do desenvolvimento humano” (Oliveira, 1993, p.20 apud Rego 1995, p. 25). 3 “[…]estabelecem três significados distintos a psicologia geral, a qual definem como ciência 1) do psíquico e de suas propriedades, ou 2) do comportamento, ou 3) do inconsciente”.(VYGOTSKY,2004,p.213). Para nos, se destacam dessas as ideias Wundt, W. e Ribot, T., esse último com forte influência na ideia de imaginação; aos estudos de Piaget; e as de Freud; entre tantos outros autores dessas concepções VIGOTSKI(1998,2021a) 4 Nessa citação o autor menciona os planos de desenvolvimento, aqui não esmiuçados, é trabalhado pelo autor por termos como: filo-, onto-, (gênese), isso é exposto sobretudo em Vigotski (2021a), construímos nosso entendimento por Martins(2011) e, especialmente, por Moura, et al. (2016), como sendo a filogênese o desenvolvimento dito natural, e a ontogênese o cultural, codependentes(VIGOTSKI,2021a). Como seu sentido está englobado na citação não nos alongarmos; e os tomamos por qualificações do desenvolvimento ao longo deste texto. 12 Nota-se que para o autor o desenvolvimento se dá também personalizado, na medida que as condições orgânicas são singulares, acrescenta-se uma exposição à cultura que também se dará de maneira exclusiva para cada um ao longo do seu desenvolvimento, no contexto de sua história individual. A personalidade para Vigotski é uma “síntese psíquica superior” (MARTINS,2011,p.66), que assumimos ser um arranjo de funções psíquicas superiores ordenadas ao longo do desenvolvimento, no psiquismo humano. A função psíquica superior é um conceito basilar na teoria do autor e refere-se, sobremaneira, às condutas psíquicas adquiridas e desenvolvidas culturalmente, sobre estruturas naturais, que se exprimem em comportamentos. Ao tratar sobre a questão de seu desenvolvimento, Vigotski explícita sobre essas funções: O conceito de “desenvolvimento das funções psíquicas superiores” e o objeto de nosso estudo abarcam dois grupos de fenômenos que à primeira vista parecem completamente heterogêneos mas que de fato são dois ramos fundamentais, duas causas de desenvolvimento das formas superiores de conduta, que jamais se fundem entre si ainda que estejam indissoluvelmente unidas. Trata-se, em primeiro lugar, de processos de domínio dos meios externos de desenvolvimento cultural e de pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo lugar, dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais, não limitadas com exatidão, que na psicologia tradicional se denominam atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos etc. Tanto uns como outros, tomados em conjunto, formam o que qualificamos convencionalmente como processos de desenvolvimento das formas superiores de conduta da criança (VYGOTSKI, 1995, p. 29 apud MARTINS, 2011, p.64-65, grifos nossos). A partir disso entendemos, e adotamos, as funções psíquicas superiores5 como domínio do pensamento consciente oriundos do desenvolvimento cultural que possibilita a realização de um comportamento. Entre as funções citadas, destacamos a linguagem(fala), e o desenho, que serão importantes adiante. E, grifamos a “formação de conceitos”(id.) entre uma das “funções psíquicas superiores especiais”(id.), por acreditarmos que a imaginação tem forte influência nessa função. A imaginação, no entanto, não é classificada como uma função psíquica superior especial, pelo autor, que, em textos e momentos distintos, atribui a ela status diferentes dentro de sua teoria, mesmo mantendo as características, adotamos para a imaginação a classificação de um sistema psicológico6; pelo autor: 5 Em Martins(2011), esse “superiores” é dado como: “[…]as funções se instituem e se complexificam, tornando-se “superiores”, à medida das transformações que o emprego de signos opera sobre as imagens mentais, requalificando o reflexo psíquico da realidade, à luz do qual o homem se orienta nela.” (MARTINS,2011,p.60) 6 “Denominaremos sistema psicológico o aparecimento dessas novas e mutáveis relações nas quais se situam as funções, dando-lhe o mesmo conteúdo que se costuma dar a esse conceito - infelizmente amplo demais.”(VYGOTSKY, 2004, p.105-106), ou seja, a ideia não se distancia da de função, apenas evidencia que algo só ocorre pela relação delas, como a consciência e a personalidade. 13 A imaginação deve ser considerada uma forma mais complicada de atividade psíquica, a união real de várias funções em suas peculiares relações. Para tão complexas formas de atividade, que superam os limites dos processos que costumamos chamar de funções, seria correto utilizar a denominação de sistema psicológico, tendo em conta sua complicada estrutura funcional. São características desse sistema as conexões e relações interfuncionais que predominam dentro dele. A análise da atividade da imaginação em suas diversas formas e a da atividade de pensamento mostram que apenas enfocando estes tipos de atividade como sistemas encontramos a possibilidade de descrever as importantíssimas mudanças que nelas ocorrem, as dependências e os nexos que nelas se descobrem. (VIGOTSKI, 1998, p. 126-127; grifos nossos) No excerto, se lê que a imaginação surge da relação entre funções constituindo um sistema psicológico7, mas também se expressa como uma atividade8. Vamos elaborar melhor a imaginação à frente, mas entre as funções que a compõem, segundo as elaborações do autor, destacamos o pensamento, a fala(linguagem) e a memória. Antes de conceitualizamos a imaginação é importante destacar que assumimos a noção de consciente expressa por Martins(2011), que da continuidade de uma psicologia histórico-cultural pensando o ensino, essa seria uma “imagem subjetiva da realidade objetiva”, o desenvolvimento dessa ideia é sintetizado pela autora, em sua tese, como: […]Ao longo de sua elaboração, procuramos fornecer elementos pelos quais o psiquismo humano pudesse ser compreendido como imagem subjetiva da realidade objetiva, cuja característica central radica na inteligibilidade do real possibilitada pela instituição das funções psíquicas superiores. Essa assertiva nos conduziu ao aclaramento da imagem subjetiva como um processo que se identifica com o reflexo psíquico da realidade, cuja função matricial é a orientação do ser na natureza. Edificando-se na atividade que vincula sujeito e objeto, na complexidade dessa imagem reside um dos mais importantes atributos do psiquismo humano: ser consciente. Essa propriedade, por sua vez, não decorre daquilo que é legado biologicamente pela espécie humana, mas, pelas transformações que a atividade social promove sobre ele. Nessas transformações se encontra a gênese das funções psíquicas superiores, fundantes dos comportamentos complexos culturalmente formados. (MARTINS,2011, p. 242) Dessa formulação, a “inteligibilidade do real”(id.) nos é muito cara pois atribuímos isso sobretudo ao sistema psicológico da imaginação, que, por sua vez, teria uma atuação central na consciência e em seu estabelecimento como tal; isso, pois, para Vigotski, a pessoa, com a imaginação desenvolvida, poderá elaborar qual e como realizar determinada ação diante da realidade dada, pois para o autor: “As possibilidades de agir 7 Ao tratar de desenvolvimento, se esclarece: “A concepção de desenvolvimento psíquico em pauta, tal como apresentada por Vigotski ao dissertar sobre a estrutura das funções psíquicas superiores, indica contínuos arranjos interfuncionais e, nesse sentido, o psiquismo como sistema é, permanentemente, a articulação e reconstrução de tais funções. É, portanto, movimento.” (MARTINS, 2011, p.57) 8 Com esse termo ao longo deste capítulo, nos referimos a uma ação, oriunda de uma necessidade e se caracterizando um trabalho, de empenho da consciência, mediada, no caso, por um signo (VIGOTSKI,2021a). Sem direta relação com a noção de atividade-guia, ou atividade que pela instrução ou aprendizagem, visa o desenvolvimento do outro(VIGOTSKI,2021b). 14 com liberdade, que surgem na consciência do homem, estão intimamente ligadas à imaginação, ou seja, à tão peculiar disposição da consciência para com a realidade, que surge graças à atividade da imaginação.” (VIGOTSKI, 1998, p.130). Martins(2011), por sua vez, descreve um processo muito similar ao comentar a noção de reflexão de Kopin9, em uma análise marxista-leninista, como traz a autora, e desenvolvimento da “imagem do real” da seguinte forma: O reflexo representa não apenas o objeto mas, sobretudo, sua conversão em “imagem cognitiva”, isto é, em conceito. Como tal, potencialmente, ultrapassa os limites de uma reprodução mecânica, condensando do objeto não apenas sua expressão fenomênica, sua aparência, mas, especialmente, aquilo que ele contém, a sua essencialidade concreta, isto é, as multideterminações que encerra. Como resultado da “atividade subjetiva” o reflexo psíquico pressupõe, portanto, o processo de refletir, o contínuo movimento de superação da reprodução sensorial em direção à produção conceitual e, igualmente, o produto do reflexo, isto é, a conversão do conceito em signo, em instrumento psíquico, em mediação na atividade objetiva que liga, transformadoramente, o homem à natureza. (MARTINS,2011, p. 32-33) Por essa noção, que vamos entendendo fazer parte da imaginação da teoria histórico-cultural, no trecho, a imagem percorre um caminho do exterior que constituirá o ponto de partida para tal reflexo de uma percepção10, indo a uma conceitualização para então poder ser trabalhada a tal ponto que poderá transformar a realidade em que se insere a pessoa, ou como dito, a natureza. A relação desse processo, descrito com o sistema psicológico da imaginação, é uma de nossas instigações. Assim, entendemos que, para Vigotski, a imaginação como sistema psicológico humano é crucial na psicologia histórico-cultural, nessa em que psiquismo é constituído pela indissociação do material, as coisas na realidade11 objetiva, e do ideal, as imagens que se elabora das coisas, compondo a “imagem subjetiva da realidade objetiva” à consciência. A imaginação é mobilização12 dessa consciência, tendo origem na ação conjunta de funções psíquicas superiores, que atuam na formulação do comportamento humano, portanto da cultura. No caso da imaginação, a atuação no psiquismo ocorre pela relação do material e do sígnico, cultural, com o subjetivo interno; dessa relação há apreensão, a crítica, o direcionamento das ações para transformação da realidade; 9 Pavel Vasilyevich Kopnin, é referido de “KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.”. (MARTINS, 2011, p.247) 10 Síntese das propriedades de sensações (MARTINS,2011), ou ainda dos estímulos(VIGOTSKI,2003) 11 Em nossas leituras entendemos que a realidade para Vigotski é essencialmente uma, constituída pela história nos ditames de seu materialismo, mas também pela influência do pensamento de Spinoza, mencionada em Rego(1995, p.24) filósofo conhecido pelo monismo em seus pensamentos. 12 Em nosso entendimento da elaboração de Martins(2011) em que é dito que para Vigotski, é mais importante indicar a origem dessa movimentação que classificá-la como tal, é apresentado que para este esse processo se dá pelo “emprego de signos opera transformações que ultrapassam o âmbito específico de cada função.” (MARTINS,2011,p.58), entre elas a própria fala. 15 podendo ser dentro do psiquismo, no comportamento ou por outra exteriorização, interferindo e agindo na sociedade, como um trabalho. Ou seja, a origem da consciência é a interação da estrutura orgânica com o mundo objetivo por meio de signos, logo da linguagem(fala), e a elaboração disso é a ação da imaginação. Em outros termos, a imaginação possibilita a transformação da consciência (MARTINS,2011), quiçá da personalidade, entretanto direcionamos nossos esforços sobre o sistema psicológico da imaginação e sua atuação, sabendo-se que essa se situa, em uma elaboração teórica, entre a consciência13 e a personalidade, que a relação não é a objeto dessa análise. 2.2 Feituras da imaginação Na formulação teórica de Vigotski, a imaginação surge da interação entre as funções psíquicas superiores da memória, do pensamento e da fala(linguagem), entre elas e com a realidade (VIGOTSKI,1998; 2018), e em uma de suas elaborações, os contornos da imaginação se fazem pela descrição de sua interação com essas funções. A função psíquica superior da memória tem como principal caracterização a retenção e a reprodução de elementos da percepção, e seu desenvolvimento cultural se explicita, para o autor, pela possibilidade da pessoa criar estruturas, se utilizando de sígnicos, distinto do que se pretende memorar, como estímulo externo, a serem interiorizados com a finalidade de reter alguma informação e, posteriormente, lembrar14. Esse processo é perpassado pela fala(linguagem), na interação com o meio sígnico; pela imaginação, para criação da estrutura; e pela atenção ao que se quer da estrutura ao evocá-la; possuindo influência na intenção da pessoa sobre as ações em geral (VIGOTSKI, 2021a). Em relação à imaginação, há uma distinção sobretudo pela finalidade, a memória é motivada pelo reavivamento de acontecimentos na consciência e, quando culturalmente desenvolvida, pode percorrer uma lógica de sucessão, recordar, se utilizando do simbólico. A imaginação estrutura esse percurso, e se favorece com essa ação da memória. A imaginação reprodutora é a própria memória. Para os psicólogos, era a atividade da psique com a qual reproduzimos na consciência uma série de imagens que vivemos, mas que reconstruímos sem que existam motivos imediatos 13 No fundo essa questão disputa a noção de consciência como um movimento, mas que pelo plano de fundo de Vigotski(2021a,1998) essa se faz pelo acumulo histórico, ou a organização hierárquica do psiquismo feita por esse autor (DAVYDOV,1966) 14 “Ao deliberadamente tentar lembrar de algo se estará passando por uma estrutura sígnica imaginada que influencia a própria memória” (VYGOTSKY, 2004, p.110-111). 16 para isso. A atividade da memória, que consiste no aparecimento na consciência das imagens vividas anteriormente e que não se relacionam com um motivo atual imediato para sua reprodução, era chamada pelos velhos psicólogos de imaginação. Ao diferenciar esta forma de imaginação da memória em sentido estrito, os psicólogos assim se expressavam: se ao ver agora uma paisagem me lembro de outra parecida, que já vi outra vez, em algum lugar de outro país, tratar-se-á de uma atividade da memória, porque a imagem presente, a paisagem presente, desperta em mim a imagem vivida. Trata-se do movimento corrente das associações, que constitui o fundamento das funções da memória. Mas se, mergulhado em meus próprios pensamentos e reflexões, sem estar vendo paisagem nenhuma, reproduzo na memória uma paisagem vista por mim alguma vez, esta atividade se diferenciará da atividade da memória pelo fato de que o impulso imediato para ela não provém da existência das impressões que a provocam, mas de certos processos distintos. (VIGOTSKI, 1998, p. 108, grifos nossos). O destaque em contraste com a observação feita pelo autor de que: “A diferença entre a memória e a imaginação não consiste na atividade em si desta última, mas nos motivos que provocam essa atividade” (VIGOTSKI, 1998, p.109), faz pensar que a imaginação diferente da memória, não surge do acionamento de uma cadeia de elementos da percepção anterior, por uma dita estrutura, mas da motivação de compor uma imagem que constitui a estrutura. Ou seja, a memória advém da motivação de acionar elementos percebida anteriormente, algo que podemos entender se estender a replicação de um comportamento. Há algum grau de indissociação da imaginação, pois esta cria e estaria buscando uma ampliação, por um conceito, como o de “paisagem” dito na citação, ao mesmo tempo que ela, a imaginação, parte da memória de paisagens, “Dito de outro modo, a imaginação está muito arraigada no conteúdo de nossa memória.”(VIGOTSKI, 1998, p.112), e complementamos, ela se traduz em realizar novas ações como a criação de paisagem distinta, daí há a afirmação da imaginação se direcionar ao futuro15, e nisso se distingue a motivação da memória e da imaginação. A esse respeito Martins(2011) corrobora ao afirmar sobre a singularidade da imaginação: Uma vez que todos os processos funcionais são, de certo modo, processos imaginativos, a singularidade da imaginação reside em que, nela, as imagens das experiências prévias se alteram, produzindo outras e novas imagens. Trata-se de uma atividade mental que modifica as conexões já estabelecidas entre imagem e objeto, produzindo outra imagem figurativa. A imagem assim produzida pode operar como modelo psíquico a ser conquistado como produto da atividade orientada por ele, ou seja, por meio desse processo se constrói a imagem antecipada do produto da atividade.(MARTINS,2011, p.180, grifos nossos) Na imaginação, visto a memória, a função psíquica superior do pensamento é importante no processo de elaboração. Descrito por possuir uma “complexa 15 Essa é a conclusão do autor sobre a principal atuação da imaginação em seu livro sobre. (VIGOTSKI,2018). 17 relação”(VIGOTSKI, 1998, p.129) com a imaginação, a função psíquica superior do pensamento, na imaginação, é posta, pelo autor, ao se referir ao caso de criação da personagem Natacha por Tolstoi, como uma combinação de elementos: “O realce de cada um desses traços e a rejeição de outros são o que, devidamente, podemos denominar dissociação. Esse processo é de extrema importância em todo o desenvolvimento humano; ele está na base do pensamento abstrato e na formação de conceitos” (VIGOTSKI, 2018, p. 38). Explicitar a abstração e conceitualização do pensamento para a imaginação, é fundamental, já que essas possibilidades serão utilizadas num processo de fragmentação e recombinação, a “dissociação e associação das impressões percebidas”(VIGOTSKI, 2018, p. 38) em um novo todo, uma nova imagem pela imaginação, e que essa é também um alicerce do pensamento16, esse que conserva sua importância na imaginação na capacidade de distinguir elementos percebidos, simbolizar e recombiná-los. A sintetização de Marins(2011), acerca do pensamento, corrobora esse entendimento: Ao pensamento cumpre a tarefa de superar essas condições em que as relações entre os objetos revelam-se superficiais e aparentes, avançando do casual ao necessário, da aparência à essência, promovendo a descoberta de regularidades gerais, de múltiplas vinculações e mediações que sustentam sua existência objetiva. O produto dessa descoberta, por sua vez, firma-se como generalização, de modo que pelo pensamento se instala um trânsito do particular ao geral e do geral ao particular.(MARTINS,2011, p.151, grifos nossos) O trecho é também interessante posto junto a noção de conceito que Vigotski utiliza: A lógica formal considerava o conceito como um conjunto de traços do objeto afastado do grupo, como um conjunto de traços gerais. Por isso o conceito surgiria como resultado da paralisação de nossos conhecimentos sobre o objeto. A lógica dialética mostrou que o conceito não é um esquema tão formal, um conjunto de traços abstraídos do objeto, mas que oferece um conhecimento muito mais rico e completo do mesmo. Toda uma série de investigações psicológicas, e entre elas concretamente as nossas, conduzem-nos a uma formulação do conceito em psicologia. A questão de como este, ao se tornar cada vez mais amplo, ou seja, ao se referir a um número cada vez maior de objetos, não empobrece seu conteúdo, como opina a lógica formal, mas sim o enriquece, é uma questão que obtém uma resposta inesperada nas investigação e se vê confirmada na análise do desenvolvimento dos conceitos em seu perfil genético, em comparação com formas mais primitivas de nosso pensamento. As investigações revelaram que, quando o sujeito de uma prova resolve uma tarefa de formação de nossos conceitos, a essência do processo que ocorre consiste no estabelecimento de conexões; ao buscar outra série de objetos para esse objeto, busca a conexão entre ele e outros. Não se relega uma série de traços a um segundo plano, como na fotografia coletiva, mas, pelo contrário, cada tentativa de resolver a tarefa consiste na formação de 16 Construímos esse entendimento, já que ao expor suas divergências, acerca da fantasia, com J. Piaget, Vigotski explicita que o pensamento realista vem com o domínio da imaginação, e com a diminuição de um pensamento egocêntrico. (VIGOTSKI, 1998) 18 conexões e nosso conhecimento sobre o objeto se enriquece devido ao fato de que o estudamos em conexão com outros objetos.(VYGOTSKY, 2004, p. 120-121) Em que um conceito se enriqueça pelas relações que ele é capaz de estabelecer com outros, e que o pensamento acerca desse conceito vai do geral ao específico correlacionando-os; então, na generalização, entendemos que há a abstração do pensamento e, nela, o momento para a imaginação. Esta que, ao se realizar, faz uma dissociação de elementos que se reelaboram em uma nova imagem, pois, para uma pessoa que passou por essa abstração, eles são gerais e se relacionam com a sua imagem subjetiva da realidade objetiva, a ponto de se agregarem e gerarem uma nova imagem correlacionada com a sua personalidade, a que poderá se fazer um conceito internamente, e, ao ser pensada em sua exteriorização, sua relação com a matéria, diante de uma necessidade vivenciada, novamente, imagem. Essas características do pensamento, que são advindas de um desenvolvimento cultural, iriam compor o que é posto, na literatura da teoria histórico-cultural, como pensamento teórico(MARTINS,2011). Todo processo descrito, até então e em especial esse último, é perpassado e correlacionado pela função psíquica superior da fala (linguagem): Como mostram investigações que aqui não vamos abordar, todas as funções psíquicas superiores têm como traço comum o fato de serem processos mediatos, melhor dizendo, de incorporarem à sua estrutura, como parte central de todo o processo, o emprego de signos como meio fundamental de orientação e domínio nos processos psíquicos. No processo de formação dos conceitos, esse signo é a palavra, que em princípio tem o papel de meio na formação de um conceito e, posteriormente, torna-se seu símbolo. Só o estudo do emprego funcional da palavra e seu desenvolvimento, das suas múltiplas formas de aplicação qualitativamente diversas em cada fase etária mas geneticamente inter-relacionadas, pode ser a chave para o estudo da formação de conceitos(VIGOTSKI,2000,p.161-163) Ao que se lê, a palavra (signo) é o material em que se constituem os conceitos, mantendo, posteriormente, um elo de símbolo com ele, e podendo acioná-lo. Ou seja, seriam os conceitos suscitador das funções psíquicas superiores, entretanto elas só seriam avocadas por meio de um símbolo, como a palavra, esta, que para o autor, tem como forma, em última instância, sons, os fonemas; de tal modo a palavra dá luz ao conceito, se faz ilustração deste, e, ao fazê-lo, reforma as funções. Evidencia-se a importância da função psíquica superior da fala, aqui, em profunda relação com a do pensamento, mais especificamente do pensamento verbal(VIGOTSKI,2021a). A respeito desta relação da palavra com um conceito e ao que chamamos de imagem, acreditamos que a passagem a seguir, elucide o vínculo entre a palavra, seu significado, e a noção de imagem: 19 Se considerarmos a palavra provoronit, temos três pontos importante: primeiro, o complexo de sons; segundo, o significado (provoronit significa bocejar prolongadamente); terceiro, a relação entre a palavra e determinada imagem, de modo que na palavra provoronit há certa imagem interna (um corvo faz isso quando ele abre a boca). Certa comparação interna é feita, uma imagem interna ou pictograma dos sons condicionados relacionados à imagem interna. Quando dizemos petushitsya, então certa imagem aparece para a qual não existe uma palavra adequada; estamos comparando uma pessoa com um galo; quando dizemos goluboe nebo [azul-celeste], uma comparação da cor do céu com a asa de um pombo fica clara para todos; quando dizemos voronoi kon [cavalo negro], a palavra voronoi está relacionada à asa de um corvo [voron]. Em todos esses casos é gerada uma figura que liga o significado ao signo. (VIGOTSKI, 2021a, p.238; grifos próprio e observações em chaves da tradução da edição) Assim, a função da fala tem em especial importância para a imaginação, a sua formulação, significação e exteriorização, na “imagem interna”(id.), para decorrência junto aos processos do pensamento. É na imagem que os conceitos se relacionam para se formarem como tal, e a relação das palavras (signo) e da imagem seria essa última um conjunto da primeira; assim, a imagem é uma estrutura de múltiplos conceitos. Ainda dá passagem, é importante destacar dois pontos sobre a noção de imagem, para o autor: ao colocar que há uma imagem interna, se coloca que essa possui um caráter ou correspondente externo; a relação do som, com um “pictograma”(id.) e com o significado, o destaque é para o caráter multissensorial na elaboração da imagem interna. A imagem que se distingue do conceito, portanto dos símbolos, e dos signos é uma estrutura que se faz também por eles, daí uma das importâncias da função psíquica superior da fala (linguagem) para a imaginação. Faz-se necessário pontuarmos que a função superior psíquica da fala foi, por vezes, traduzida e entendida como pôr da linguagem, causando implicações no entendimento visto maior amplitude do termo linguagem(PRESTES,2010)17. Entretanto, mesmo assumindo a tradução por fala em detrimento de linguagem, entendemos a importância dessa função para além da palavra, visto que o que ela preconiza na elaboração do autor é constituir-se como um meio formador, a ser posteriormente símbolo, do conceito, o que não se limita à palavra, mesmo que, como supracitado, por vezes Vigotski(2021a) de centralidade a esta. Nesse sentido é válida a ressalva de Prestes(2010): “Tudo o que diz respeito à fala diz também respeito à linguagem, mas nem tudo o que diz respeito à linguagem pode ser entendido como fala. Para Vigotski, a fala está relacionada à principal neoformação da primeira infância e graças a ela a criança 17 Por essa razão, nesse texto trazemos a nomenclatura de função psíquica superior da fala, e quando comentamos citações que usam a tradução por linguagem, comentamos com fala entre parênteses, ou o reverso. Mas entende-se que a linguagem vem da fala, ou outras funções. Fiquemos com essa distinção a diante, a fala como a função psíquica e a linguagem outra coisa mais ampla. 20 muda a sua relação com o ambiente social do qual é parte integrante.”(PRESTES,2010,p.182); ou seja, as afirmações acerca do processo de desenvolvimento e características da função psíquica superior da fala são um caso específico da linguagem, e então a descreve também, mesmo que parcialmente. Isso é importante pois, a partir dessa função da fala, entre outras, que se elabora o sistema da imaginação, não significando que esta se limite ou dependa exclusivamente da fala, e também com a interação com o ambiente, pois, como se tentou expor acima, o fundamental dessa função à imaginação é sua interação com o conceito exposto e exemplificado pelo caso da palavra, e o quê da formulação da função psíquica superior da fala não é válido a linguagem. Isso só nos será pertinente em relação a imaginação, a qual atribuímos a estruturação dos significados, sejam eles significados por palavras ou não, pois o que nos é importante é a capacidade de distinguir e simbolizar um determinado elemento perceptível, que da aglutinação visual se pode ter do imediato pela fala(VIGOTSKI2021a), que interiorizando imagens externas, elabora, nesse entendimento, a linguagem É mais relevante nos dedicarmos a uma possível necessidade de distinção entre a imaginação e a significação exposta e à que foi atribuída a função da fala. Como se utiliza uma noção de conceito a partir das periferias, suas relações com os outros conceitos, e não focalizando em uma essência; a função psíquica superior da fala assim o faz conceitualizando algo pela relação com seu entorno e passando a atribuir-lhe um símbolo, conforme vimos, o delimita. Já a imaginação realizará sua ação no entorno do símbolo, a imaginação trabalha na transformação do meio em que o símbolo se situa, e assim, de alguma forma, o significa, também, por relacioná-lo. A dificuldade dessa distinção remete a necessidade de termos a imaginação como um sistema psicológico e que sua própria formação e ação se dão a partir da função psíquica superior da fala, e a diferenciação nos é inócua, se a primeira se caracterizar pela segunda. Entretanto, a imaginação atua na transformação do meio em que o símbolo se encontra (imagem), a partir de símbolos, possibilitando aos símbolos, posteriormente, atuarem sobre seu próprio psiquismo, ao passo que, faz isso também pelos símbolos. Ou seja, a ação de simbolizar ganha uma ampliação pela imaginação, evidenciando-se também essa reelaboração do contexto do símbolo e sua conseguinte transformação, que só ocorre mediante a função da memória e do pensamento abstrato. Para concluirmos esse momento, é importante voltarmos às elaborações acerca da memória em seu desenvolvimento cultural. Pois, ao descrever esse processo, o autor evidencia e faz ganhar mais um contorno à imaginação; onde se estabelece a criação de 21 uma estrutura, uma imagem, que associa palavra, desenho, memória (VIGOTSKI,2021a), (VIGOTSKI,2021b), com a finalidade de lembrar, evidencia-se que, na associação entre a palavra e o desenho, vislumbra-se uma potência de ações psíquicas. Isso tanto pela palavra ser um signo, quanto pelo desenho, também, o ser: […], o desenho possui um enorme sentido cultivador; quando, segundo o depoimento apresentado acima, as cores e o desenho começam a dizer algo para a adolescente, esta começa a dominar uma nova língua, que amplia sua visão de mundo, aprofunda seus sentimentos e transmite-lhe na língua de imagens o que de nem uma outra forma pode ser levado até a consciência”(VIGOTSKI, 2018, p.117, grifos nossos) Sem que entremos no mérito da fala está para o conceito, como o desenho está para os sentimentos, a maneira que se coloca nas citações, tomemos o desenho como linguagem18. Pois, intriga que, na elaboração da estrutura para se lembrar, faz-se uma associação entre essas duas linguagens, que se integram pela imaginação nessa imagem que estimula a atividade de memorar. Tenhamos de outra maneira, para lembrar-se de algo, a partir de símbolos distintos, imagina-se uma estrutura que, ao atrelá-los até seu conceito, cria a imagem que possibilita o reavivamento. Disso, pode-se ter que é, em generalizações diferentes, que se mantêm uma relação com um mesmo particular, então há a possibilidade de imaginar. A imaginação se favorece da simbolização por diferentes linguagens de um mesmo elemento do real, ou, ainda, de conceitos distintos a um mesmo na realidade. As imagens internas são estruturas de elementos já significados, conceitos e elementos da síntese da percepção19(MARTINS,2011), possibilitando outras significações. Esse manejo, dá-se, a partir das funções psíquicas superiores, como a da fala(linguagem), do pensamento e da memória, que, por sua vez, ativam-se pelos símbolos, nesse sentido, a imagem suscita uma ação psíquica, novamente a importância de se ter a sistêmica da imaginação. A ação psíquica que se pode atribuir à imaginação é a transformação das imagens pela mobilização de seus elementos, ou a de aderir imagens externas, a partir de símbolos, da mesma forma que se pode exteriorizar imagens, passando a discussão para além da pessoa. 18 Estamos tomando tanto a fala, a palavra, como o desenho como formas de simbolizar próprias a serem caracterizadas de maneira mais amplamente, como descreve Prestes(2010), que é a de linguagem, a partir de uma leitura de F. Saussure, sobre tais classificações. Ademais, a visão que compõe a percepção é capaz de produzir conceitos (Davydov,1966), então entendemos que símbolos e posteriormente uma linguagem, que como oriunda de uma função tal qual a fala, poder-se-ia pensar em uma função do desenho, ou do olhar. 19 Em Martins(2011) se figura tal qual um modelo psíquico mais o comportamento que ele suscita, ou seja, sua materialização. Em Davydov(1966), é um complexo de signos, que já é elaborado como tendo uma transposição do conceito para o real, e faz parte do processo de generalização, que aqui damos enfoque em ser a imaginação. 22 Todas as ações da imaginação, que depreendemos de Vigotski, podem, ainda, possuir um aspecto de criação. A leitura que fazemos da elaboração sobre imaginação do autor, é que a criação, ou criatividade é uma qualidade da imaginação. “Toda atividade do homem que tem como resultado a criação de novas imagens, e não a reprodução de impressões ou ações anteriores da sua experiência, pertencem a esse segundo gênero de comportamento criador ou combinatório”(VIGOTSKI,2018,p.15). A imaginação criativa, ou criação, é delimitada pela qualidade da ação resultante da imaginação: se a imagem elaborada é nova, então essa imagem é adjetivada criativa, e sua ação como criação. E isso é em virtude de um recorte e contexto em que se insere, a uma dimensão pessoal ou social, e o quanto sua novidade é significativa a necessidade que a gerou, como ação da imaginação. Assim, se entende que falar de imaginação é também falar de criação, muito embora essa última possui essa qualificação. Da mesma forma, a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado às criações dos gênios. Se levarmos em conta a presença da imaginação coletiva, que une todos os grãozinhos não raro insignificantes da criação individual, veremos que grande parte de tudo o que foi criado pela humanidade pertence exatamente ao trabalho criador anônimo e coletivo de inventores desconhecidos.(VIGOTSKI, 2018, p.17) Para tomar a dimensão de uma “imaginação coletiva”(id.), de uma criação, essa deve mesmo que, de grãozinho em grãozinho, tomar forma em um meio a abrigar “tudo que foi criado pela humanidade”(id.), esse meio, a própria realidade, e a relação da pessoa com ela, é algo que então devemos elaborar a diante. 2.3 Nos meandros do real Esse traço — o ímpeto da imaginação para encarnar-se — é a verdadeira base e o início motriz da criação. Qualquer construção que parta da realidade tende a fechar o círculo e encarnar-se na realidade. (VIGOTSKI, 2018, p.58) Vigotski(2018) enumera a relação da imaginação com a realidade, em quatro “formas principais”: a realidade como fonte dos elementos utilizados na imaginação, estando na memória; a imaginação como reconstituidora de uma realidade antecedente a partir de relatos ou resquícios do passado no presente, ação que evidencia a relação com o pensamento; a emoção, sempre real, como resultante ou motivadora da imaginação, nesse último caso, a emoção será uma amálgama da imaginação; a exteriorização da imaginação à realidade, ao ser encarnada, passa repercutir sobre a realidade, expondo, 23 uma das muitas, relações com a fala, (VIGOTSKI,2018) e a linguagem. Como “[…]toda obra da imaginação constrói-se sempre de elementos tomados da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa”(VIGOTSKI,2018,p.22) as atividades que a memória suscitam, como lembrar ou replicar uma ação, suscitam o sistema psicológico da imaginação, que por sua vez se exterioriza mobilizando a realidade. Cabe salientar, a importância da imaginação em dimensionar o tempo permitindo a consciência ir além do presente. Tanto para o passado, ao formular a própria memória e a uma memória histórica a partir de relatos; a “[…]imaginação, nesse caso, não funciona livremente, mas orienta-se pela experiência de outrem, atua como se fosse por ele guiado, que se alça tal resultado, isto é, o produto da imaginação coincide com a realidade”(VIGOTSKI,2018,p.26), acrescentaríamos, que a imaginação se propõe a coincidir com a realidade, e que o: “não funciona livremente”(id.) diz respeito a uma proposição consciente na imaginação ser atrelada a algo, simbólico, do qual não estaria livre nessa relação com a realidade, poderíamos dizer ser pensamento abstrato simbolicamente condicionado (“guiado”(id.)), pelo relato, há algumas memórias de tal maneira a induzir a determinada imagem na consciência, como uma metodologia. Tanto como, indo além do presente, para o futuro ao elaborar tomadas de ação que impactam no meio, vislumbrando a criação de outra realidade já que “[…]todo o futuro é alcançado pelo homem com ajuda da imaginação criadora. A orientação para o futuro, o comportamento que se apoia no futuro e dele procede é a função maior da imaginação” (VIGOTSKI,2018,p. 122), mas essa que só se estabelece no psiquismo em relação unificada com o meio. A maneira em que isso se exteriorizará ao meio e a amplitude de sua repercussão na realidade é uma outra discussão, mas colocamos que sempre será, também, simbólica, diante do que estabelecemos anteriormente. A realidade é a origem dos elementos que estarão disponíveis para uma formulação da imaginação, é limitar a imaginação ao repertório da pessoa. Nesse sentido, ninguém conseguirá imaginar com elementos que não tenham sido apreendidos da realidade(VIGOTSKI, 2018). Entretanto, a possibilidade de cada vez mais se reelaborar imagens que já foram, por vezes, imaginadas e distanciadas da realidade, ou ainda reimaginadas e postas no meio, é uma possibilidade que o autor não limita, isso é exposto ao se falar da arte. A esse respeito é importante salientar que pelo simbólico se faz uma forma de encontrar a imagem, externa no meio, elaborada por outra pessoa, inclusive de tempos distintos. A emoção é um componente formulador da imaginação (VIGOTSKI,1998), e sua relação com a realidade se dá pelo fato de a imaginação poder, pelas imagens, suscitar 24 emoções reais sobre as pessoas que dela depreendem algum significado emocional. [...]As imagens e as fantasias propiciam uma língua interna para o nosso sentimento. O sentimento seleciona elementos isolados da realidade, combinando-os numa relação que se determina internamente pelo nosso ânimo, e não externamente, conforme a lógica das imagens. Os psicólogos denominam essa influência do fator emocional sobre a fantasia combinatória de lei do signo emocional comum. A essência dessa lei consiste em que as impressões ou as imagens que possuem um signo emocional comum, ou seja, que exercem em nós uma influência emocional semelhante, tendem a se unir, apesar de não haver qualquer relação de semelhança ou contiguidade explícita entre elas. Daí resulta uma obra combinada da imaginação em cuja base está o sentimento ou o signo emocional comum que une os elementos diversos que entram em relação. [...] Entretanto, existe ainda uma relação inversa entre imaginação e emoção. Enquanto, no primeiro caso que descrevemos os sentimentos influem na imaginação, nesse outro, inverso, a imaginação influi no sentimento. Esse fenômeno poderia ser chamado de lei da realidade emocional da imaginação. (VIGOTSKI, 2018, p.28-29, grifos nossos) Na passagem20, explicita-se a liga e a bilateralidade em se suscitar da imaginação e da emoção. E ainda se coloca a imagem em duas características intrigantes. A imagem propicia “língua interna para o nosso sentimento”(idem.), possui um papel importante para a emoção se fazer como é, a partir dos afetos sentidos, o afeto se fará emoção, mobilizados pela imaginação, entretanto os dois não se dissociam. As emoções, sucintamente, são desenvolvidas culturalmente a partir dos afetos, e interferem no pensamento, e portanto, novamente, na imaginação. A relação do pensamento com a afetividade é posto por Martins(2011): A significação imbrica pensamento e linguagem, e, também, razão e afeto. Todo e qualquer sentimento carrega consigo um complexo sistema de ideias por meio dos quais possa se expressar. Portanto, tal como não há ideia sem pensamento não há, igualmente, ideia alheia à relação da pessoa com a realidade. Da mesma forma, não há relação com a realidade que possa ser independente das formas pelas quais ela afeta a pessoa. Assim, toda ideia, diga-se de passagem, conteúdo do pensamento, contém a atividade afetiva do indivíduo em face da realidade que representa. (MARTINS,2011,p. 57, grifos nossos) Da sobreposição dessas duas relações da imaginação com a realidade que interagem com o indivíduo é que há suas próprias elaborações, que partem da realidade e possibilitam uma dimensão temporal, acarretarão e se darão com uma significação emocional. Assim, ao elaborar sobre o futuro, o será com alguma emoção, e, ao exteriorizar, ou em outros termos, ao fazer uma “imaginação cristalizada”21 se imbuirá o 20 Estamos assumindo a imagem como sinônimo de fantasia, ou, se não como uma qualificação da resultante da imaginação, tal qual a criação. Não discutiremos esse mérito. 21 Vigotski (2018) faz uso da ideia de “imaginação cristalizada”(VIGOTSKI,2018,p.17) retirando-a do psicólogo Th. Ribot, para se referir ao que por vezes nos referimos pela exteriorização da associação da 25 meio afetivamente. Para a imaginação é importante a direção da consciência, que consiste em se afastar da realidade, em uma atividade relativamente autônoma da consciência, que se diferencia da cognição imediata da realidade. Junto com as imagens que se criam durante o processo da cognição imediata da realidade, o indivíduo cria imagens que são reconhecidas como produto da imaginação. Num nível alto de desenvolvimento do pensamento criam-se imagens que não encontramos preparadas na realidade circundante. A partir disso, torna-se compreensível a complexa relação existente entre a atividade do pensamento realista e a da imaginação em suas formas superiores e em todas as fases de seu desenvolvimento. Toma-se compreensível que, junto com cada passo na conquista de uma mais profunda penetração na realidade, a criança vai se libertando, até certo ponto, da forma mais primitiva de conhecimento da realidade que antes conhecia.(VIGOTSKI, 1998, p. 129) O excerto está numa discussão acerca do pensamento realista e a imaginação no desenvolvimento, que se encontram e à medida que o pensamento se desenvolve a imaginação assim faz, como se coloca ter um caráter cofuncional, o desenvolvimento da imaginação possibilita ao pensamento a abstração, conceitualização (VIGOTSKI, 1998) e a teorização da realidade. Por isso, olharemos nesse momento para a relação da realidade com a imaginação, já sabendo que essa permite um envolvimento mais complexo com o meio22. Essa relação, vista por um prisma de sua produção da ação da imaginação é colocada como cíclica, no sentido, que parte da realidade sempre, passa por uma longa elaboração, e “finalmente, ao se encarnarem, retornam a realidade como uma nova força ativa que modifica. Assim é o círculo completo da atividade criativa da imaginação”. (VIGOTSKI,2018, p.31); essa cíclica é importante mas não definidora, já que também se assume que uma criação não precisa ser exteriorizada23(como numa imagem interna), mas quando ocorre essa pode ser “uma nova força ativa que modifica” (id.), ou seja reverbera no meio, e posto dessa forma se percebe que essa nova imagem transforma o meio. O que se coloca, então, é uma descrição da relação entre o psiquismo com a realidade, sobretudo a atuação do sistema psicológico da imaginação com o meio. Proporcionando uma vivência, um tipo de relação a partir da qual se estabelece uma imaginação, em nossa leitura alude a uma imagem posta no meio, e a essa ideia atribui tudo que já foi desenvolvido culturalmente pela humanidade. 22 Uma diferenciação entre meio e realidade não foi encontrada explicitamente, se entende do que lemos que realidade é usado para denotar que se está sujeito a imposições materiais, regras, e toma um caráter mais amplo; já meio é voltado ao envolvimento da pessoa com exterior à consciência; “Tal como na questão da hereditariedade, o pedólogo estuda não o meio e as regras que o constituem, mas seu papel e significado, sua participação e sua influência no desenvolvimento da criança.” (VIGOTSKI,2010,p.682) 23 “Chamamos de atividade criadora do homem àquela em que se cria algo novo. Pouco importa se o que se cria seja algum objeto do mundo externo ou uma construção da mente ou do sentimento, conhecida apenas pela pessoa em que essa construção habita se manifesta” (VIGOTSKI,2018,p.12); entretanto, achamos pouco provável que a criação não se exterioriza de alguma forma e apenas seja exaurida na consciência, estando a pessoa em uma vivência (perezhivanie). 26 unidade entre a pessoa e o meio24. A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado – a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa – e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento.(VIGOTSKI,2010, p. 686, grifo próprio) Esse entendimento de vivência (perezhivanie) é expresso numa aula do autor em que se tem registo, nela a discussão se debruça sobre o meio no desenvolvimento da criança, que possui também uma relação com a imaginação, e devemos contextualizar que, mais adiante, no texto da citação, se promove a ideia de que não é uma integralidade da personalidade que se relaciona com o meio em sua totalidade, mas alguns elementos de cada a constituir uma vivência (VIGOTSKI,2010), como na descrição feita até então da imaginação. Repercutindo o entendimento de vivência com o da relação cíclica da imaginação com a realidade exterior, há quando se exterioriza uma imagem, sobretudo as de “uma nova força ativa que modifica” (VIGOTSKI,2018, p.31) uma unidade de transformação, a movimentação da consciência se transborda e se faz pela da realidade, que ao longo do tempo acarreta o desenvolvimento da vivência, ou seja, a criação da pessoa e do meio. A vivência num meio que tem múltiplas pessoas, pela mesma lógica de unidade, possibilita a união entre elas, sem que estas deixem de ter seus processos internos, como a imaginação e sua cíclica entre a consciência e o meio. Essas pessoas que vivenciam um encontro, que se faz na realidade ou pelas imagens25, estão numa comunhão na qual é possível que haja a elaboração de uma imagem unificada, desde que se tenha uma coesão na memória, no pensamento, e sobretudo pela exteriorização, da linguagem no meio, que havendo torna a criação mais iminente, pelo encontro e síntese de distintos processos de imaginação interna. 24 Por vivência, nesse texto, nos referimos ao conceito de perezhivanie, do autor, tendo essa correspondência pela tradução que adotamos de Vigotski(2010). Ao tratarmos de vivência unificada, também nos referimos a perezhivanie em que abarca mais de uma consciência empenhada num mesmo meio, como descrevemos, esse entendimento é fundamental nossa elaboração. Outras experiências que não configuram a perezhivanie, não é aqui discorrida, trata-se de pensar a vivência (perezhivanie) em relação coma imaginação, e, dessa relação, uma vivência (perezhivanie) entre quem partilha o mesmo meio na perezhivanie. 25 Isso se afirma pois “o material sensorial e a palavra são partes indispensáveis da formação de conceitos”(VIGOTSKI, 2000, p.152), ou seja, a realidade percebida imediata e a mediada pelos símbolos, como as palavras, são o que comporão a imagem como elaboramos, como estruturas. Assim, a vivência atrelada à imaginação ocorre partindo de elementos diretos da realidade ou simbólicos, esse último diretamente atrelado aos conceitos, então as funções psíquicas superiores, então as consciências da vivência. 27 2.4 Coesão da imaginação As atividades que podem ser atribuídas diretamente à imaginação, a maneira que a descrevemos, são as que agem no contexto do mediador das atividades, os signos e/ou instrumentos (VIGOTSKI,2021a), causando uma mobilização, uma transformação, reverberando em sua utilização, inovando ou não, identificamos isto no que se descreve da brincadeira, atividade intrinsecamente atreladas a imaginação. Essas atividades da imaginação são ações as que, ao longo do tempo, irão se fazer nas vivências unificadas a composição do desenvolvimento cultural, um conjunto de imagens externas, onde podemos encontrar a arte. Nas elaborações de Vigotski, há a interpretação de outros povos em que o desenvolvimento de práticas que se utilizam de estruturas simbólicas, próprias de cada cultura, para realizarem ações, como para memorar, usa-se os nós, ou decidir, joga-se ossos, nos exemplos do autor (VIGOTSKI,2021a); mas poderíamos figurar como tal ter um calendário ou jogar uma moeda num cara ou coroa. Interessa-nos o momento em que estas atividades, que se usam de signos, se constituem, e, portanto, em algum grau, criam-se nessas estruturas simbólicas, como o contexto dos signos, transpõem-se a um contexto social e perduram-se, em outros termos, o desenvolvimento da cultura pela histórica de como se lidar com a realidade. A problemática, tendo que, “A vida social cria a necessidade de sujeitar o comportamento do indivíduo às necessidades sociais e também criar sistemas de sinalização complexos, meios de comunicação que guiam e regulam o desenvolvimento das conexões condicionadas no cérebro de cada indivíduo”(VIGOTSKI,2021a, p.109),e tendo que a “vida social”(id.) possibilita uma vivência unificada, ao realizar a atividade que cria esses “sistemas de comunicação complexos”(id.), está por ver-se, várias consciências imaginando ao ponto de elaborar uma síntese nessa imagem, faz com que pensemos nas atividades da imaginação como supridoras dessa necessidade, quando ação da vivência. Disso, podemos ter a linguagem como uma imagem, uma estrutura simbólica, que historicamente e correntemente, sintetizada em vivências com imaginação do elemento da percepção em que se elaboram símbolos, como pela fala, ou o desenho. Tomamos as atividades que têm como centralidade a atuação da imaginação as que modificam a relação das pessoas com a realidade alterando as imagens. Sendo as imagens estruturas simbólicas e de elementos materiais que possibilitam comportamentos, a ação que transforma os meios da atividade são próprias da atividade 28 da imaginação. Independente de se pensar uma atividade que tenha como meio um instrumento (uma imaginação cristalizada), em seu sentido mais clássico utilizado por F. Engels, para transformar a natureza, ou ainda como meio o simbólico(VIGOTSKI,2021a), ambos são oriundos na ação da imaginação, pois “na verdade, a imaginação, base de toda a atividade criadora, manifesta-se, sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando igualmente possível a criação artística, a científica e técnica”(VIGOTSKI,2018,p.16). Assim, o meio da atividade é sempre elaborado pela imaginação, como uma imagem elaborada psiquicamente, mas subordinada à realidade pela sua origem e em sua exteriorização, tendo a necessidade que a originou suprida ou não, segue-se o percurso cíclico da imaginação. Assim, a brincadeira se faz uma atividade da imaginação, e é descrita por surgir junto com o desenvolvimento dessa, num período extremamente específico do desenvolvimento da criança26, tendo muitas peculiaridades e sendo importante para todas as funções que atuam na imaginação. A brincadeira só se caracteriza como tal a partir da ação da imaginação pela criança que brinca. “Na brincadeira, a criança cria uma situação imaginária. Parece-me que é esse o critério que deve ser adotado para distinguir a atividade de brincar no interior do grupo geral de outras formas de atividade da criança. Isso se torna possível em razão da divergência entre o campo visual e semântico, surge na idade pré-escolar”(VIGOTSKI,2021 p.215). A essa “divergência” entre o imediato e o mediado, o visual e o semântico, que tomamos pela atuação da imaginação, a ação de se criar uma situação imaginária se está reelaborando o que vivencio e ao fazer isso se distancia da realidade, em algum grau, e voltando a ela ao materializar em ação se utiliza da imagem formulada na brincadeira. Assim, “A brincadeira da criança, não é uma simples recordação do que vivenciou, mas uma reelaboração criativa de impressões vivenciadas[...]”(VIGOTSKI, 2018,p.18 grifos nossos). E ao elaborar mais sobre como a brincadeira ocorrer, o autor, expõe que essa se delimitar por regras (VIGOTSKI,2021b) que condicionam o comportamento da criança, essa mesma regra se elaborar e se estabelecer em comum, que se lê como uma vivência(perezhivanie) com uma atividade da imaginação, que ao conseguir estabelecer, manter e reelaborar as regras entre os vários participantes evidência que é coesa, por sustentar uma elaboração conjunta ao longo da vivência, ou seja há alguma coesão entre as consciências que brincam. Assim, ao se ter a brincadeira como uma atividade coletiva, essa passa a ter como 26 “Penso que a brincadeira como situação imaginária é algo essencialmente novo, impossível para crianças de até três anos; é um novo tipo de comportamento, cuja essência se encontra no fato de que a atividade, na situação imaginária, liberta a criança de amarras situacionais” (VIGOTSKI, 2021b, p.222). Entendemos, no entanto, ao tomar a imaginação como sistema que suas funções se desenvolvem e vão possibilitando essas atividades. 29 uma elaboração pela situação imaginária(VIGOTSKI,2021b), a atividade das imaginações, em mais de uma consciência envolvida em determinada vivência, para isso, no entanto, deve haver um encontro entre, no caso, as crianças, não só no meio material, mas num simbólico, estabelecendo as regras de agir27, para que possam juntas elaborar, ou interiorizar, a imagem, em evidente envolvimento da consciência no meio, como uma perezhivanie. Como no jogo28 de xadrez (VIGOTSKI, 2021b) há esses encontros pelos símbolos, as regras, e na realidade objetiva, as peças, possibilitando que se jogue, na vivência. Já a (re)elaboração desse jogo é atividade da imaginação coesa, e o salto da elaboração de uma imagem individual à coletiva, como no exemplo, seria a criação de outras regras para o jogo de xadrez, outras formas as peças, ou num exemplo por excelência, a criação de outra brincadeira tal qual essa. O que propicia essa imaginação, ao que elaboramos sobretudo da memória, é que de generalizações distintas do meio e de impressões anteriores exteriorizadas, no caso, na brincadeira, que como algo particular dessa vivência partilhada, propicia ao imaginar a elaboração de uma síntese em imagem entre essas consciências de diferentes conceitos. Mas não devemos perder de vista que a brincadeira é uma atividade de comum ocorrência em um momento específico do desenvolvimento com grande importância para o pensamento abstrato (SILVA,2019) e pode ter suas limitações quanto a manter o que atribuímos a uma coesão, pela própria memória, fala e pensamento, sobretudo, abstrato ainda estarem por se desenvolverem, interferindo que atuem plenamente em função de uma vivência unificada. Todas as atividades da imaginação que vão além de estimular a elaboração de uma imagem interna, as fazem no meio, em alguma vivência, então elaborando uma imagem externa. Nessas vivências, em que há uma unidade entre meio e a pessoa, existem outras pessoas, que estando elas todas partilhando do mesmo meio podem partilhar de uma mesma vivência unificada, nessa a ocorrência de qualquer atividade da imaginação depende de uma coesão, entre as múltiplas pessoas, por suas imaginações, que trata-se de uma ação conjunta na elaboração da imagem. Para que haja tal imaginação coesa a vivência entre as pessoas depende das próprias características que possibilitam a atuação da imaginação como ação psíquica, e um encontro na realidade, 27 Vigotski exemplifica brincadeiras que levam as crianças a colocarem sobre si regras autoimpostas que modificam seus comportamentos, e no exemplo em coletivo dado pelo autor figura-se duas irmãs que agem como irmãs, mas invertendo o ser a mais velha com o ser a mais nova (VIGOTSKI,2021b), que nos interessa a partilha das regras. 28 Em nota da tradução da edição utilizada se esclarece que o termo “jogo” e “brincadeira” possuem um correspondente em comum no idioma do autor: igra (ZOIA, P.; TUNES, E. apud VIGOTSKI,2021b, p.216). Mas se tem que em ambos há regras, para o autor, quando se pensa numa brincadeira simbólica (VIGOTSKI,2021b) 30 pelos elementos da percepção e os símbolos. As pessoas precisam partilhar de imagens, ou seja, símbolos e as mesmas matérias percebidas do meio ou anteriormente apreendidas da realidade, contextualizadas por memórias em comum, disso os pensamentos, em abstração da realidade, e a exteriorização de imagens internas no meio da vivência unificada, há a síntese de atuações que transformam em conjunto as imagens, os conceitos que se tem simbolizados nela e o meio, e a assim as próprias consciências da vivência (perezhivanie). 31 3. A imaginação no ensino da arte 3.1 A atividade da imaginação como arte e seu ensino Para Vigotski a arte é objeto de uma extensa análise, em seu livro, no português psicologia e arte (BARROCO; SUPERTI, 2014), e seu entendimento da arte possui uma íntima relação com a imaginação, a maneira que depreendemos acima, sendo a arte uma atividade dessa. Isso fica explicitado no trecho em que o autor se debruça sobre a capacidade dela, no caso da literatura, captar a realidade, no qual concluiu que faz parcialmente e de forma difusa (VIGOTSKI,2003)29: Entretanto, é fácil demonstrar a verdade artística e a verdade da realidade nessa figura - como em todas as outras - são encontradas em relações sumamente complexas; [é fácil demonstrar] que, na arte, a realidade está sempre tão transformada que não é possível fazer uma transferência direta do significado dos fenômenos da arte para os da vida. (VIGOTSKI,2003, p.228, chaves próprias da edição.) Como posto, a arte é a realidade transformada a tal grau que se perde a relação direta com ela. E justamente por isso, temos como possível a implicação da arte, para o autor, ser tomada como imaginação, isso é similar ao que se apresentou sobre a fala e a linguagem. A imaginação é uma atividade mais ampla; e a arte é munida de suas peculiaridades e decorrente da primeira, que, então, formula imagens, como a arte, e que, talvez, suscitem à imaginação em seus múltiplos âmbitos. Tais peculiaridades serão aqui tomadas, sucintamente, pelo resumo em relação a sua atuação no psiquismo, no prisma desse autor, por ter que a arte: […]É oportunidade de transformação por três processos: 1. catarse: transfiguração da emoção, liberação das paixões, superação; 2. sublimação: transformação de energias psíquicas não utilizadas e que merecem liberação do inconsciente e substituição de objetos de desejo; 3. criação de pensamento e linguagem. (CHRISTOV, 2013, p.129) Assim, a arte como criadora de linguagem que se faz por ser uma ação da imaginação, ao que elabora estruturas simbólicas, as imagens, por manipular elementos da percepção simultaneamente a simbolizá-los a tal ponto de fazer uma linguagem. As 29 A percepção de eventuais contradições entre o materialismo do autor e as leituras feitas dele, que sustem o desenvolvimento desse capítulo, refletem da trajetória teórica de Vigotski e a maneira como se apresenta e recebe seu texto, em nosso contexto, com inúmeros desencontros conceituais como descreve Prestes(2010). 32 demais características atuações, a catarse e a sublimação, que são postas como processos de “transfiguração”(id.) e “transformação”(id.) tem a imaginação como alicerce, no caso, a relação com as emoções, que afetam a relação com o material no fazer arte. No ensino dessa arte, nem uma dessas características deve ser pormenorizada, havendo o cuidado de não tomarmos somente o caráter da emoção na imaginação, por mais que esse possa ser vista como o único espaço para ensinar as emoções, “A análise psicológica da arte empreendida por Vigotski permite reconhecer e destacar o que a arte educa. Ela é, por excelência, a atividade que propicia a educação dos sentimentos do homem social. É próprio da arte, e somente dela, ser a técnica social do sentimento.”(PEDERIVA; TUNES, 2013, p.124). Mesmo se considerarmos que a arte é muito propícia para o ensino das emoções, sentimentos, tomá-la por excelência para tal é diminuir a importância das emoções na imaginação em outros campos do conhecimento, que então também podem influir na dita educação dos sentimentos. Ou, então, por se ter a ideia de a arte ser uma “técnica social do sentimento”(Vigotski, 1999, p.3 apud BARROCO; SUPERTI, 2014, p.24) se tem como repercussão, nos parece, que o conhecimento da arte é importante para se ter uma elaboração dos sentimentos, em especial na sublimação30, em todo e qualquer conceito que se tenha da realidade, pela atuação da emoção nesse processo, disso se teria a arte como alicerce de todos os outros conhecimentos. Qual seja dentro dessas colocações, tem-se como central o aspecto “de criação de pensamento e linguagem”(CHRISTOV, 2013, p.129), pois disso se tem o fazer arte como próprio da atividade da imaginação, tal qual o brincar: pela criação, pela sua singularidade, pela criação de linguagens próprias, a transformação emocional; pelo trabalho de um elemento perceptível da realidade, como uma matéria, para tomá-la como símbolo. Constituindo, pela arte, uma imagem, estrutura, que, nesse caso, novamente, possibilita a catarse e a sublimação, individual, como imagem interna, ou coletiva, como uma imagem externa, então fruto da síntese de uma vivência entre vários com uma imaginação coesa, em simultaneidade, ou não, a depender de como o fazer arte se compõe na realidade, em sua materialização, por poder fazer-se uma imaginação cristalizada. 30 “A transformação dos tipos inferiores de energia em tipos superiores, mediante a repressão ao subconsciente. Portanto, do ponto de vista psicológico, existe um dilema com relação à educação dos instintos: neurose ou sublimação, isto é, um eterno conflito entre as paixões insatisfeitas com nosso comportamento, ou a transformação das paixões inadmissíveis em formas mais elevadas e complexas de atividade.”(VIGOTSKI,2003,p.93). Ao tê-la como alternativa à neurose que, nos parece, viciar por emoção os conceitos, a sublimação seria uma fundação da diferença de uma imaginação para uma criação, por demandar uma singular elaboração, que não propriamente “substitua o objeto de desejo”(CHRISTOV, 2013, p.129), mas sim sane o desejo, como pode a imaginação em relação às emoções (VIGOTSKI,1998), no caso com uma atividade de fazer arte, mesmo que não perdure. 33 Nesse sentido, a postura inicial da vivência tida pela ciclíca da imaginação, só ou com outros, é algo que pode ocorrer com o anteriormente desenvolvido pela sociedade, sobretudo pela atividade da imaginação, constituindo um fazer da arte a partir de uma imagem, já elaborada, que suscita isso, é próprio do pensamento e da linguagem possibilitar a interiorização dessas imagens externas. Como descrito por Vigotski ao pensar uma vivência estética31 propriamente: Não resta dúvida de que certo grau de passividade e desinteresse são a premissa psicológica infaltável do ato estético. Quando o espectador ou o leitor assume o papel de participante ativo na obra que percebe, ele sai de forma definitiva e irreversível da esfera da estética. Ao observar uma maçã pintada em um quadro, quando a atividade ligada à intenção de saborear uma maçã de verdade está mais intensamente desenvolvida em mim, é claro que o quadro permanecerá fora de meu campo de apreensão. No entanto, essa passividade constitui apenas - como pode ser facilmente demonstrado - o lado inverso de outra atividade, incomensuravelmente mais séria e necessária ao ato estético. Isso pode ser comprovado sem dificuldade pelo simples fato de que a obra de arte não é acessível, de forma alguma, à percepção de todos, e que a percepção de uma obra artística representa um trabalho psíquico difícil e árduo. Evidentemente, a obra de arte não é percebida com uma total passividade do organismo, nem apenas com os ouvidos ou os olhos, mas mediante uma muito complexa atividade interna em que a visão e a audição são apenas o primeiro passo, o impulso básico.(VIGOTSKI,2003, p.229, grifos nossos) Tal “complexa atividade”(id), mais propriamente de “uma trabalho psíquico e árduo”(id.) é justamente como colocamos uma atividade da imaginação num fazer arte, mais propriamente para o autor. Uma vivência estética, que, mesmo que não resulte em uma outra exteriorização, ainda é entendida como sendo uma atividade da imaginação. Nisso, novamente, encontramos a centralidade do pensamento e da linguagem para o fazer arte, pois para que essa vivência, com feito histórico, dado na realidade, possa ser ativamente tida como uma vivência estética; é preciso que, internamente, haja a atividade da imaginação, que, se formos minuciosos na leitura do trecho acima, só, então, a “obra de arte”(id.) será perceptível na vivência estética como tal. E nesse último ponto, centraliza-se a importância da dimensão de uma memória histórica para a imaginação, e portanto para o ensino que vise possibilitar tal vivência e a coesão da imaginação, entre uma consciência ativamente empenhada diante de uma imagem externa, a qual enquadraremos a “obra de arte”(id.). É do cerne da arte, ainda, a síntese entre a matéria e o conceito (BARROCO; SUPERTI, 2014), que é um processo, evidenciemos de trânsito entre a generalização e a particularização pela consciência (BARROCO; SUPERTI, 2014), que, em sua 31Segundo o autor “a vivência estética é estruturada conforme o modelo exato de uma reação comum, que necessariamente pressupõe a presença de três componentes: excitação, elaboração [processamento] e resposta.[...]essas influências sensíveis estão organizadas e construídas de tal forma que despertam no organismo um tipo de reação diferente da habitual, e essa atividade peculiar, ligada aos estímulos estéticos[…]”(VIGOTSKI, 2003, p.229) 34 exteriorização pelo trabalho em um elemento perceptível da realidade, a matéria, faz uma síntese com o conceito, uma ação descrita da imaginação, nesse sentido, podemos ter a nomenclatura de técnica32, que a tomará para o fazer arte. Assim, a atividade da imaginação constitui a arte como imagem, que como tal, em sua ação possui uma possibilitação pelo cruzamento de diferentes percursos entres generalizações e suas correspondentes particularizações, ou o entrecruzamento desses percurso, tendo diferentes abstrações correspondendo a díspares concretudes, faz um fomento a si como linguagem, e conhecer esses diferentes percursos favorece a criação pela imaginação, no caso da arte. A arte, enfim, é uma atividade complexa da imaginação, atuando na transformação de quem com ela se envolve, e por isso pode ser colocada como uma imagem que suscita a imaginação, e tem como central em sua coesão, portanto em uma vivência, uma memória histórica exposta, o manejo de uma linguagem e então o pensamento que em diferentes abstrações materialmente sintetizadas na realidade permite sua própria (re)elaboração e continuidade na criação33. 3.2 Reflexões e importantes correlatos No sentido de ampliar um pensamento que possa contribuir em direcionamentos gerais acerca do ensino da arte34 correlacionado com a imaginação, que apresentamos, em mútua contribuição entre essas, tenhamos que pelo ensino da arte perpassa, pela história, inúmeros entendimentos do conceito de imaginação, e, disso, são elaboradas teorias e ações educativas diferentes, ao analisar esse percurso de diferentes perspectivas e suas implicações curriculares o pesquisador do ensino da arte Arthur D. 32 “Em particular, ele aumenta ainda mais por ser uma ferramenta para educação a apreensão das obras de arte nas crianças, porque é impossível penetrar até o fundo em uma produção artística quando se é totalmente alheio à técnica de sua linguagem.”(VIGOTSKI,2003,p.238). 33Podemos, ainda, ter tal criação ainda mais qualificada, ou seja, indo além do posto ineditismo a quem toma contato com o elaborado de uma imaginação. Na dissertação dedicada a elaborar sobre a criação na arte e na escola pela teoria histórico-cultural Saccomani(2014), acresce a qualificação da criação a peculiaridade da estética de G. Lukács, pensando, que esta, criação, então se fará como tal por transformar a realidade, no sentido de ser crítica a vida como ela é, geradora de necessidades, capitalista (SACCOMANI,2014); contexto em que pode relegar a arte um papel da necessidade compensatória e própria a ideia de substituição do objeto de desejo, que não perdura, por não atuar tal qual o real, apenas se fazendo sentir como(VIGOTSKI,1998). 34 No que diz respeito a “ensino da arte” essa nomenclatura é aqui utilizada por entendermos que é o termo que tem a Arte como um conhecimento próprio a ser ensinado, e menos alude a momentos históricos e a políticas específicas, no Brasil, como faz “educação artística”, mesmo que esse possa ser mais próximo de um entendimento da teoria histórico-cultural (CRUZ,2013), ou “arte-educação” e “arte/educação”, tendo esses dois últimos também um atrelamento relacional entre arte e educação (BREDARIOLLI,2014). Dessa última parte, que não é uma discussão que abordamos neste trabalho, por mais que se veja possível ser feita, inclusive tomando a imaginação, no entendimento que exploramos, como ponto de intersecção uma relação que justifique hífen ou barra entre arte e educação. 35 Efland(2002), apresenta algumas concepções de imaginação, e, por fim, expõe a importância que enxerga dela: A arte é educacionalmente importante porque equipa indivíduos com relevantes ferramentas para desenhar seu mundo. As ferramentas ou estratégias cognitivas envolvidas nesse processo de aprendizagem incluem a imaginação como uma função esquematizada e suas extensões pelas projecções metafóricas. A metáfora, em particular, constrói ligações que nos permite entender a estruturar o conhecimento em diferentes domínios, para estabelecer conexões entre coisas aparentemente não relacionadas. As disciplinas que permitem jogar com esses aspectos da cognição deveriam constituir o cerne do currículo, em que podem se tomar base para compreensão e entendimento. (EFLAND,2005,p.343) Nessa assertiva, se expõe a importância de ter a imaginação, para esse autor, sobretudo pela possibilidade do educando metaforizar, possibilitando-o “desenhar seu mundo”(EFLAND,2005), no currículo pelos conhecimentos escolares e na estruturação desses. E, em especial, no ensino da arte, que no contexto do excerto, é tido como o desígnio da arte no ensino(EFLAND,2005), e ao se referir a importância que o ensino da arte deve dar a imaginação, coloca: Permita-me enfatizar, mais uma vez que a arte é o lugar em que os construções da imaginação deveriam tornar-se o principal objeto de estudo. a imaginação é necessária para entender que a imagem visual ou a expressão verbal não são literais, mais sim incorporações de significados a serem percebidos de outra perspectiva. É somente na arte que a imaginação é encontrada e explorada em completa consonância —, em que esta se torna objeto do inquirimento. Ciências , é como se a imaginação estivesse escondida.(EFLAND, 2005, p.342) A imaginação, então, deve ser tida como um “objeto de estudo”(idem.). Apesar do distanciamento de contexto e concepção entre esse autor e o que expomos anteriormente, é fundamental termos que a imaginação é, em geral, considerada ao se pensar o ensino da arte; e como, sobretudo, dentre limites de transformar a própria realidade, como o colocamos ou como desenhar seu mundo. É importante expor, para além de qualquer relação que possamos vislumbrar em estabelecer entre esses pensamentos, que, para Efland(2002), a imaginação vigotskiana, em específico, não descreveria, cognitivamente, de forma satisfatória a criação algo importante a arte(EFLAND,2002)35. Entretanto Efland(2002), 35 Ipsis litteris: “However, this does not explain how new knowledge is constructed, that is, how knowledge presently lacking in the culture is produced or created. Vygotsky’s theory of cognition explains how existing knowledge gets internalized, but what enables individuals to construct the not yet known, where imagination and intuition enable individuals to go, in Bruner’s (1973) phrase, “beyond the information given”? This is a crucial question in learning the arts because without it we encounter difficulties in accounting for the appearance of new developments in art. Vygotskian theory can account for new knowledge using the existing tools of the culture, but it does not account for the creation of new tools.”(EFLAND,2002,p.40). 36 que expõe uma leitura da elaboração de L. S. Vigotski sobretudo do aspecto do desenvolvimento, e da instrumentalização do simbólico, que brevemente estabelecemos se alicerçam na imaginação, traz observações a se atentar, que para além das elaborações vigotskianas terem sua importância para a interiorização da cultura e a educação em si (EFLAND,2002), e o próprio desenvolvimento cognitivo, nas artes, sobretudos visuais em seu contexto norte-americano, onde houve leituras que deram um aspecto de maior importância a expressão (EFLAND,2002), e, paralelamente, ao que tange ao desenho e seu ensino esse pode se beneficiar de uma antevisão do educador(EFLAND,2002). Tenhamos disso, alguns pontos de relevância para pensar, pela leitura aqui feita da imaginação vigotskiana, a importância da imaginação para o ensino da arte, como objeto de estudo e fundamentação curricular, e, principalmente, a imaginação como criação, e as maneiras de se ter essa, para transformar a realidade. Nos ateremos, adiante, em especial, a imaginação e por esse papel no ensino da arte Outra breve relação que se estabelece com um imaginar coeso numa prática de ensino é a mediação simbólica (MELLO,2020). Nela, o educador utiliza de símbolos tal qual instrumentos como prática pedagógica. Esse educador possui uma memória mais vasta e consegue guiar sua imaginação por outra imaginação, como uma metodologia a fim de elaborar um conceito condizente com a realidade. Todo esse processo é na vivência com o educando, e a elaboração dessa nova imagem é com sua participação, e então deve haver uma coesão entre essas imaginações, no caso, pela mediação simbólica. Então, para exercer a mediação pedagógica de acordo com o papel da Escola hoje, em direção ao desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais, são necessários cinco elementos principais. O primeiro deles é o professor ter a clareza sobre suas concepções de ensino, aprendizagem, estudante, escola, conhecimento, entre outras que envolvem sua prática pedagógica; e, ainda, se elas estão pautadas na cultura como fator preponderante de desenvolvimento humano. O segundo é a compreensão de que as relações entre ele, os estudantes e os instrumentos pedagógicos, ou não, são fontes de aprendizagens necessárias, tanto para os estudantes, quanto para ele próprio. O terceiro configura-se nos conteúdos escolares que devem ser adequados às necessidades de aprendizagens dos estudantes e, portanto, não se resumem a língua portuguesa e matemática, mas estão em constante mudança, uma vez que a sociedade está em movimento e ela é quem atribui o significado dos conteúdos que precisam ser trabalhados na Escola, mesmo que esta não os reconheça. O quarto é o domínio desses conteúdos pelo professor. E o quinto e último, mas não menos importante, é a busca constante de instrumentos mediadores necessários para propor atividades mediadoras para o desenvolvimento das aprendizagens dos estudantes, uma vez que essa busca contínua auxilia o professor a realmente dominar os conteúdos a serem ensinados.(MELLO,2020, p.81-82, grifo próprio) No caso do ensino da arte, a produção da linguagem pela imaginação é também uma 37 oportunidade para o próprio educando, se colocar diante desses pontos, em especial: a busca constante de instrumentos mediadores, as relações com os instrumentos, que entram nos conteúdos escolares(id.). O que não significa que o estudante passa a ter a possibilidade de adquirir os domínios desses conteúdos apenas por si (SACCOMANI,2014), até porque, em especial na arte, como esse conhecimento da produção de uma linguagem, reverbera em múltiplos âmbitos, essa só se faz numa vivência com outros no meio, onde essa pode se aprender36, além do fato de o fazer arte se constituir na recepção também. Ou seja, a simples encarnação, exteriorização ou até mesmo o que se pode tomar por uma expressão é parcial ao ensino da arte. Em suma, o próprio instrumento mediador, o elemento concreto para encontro no meio, é também importante ao conhecimento da arte em sua síntese da matéria, como fim da cíclica da imaginação, que novamente se encontra como âmago do ensino da arte. Adiante, nesse sentido da mediação pedagógica, uma linguagem será apesenta por outra, retomando o favorecimento da ação da imaginação. A caracterização da imaginação, retomemos antes, que colocamos, tem ao centro a generalização (abstração, subjetivação) distintas de uma mesma particularização (concretude, objetivação), ou ainda, do desatrelamento de um símbolo, com seu imediato correspondente, que se atribuir a outro que lhe é alheio. O primeiro, se observa na elaboração dos conceitos, por fazer com que esse se expanda na relação com seus próximos e ao se ter a linguagem a partir da fala, e, o segundo, se expõe na brincadeira. Disso, se pode suscitar uma ação da imaginação a partir do encontro e cruzamento de ao menos duas linguagens (estruturas simbólicas sintetizadas materialmente na realidade em virtude de uma técnica, historicamente, estabelecida para manejar elementos da percepção), ou do encontro no meio de distintas subjetividades em uma mesma objetividade, implicando que, para esse encontro ocorra, se tenha uma exteriorização da primeira, mais propriamente, toda uma cíclica da imaginação. Novamente, o primeiro, a composição entre linguagens, e, o segundo, a partilha da vivência em uma atividade da imaginação coesa. Inicialmente, garantir o estabelecimento da memória, do pensamento e, de ao menos, uma linguagem, é crucial para a arte ter-se, em virtude de essa se fazer de uma atividade da imaginação. Isso, no entanto, pode ser elaborado no educando à medida que este vivencia fazer arte, em algum lugar, entre sua recepção e sua síntese material. Ou seja, a interligação da memória individual, do pensamento e do desenho, da fala, também 36 Saccomani(2014) apresenta uma grande crítica ao que se apresentar ser uma concepção do aprender a aprender, em que os estudantes passariam a poder aprender por si apenas; ideia que rechaçamos conjuntamente. 38 favorece a imaginação, inclusive em sua produção da linguagem. Junto a educandos que já possuem algum, mesmo que tenro, estabelecimento da imaginação, o ensino da arte, que tem esse olhar a imaginação, como é descrita aqui, se beneficiará de uma vivência partilhada do meio em que busca do cruzamento de símbolos distintos que partam da mesma objetividade, em evidenciação de seus vários elementos da percepção, em outros termos, ter um mesmo objeto apresentado por linguagens diferentes. Pois, está se buscando, pela interiorização das imagens onde possa ocorrer a aproximação de conceitos e em razão disso na pessoa melhorar a conexão entre eles, que essa conceba conceitualmente como exteriorizar algo tal qual a imagem externa, se desenhar ou falar como a imagem estrutura. Assim, seguimos pensando em um momento da educação em que já haja algum desenvolvimento do pensamento abstrato, que tomado como uma gradualidade e transformação em interiorização das imagens externas e suas elaborações internas, possibilita-se uma contínua atenção à imaginação ao longo dos anos de ensino, mas com algumas especificidades situacionais, com isso, referimo-nos a um pensamento curricular. Sem propriamente entrar no mérito de como essa gradação é caracterizada e qualitativamente mensurada diante de expectativas e conteúdos, essas que podem ser a síntese com a matéria, o apresentar da história de determinada linguagem, a sublimação a catarse, o desenhar seu mundo, entre tantas outras, que podem se dar como criação, no caso individual ou diante dos envolvidos nessa vivência unificada. Se tomarmos, ainda assim, a título de exemplo uma proposição do educador por uma vivência com os educandos diante de uma obra, que dela se elabore algo, mesmo que internamente, se suscita o fazer arte por uma receptividade ativa. Isso pode ocorrer por um discurso da fala, sobre o elemento visualmente percebido, e ao se ater ao discurso falado, o educando se encontra numa situação em que duas linguagens se relacionam entre si; e, mais propriamente, os conceitos que esse tem por seus símbolos, e disso pode ter sua elaboração a respeito, momento em que há uma interiorização e possível reelaboração como imagens internas, como uma catarse, cuja exteriorização deve ser cativada e observada pelo educador, momento em que a disponibilidade de material nesse meio interferirá na síntese do educando, podendo lhe ampliar, como numa sublimação, ou deprimir a exteriorização, e caracterizando a questão, também, a técnica. Havendo essa exteriorização, se tem uma cíclica da imaginação, que pode assim ser uma criação; nesse caso, dependendo do ineditismo ao educando, ou aos outros que lhe partilham a vivência, esses que, com suas imaginações, encarnarão algo ao meio, se tiverem percorrido tal qual o primeiro, a sua síntese do e ao mesmo meio; entretanto 39 essas podem ser contraditórios ou entre elas estarem em linguagens diferentes, complexificando que se haja uma coesão da imaginação, a qual o educador deve se empenhar em superar buscando uma equivalência entre os educandos, pela realidade, para a que haja uma síntese da vivência em um fazer arte. Passar por esse processo do vivenciar o fazer arte, em uma cíclica que parte de uma ativa recepção, por uma elaboração interna até uma exteriorização, é uma potencialização dessa imaginação como o que se pretende em um ensino da arte. Bem como, que esse estudante tenha a possibilidade de propor essa vivência em outros meios que se envolva, sendo, em última instância, um produtor social da cultura, pelo fazer arte, pela sua produção de linguagem, pela alteração de seus conceitos, de seus arranjos de funções, as suas consciências, inclusive pela catarse e a sublimação, e ao mesmo entre as várias possibilidades materiais de se sintetizar ao meio, esse poderá, só ou em conjunto, encarnar por ações que criem a realidade em um fazer arte. 40 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A imaginação, que deve ser tomada como um sistema psicológico por sua dimensão como interface entre a realidade e a consciência, formada por funções psíquicas superiores como a da memória, do pensamento, e da fala(linguagem), da percepção e da emoção, torna-se central no psiquismo ao realizar transformações das imagens internas e externas, em especial, em suas cíclicas e em uma vivência. A vivência, que é uma relação da consciência com o meio da realidade, pela imaginação, produz as estruturas imagens utilizando-se de símbolos como instrumentos que direcionam o psiquismo. Assim, a vivência é também uma interação com outras pessoas no meio e a elaboração conjunta dessas pessoas; as atividades que resultam em produções que permitam uma transformação nas estruturas simbólicas, portanto, da imagem, utilizam-se da imaginação na alteração das consciências, na formulação de uma nova imagem como síntese das consciências presentes na vivência, alterando a própria realidade em que se situa. Para que haja essa coesão entre as imaginações que vivenciam, deve haver um encontro na materialidade da realidade ou pelos símbolos que formulam uma imagem, possibilitando-lhe ação conjunta no imaginar. É o caso do fazer artístico, que para Vigotski é também focado numa transformação das emoções, que, se tem no meio, como concretude de ato ou obra pela qual a imaginação pode se fazer coesa. No ensino da arte, diante dessa imaginação, as proposições iniciais devem ser direcionadas às funções psíquicas superiores que garantam a imaginação, entendendo que essa é pressuposto para a vivência estética. Neste termo, estamos tomando a noção de arte de Vigotski, com a ressalva de não a limitar a uma exteriorização, lida por, emocional, e centrando em sua ação na produção de linguagem, a partir de alguma matéria assim uma elaboração complexifica da realidade, pelas imagens, que também perpassam o sublime e a catarse. Assim, o domínio da percepção de elementos s