JOSÉ AILTON DA SILVA (Re)montando uma vida: a construção biográfica e fotobiográfica de Clarice Lispector por Nádia Battella Gotlib ASSIS 2024 JOSÉ AILTON DA SILVA (Re)montando uma vida: a construção biográfica e fotobiográfica de Clarice Lispector por Nádia Battella Gotlib Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. Wilton Carlos Lima da Silva Bolsista: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – (CNPq) – Código de Financiamento 131648/2021-7 ASSIS 2024 Aos que amo AGRACEDIMENTOS Concluo esta dissertação agradecendo à diversidade de vozes que impactaram esta pesquisa. A possibilidade de percorrer esses caminhos foi viabilizada pela ajuda de uma rede de apoio e amizades, que cresceu continuamente desde o início deste trabalho. Expresso, portanto, meus sinceros agradecimentos: -Ao meu orientador, o professor Dr. Wilton Carlos Lima da Silva, pela solicitude e paciência. Obrigado por sempre oferecer uma perspectiva instigante e por acreditar no meu trabalho. - Aos professores Ana Heloisa Molina e André Figueiredo Rodrigues, pela leitura atenta e por suas sugestões à pesquisa durante o Exame de Qualificação. -Ao MEMENTO (Grupo de Pesquisa do Espaço Biográfico e História da Historiografia), por nossas trocas em reuniões e em comunicações que ajudaram na minha formação. -A Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, que desde meu ingresso na graduação ofereceu as condições para a minha formação profissional e crescimento intelectual. -Aos Professores do Departamento de História, da UNESP, Campus de Assis, pelo aprendizado durante os anos de graduação e durante as aulas de Pós-graduação. -Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Código de Financiamento 131648/2021-7, a quem agradeço pelos recursos para o desenvolvimento da pesquisa. -Agradeço à Biblioteca "Acácio José Santa Rosa", na pessoa de Auro Mitsuyoshi e Ana Paula da Silva, pela valiosa assistência na localização dos materiais essenciais para a realização deste trabalho e de outros desde a graduação, bem como pela companhia contínua ao longo desse período acadêmico. -A Rafaela, pelo companheirismo, apoio e ajuda nesta e em outras jornadas. -Agradeço a Maria Regina, minha amiga felina, por sua presença constante e por compartilhar comigo momentos de alegria e conforto. SILVA, José Ailton da. (Re)montando uma vida: a construção biográfica e fotobiográfica de Clarice Lispector por Nádia Battella Gotlib. 2024. 206 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2023. RESUMO Esta pesquisa procura analisar a persistente atração pelas narrativas biográficas, um fenômeno dinâmico que acaba refletindo na movimentação da atividade editorial. Esse interesse contínuo nas experiências do outro, acompanhado de certo voyeurismo, constitui uma característica crescente e multifacetada da contemporaneidade. No contexto do biografismo, o foco deste trabalho recai sobre a fotobiografia, uma forma de narrativa visual ainda pouco explorada no meio acadêmico brasileiro, com a análise dos livros Clarice Fotobiografia (Edusp, 2014) e Clarice: Uma vida que se conta (Edusp, 2013), ambas de Nádia Battella Gotlib, estabelecendo um contraste entre diferentes formas de narrar a trajetória da escritora brasileira Clarice Lispector. Esta pesquisa busca compreender formas específicas de narrativa de vida, examinando, entre outros, a interação e intenção envolvendo fotografias e fac-símiles na composição das páginas das obras. A comparação por meio dos dois títulos visa a identificar diferentes abordagens entre as obras, onde o texto assume naturezas divergentes, além de analisar a diversidade de imagens necessárias para construir uma narrativa visual. A pesquisa investiga as relações entre o biógrafo e o biografado na narrativa biográfica, especialmente ao considerar diferentes suportes, analisa como diversas fontes e contextos influenciam a recriação lítero-visual da personagem e busca evidenciar e examinar as rupturas e continuidades no discurso biográfico, destacando o hibridismo do gênero. Palavras-chave: Fotobiografia; Biografia; Memória; Clarice Lispector; Nádia Battella Gotlib. SILVA, José Ailton da. (Re)assembling a life: the biographical and photobiographical construction of Clarice Lispector by Nadia Battella Gotlib. 2024. 206 p. Thesis (Master’s degree in History). Sao Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2023. ABSTRACT This study seeks to analyze the persistent attraction for biographical narratives, a dynamic phenomenon that ends up reflecting on the movement of editorial activity. The continuous interest in the experiences of others, accompanied by a certain type of voyeurism, constitutes a growing and multifaceted characteristic of contemporary times. In context of biographism, one of the main focuses of this research is on photography, a form of visual narrative that is still explored in Brazilian academia, through the analysis of the books Clarice fotobiografia (Edusp, 2014) and Clarice: uma vida que se conta (Edusp, 2013), both organized by Nadia Battella Gotlib, establishing a contrast between different ways of narrating the trajectory of the Brazilian writer Clarice Lispector. This investigation seeks to understand specific forms of life narrative, examining, among others, the interaction and intention involving photographs and facsimiles in the composition of the pages of the works. The comparison through the two titles aims to identify different approaches between the literary productions, where the text takes on divergent natures, in addition to analyzing the diversity of images necessary to construct a visual narrative. This analysis investigates the relationships between the biographer and the biographed in the biographical narrative, especially when considering different supports, analyses how different sources and contexts influence the literary-visual recreation of the character and seeks to highlight and examine the ruptures and continuities in the biographical discourse, highlighting the hybridity of the genre. Keywords: Photobiography; Biography; Memory; Clarice Lispector; Nadia Battella Gotlib. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Página 287 da fotobiografia de Clarice, por Nádia Battella Gotlib ...................................... 39 Figura 2: Capa do Manifesto Fotobiografia......................................................................................... 51 Figura 3: Capa do livro Retratos Antigos, organizado por Nádia Battella Gotlib ................................ 67 Figura 4: As escritoras Clarice Lispector e Carolina de Jesus durante o lançamento de um livro ....... 73 Figura 5: Página 345 da fotobiografia de Clarice, por Nádia Battella Gotlib ...................................... 76 Figura 6: Capa do livro: Clarice Fotobiografia, 7ª ed. rev., 2014 ........................................................ 98 Figura 7: Quarta capa do livro: Clarice Fotobiografia, 7ª ed. rev., 2014 ............................................. 99 Figura 8: Sobrecapa do livro Clarice Fotobiografia, 7ª ed. rev., 2014 .............................................. 100 Figura 9: Capa do livro Clarice, uma vida que se conta.................................................................... 107 Figura 10: Quarta capa do livro: Clarice – Uma vida que se conta,7ª ed. rev., 2013 ......................... 108 Figura 11: Sobrecapa do livro Clarice - uma vida que se conta, 7ª ed. rev., 2013 ............................. 109 Figura 12: Sobrecapa do livro Clarice, uma vida que se conta, 1ª ed., 2013 ..................................... 110 Figura 13: Capa do livro Clarice, uma vida que se conta, 1ª ed., 2013. ............................................. 111 Figura 14: Verso da sobrecapa do livro Clarice, uma vida que se conta, 1ª ed., 2013. ...................... 112 Figura 15: página da fotobiografia .................................................................................................... 118 Figura 16: página da fotobiografia .................................................................................................... 120 Figura 17: página da fotobiografia .................................................................................................... 121 Figura 18: página da obra Clarice, uma vida que se conta................................................................. 137 Figura 19: página da obra Clarice Fotobiografia ............................................................................... 140 Figura 20: Clarice como retratada na biografia ................................................................................. 143 Figura 21: Clarice como retratada na biografia ................................................................................. 149 Figura 22: Clarice como retratada na fotobiografia ........................................................................... 150 Figura 23: página de Clarice Fotobiografia ....................................................................................... 152 Figura 24: página da biografia Clarice, uma vida que se conta ......................................................... 159 Figura 25: página de Clarice Fotobiografia ...................................................................................... 160 Figura 26: página de Clarice Fotobiografia ...................................................................................... 163 Figura 27: página de Clarice Fotobiografia ...................................................................................... 167 Figura 28: página de Clarice Fotobiografia ...................................................................................... 169 Figura 29: página de Clarice Fotobiografia ...................................................................................... 170 Figura 30: página da biografia Clarice, uma vida que se conta ......................................................... 174 Figura 31: página da publicação Clarice Fotobiografia .................................................................... 175 Figura 32: página da publicação Clarice Fotobiografia .................................................................... 178 Figura 34: página da fotobiografia .................................................................................................... 183 Figura 35: página da fotobiografia .................................................................................................... 186 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964195 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964200 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964201 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964203 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964208 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964209 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964211 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964213 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964214 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964216 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964218 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964225 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964226 https://d.docs.live.net/178474f9c4984df7/Revisões/2023/Ailton/Reformatação/SILVA%20-%20Remontando%20uma%20vida%20-%20Copia.docx#_Toc150964228 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Livros com imagens ........................................................................................................... 44 Quadro 2: Comparativo de aspectos de apreensões do discurso biográfico no campo da Literatura, Jornalismo e História ............................................................................................................................ 91 Quadro 3: Enunciados dos capítulos e dos subcapítulos da 1ª edição da publicação Clarice, uma vida que se conta de Nádia Battella Gotlib ................................................................................................ 124 Quadro 4: Enunciados dos capítulos e dos subcapítulos da publicação Clarice, uma vida que se conta de Nádia Battella Gotlib ..................................................................................................................... 125 Quadro 5: Enunciado dos capítulos e subcapítulos da publicação Clarice – Fotobiografia de Nádia Battella Gotlib .................................................................................................................................... 127 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10 2 DA BIOGRAFIA À FOTOBIOGRAFIA: ELEMENTOS DE UM GÊNERO HÍBRIDO.............................................................................................................................. 16 2.1 Biografia e memória escrita ................................................................................... 16 2.2 Fotografia e memória escrita ................................................................................. 29 2.3 Livro de imagens: fotojornalismo, fotolivro e fotobiografia ............................... 35 2.4 Fotobiografia: uma janela para a vida .................................................................. 45 3 O LEGADO DE CLARICE LISPECTOR: ESCRITAS, MEMÓRIAS E TRAJETÓRIAS ................................................................................................................... 55 3.1 O ofício do biógrafo ................................................................................................. 55 3.2 As faces de uma mesma Clarice: Monteiro, Gotlib e Moser ............................... 65 3.3 As fronteiras da biografia: História, Jornalismo e Literatura ........................... 82 4 CLARICE: NARRADA E VISTA ..................................................................................... 94 4.1 A memória de Clarice Lispector entre a escrita e a imagem .............................. 94 4.2 Infância e adolescência: Entre Maceió, Recife e Rio de Janeiro ....................... 133 4.3 Clarices: mãe e esposa .......................................................................................... 151 4.4 De volta ao Brasil: “Minha Terra” e o legado de Clarice ................................. 181 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 188 FONTES ................................................................................................................................ 192 REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 192 APÊNDICE ........................................................................................................................... 202 10 1 INTRODUÇÃO a mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer FERNANDO, Pessoa. Livro do desassossego. Seleção e Introdução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1986. 402 p. Tradução Bernardo Soares. Na intricada teia da linguagem humana, Fernando Pessoa, em o "Livro do Desassossego", reflete sobre a natureza da mentira, posicionando-a como uma ferramenta essencial para a comunicação entre as almas. Ele argumenta que, assim como as palavras, muitas vezes não conseguem expressar plenamente as nuances mais profundas das emoções e pensamentos humanos, a mentira e a ficção assumem o papel de intermediários cruciais nessa operação. Ao utilizar a mentira como uma forma de se entender mutuamente, os seres humanos encontram uma maneira de transcender as barreiras impostas pela verdade crua e intransmissível. Ao considerar a visão de Pessoa sobre a mentira como uma linguagem que reflete a essência da alma, podemos aplicá-la ao âmbito da escrita (auto)biográfica em todas as suas formas. Os biógrafos, na tentativa de compreender a profundidade dos seres humanos, podem incorporar elementos fictícios para capturar a verdade interior de seus objetos de estudo. Assim como a mentira, a narrativa biográfica transforma-se em um meio que vai além dos limites da verdade literal, proporcionando uma compreensão mais empática e profunda da experiência humana. Nesse contexto, a biografia se converte em uma forma de arte e expressão que, por meio de suas próprias "falsidades", oferece vislumbres das complexidades humanas. A vida então, matéria-prima das biografias, navega entre mentiras e verdades, medos e angústias e os desafios da natureza humana. Num espaço biográfico (ARFUCH, 2010) delineado por múltiplas facetas, a necessidade de desvendar os bastidores do cotidiano se intensifica a cada ano, e é exacerbada pelas plataformas digitais, especialmente as redes sociais. A incessante busca por autenticidade e a exposição crescente das vidas alheias nas mídias contemporâneas alimentam o fascínio humano por essas narrativas, transformando a vida em uma fonte inesgotável de histórias a serem contadas, porque se vive cercado por múltiplas evidências de que os bastidores do cotidiano precisam ser revelados. A fascinação dos leitores por narrativas tão pessoais também representa um desafio para os biógrafos. Não é de surpreender que esse tipo de texto tenha ganhado tanto destaque no 11 mercado editorial. Em 2017, ano que se viu o lançamento simultâneo de muitas obras do gênero, o segmento de biografias registrou um aumento de 23,4%, de acordo com dados da Nielsen Bookscan (Meireles, 2018). Nesse cenário, a autobiografia de Rita Lee, publicada pela Globo Livros, liderou as vendas, seguida de perto por "Na Minha Pele", de Lázaro Ramos, pela Companhia das Letras. Em terceiro lugar, encontrava-se a edição em brochura de "O Diário de Anne Frank", da Record, que também figurou em nono lugar na lista com sua edição em capa dura. Além desses sucessos, figuram outras obras na lista, como "Novos Caminhos, Novas Escolhas", de Abílio Diniz (Objetiva), e "O Livro de Jô", escrito pelo apresentador em colaboração com Matinas Suzuki Jr. (Companhia das Letras). A existência humana, tal qual um rizoma, revela-se como uma intricada rede de conexões. É um emaranhado complexo de linhas entrelaçadas, que se desdobram em uma teia de relacionamentos, eventos e escolhas interligadas. Foi com consciência dessa riqueza e complexidade que me envolvi, ainda em 2016, durante meu curso de graduação em História, com o Grupo de Pesquisa MEMENTO - Espaço Biográfico e História da Historiografia, sob a coordenação do Prof. Dr. Wilton Carlos Lima. Inicialmente, minha participação no grupo foi impulsionada pela minha curiosidade pelo gênero biográfico, tema que também havia sido discutido nas aulas da disciplina de Fontes para a Pesquisa Histórica, ministradas pelo Prof. Dr. Wilton Carlos Lima. Em 2017, o grupo de pesquisa organizou o II Simpósio Historiografia, Memória, Personagens, marcando o início desta pesquisa e meu encontro definitivo com Haya Pinkhasovna Lispector. Embora já tivesse lido dois de seus romances mais famosos, "A Hora da Estrela" e "A Paixão Segundo G.H.", não tinha uma conexão mais profunda com a autora. Assim como para muitos, Lispector permanecia como uma incógnita e, ao mesmo tempo, um grande mistério. Durante o simpósio, o Prof. Dr. Wilton Carlos Lima apresentou uma comunicação intitulada "A Vida Enquadrada de Clarice Lispector: Algumas Considerações sobre a Construção Fotobiográfica". Essa exposição sobre a fotobiografia como ferramenta para compreender o dinamismo do biografismo despertou meu interesse pelo tema. Alguns dias depois, marcamos uma reunião para discutir o assunto. A escolha da fotobiografia de Clarice acabou sendo estratégica, considerando que já existia uma biografia tradicional de Lispector da mesma autora, Nádia Battella Gotlib. Claro, também representou um desafio ímpar, na medida que não há trabalhos publicados na área de História sobre a temática e os que existem, pertencem a área da Educação. Um exemplo, é o trabalho intitulado “Pesquisa com Histórias de vida na produção da 12 História da Educação em Ciências: o Dispositivo fotobiográfico como recurso para a compreensão de Experiências Sociais” (Borba; Selles, 2020) de Rodrigo Borba e Sandra Selles em que a fotobiografia é utilizada como uma metodologia de trabalho biográfico que mescla narrativa e imagem para se aproximar das concepções que notabilizaram a atuação de Nilza Vieira, uma professora de Ciências cujas práticas pedagógicas estiveram em intensa sintonia com os pressupostos do "Movimento de Renovação do Ensino de Ciências" das décadas de 1960 e 1970. Através da fotobiografia, foi possível produzir sentidos ao tecer e interligar as recordações do entrevistado e apreendê-los em conjunto com o entrevistador. A metodologia, usando a fotobiografia, oportunizou um exercício reflexivo tanto para o entrevistado, que produzirá sentidos ao tecer e interligar suas recordações, quanto para o entrevistador, que buscará apreender e interpretá-los em conjunto com seu entrevistado. No caso específico da pesquisa, a fotobiografia foi utilizada para explorar a trajetória da professora Nilza Vieira e entender as ideias que conferiram destaque à sua prática pedagógica, bem como suas conexões com a História da disciplina escolar Ciências. Outras figuras públicas como Sonia Braga (Sesc, 2023), Chico Buarque (Bem-Te-Vi, 2019), Marielle Franco (Azougue, 2019) e Antonio Callado (Cepe, 2013) também foram objeto de fotobiografias, mas não foram acompanhadas por biografias tradicionais da mesma autoria até o momento desta pesquisa. Esse “projeto biográfico” de Clarice feito por Gotlib permitiu uma análise detalhada da dinâmica do espaço biográfico e da narrativa biográfica por meio de imagens, destacando como a narrativa fotobiográfica se difere e se assemelha às narrativas de vida convencionais. A duplamente grafada Clarice Lispector, é uma escritora cujo estilo e forma desafiam qualquer categorização convencional. Ela sempre afirmou: “Não escrevo para agradar ninguém”, recusando-se a se preocupar com a compreensão convencional de suas obras. Nascida em 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia, durante um período tumultuado marcado por violentas perseguições aos judeus e assassinatos em massa (pogroms), sua família fugiu para o Brasil. Sua mãe, já doente na época da viagem, veio a falecer quando Clarice tinha apenas 10 anos. Desde jovem, Clarice desafiou as expectativas ao imergir no mundo do jornalismo e da literatura, rompendo barreiras de gênero e sociais. Sua vida pessoal, permeada por viagens ao lado de seu marido, Maury Gurgel Valente, era constantemente marcada por uma sensação de deslocamento; um sentimento que, como nossa pesquisa revelará, a deixava solitária e melancólica quando no exterior, já que não se via pertencendo àqueles lugares, àquelas pessoas e àqueles círculos sociais. 13 A forma como Clarice Lispector é percebida como uma figura "incompreendida" e uma "escritora inqualificável" é reflexo da criação de um mito moderno em torno dela. Vilas Boas, em seu trabalho "Biografismo: Reflexões sobre as Escritas da Vida", analisa essa construção meticulosa dos biografados. Uma das categorias que ele explora e que se aplica vividamente a Clarice é a ideia da extraordinariedade e do fatalismo. Esta construção mítica, surgida na ausência de uma explicação racional, tem suas raízes em uma relação intricada entre as flutuações da identidade, o processo criativo e todos os elementos que permeiam o universo Clariciano. Esta mitificação, como nossa pesquisa revelará, desempenha um papel vital na compreensão da complexidade e da profundidade da escritora e de seu legado literário. Embora Clarice Lispector abordasse sua vida em sua escrita, revelou relutância em discuti-la com outros, conforme evidenciado em trabalhos como a dissertação "A construção do autobiográfico nas crônicas de Clarice Lispector no Jornal do Brasil" de Amanda Pinheiro. Após sua separação, ela recorreu à escrita como meio de superar as despesas cotidianas. Sua resistência à categorização, a recusa em aceitar definições restritas e a relação ambígua com o eu a transformam em uma figura mítica, desafiando expectativas e consolidando-se como uma lenda literária. Sobre esse estilo próprio de Clarice, muitos a comparam com a escritora britânica Virginia Woolf, embora distintas em estilo e abordagem literária, compartilham semelhanças profundas em suas vidas e obras. Ambas as escritoras enfrentaram desafios significativos para encontrar seu lugar no cenário literário predominantemente masculino de suas épocas. A perda do pai teve um impacto marcante em ambas, levando-as a uma dedicação intensa aos estudos. Enquanto Virginia encontrou estabilidade emocional no casamento com Leonard Woolf, Clarice, após a separação, buscou na escrita uma forma de superar as dificuldades financeiras cotidianas. Entretanto, acredito que Lispector pode também ser associada a escritora italiana Elena Ferrante, ambas mantiveram certo mistério em torno de suas identidades pessoais. Enquanto Ferrante escreve sob um pseudônimo, Lispector, embora não tenha escondido sua identidade, muitas vezes era reservada sobre aspectos de sua vida pessoal, criando uma aura de mistério em torno de sua figura. Além disso, são conhecidas por suas explorações profundas da psicologia feminina. Elas apresentam personagens femininas complexas, muitas vezes desafiando estereótipos tradicionais e expondo as camadas mais profundas da experiência feminina. Em 9 de dezembro de 1977, Clarice Lispector morreu, vítima de câncer no ovário, abandonando não apenas uma coleção de obras fascinantes, mas também um legado de mistério e inquietação. Sua vida e sua escrita continuam a desafiar as convenções, convidando-nos a 14 explorar não apenas suas palavras, mas também a mulher por trás delas, uma artista genial que recusou ser enquadrada, permanecendo uma incógnita, um mistério, uma lenda. Assim, o cerne desta pesquisa reside na compreensão do processo de construção da personagem, sua vida e suas narrativas, especialmente ao examinar as relações intricadas entre o autor, a personagem, o biógrafo e o biografado no contexto da narrativa fotobiográfica. Nosso objetivo é aprofundar a análise investigando a influência das diversas fontes, arquivos e contextos na recriação litero-visual da personagem Clarice Lispector. Durante a análise do material, nossa investigação se concentra em identificar as rupturas e continuidades no discurso biográfico, desvendando o que é revelado e o que é oculto na dinâmica de produção e sequenciamento fotográfico da narrativa fotobiográfica. Para atingir esses objetivos, esta pesquisa se debruça sobre a obra "Clarice Fotobiografia", de Nádia Battella Gotlib, publicada pela Edusp e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo em 2008, atualmente em sua terceira edição. Este livro, com 672 páginas, apresenta fotografias coloridas e em preto e branco, além de pequenos textos e indicações, proporcionando uma rica base para nossa análise. Paralelamente, pretendemos entrelaçar nossa investigação com a biografia de Clarice Lispector intitulada "Clarice: Uma Vida que Conta", também de autoria de Gotlib. Inicialmente publicada pela editora Ática em 1995 e posteriormente ampliada e reeditada pela Edusp em 2009, esta obra, agora em sua sétima edição, oferece 652 páginas de insights valiosos, complementados por 50 fotos. Ao comparar e contrastar essas duas fontes, buscamos enriquecer nossa compreensão da complexa narrativa fotobiográfica de Clarice Lispector. Como resultado, a Dissertação está estruturada em três capítulos distintos. No primeiro capítulo, intitulado "Da biografia à fotobiografia: elementos de um gênero híbrido", exploro a evolução do gênero biográfico desde suas formas iniciais de narrativas de vida até a percepção contemporânea do campo do biografismo, incluindo suas novas manifestações, como a fotobiografia. Destaco a fotografia como uma expressão da modernidade que transformou fundamentalmente a maneira como as pessoas se relacionam com imagens, ampliando seus usos e aplicações de maneiras inimagináveis. Dentro desse capítulo, empreendo uma análise aprofundada das diversas formas de interpretação das fotografias, discutindo especialmente a distinção entre fotojornalismo, fotolivro e fotobiografia. Esta última, em particular, é uma categoria pouco explorada até então, exceto por um extenso estudo antropológico conduzido por Fabiana Bruno. No desfecho do capítulo, apresento a fotobiografia como uma forma distintiva e significativa de expressão do eu, destacando seu lugar privilegiado no cenário contemporâneo. 15 No segundo capítulo, intitulado "O legado de Clarice Lispector: escritoras, memórias e trajetórias", meu foco é oferecer uma visão abrangente do legado de Clarice Lispector e como esse legado foi interpretado e transmitido ao longo do tempo. Concentro-me especificamente nos trabalhos dos três principais biógrafos da autora: Teresa Monteiro, Nádia Gotlib e Benjamin Moser. Nesse contexto, realizo uma análise minuciosa das obras de cada um deles, destacando as diferenças, inovações e abordagens metodológicas empregadas em suas biografias. Uma característica compartilhada por todos os três é o desafio ético inerente à tarefa de biografar. Ao longo dessa análise, examino as responsabilidades éticas do biógrafo e as habilidades necessárias para contar de forma fiel a história de uma vida, oferecendo uma série de considerações críticas sobre essa prática vital da escrita biográfica. No terceiro capítulo, intitulado "Clarice: narrada e vista", continuo minha análise, explorando a dualidade da representação de Clarice Lispector tanto em palavras quanto em imagens. Este capítulo examina como as narrativas biográficas e as representações visuais de Clarice interagem, se complementam e, às vezes, se contradizem, revelando assim as complexidades de sua identidade pública e privada. Além disso, investigo como as fotografias desempenham um papel fundamental na construção da imagem de Clarice, não apenas como uma figura literária, mas como uma mulher multifacetada. Essa análise meticulosa oferece uma visão aprofundada de como a interseção entre narrativa e imagem contribui para nossa compreensão de figuras públicas e literárias, como Clarice Lispector, no contexto contemporâneo. 16 2 DA BIOGRAFIA À FOTOBIOGRAFIA: ELEMENTOS DE UM GÊNERO HÍBRIDO 2.1 Biografia e memória escrita Assim eu vejo a vida A vida tem duas faces: Positiva e negativa O passado foi duro Mas deixou o seu legado Saber viver é a grande sabedoria Que eu possa dignificar Minha condição de mulher, Aceitar suas limitações E me fazer pedra de segurança dos valores que vão desmoronando nasci em tempos rudes Aceitei contradições lutas e pedras como lições de vida e delas me sirvo Aprendi a viver CORALINA, Cora. Assim eu vejo a vida. apud CHAVES, Adriana. Família encontra poemas inéditos de Cora Coralina. Folha de S. Paulo, 4 jul. 2001. Ilustrada, p. E1. Os versos acima, da poetisa goianiense Cora Coralina falam de uma vida vivida e, mesmo que se trate de uma terminologia redundante, tornam-se explicativos, na medida em que evidencia as contradições, os desafios, as alegrias, os medos, as angústias e as inseguranças próprias da vida e como isso se torna parte da existência e do aprender a viver, como conta o poema. E é a partir dessa matéria prima viva que permite-se a biografia, que já nasce dotada de subjetividade e incompletude, na medida que cada trajetória é única e transita por caminhos irregulares. Dessa maneira, podemos abordar e compreender a vida não como uma linha reta e em constante ascensão, mas sim como uma trilha dinâmica de movimento e crescimento, conforme apontado pelo antropólogo britânico Tim Ingold. Cora Coralina, com sua perspicácia, nos guia para uma compreensão singular do funcionamento da vida. Ao compartilhar suas lições, a poeta nos desvela a sabedoria popular já consolidada sobre a existência. Ela nos faz recordar que a vida transcende a mera representação de um círculo fechado em si mesmo. A figura do círculo, contudo, se mostra insuficiente para abarcar a complexidade da existência, uma vez que os indivíduos ultrapassam as fronteiras perimétricas. A vida não se restringe somente a um organismo "aqui" e a um ambiente "lá fora" (Ingold, 2015, p. 62). Caberia à biografia e aos campos correlatos compreender esses amanhados, embora 17 tratar de biografia em muitas das vezes traz à tona alguns outros conceitos que, erroneamente, são assimilados como sinônimos, é o caso de histórias de vida e autobiografias. Em comum, esses três gêneros distintos têm o fato de serem baseados na sequência de vida individual e adotarem uma sequência biográfica cronológica. Uma autobiografia é a narrativa da própria vida. Nela, é o próprio narrador quem escolhe contar sua vida, dando-lhe a direção que melhor lhe parece e mantendo o controle sobre os meios de registro. Por outro lado, a história de vida é o relato de um narrador sobre sua existência ao longo do tempo, mediado por um pesquisador. É um trabalho colaborativo entre o narrador-sujeito e o intérprete. Já a biografia é a história de um indivíduo escrita por outra pessoa. Aqui, há uma dupla mediação que a aproxima da história de vida, com a presença do pesquisador e o subsequente relato escrito. Chevalier (1979) acrescenta que, enquanto na autobiografia o próprio narrador realiza o trabalho de edição, selecionando e construindo seu texto, na história de vida, para a publicação do texto biográfico, o pesquisador precisa realizar três etapas sucessivas: a seleção do texto, a montagem e a tradução (da linguagem oral para a escrita). Ao traçar o percurso da vida de alguém, é necessário lidar com um conjunto variado de fontes, incluindo materiais escritos (cartas, livros, anotações, bilhetes) e recursos visuais (depoimentos, entrevistas, fotografias, vídeos). Muitas vezes, esses documentos estão dispersos em arquivos pouco organizados, ou até mesmo ausentes. Além disso, a relação entre o biógrafo e o biografado é impregnada de nuances, constituindo um intrigante jogo de espelhos. Nesse contexto, um indivíduo espelha o outro, desvendando facetas que porventura escapem à percepção do próprio biógrafo, enquanto as linhas temporais se entrelaçam. A interação entre o biógrafo e o biografado é uma dança complexa onde as temporalidades se entrelaçam em uma coreografia única. À medida que o biógrafo busca mergulhar no passado do biografado, ele não apenas examina os eventos que moldaram a vida da pessoa, mas também explora como esses acontecimentos se conectam com o presente. Essa exploração cronológica não é linear, pois muitas vezes o biógrafo precisa retroceder e avançar no tempo para criar um retrato completo e compreensivo da vida e experiências do biografado. Nesse intrincado tecido temporal, momentos significativos são ligados por fios invisíveis de causa e efeito. O biógrafo desenha conexões entre as escolhas e ações do biografado e o contexto histórico, cultural e social que o rodeava. Essa abordagem não apenas acrescenta profundidade à narrativa, mas também enriquece a compreensão das motivações e impactos das ações do biografado. Assim, a jornada biográfica é uma exploração não apenas da história de vida do 18 indivíduo, mas também uma investigação do ambiente em que ele viveu e das transformações que ocorreram ao longo do tempo. As temporalidades entrelaçadas criam um panorama dinâmico que não se limita a registrar eventos, mas busca interpretar e iluminar a interconexão complexa entre o indivíduo e o contexto em que ele se insere. No caso das histórias de vida, por exemplo, alguns autores fazem distinção entre o relato centrado na pessoa, no "eu", e a entrevista centrada no contexto, no evento. Queiroz (1988) utiliza o termo biografia para o primeiro caso e história de vida para o segundo. Poirier, Clapier- Valladon e Raybaut (1993) fazem a distinção entre psicobiografia - quando o indivíduo narra sua visão pessoal dos acontecimentos - e etnobiografia, em que a pessoa é considerada como um reflexo de seu tempo e ambiente. Em semelhança, todas essas operações (auto)biograficas tratam do mesmo elemento, a vida Uma trilha ao longo qual a vida é vivida. Nem começando aqui e terminando lá, nem vice-versa, a trilha serpenteia através ou pelo meio como a raiz de uma planta ou de um córrego por entre as suas margens. Cada uma dessas trilhas é simplesmente um fio em um tecido de trilhas que juntas compreendem a textura do mundo da vida. É desta textura que quero dizer quando falo organismos sendo constituindo dentro de um campo relacional. Trata-se não de um campo de pontos interconectados, mas de linhas entrelaçadas; não de uma rede, mas de uma malha (Ingold, 2015, p. 62). A compreensão da vida nos convida a reconhecer a complexidade essencial dos indivíduos, uma vez que suas trajetórias se estendem por diversas trilhas, tendo origem em uma fonte central (Ingold, 2015, p. 63). Nesse contexto, viver está intimamente relacionado a um processo de irradiação, no qual os seres vivos organizam o meio em torno de um centro de referências (Canguilhem, 2008, p. 113-114 apud Ingold, 2015, p. 63). A partir dessa abordagem, os estudos sobre a vida humana ganham novas dimensões teóricas, permitindo uma apreciação mais profunda e holística das experiências individuais e coletivas. As linhas de crescimento oriundas das múltiplas fontes tornam-se amplamente envolvidas uma com as outras, um pouco como as vinhas e trepadeiras de um denso trecho de floresta tropical, ou os emaranhados sistemas radiculares que você corta com a pá toda vez que cava o jardim. O que temos estado acostumados a chamar de “ambiente” pode, então, ser melhor vislumbrado como um domínio de emaranhamento. É dentro desse emaranhado de trilhas entrelaçadas, continuamente se emaranhando aqui e se desemaranhando ali, que os seres crescem ou “emanam” ao longo das linhas das suas relações (Ingold, 2015, p. 64). É justamente nesse emaranhado de linhas que podemos comparar a um rizoma, que aplicado à biografia revela uma perspectiva instigante para entender a complexidade da vida humana. Em botânica, chama-se rizoma ou soca um tipo de caule, geralmente subterrâneo, que 19 se dispõe mais ou menos paralelamente à superfície do solo, e que emite, de espaço a espaço, brotos aéreos foliosos e florísticos, podendo também emitir raízes de seus nós. De forma análoga, os estudos (auto)biográficos mostram que, ao longo da construção dessas ramificações, há a produção contínua de um registro de si, mesmo que não se tenha total consciência desse processo. Assim como um rizoma se expande e cria novos brotos, a vida também se desenvolve em múltiplas direções, gerando experiências e conexões que compõem a trama biográfica. A narrativa de vida é outra palavra-conceito utilizada corriqueiramente como sinônimo. Dessa maneira, cabe considerar sobre as narrativas de vida: As narrativas de vida ganham destaque ao longo da cultura ocidental, que assistiu à secularização da sociedade burguesa com o reforço do individualismo e a substituição de uma causalidade externa ou do destino pela causalidade psicológica, com a consciente historicização da existência e a substituição da problemática da manifestação do caráter já existente pela da formação de um caráter (Delory- Momberger, 2015, p. 101). Com as narrativas de vida ganhando espaço dessa maneira, podemos dizer que houve, segundo Arfuch, um “retorno ao sujeito” manifestado em um “espaço biográfico” sob um “giro subjetivo”. A pergunta que se levanta é: se as manifestações no eu sempre estiveram presente na literatura e nos gêneros canônicos da narrativa pessoal, como foi possível essa nova dimensão subjetiva mencionada? A própria Arfuch apresenta uma justificativa tripla: a historicidade, a simultaneidade e a multiplicidade. A historicidade deriva do elo genético desses gêneros com a transformação discursiva do século XVIII, originada pelas Confissões de Rousseau, ao estabelecer o espaço da interioridade e da afetividade (cuja existência depende de ser compartilhada), e da interação entre a expressão pública das emoções e o peso social limitador imposto sobre elas. Já a simultaneidade emerge de uma nova dinâmica de apresentação desses mesmos conteúdos experienciais, associada a uma dimensão expandida de alcance, agora global, viabilizada pelas inovações tecnológicas da informação. E por fim, a multiplicidade transcende barreiras físicas, tradições linguísticas e contextos culturais, oferecendo uma profusão de opções estéticas e estilísticas que abrangem uma variedade de formas e plataformas, como autoficção, docudrama, reality shows, redes sociais, entre outras. Nesse contexto, o âmbito acadêmico (e o mercado editorial) disponibiliza entrevistas, testemunhos, memórias, manuscritos, diários de viagem, de infância, correspondências, cartões postais e papéis avulsos como peças de um quebra-cabeça que revela fragmentos da 20 interioridade, do pensamento e das vivências de seus autores. Assim, o interesse pelas biografias está em constante renovação e o mercado livreiro pode ser um dos parâmetros para medir esse fenômeno, em parte, explicado pelo interesse pelo outro e tudo que isso envolve: experiências de vida, busca por exemplos e o próprio voyeurismo (Avelar, 2012, p. 63). As razões que levam a esse apetite pelo gênero são decerto múltiplas, embora se deva considerar que: raramente se leva em conta a natureza transgressiva da biografia, mas ela é a única explicação possível para a popularidade do gênero. A incrível tolerância do leitor (que ele não estenderia a um romance mal escrito como a maior parte das biografias) só faz sentido se for entendida como uma espécie de cumplicidade entre ele e o biógrafo numa atividade excitante e proibida: atravessar o corredor na ponta dos pés, parar diante da porta do quarto e espiar pelo buraco da fechadura (Malcolm, 1995, p. 17). Esse boom em que vivemos, de publicações de teor biográfico e autobiográfico, foi percebido e diagnosticado inicialmente no Brasil pela historiadora Angela de Castro Gomes no início dos anos 20001, mas mesmo agora, passados mais de duas décadas da publicação de seu texto, Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo2, o fenômeno continua presente, e 1 Em O Desafio Biográfico: escrever uma vida, François Dosse apresenta um amplo quadro histórico das produções biográficas e chama o amplo interesse pelo gênero de “febre biográfica”, ao justificar essa posição afirma: “desprezado pelo mundo sapiente das universidades, o gênero biográfico nem por isso deixou de fruir um sucesso público jamais desmentido, a atestar que ele responde a um desejo que ignora os modismos. Sem dúvida, a biografia dá ao leitor a ilusão de um acesso direto ao passado, possibilitando-lhe, por isso mesmo, comparar sua própria finitude à da personagem biografada. Ademais, a impressão de totalização do outro, por ilusória que seja, responde ao empenho constante de construção do eu em confronto com o outro” (Dosse, 2009, p. 13). 2 Este texto é na verdade o prólogo do livro Escritas de Si, Escrita da História organizado pela pesquisadora Ângela de Castro Gomes. O livro está dividido em duas partes que seguem uma ordem cronológica, abrangendo um período da história do Brasil que vai do século XIX ao XX. O foco principal é a relação entre história e memória através da escrita de si. A primeira parte abrange sete textos (Lapidário de si: Antônio Pereira Rebouças e a escrita de si (Hebe Maria Mettos e Keika Grinberg), Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre (Angela de Castro Gomes), Freyre: as travessias de um diário e as expectativas da volta (Antonio Paulo Rezende), O sistema intelectual brasileiro na correspondência passiva de John Casper Branner (Lúcia Maria Paschoal Guimarães e Valdei Lopes de Araújo), Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história (Giselle Martins Vanancio), Monteiro Lobato: estratégias de poder e auto-representação n’A barca de Gleyre (Tania Regina de Luca) e “Paulo amigo”: amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de Capistrano de Abreu (Rebeca Gantijo) que analisam intelectuais e seu uso da escrita de si. A maioria explora correspondências, diários de juventude e reflexões autobiográficas. A segunda parte, composta por nove textos, concentra-se no gênero e na política (O diário da Bernardina (Celso Castro), Correspondência familiar e rede de socialidade (Marieta de Moraes Ferreira), A escrita da intimidade: história e memória no diário da viscondessa do Arozelo (Ana Maria Mauad e Mariana Muaze), Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado 1932-38 (Lídia M. Moraes Possas), Ao mestre com carinho, ao discípulo com carisma: as cartas de Jango e Getúlio (Jorge Ferreira), Getúlio Vargas: cartas-testamento como testemunhos do poder (Maria Celina D’Araújo), Arquiteto da memória: nas trilhas dos sertões de Crateús (Antonio Torres Montenegro), Cartas do Chile: os encantos revolucionários e a luta armada no tempo de Jane Vanini (Regina Beatriz Guimarães Neto e Maria do Socorro de Souza Araújo) e De ordem superior...os bilhetinhos da censura e os rostos das vozes (Beatriz Kushniv). Alguns textos utilizam a escrita de si como fonte para discutir temas históricos do Brasil, enquanto outros a consideram seu próprio objeto de estudo. A correspondência continua sendo uma fonte dominante, mas também há análises de diários, textos memorialísticos e entrevistas de história de vida. Vale ressaltar que o último estudo se destaca por usar uma fonte peculiar: os "bilhetinhos" enviados por censores aos jornais durante o regime militar nas décadas de 1960 e 70. 21 ganha cada vez mais evidência. Quando consideramos o ato de biografar, ele é compreendido como uma modalidade narrativa que envolve seleção, descrição e análise de uma trajetória individual ou coletiva a partir de diversos enfoques e metodologias. Uma primeira ideia do que é biografia já é oferecida na própria etimologia da palavra, do grego, onde bio significa vida e graph significa escrever. Essa primeira definição é importante porque norteia o senso comum acerca da biografia e ajuda a entender alguns “pecados” dos biógrafos em suas obras. Na ânsia de investigação, seja em busca de credibilidade ou até mesmo por apelo comercial, os biógrafos frequentemente revelam um desejo de alcançar a "verdade suprema" (Ribeiro, 2015, p. 47), como se ela realmente existisse. Em muitos casos, chegam a se envolver tão profundamente com o objeto de sua biografia, que acreditam, de maneira ingênua, que finalmente compreenderam plenamente o indivíduo retratado (Ribeiro, 2015, p. 47). A biografia constitui [...] o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem à historiografia. Muito já se debateu sobre esse tema, que concerne sobretudo às técnicas argumentativas utilizadas pelos historiadores. Livre dos entraves documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biográficos que influenciaram amplamente os historiadores. Essa influência, em geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questões e esquemas psicológicos e comportamentais que puseram o historiador diante de obstáculos documentais muitas vezes intransponíveis: a propósito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dúvidas e das incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico da identidade e dos momentos contraditórios de sua constituição (Levi, 1996, p. 168-169). Um erro recorrente também é a sobrevalorização da linguagem. Os biógrafos tendem a confiar excessivamente em sua habilidade de retratar seus biografados de maneira objetiva, precisa e autêntica, como se a linguagem fosse capaz de capturar integralmente a essência do indivíduo. No entanto, essa confiança muitas vezes desconsidera as limitações inerentes à própria linguagem (Ribeiro, 2015, p. 47). O voyeurismo e a bisbilhotice que motivam tanto os autores quanto os leitores das biografias são encobertos por um aparato acadêmico destinado a dar ao empreendimento uma aparência de amenidade e solidez semelhantes às de um banco. O biógrafo é apresentado quase como uma espécie de benfeitor. Sacrifica anos de sua vida no trabalho, passa horas intermináveis consultando arquivos e bibliotecas, entrevistando pacientemente cada testemunha. Não há nada que não se disponha a fazer, e quanto mais o livro refletir sua operosidade, mais o leitor acreditará estar vivendo uma elevada experiência literária e não simplesmente ouvindo mexericos de bastidores e lendo a correspondência alheia (Malcolm, 1995, p. 17). Sua inclusão se deve à originalidade da fonte e ao diálogo que estabelece com outros estudos no livro que também abordam o período militar. 22 Tento em vista que a biografia é uma representação, não encarnação da realidade o biógrafo, o bom biógrafo, deve ter uma postura de trabalho: Um bom biógrafo é o que aceita que as fontes encontradas encerrem, ao mesmo tempo, a potencialidade e as limitações do seu trabalho biográfico. Ele assume que o resultado de seu trabalho será sempre precário e reduzirá sua própria limitação, a limitação da sua perspectiva em face do inapreensível todo (Ribeiro, 2015, p. 49). É justamente admitindo a biografia como um retrato, união de um conjunto de retratos na intenção de compor uma vida, que se pode adotar o conceito de biografema: Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, a maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido a mesma dispersão; uma vida esburacada, em suma, como [...] um filme a moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens [...] e entrecortada, a moda de soluços salutares, pelo negro apenas escrito no intertítulo, pela irrupção desenvolta de outro significante [...] Ela [a fotografia] me permite ter acesso a um infrassaber; fornece-me uma coleção de objetos parciais e pode favorecer em mim um certo fetichismo: pois há um “eu” que gosta do saber, que sente a seu respeito como que um gosto amoroso. Do mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de “biografemas”: a Fotografia tem com a História a mesma relação que o biografema com a biografia (Barthes, 2018, p. 34). Barthes propõe o conceito de "biografema" como uma maneira de entender a biografia como um conjunto de detalhes, gostos e inflexões que compõem uma vida. Assim como a fotografia fornece acesso a um conhecimento infrassaber por meio de objetos parciais, os biografemas são traços biográficos que encantam o autor da mesma forma que certas fotografias. Barthes estabelece uma relação entre fotografia e história, comparando-a com a relação entre biografema e biografia. Nesse contexto, o biografema representa detalhes significativos que compõem a vida de uma pessoa, assim como a fotografia captura momentos específicos na história. A abordagem autorreferencial da biografia3 se desdobra em uma variedade de 3 No campo das pesquisas biográficas a tese de livre-docência de Wilton Carlos Lima da Silva, Vida póstuma de um ilustre e desconhecido: a construção biográfica de Clóvis Beviláqua (1859-1944), apresenta reflexão historiográfica, teórica e metodológica acerca do gênero biográfico trazendo ainda análise da construção das biografias como parte da memória social e enquanto espaço comunicacional de diferentes subjetividades. Na obra, O que pode a biografia, organizado por Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt e contendo 12 ensaios de importantes pesquisadores como Margareth Rago, Laura de Mello e Souza, James Naylor Green e Mary del Piore nota-se os textos articulando-se em um esforço de evidenciar as possibilidades, a vitalidade e a forma privilegiada da construção de narrativas históricas a partir do gênero biográfico. 23 manifestações, evidenciando sua notável flexibilidade e abrangência. Essa perspectiva pode encontrar expressão na forma da escrita de si, como evidenciado nos diários pessoais, nos quais a própria pessoa é tanto o sujeito quanto o autor da narrativa. Além disso, ela pode tomar a forma de uma construção ativa de uma memória pessoal, que se desenvolve por meio da aquisição e preservação de objetos materiais significativos. Esses elementos tangíveis, como fotografias e cartões-postais, ganham um papel crucial na transformação dos espaços privados, como a casa, em uma espécie de "teatro da memória". Essa abordagem construtivista do eu e da história pessoal não se limita apenas a um meio, mas se expande por uma série de formas tangíveis e intangíveis. Os diários, por exemplo, são um meio de introspecção e autorreflexão, permitindo que o indivíduo explore suas próprias experiências e emoções ao longo do tempo. Enquanto isso, a coleção de objetos materiais assume o papel de testemunhas silenciosas da trajetória pessoal, servindo como âncoras para lembranças e emoções específicas. Fotografias, que capturam momentos visuais, e cartões- postais, que frequentemente trazem consigo significados simbólicos ou sentimentais, tornam- se fragmentos físicos de uma história interior. À medida que esses elementos adentram o espaço doméstico, eles não apenas ocupam espaço físico, mas também transformam o ambiente em uma espécie de cenário vivo. A casa, que antes era apenas um espaço físico, ganha novas dimensões como um "teatro da memória", onde os objetos colecionados se entrelaçam com histórias pessoais, gerando uma narrativa visual e palpável da vida de alguém. É como se cada objeto se tornasse uma peça em um enredo mais amplo, contribuindo para a representação e construção contínuas do eu e da identidade. Essa noção de construção de um "teatro da memória" reforça a ideia de que a biografia não é apenas uma narrativa fixa, mas um processo contínuo de dar forma e significado à própria vida. Essa perspectiva se alinha ao entendimento de que a biografia não é uma mera representação imutável da realidade, mas uma criação dinâmica e em constante evolução, moldada por escolhas, perspectivas e memórias individuais (Gomes, 2004, p. 11). Quando se considera um histórico do gênero biográfico, remontamos à Grécia do século V, na qual nasce, concomitantemente ao gênero histórico. É importante, no entanto, considerar que nesse período o interesse se concentra no coletivo e não no indivíduo, o que justifica o pouco desenvolvimento daquele gênero nesse momento da história. É da Grécia um dos primeiros nomes da biografia, Plutarco. Estudioso4 da antiguidade, 4 Plutarco, um notável escritor e filósofo da Grécia Antiga, exerceu uma abordagem literária que transcendeu os limites tradicionais entre história e biografia. Ainda que Plutarco não tenha se autointitulado como historiador, suas obras frequentemente exploram eventos históricos e personagens notáveis. Ele optou por escrever biografias, 24 nasceu por volta de 45 d.C. durante o reinado do imperador Cláudio. Sua influência no mundo das biografias é notável, pois ele foi responsável por dar uma forma específica a esse gênero literário. Sua obra mais famosa5, "Vidas Paralelas", se tornou um marco ao retratar a vida de heróis gregos e romanos, mostrando seus pontos fortes e fraquezas. No período do Renascimento, o interesse por Plutarco foi renovado, e suas obras foram publicadas em sua totalidade. Figuras importantes da época, como Luís XIV, Rousseau e Napoleão, consideraram-no como um guia moral e modelo a seguir. A conexão emocional com os heróis de Plutarco levou até à identificação com eles. A escrita de Plutarco ia além dos eventos, buscando explorar a psicologia complexa de seus personagens. Ele desejava mostrar aos leitores os traços marcantes de suas personalidades, revelando virtudes e defeitos. Suas biografias não eram elogios, mas sim retratos contrastantes que destacavam a dimensão ética. Plutarco estabeleceu uma interconexão entre elementos como estrutura biográfica, contexto histórico e valor moral das personagens. Suas biografias lembram as composições de Cornélio Nepos, oferecendo exemplos positivos ao contextualizar o momento histórico das figuras biografadas. A narrativa vai além da vida pessoal, explorando fatos históricos para aprofundar a compreensão das ações. Plutarco buscou equilibrar a narrativa pessoal das personagens com o contexto histórico. Em sua biografia de Sólon, por exemplo, ele apresentou o cenário político-social de Atenas na época, revelando nuances sobre o comércio, a disputa por Salamina e a lei que aboliu a escravidão por dívidas. Sua abordagem histórica reflete a compreensão e limitações do conhecimento da época, resultando em uma complexa interligação entre vida individual e história coletiva. Na Idade Média, a hagiografia emerge como um gênero literário ao abordar as vidas dos santos. Ao contrário da história convencional, a hagiografia não se preocupa tanto com fatos históricos comprovados, mas sim com a exemplificação das encarnações humanas do sagrado, mas suas narrativas frequentemente capturam tanto a esfera pública quanto a privada de seus biografados. Plutarco reconheceu a distinção entre história e biografia, ao afirmar que estava escrevendo biografias e não histórias. Seu foco estava nos traços de personalidade, caráter e intenções dos indivíduos que ele retratava. Esta abordagem é visível em sua obra "Vida de Alexandre" (I, 1-2), onde ele explora a vida do famoso líder macedônio, destacando aspectos pessoais e psicológicos que influenciaram suas ações. Ao mesmo tempo, Plutarco não aderiu rigidamente a uma única abordagem. Suas biografias frequentemente abordam uma ampla gama de tópicos, incluindo eventos políticos, culturais e filosóficos. Sua habilidade de amalgamar história e biografia resulta em narrativas ricas que transcendem os limites tradicionais da escrita histórica ou biográfica. 5 Há na antiguidade greco-romana, na Idade Média e no período renascentistas vários biógrafos: Tácito, Suetônio, Plutarco, Crítias, Isócrates, Xenofonte, Teofrasto, Aristóxenes, Varrão, Cornélio Nepos, Jean de Joinville, Philippe de Commynes, Fernán Pérez de Guzmán, Filippo Vilani e Thomas More. Entretanto, não se chamavam assim ainda e o termo “biografia” só irá aparecer no século XVII. 25 visando a torná-las modelos para o restante da humanidade. Através das vidas dos santos, busca- se edificar o leitor e transmitir uma mensagem moral e espiritual. Assim, a hagiografia floresceu como um gênero literário amplamente difundido e popular, conhecido como as "Vidas" de santos. As hagiografias muitas vezes exploram a tensão entre a aparência e a essência, priorizando a mensagem moral em vez da veracidade histórica. Diferentemente da biografia tradicional, que explora a evolução temporal das potencialidades do indivíduo, a hagiografia pressupõe que tudo já está dado desde o início. Ela enfatiza descrições espaciais de lugares sagrados para enraizar a figura do santo, utilizando a narrativa como meio para transmitir valores e ensinamentos. No entanto, Michel de Certeau (1979) adverte que a hagiografia não deve ser abordada sob a perspectiva da veracidade histórica, pois é um gênero literário com suas próprias características discursivas. A vida do santo serve como documento sociológico, representando a comunidade eclesial e enfatizando um tempo litúrgico festivo. As hagiografias destacam virtudes de maneira maravilhosa e milagrosa, uma lógica que transcende o mundo cotidiano. O discurso hagiográfico busca congelar o tempo em um retrato exemplar, imitável e edificante para os leitores. A figura do santo configura-se como tal pelo olhar dos outros e pelos que fabricam sua narrativa, tornando-a acessível para aqueles que buscam identificação e inspiração espiritual. É na Inglaterra do século XVIII onde se tem uma especialização e profissionalização da tarefa de biografar, nesse cenário; o biógrafo tinha um papel “restritivo”, tendo como função enaltecer e propagandear a vida do biografado. Essas biografias ganhavam o status de credibilidade e “verdade” quando se realizam através de uma minuciosa descrição do cotidiano do personagem, utilizando-se de documentação pessoal e se, possível, entrevistas (Silva, 2013, p. 27). A partir do século XIX o que se observa é um cenário mais crítico ao fazer biográfico, passando a considerar as particularidades dos personagens biografados e o seu contexto histórico, cultural e ideológico. No campo da legitimidade, embasado pelo cientificismo e pelo positivismo, se exige a demonstração de pesquisa empírica e documental e um motivo para realização daquele trabalho. Nesse momento, a biografia alcança ampla difusão e penetra sobremaneira em várias partes do mundo – quando chegam à França, esses estudos ganham conotações especificas. As biografias desempenharam, nesse momento histórico, um papel crucial na construção da identidade nacional. Heróis e monarcas foram imortalizados por meio dessas narrativas, contribuindo para a consolidação de símbolos ancestrais, monumentos e tradições. Essa 26 abordagem foi adotada pelo movimento positivista, que ressaltou eventos e indivíduos históricos, enaltecendo a história como uma série de feitos notáveis. Historiadores proeminentes da época, incluindo Taine, Fustel de Coulanges e Michelet, deixaram sua marca nessa visão, retratando figuras como Danton e Napoleão. No início do século XX, a história e a literatura começaram a se distanciar, especialmente sob a influência da Escola dos Annales, liderada por figuras como Lucien Febvre e Marc Bloch. Nessa época, houve uma inclinação mais ampla e interdisciplinar, concentrada nas estruturas sociais e culturais. No entanto, esse enfoque nas tendências sociais e econômicas muitas vezes deixou de lado a rica narrativa biográfica, que havia sido vista como uma abordagem individualista. Sobre a legitimidade, alcance e virada do gênero biográfico, Prost afirma Os integrantes dos Annales negaram-lhe qualquer interesse porque ela não permitia apreender os grandes conjuntos econômicos e sociais. Questionar-se sobre um homem, e necessariamente um homem conhecido – porque os outros raramente deixaram vestígios -, era desperdiçar um tempo que teria sido mais bem utilizado em encontrar a evolução dos preços ou a discernir o papel dos grandes atores coletivos, tais como a burguesia. Assim, no período entre 1950 e 1970, a biografia – individual e singular por definição – era deixada fora de uma história científica, voltada para o aspecto geral. No entanto, ela respondia à demanda do púbico: grandes coleções obtiveram um verdadeiro sucesso. Por solicitação dos editores, os historiadores, seduzidos pela expectativa da notoriedade – participação, por exemplo, no programa televisivo, sobre literatura, dirigido por Bernard Pivot – e o atrativo dos direitos autorais, aceitaram esse trabalho por encomenda que acabou por despertar seu interesse (Prost, 2012, p. 81). Por volta das décadas de 1970 e 1980, uma mudança marcante ocorreu, reacendendo o interesse pela biografia histórica. As abordagens marxistas e deterministas cederam espaço para uma nova ênfase nos indivíduos e em suas circunstâncias únicas. A chamada "história vista de baixo" emergiu, destacando as ações pessoais em contexto social e psicológico. Nesse período, François Dosse introduziu a "idade hermenêutica", trazendo de volta a importância da biografia para capturar a singularidade de cada vida dentro de seu contexto histórico. Um debate vigoroso entre historiadores e sociólogos foi iniciado por Pierre Bourdieu na década de 1980. Ele questionou a subjetividade das biografias históricas, levando os historiadores a repensar e redefinir essa abordagem. Como resultado, a biografia histórica foi revigorada e reformulada, integrando as conquistas da história social e cultural. Agora, ela não se limita mais à história dos "grandes homens". Em vez disso, a biografia explora os indivíduos como espelhos de suas épocas, revelando as correntes de pensamento e os movimentos históricos que os moldaram. 27 No Brasil não foi diferente e, sob a vigência do Império a tarefa de enaltecer o regime e seus grandes nomes ficou a cargo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Com o advento da Primeira Guerra Mundial, temos uma nova fase no campo, que não mais se preocupa com enaltecimentos e moralismo (Schwarcz, 2013, p. 51). Segundo Silva (2013), é o momento de desencantamento do mundo, onde certezas e exatidão abrem caminho para imprevisibilidade, dúvida e relativismo. Esse movimento não ficou restrito ao império brasileiro, mas também durante o período do Estado Novo (1937-1945) no Brasil, observa-se uma atuação significativa por parte do Estado na reconfiguração da memória biográfica. Nesse contexto, emergiram mitos que desempenharam um papel fundamental na construção de uma nova perspectiva em relação à nação e ao povo brasileiro. Um dos mitos preponderantes foi o do "Brasil Grande". Este mito revestia o país de grandiosidade, ressaltando sua vasta extensão territorial, riquezas naturais abundantes e a esperança emanada de uma população jovem repleta de potencial. A propaganda oficial pintava um retrato vívido do Brasil, destacando-o como um lugar de beleza natural incomparável, habitado por um povo incansável e dedicado. Outra narrativa relevante foi a do "Brasil Unido", que realçava a coesão nacional enfatizando a paz e a harmonia social. A mensagem propagada procurava retratar o Brasil como uma única nação, onde diferenças sociais e regionais eram eclipsadas pela noção de unidade. A construção de mitos também permeou a figura de Getúlio Vargas. Vargas foi retratado como um líder messiânico, visto como aquele capaz de resgatar o Brasil das crises e instabilidades políticas. A propaganda oficial engrandecia a personalidade de Vargas, realçando sua determinação, inteligência e amor pela nação. Essa edificação de mitos nacionais6 pelo Estado Novo exerceu um papel crucial na legitimação do regime. As histórias mitificadas desempenharam um papel crucial na consolidação do governo autocrático de Vargas, gerando uma percepção positiva tanto do regime quanto de seu líder. Nesse momento, assistimos a uma reorganização no sentido de escrever uma trajetória de vida, isso porque, temos uma valorização da singularidade e das 6 Durante o Estado Novo, Machado de Assis foi objeto de uma ofensiva capaz de consagrá-lo como o maior escritor brasileiro e, em grande medida, também como um medalhão nacional, patrimônio cultural brasileiro, de quem os brasileiros podiam orgulhar-se. O Departamento de Imprensa e Propaganda controlava e fornecia a maioria das pautas e do conteúdo dos jornais, e por isso, não podemos simplesmente atribuir a entusiasmo, indignação ou admiração a imensa quantidade de artigos sobre Machado de Assis e de notícias sobre as comemorações do centenário machadiano publicadas sobretudo durante o ano de 1939. O governo de Getúlio Vargas, por meio de ações como a Exposição Machado de Assis, buscou valorizar a obra e a biografia do escritor, elegendo-o como "símbolo mais representativo das nossas letras" (Ferreira, 2011, p. 82). 28 contradições dos indivíduos. Novas questões de ordem metodológica são lançadas, como, por exemplo, a proximidade (ou não) entre biografado e biógrafo ou ainda os limites entre a vida vivida e a vida documental. a biografia como objeto de estudo permite: a discussão sobre os vínculos sociais e históricos que se relacionam com a forma como o personagem teve sua obra e trajetória lembradas ou esquecidas ao longo do tempo; a vinculação desse personagem com diferentes grupos e movimentos; sua produção editorial, acadêmica e jornalística; o envolvimento de instituições na manutenção de diferentes memórias; além da promoção de diferentes eventos e de acontecimentos específicos, caracterizando-a como documento, mídia e manifestação política e cultural (SILVA, 2013, p. 30-31). Assim, segundo Eakin, há uma relação direta entre narrativa e o eu e dessa forma, falar de si é construir-se. Entretanto é justamente nesse processo de construção do eu que há a chamada “ilusão biográfica”: ilusão de linearidade e coerência do indivíduo, expressa por seu nome e por uma lógica retrospectiva de fabricação de sua vida, confrontando-se e convivendo com a fragmentação e a incompletude de suas experiências, pode ser entendida como uma operação intrínseca à tensão do individualismo moderno. Um indivíduo simultaneamente uno e múltiplo, e que, por sua fragmentação, experimenta temporalidades diversas em sentido diacrônico e sincrônico” (GOMES, 2004, p. 13). Com esse cenário de advertência podemos considerar a passagem em que Eakin traz a história de publicação e recepção do livro de memórias A million little pieces, de James Frey, na qual é relatada a história de alcoolismo e vício em drogas de Frey e como ela superou esses problemas. Entretanto, o que parecia ser mais um livro na lista dos mais vendidos no jornal The New York Times e obra lida no clube de leitura da apresentadora Oprah Winfrey, passou a envolver-se em grande polêmica. Após a publicação, surgiram denúncias de Frey teria “fabricado” as histórias do livro, a fim de dar mais contornos a vida no mundo do crime e das drogas. A editora responsável pela publicação começou a receber notificações judiciais dos leitores que alegavam ter sido vítimas de fraude – no final, em acordo, a editora concordou em indenizar os que se sentiram lesados. Esse episódio serve para nos mostrar outra das ‘regras do jogo”, ou seja, “nós podemos escrever sobre nossas vidas como quisermos, mas não podemos esperar ser lidos como quisermos” (Eakin, 2019, p. 36) porque entre outros, a autobiografia trata de verdade. É exatamente sobre isso que fala o ensaísta Phillppe Lejeune em seu Pacto autobiográfico, quando estabelece, que a autobiografia trata de uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular 29 a história de sua personalidade” (Lejeune, 2008, p. 14). O texto autobiográfico ainda estabelece, segundo Lejeune, elementos pertencentes a quatro categorias diferentes (formas de linguagem, assuntos tratados, situação do autor e posição do narrador) e, juntas, podem deixar ainda mais claro o sentimento dos leitores quanto a obra de Frey (e a escrita (auto)biográfica). 2.2 Fotografia e memória escrita O ato fotográfico representou uma revolução para a humanidade, transformou o aparato técnico da representação, assim como modificou bases culturais e psicológicas. Hoje vive-se sobre a marca do visível e o ato fotográfico banalizou-se com a popularização da fotografia e a circulação em larga escala da imagem7. Essa revolução do visível começa no século XIX, momento de grandes transformações e de grandes invenções, como o cinema, a aviação, o telefone, o automóvel e a própria fotografia. Fotografar é criar com luz e a própria etimologia da palavra nos ajuda a compreender essa operação, de origem grega, fotografia é fós, luz, e grafé, escrita. Essa técnica de com luz se fazer algo, sofreu profundas transformações desde a sua criação com a consolidação de técnicas que deram origem, em 1839, a primeira máquina de fotografia, o daguerreótipo8, de Louis Jacques Mandé Daguerre, e hoje, acessível a todos, através não mais de uma sessão com hora, data e local marcado, mas sim, por meio de um aparelho celular. Mas não só ele, na medida em que praticamente todos os equipamentos modernos atualmente saem de fábrica com câmeras: computadores, tablets, assistentes virtuais etc.; e com múltiplas opções técnicas e até mesmo a possibilidade de autorretratos (selfies). E, nisso, outra importante mudança, agora não existem mais apenas os fotógrafos profissionais e os estúdios especializados, mas todos podem capturar o instante, assim como todos os lugares e paisagens podem ser alvos de um clique. As novas técnicas fotográficas, somadas ao desenvolvimento da informática e ampliação total de público, evidenciam a 7 Gisèle Freund (1983, p. 96), destaca como a imagem modificou a relação do homem com a paisagem e coloca a imprensa como importante agente de circulação das fotografias: “la introducción de la foto en la prensa es un fenómeno de capital importância. Cambia la visión de las masas. Hasta entonces, el hombre común sólo podia visualizar los acontecimentos que ocurrían a sua vera, en su calle, en su pluebo. Con la fotografia, se abre una ventana al mundo. Los rostros de los personajes públicos, los acontecimentos que tienen lugar en el mismo país y allende las fronteras se vuelven familiares. Al abarcar más la mirada, el mundo se encoge. La palavra escrita es abstracta, pero la imagen es el reflejo concreto del mundo donde cada uno vive. La fotografia inaugura los mass- media visuales cuando el retrato individual se ve substituido por el retrato colectivo”. 8 O daguerreótipo é o resultado de uma série de técnicas e trabalhos anteriores, principalmente refletindo a continuidade das pesquisas de Joseph Nicéphore Niépce. “Os clichês de Deguerre eram placas de prata, iodadas e expostas na camera obscura; elas precisavam ser manipuladas em vários sentidos, até que se pudesse reconhecer, sob uma luz favorável, uma imagem cinza-pálida” (Benjamin, 1987, p. 93). 30 dimensão subjetiva da fotografia. Embora esse conjunto de facilidades tenha chegado com o tempo, há o dilema circulante quando se trata de posar para a câmera, como apontou o semiólogo francês Roland Barthes, o fotorretrato é um campo de disputa de forças, ao passo que se operam quatro importantes dinâmicas que se tencionam entre si: “aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte” (Barthes, 2018, p. 20). Walter Benjamin, em seu celebre texto, Pequena história da fotografia, traz o que ele chama de “período primitivo” da fotografia, na medida que nos primeiros anos após a consolidação da técnica de daguerrotipia as questões técnicas eram determinantes para tirar-se ou não uma(s) fotografia(s). A fraca sensibilidade luminosa das primeiras chapas exigia uma longa exposição ao ar livre. Isso por sua vez obrigava o fotógrafo a colocar o modelo num lugar tão retirado quanto possível, onde nada pudesse perturbar a concentração necessária ao trabalho. Como diz Orlik, comentando as primeiras fotografias: “a síntese da expressão, obtida à força pela longa imobilidade do modelo, é a principal razão pela qual essas imagens, semelhantes em sua simplicidade a quadros bem desenhados ou bem pintados, evocam no observador uma impressão mais persistente e mais durável que as produzidas pelas fotografias modernas” (Benjamin, 1987, p. 96). Embora não nos demos conta completamente, a invenção da fotografia significou ainda mais e justifica a utilização do termo revolução, na medida em que proporcionou o autoconhecimento, a possibilidade de recordação, da criação artística, da documentação e da denúncia9 (Kossoy, 2014, p. 30-31). É verdade também, que justamente por esse conjunto de possibilidades que são abertas e em especial a sua condição de “expressão da verdade10” que a fotografia sofrerá e sofre enormemente, já que a técnica entre outros, também é passível de manipulação (com cada vez mais sofisticação e precisão). O ato fotográfico ao longo da história foi tarjado de algumas maneiras quanto ao que te fato significaria o referente, na medida que, segundo Dubois, é possível rastrear essa trajetória em três momentos: 1) a fotografia como espelho do real, 2) a fotografia como transmissão do real e 3) a fotografia como traço de um real. 9 A fotografia rapidamente é absorvida ao contexto urbano e social e passa a ser utilizada, por exemplo no sistema jurídico parisiense que em 1870 adota a antropometria para fichar e identificar as chamadas “classes perigosas” e no sistema médico, cria-se o serviço fotográfico do Hospital Salpêtrère para acompanhar as diversas fases da histeria em mulheres internadas (Monteiro, 2013, p. 5-6). 10 Segundo Dubois (1993), a fotografia do século XIX era interpretada como um espelho da realidade e esse será o primeiro dos discursos envolvendo a técnica recém-criada. Sintoma disso pode ser constatado ao se verificar que o daguerreótipo ficou conhecido à época como “espelho da memória”, exatamente por representar com clareza e riqueza de detalhes, coisas que a pintura não conseguia alcançar. 31 De todo modo, a representação do eu, que estava limitada a poucos e articulada dentro de uma estrutura de mecenato, com artistas que recebiam encomendas de quadros, agora, torna- se comum, ao passo que se vê pessoas mirando as câmeras de seus aparelhos eletrônicos por todas as partes e lugares e mais, compartilhando seus enquadramentos e opções de luz, foco, brilho com amigos e desconhecidos nas redes sociais. Assim, o mundo foi deixando de ser um mistério e as fotos de todos os cantos e todas as partes circulam entre nós, criando uma antologia de imagens, onde praticamente tudo já foi ou será fotografado. Nessa perspectiva de um mundo portátil e ilustrado, Sontag (2004), aponta para uma reorganização da trama histórica. A fotografia reforça uma visão nominalista da realidade social como constituída de unidades pequenas, em número aparentemente infinito – assim como o número de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa é ilimitado. Por meio de fotos, o mundo se torna uma série de partículas independentes, avulsas; e a história passada e presente se torna um conjunto de anedotas e de fait divers (Sontag, 2004, p. 33). A visualidade passou a ocupar espaço destacado na relação dos indivíduos com o mundo e, remetendo à metáfora de Michel Foucault, o panóptico, pensado pelo filosofo, foi expandido na modernidade e ainda aperfeiçoaram-se os meios de biopoder no gerenciamento da vida com a evolução das tecnologias visuais, em que: teria ocorrido, de cerca forma, uma espécie de replicação digital do panóptico, infinita e simultânea [...] Nesse processo, não apenas a vigilância constante é essencial – um panopticismo disseminado, por assim dizer-, como também a visualidade e a veiculação de imagens exercem relevante papel construtivo e normativo (Chazan, 2003, p. 208). Sobre a possibilidade de adulteração apontada por Kossoy e pela unanimidade de especialistas no tema, os tempos atuais deram um novo contorno para a prática e não diferente, a fotografia é usada como parte de uma estratégia tão antiga quanto a própria representação, mas com novos contornos e uma nova nomenclatura, agora trata-se de fake news. Como seria possível que a película não tivesse fixado a verdade? A comparação meticulosa de duas fotografias da assinatura do pacto germano-soviético – a primeira, mostrando apenas Ribbentrop e Molotov, enquanto a outra apresenta essas duas personalidades em um cenário diferente já que, atrás deles, de pé, se encontram todos os altos funcionários da URSS, incluindo Stalin -, permitindo avaliar a amplitude eventual da trucagem. E quando sabemos que, em todos os filmes dos aliados sobre a Primeira Grande Guerra, existem apenas, e somente, duas sequências rodadas efetivamente nas frentes de combate, damo-nos conta de que uma crítica, em termos de representação coletiva, é essencial antes de eventual utilização desse tipo de documentos (Prost, 2012, p. 63-64). 32 Fotografar contemporaneamente não significa necessariamente pensar no número de clicks que se pode dar, já que mesmo que a memória dos aparelhos seja limitada de fábrica é possível expandi-las e mais, elevar os arquivos para a nuvem e, assim, armazenar de maneira ilimitada. Essa evolução dentro da revolução é recente e, no passado, com as conhecidas câmeras analógicas tinha-se uma importante limitação, na medida em que 36 poses era a modalidade comercialmente mais vendida e difundida pela empresa líder de marcado, a Kodak. Com isso, o indivíduo teria apenas 36 possibilidades de fotografar e, então, mesmo que mais barato e acessível, havia uma limitação, o que colocava o ato fotográfico restrito a momentos considerados especiais, como aniversários, casamentos, viagens, passeios e instantes de descontração com amigos e familiares. Porque, por mais que se fotografasse, até a invenção das câmeras digitais, havia, também, o custo e o processo de relevar as fotos, o que nos sugere que a democratização da representação só pode ser dita efetivamente a partir das câmeras digitais e a própria subversão do monopólio da câmera, como único meio técnico de se aprisionar o presente. E são justamente esses momentos ímpares das nossas vidas e as fotos como testemunhas que acabaram por fazer nascer e constituir-se, por exemplo, os álbuns de família. Esse acesso ao fotográfico permitiu aos indivíduos e as famílias constituírem álbuns de fotografias e a essas coleções11 os historiadores e os cientistas sociais voltaram-se apenas mais recentemente. Sobre a revolução da memória a partir da fotografia e mais, sobre os álbuns de família: A galeria de retratos democratizou-se e cada família tem, na pessoa do seu chefe, o seu retratista. Fotografar as suas crianças é fazer-se historiógrafo da sua infância e preparar- lhes, como um legado, a imagem dos que foram... O álbum de família exprime a verdade da recordação social. Nada se parece menos com a busca artística do tempo perdido do que estas apresentações comentadas das fotografias de família, ritos de integração a que a família sujeita os seus novos membros. As imagens do passado dispostas em ordem cronológica, “ordem das estações” da memória social, evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou, o que é equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua unidade presente. É por isso que não há nada que seja mais decente, que estabeleça mais uma confiança e seja mais edificante do que um álbum de família: todas as aventuras singulares que a recordação individual encerra na particularidade de um segredo são banidas e o passado comum ou, se se quiser, o mais pequeno denominador comum do passado tem o brilho quase presunçoso de monumento funerário frequentado assiduamente (Bourdieu, 1965, p. 53- 11 É importante destacar que se tratando nesse sentido de álbuns e fotos familiares o emprego correto é “coleção” e não “arquivo” já que o primeiro expressa uma “reunião artificial de documentos que, não mantendo relação orgânica entre si, apresentam alguma característica comum” (Bispo, 2015, p. 390). O termo “arquivo” por outro lado, representa um “conjunto de documentos que, independente da sua natureza ou suporte, são reunidos por acumulação ao longo das atividades de pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas” (Bispo, 2015, p. 391). 33 54 apud Felizardo; Samain, 2007, p. 213). O medievalista Jacques Le Goff em seu célebre texto História e Memória (2013) aponta o álbum como documento histórico que lança a memória ao futuro: O álbum de família exprime a verdade da recordação social. Nada se parece menos com a busca artística do tempo perdido que estas apresentações comentadas das fotografias de família, ritos de integração a que a família sujeita os seus novos membros. As imagens do passado dispostas em ordem cronológica, "ordem das estações" da memória social, evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou, o que é equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua unidade presente (Le Goff, 2003, p. 402). É nessa perspectiva, concebendo a fotografia como uma possibilidade de olhar a História a partir das narrativas visuais e assim, tratando de uma nova História, de uma história do cotidiano, de uma história cultural, que se abrem novas janelas para novos objetos, abordagens e fontes como a anunciada neste trabalho, a fotobiografia. Entretanto, é importante destacar que o espaço da fotografia é um universo paralelo ao nosso, mas que possui seus próprios regimes: seja de visualidade, temporalidade e de representação. Primeiro, porque o registro fotográfico condiciona aquele que enxerga a imagem a uma interpretação plural, na medida em que essa “leitura” da imagem se molda a partir de “reportórios culturais, classe social, visão de mundo de cada um: múltiplas máscaras para um único rosto” (Kossoy, 2020, p. 40). Mas que antes de ser imagem constituída, essa fotografia, foi pensada e “moldada” por um fotógrafo (amador ou profissional) também de forma plural e mais, a fim de marcar uma finalidade (extraquadro). Essa dimensão paralela conta com uma visualidade que não é mesma que a nossa, já que “o objeto, uma vez representado na imagem, se refere a um novo real: dramatizado, deformado, valorizado esteticamente, idealizado, ideologizado” (Kossoy, 2020, p. 41). E essa condição Kossoy (2020) chama de segunda realidade. Antes considerar, que aquilo que habita o mundo das imagens fotográficas é um referente, isto é, algo (seja a imagem de uma pessoa, de um objeto, de um animal etc.) reproduzido sob a forma de imagem. Talvez o que podemos também achar fascinante é que, inevitavelmente, a segunda realidade sobrevive ao tempo e oferece à fotografia a condição de documento. Diante disso, é importante considerar que, quando se trata do tempo na segunda realidade, antes de tudo, deve- se avaliar que se fala de uma temporalidade dupla com que coexiste: o tempo da criação (efêmero) e o tempo da representação (perpétuo) e sobre esse último, temos um período “estagnado, que paralisa o objeto, antecipa a morte [...] dimensão do ilusório e do simbólico, 34 do vazio e do perpétuo, e de memória” (Kossoy, 2020, p. 53-54). No artigo, Fotobiografia como resíduo biográfico: memória familiar, cultura urbana e sociabilidade (1920-1960), oriundo da tese de Alexandre Araújo Bispo, temos um bom exemplo do uso e da percepção das fotografias como documento histórico e, ainda, a demonstração das possibilidades de investigação com esse tipo de fonte, ao passo que, localizada uma caixa de fotos em um antiquário na cidade de São Paulo, e posteriormente, com as perguntas historiográficas corretas, ou seja: O que?, Quando?, Onde?, Como? e Por que? O pesquisador vê-se diante de um conjunto volumoso de fotografias e que em pelo menos oitocentas delas há uma mesma personagem e que essas fotos todas mais que mostrar apenas Cleonice12, revelam também o processo de urbanização e as várias transformações sociais e econômicas das cidades de São Paulo e Praia Grande entre as décadas de 192013 e 1960. Com esse cenário de pesquisas historiográficas usando-se como fonte as imagens e arquivos fotográficos, Mauad (2008), lembra que se deve então, discutir o estatuto epistemológico da imagem na medida em que as encara não de maneira ingênua, mas como suporte de práticas sociais e as compreendendo como disse Certeau (1979), resultado de uma operação historiográfica que como na pesquisa de Bispo, não fala sozinha, mas que responde diante do interrogatório. Mauad (2008), aponta ainda quatro importantes aspectos a serem considerados quanto a metodologia de trabalho com fotografias: a) a questão da produção, b) a questão da recepção, c) a questão do produto (a imagem consubstanciada em matéria) e d) a questão do agenciamento. A dimensão da produção está ligada ao próprio dispositivo de registro e como ele estabelece uma relação entre o olhar e a imagem que se resulta. E é justamente nesses termos em que habita uma dimensão ficcional da fotografia e é bem verdade que essa manifestação não está ligada apenas ao instante da produção, mas se estende também quanto a recepção da imagem, na medida em que “não há fronteiras definidas [...] mesclam-se na mesma trama e numa só mensagem” (Kossoy, 2020, p. 97). 12 Personagem identificada por Bispo na pesquisa e que tem sua trajetória de vida reconstruída e que além disso, coloca-se luz sobre mais uma interface da colonização alemã no sul do Brasil, na medida que Cleonice é filha de um alemão com uma brasileira fixados no interior de Santa Catarina. 13 Sobre essas múltiplas dimensões espaciais ocupadas pela personagem o pesquisador pondera: Um dos aspectos que mais chamam a atenção no colecionismo fotográfico dessa personagem são seus deslocamentos espaciais. Ela foi uma consumidora de paisagens e, na forma como legendou suas fotos, deixou entrever os cuidados dispensados à identificação dos lugares e datas em detrimento dos nomes das pessoas que figuram nas imagens [...] foram 46 localidades diferentes nesses quarenta anos iniciais” (BISPO, 2015, p.385). 35 Esses arranjos narrativos em que as imagens são colocadas implicam a criação de “novas realidades: ficções imagéticas, que nada mais têm a ver com o objeto, o referente no seu contexto original, mas que podem afetar a vida pessoal, social ou política” (Kossoy, 2020, p. 62). É justamente sobre essa criação de realidades que Kossoy (2014) adverte, de modo que as imagens não sirvam como ferramenta para as notícias falsas ou para os discursos ideológicos, mas como uma janela para a imaginação. Kossoy (2014) destaca que nesse universo há uma dicotomia incontornável: o visível, ou seja, aquilo que é aparente e o invisível, aquilo que está oculto. Kossoy acredita que é justamente nessa oposição que habita “a graça e o mistério das imagens fotográficas” (Kossoy, 2020, p.46). Independentemente das motivações, é por ação dessa dicotomia que temos a forma da maioria dos estudos e interpretações das imagens fotográficas. 2.3 Livro de imagens: fotojornalismo, fotolivro e fotobiografia Com o avanço tecnológico e a difusão da imagem na sociedade, as publicações com imagens e fotografias multiplicaram-se e, somado a esse fenômeno de livros de imagens, temos o próprio álbum de fotografias. É justamente a partir dessa variedade de usos e aplicações das imagens que se pode questionar sobre a natureza desses livros e como cada tipo se organiza, já que cada uma dessas produções com imagens possui particularidades. Embora se trate, em síntese, de livros suportes para exibição de imagens, é justamente esse processo e articulação que se alterna em cada um dos suportes. Essa indagação é legitima, ao passo que o fotolivro, álbum de fotografias, catálogos, portfólios, fotozines, livro de artistas, fotojornalismo e fotobiografias são todas categorias que, cada uma a seu modo, mobilizam um tipo de narrativa visual e articulam-se, na maioria dos casos, com a insígnia do verbal. Há uma prevalência de estudos dessas categorias principalmente nas áreas de comunicação, arte e educação – as quais predominantemente se tratam de produções recentes (dissertações e teses) e que nos oferecem o indicativo de uma percepção recente do campo como objeto de pesquisa. Um exemplo dessas pesquisas é a dissertação de Waldirene Malagrine Monteiro, Imagens de si: das (foto)narrativas de vida à constituição profissional de professoras alfabetizadoras, que traz um resgate da memória docente a partir do caso de duas professoras da rede pública de ensino de Sorocaba. O trabalho é um bom exemplo de como se tem conduzido investigações com a mobilização das fotografias na intenção de compreender uma 36 vida. Na área da comunicação, há produções que se dedicaram a analisar especificamente uma das categorias mencionadas acima, os fotolivros. Em Conhecer fotolivros:(in) definições, histórias e processos de produção, há um esforço do pesquisador de retomar uma definição de fotolivro e através de entrevistas com artistas, entender o processo de criação e de subjetividade de cada fotolivro, porque, como se verificará adiante, quando se trata desse tipo de publicação, estamos falando de um processo de criação subjetiva e que é compreendido como um “ensaio acabado” (Ramos, 2017, p. 25). Para melhor compreender as várias categorias de livros com imagens e oferecer limites fronteiriços mais definidos para cada um desses suportes, primeiro deve-se considerar cada um deles dispostos em uma linha reta. Esse exercício didático ajudar-nos-á a agrupar melhor cada uma das categorias de livro de imagem que está se mencionando e evidenciar proximidades e distanciamentos de acordo com as suas características. Portanto, admitida a linha, está se considerando que na primeira extremidade se deve posicionar os álbuns de fotografias e na ponta extrema, deve-se fixar os fotolivros. As demais categorias estariam espalhadas pela reta e mais ou menos próximas das pontas considerando cada uma as suas características. Essa disposição na reta como está se propondo se justifica por alguns motivos, entre eles, as proximidades entre os suportes e as suas respectivas similitudes. Assim, em cada ponta existe um tipo de bem distinto do que está se chamado até o momento genericamente de livro de imagens. Na ponta inicial temos então, os álbuns14 de fotografia, que inicialmente se tratavam apenas de uma empreitada solitária com fotos armazenadas em cadernos por pesquisadores da técnica fotográfica, mas com o tempo esses “álbuns” então evoluíram e passou-se a guardar os cartes de visite de pessoas famosas e “era comum na época as famílias burguesas distribuírem entre amigos e parentes” (Silva, 2016, p. 16). Tornaram-se mais acessíveis e populares os álbuns, quando essas fotografias se converteram em “objetos colecionais” e assim, o álbum torna-se o espaço para preservar e bem apresentar a coleção. O tempo fez os estúdios especializados desenvolverem cartões maiores, os cartões cabinet, o que de imediato transformou o objeto álbum, já que agora havia uma demanda por diversos formatos (Silva, 2016, p. 16-17). 14 Embora não se trate efetivamente do álbum de fotografias, as imagens da e sobre a família são produzidas desde o surgimento da pintura profana no século XVII, segundo Peixoto (2013), com o surgimento do protestantismo, a pintura da Holanda virou-se para outras temáticas, passando a retratar a natureza morta, as paisagens e os temas da vida cotidiana. 37 O resultado desse processo culmina nos álbuns conhecidos e utilizados modernamente e compreendem-se esses como objetos sociais e de circulação privada15 que contam e remontam às histórias dos indivíduos e de seus grupos. As fotos que figuram nos álbuns retratam o instante de felicidade, descontração e alegria entre os membros de um grupo na medida em que “o tempo se divide entre o primeiro instante da felicidade de participar de uma determinada circunstância, seguido pelo (des)contentamento de estar nela inserido” (Peixoto, 2013, p. 10). É verdade que essas fotos sempre mostram os momentos especiais e em que todos estão felizes e reunidos, na medida que serão as fotos desses instantes a “prova” desse contentamento geral, na medida que a felicidade não se reconta e é difícil de ser narrada (Kuyper, 1995, p. 15). Por outro lado, se o sentimento a ser vislumbrado é esse, os dramas e conflitos familiares são deixados de lado. Essa seleção do que entra ou não no álbum da família é particularmente interessante porque nos ajuda a ter uma primeira idei