1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE MARÍLIA OTÁVIO BARDUZZI RODRIGUES DA COSTA SOBRE AS CAUSAS EVOLUTIVAS DA COGNIÇÃO HUMANA MARÍLIA 2009 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE MARÍLIA OTÁVIO BARDUZZI RODRIGUES DA COSTA SOBRE AS CAUSAS EVOLUTIVAS DA COGNIÇÃO HUMANA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Filosofia (Área de Concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica), da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília, sob orientação do Prof. Dr. Alfredo Pereira Jr. MARÍLIA 2009 3 FICHA CATALOGRÁFICA Costa, Otávio Barduzzi Rodrigues da. C837s Sobre as causas evolutivas da cognição humana / Otávio Barduzzi Rodrigues da Costa. – Marília, 2009. 145 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2009.Bibliografia: f. 134-142. Orientador: Prof. Dr. Alfredo Pereira Junior. 1. Cognição humana. 2. Ciências cognitivas. 3. Evolução humana. 4. Neuroantropologia cognitiva. I. Autor. II. Título. CDD 153.4 4 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” CAMPUS DE MARÍLIA OTÁVIO BARDUZZI RODRIGUES DA COSTA SOBRE AS CAUSAS EVOLUTIVAS DA COGNIÇÃO HUMANA __/__/____ Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Filosofia (Área de Concentração: Filosofia da Mente, Epistemologia e Lógica; linha de pesquisa: Ciência Cognitiva, Filosofia da Mente e Semiótica), da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Marília, sob a orientação do Prof. Dr. Alfredo Pereira Jr. Banca Examinadora (nome, titulação e assinatura do examinador) (nome, titulação e assinatura do examinador) __________________________________ (nome, titulação e assinatura do examinador) 5 Dedico este trabalho à minha mãe, que tanto me apoiou para que esse se realizasse. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador, por suas dicas e infinita paciência. Agradeço aos colegas de turma: Marco, Juliano, Guilherme e Filipe À minha Elisângela, por nunca ter deixado de acreditar. À minha filha, com muita saudade. E, principalmente, aos meus avós, que sempre acreditaram em mim. 7 “Ser capaz de colocar continuamente em questão as suas próprias opiniões – esta é, para mim, a condição preliminar de qualquer inteligência” Ítalo Calvino (1923-1985 romancista e ensaísta italiano). “Existir, para um ser consciente, consiste em mudar, mudar para amadurecer, amadurecer para se criar indefinidamente” Henri Bergson (1859-1941 filósofo francês). “Nada de tão absurdo pode ser dito que algum filósofo não tenha dito ainda.” Marco Tulio Cícero (106-43 a.C., estadista e filósofo romano). “Sentimos que, mesmo depois de serem respondidas todas as questões científicas possíveis, os problemas da vida permanecem completamente intactos”. Ludwig Wittgenstein (1889-1951 filósofo austríaco). “O caos freqüentemente alimenta a vida, enquanto a ordem alimenta o hábito” Henry Adams (1838- 1918 historiador norte-americano). “A seleção natural é uma peneira, não o escultor”. Stephen Jay Gould (1941 paleontólogo e ensaísta norte-americano). “O mundo não acontece. Ele simplesmente é”. Hermann Weyl (1885-1955 matemático alemão). “Na Idade Média, as pessoas acreditavam que a Terra era plana, porque elas tinham ao menos a evidência de seus sentidos; nós acreditamos que ela é redonda não porque um por cento de nós pudesse dar as razões científicas para uma crença tão fantástica, mas porque a ciência moderna nos convenceu de que nada que é óbvio é verdadeiro, e que tudo que é mágico, improvável, extraordinário, gigantesco, microscópico, cruel ou excessivo é científico”. George Bernard Shaw (1856-1950 dramaturgo e crítico irlandês). “Se não fossem as mulheres, o homem ainda estaria agachado em uma caverna, comendo carne crua. Nós só construímos a civilização a fim de impressionar nossas namoradas”. Orson Welles (1915-1985 ator e cineasta americano). “Se você não estiver esperando, nunca encontrará o inesperado”. Heráclito (540-480 a.C. filósofo grego). “Onde estarão o passado e o futuro, se é verdade que existem?”. Santo Agostinho (354-430 teólogo e filósofo). 8 RESUMO Considera-se a espécie humana como caracterizada por uma cognição diferenciada, que inclui aprendizado constante, uso de linguagem simbólica e auto-consciência. Que fatores evolutivos teriam engendrado tal fenômeno? Nesse trabalho, são discutidos alguns dados e conjecturas da Neuroantropologia Cognitiva, que sugerem uma configuração de fatores, como a adoção do bipedalismo, uso de instrumentos rudimentares, emergência da linguagem e da cooperação social, na origem do fenômeno da cognição humana. A explicação do processo evolutivo humano aponta no sentido da operação de mecanismos de causalidade circular, pelos quais desenvolvimentos incipientes da técnica, da linguagem e da sociabilidade teriam progressivamente causado novos desenvolvimentos nestas mesmas esferas de atividade humana, conduzindo às formas sofisticadas de tecnologia, comunicação e relacionamento humano que caracterizam o período histórico contemporâneo. Palavras-chave: Cognição Humana, Ciências Cognitivas, Evolução Humana, Neuroantropologia Cognitiva. 9 ABSTRACT The human species displays peculiar cognitive abilities that includes continuous learning capacity, symbolic language and self-consciousness. Which evolutionary factors could have engendered this condition? In this work, we discuss evolutionary facts and conjectures from Cognitive Neuroanthropology, suggesting a configuration of several factors - as the adoption of bipedalism, use of rudimentary tools, the emergence of language and social cooperation - in origin of human cognition. An explanation of the process of human evolution could then be achieved from the operation of a mechanism of circular causality, by which incipient developments of technique, language and sociability would progressively cause more complex developments of the same kinds of activity, leading to the sophisticated forms of technology, communication and human relations found in the contemporary epoch. Keywords: Human Cognition, Cognitive Sciences, Human Evolution, Cognitive Neuroanthropology. 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Como o bebê macaco nasce voltado para frente, é possível para a mãe alcançar o filhote e guiá-lo para fora do canal de nascimento. Ela pode também limpar o muco da cara do recém-nascido para liberar sua respiração. ................................ .... 54 Figura 2 – Mrs. Ples, Australopithecus africanus, de 2,5 milhões de anos, diferente de Taung, mais ou menos 420cm3, possivelmente herbívoro .............................................68 Figura 3 – Taung, Australopithecus africanus, de três milhões de anos, com 350cm3 de capacidade craniana. Carnívoro, basicamente símio. ................................................ 71 Figura 4 – TM 1517. Australopithecus robustus: descoberto por Robert Broom, em 1938, em Kromdraai, no Sul de África (JOAHANSON; SHREEVE, 1998, p. 169). Consiste em pequenos fragmentos, incluindo cinco dentes e alguns fragmentos ósseos. Foi o primeiro A. robustus a ser descoberto. ..................................................... 71 Figura 5 – Turkana Boy. Revista Talk Origins. ................................................................. 72 Figura 6 – Skull OH 24, crânio de Homo habilis, viveu entre 2,4 a 1,6 milhões de anos, 800cm3 de crânio. A maior diferença do Autralopithecus é o tamanho e o formato do crânio. Fazia os primeiros instrumentos de coleta com pedaços de pau e fabricações rudimentares de pedra e caçava animais médios. ........................................................... 87 Figura 7 – Comparação de mãos humanas com a dos primatas, a saber: o társio, o gibão, o chimpanzé e o gorila. ........................................................................................... 91 Figura 8 –Categorias de sistemas autopoiéticos............................................................101 11 LISTA DE TABELAS E GRAFICOS Tabela 1 – Quadro evolutivo da vida por era geológica. ................................................................ .25 Tabela 2 – Segundo Johanson e Shreeve, a evolução e extinção dos Australopitechus (JOHANSON; SHREEVE, 1998, p. 162). ............................................................................................. 64 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................13 CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA EVOLUTIVA DA VIDA E NEUROANTROPOLOGIA .... 21 1.1 CONCEITO DE NEUROANTROPOLOGIA.....................................................21 1.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE BIOGÊNESE ..................................................... 23 1.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE TEORIAS DO PROCESSO EVOLUTIVO.........28 1.4 AS ORIGENS E AS VANTAGENS EVOLUTIVAS DE UM SISTEMA NERVOSO.......................................................................................................33 CAPÍTULO 2– COMO, ONDE E POR QUE O MACACO FICOU EM PÉ?............... 41 2.1 A HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DOS PRIMATAS. ......................................... 43 2.2 O BIPEDALISMO, A NEOTENIA E O CRESCIMENTO CEREBRAL...........48 2.3 O QUE É UM MACACO EM PÉ? ................................................................. 63 2.4 O MACACO EM PÉ ...................................................................................... 73 2.5 FORMAÇÃO DA DESTREZA........................................................................77 CAPÍTULO 3 – A TECNOLOGIA COGNITIVA ......................................................... 83 3.1 O GÊNERO HOMO HABILIDOSO ................................................................. 84 3.2 O HOMO HABILIS ......................................................................................... 86 3.3 ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DO USO DE TECNOLOGIA........................90 3.4 A INTELIGÊNCIA DIFERENCIADA HUMANA .............................................. 94 CAPÍTULO 4 – A CAUSA EVOLUTIVA DA LINGUAGEM HUMANA ..................... 99 4.1 AUTOPOIESE SOCIAL E O PAPEL DA LINGUAGEM ................................ 99 4.2 COMUNICAÇÃO, AUTOPOIESE E LINGUAGEM ...................................... 103 4.3 VANTAGEM ADAPTATIVA DA LINGUAGEM ............................................ 106 4.4 LINGUAGEM E COGNIÇÃO NA EVOLUÇÃO ............................................ 107 CAPITULO 5 – COGNIÇÃO HUMANA .................................................................. 110 5.1 A MENTE DO HOMINIDEO ......................................................................... 111 5.2 AS CARACTERÍSTICAS DA COGNIÇÃO HUMANA...................................113 5.3 NOSSO CÉREBRO ....................................................................................... 114 5.4 PARA QUE SERVE UM CÉREBRO DESENVOLVIDO? ............................. 119 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 125 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 134 GLOSSÁRIO......................................................................................................... ..143 13 INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo principal trazer contribuições de uma ciência empírica de caráter interdisciplinar, a Neuroantropologia Cognitiva, para a Antropologia Filosófica. Enfocamos a questão da origem da cognição humana, que por sua vez conduz à grande questão a respeito da identidade do ser humano, recorrentemente abordada na História da Filosofia desde o período socrático. A suposição central que adotamos em nossas reflexões sobre a cognição humana é que ela é resultante de um processo evolutivo, sendo o produto de uma multifatorialidade de causas, das quais se originou um amplo leque de características. Não obstante tal complexidade de nosso processo evolutivo, podemos nele discernir um padrão, que expressamos por meio do conceito de causalidade circular: as atividades do ser humano são tais que, uma vez estabelecidas, tendem a se ampliar e sofisticar, induzindo a emergência de novas modalidades de ação. Definimos, como foco de analise, três principais características do processo evolutivo humano, cada uma delas evidenciando um desdobramento de potencialidades, ao longo do tempo histórico: o uso de tecnologia, a linguagem simbólica, e o desenvolvimento das formas de socialização. Para explanar sobre estas três particularidades humanas, as consideramos como sendo interdependentes e as classificamos como características cognitivas, pois influenciam a maneira como o homem conhece e se relaciona com o mundo. Para atingir nosso objetivo, voltaremos à história filogenética do homem e o respectivo espaço e o tempo onde os fatos determinantes de seu processo evolutivo teriam ocorrido, ou seja, durante a existência dos ascendentes humanos australopitecíneos e o primeiro do gênero humano: o Homo Habilis. Buscamos estabelecer as relações necessárias e suficientes para dar clareza a nossa apresentação do tema: como a cognição humana estruturou-se e sob quais condições biológicas, biogênicas, ambientais e antropológicas emergiram as faculdades cognitivas humanas. A relevância de tais questões para a filosofia é a de esclarecer alguns aspectos que se encontram na origem do processo de hominização e que 14 engendram o que é considerado próprio da espécie humana. Também remetem às questões filosóficas clássicas: “Quem Somos?” e de “De Onde Viemos?”, que juntamente com “Para Onde Vamos?” são possivelmente as principais questões que inquietam a humanidade. A problemática deste trabalho também diz respeito ao problema filosófico da relação mente e corpo, um grande tema da Antropologia Filosófica. Refletiremos em nosso estudo sobre a base desse problema, mostrando que a cognição tipicamente humana poderia ser abordada em termos de suas causas evolutivas. As bases teóricas desse trabalho encontram-se na teoria da complexidade de Edgar Morin e na teoria da autopoiese de Maturana e Varela, que pressupõem a teoria da evolução de Charles Darwin. Recorremos a vários campos do conhecimento para sustentar nossa suposição de que a cognição é produto da evolução, Não pretenderemos traçar um perfil exaustivo sobre o ser humano, mas sim colocar novas observações e ampliar as perspectivas de análise sobre sua evolução. O fato é que o homem é um ser diferenciado que surgiu ao longo da história de um planeta diferenciado, a terra. Diferentemente das outras espécies, ele manifesta um modo peculiar de se relacionar com a natureza, através de sua cognição, tendo uma inteligência capaz de sonhar, de calcular, compor sinfonias, de gerar grandes maravilhas e também destruição em larga escala. Dentre os vários fatores que contribuíram para que esses elementos sobrevivessem no homem, o principal teria sido o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência (KHALFA, 1996, p.03) e sua necessidade particular de socialização (LUHMANN, 1982, p.131), que difere de todos os processos socializatórios dos outros animais. Destaca-se aqui um aspecto importante: a co- evolução das capacidades cognitivas humanas e o desenvolvimento da tecnologia. Sem dúvida, tal processo constitui um dos pilares da história evolutiva humana, que é caracterizada pela transformação da natureza, de um lado, e transformação do próprio ser humano, de outro. Pode-se apontar aqui a importância de um diálogo entre a antropologia física, a filosofia da mente e as ciências cognitivas. Iremos argumentar que o uso da tecnologia, bem como as alterações cerebrais resultantes de tal uso, tiveram profunda influência no processo cognitivo humano, e mais, que essa relação entre tecnologia e humanidade faz parte de um processo dinâmico. A tecnologia surge da relação com o meio e se caracteriza por 15 ser uma estratégia cognitiva, reflexiva, inventiva, que propicia a manifestação da inteligência. O indivíduo a aprende e a faz progredir. Os humanos são exímios em construir, com a imaginação, algo que logo podem concretizar na realidade. A reflexão que fazemos é como e quando surgiu essa capacidade de fabricar instrumentos que poderia ser entendida como sendo tipicamente humana. O ser humano se desenvolve e se transforma, a si e à sua sociedade, com a mão integrada à mente. Os desenvolvimentos da técnica colocam em evidência o caráter histórico e dinâmico do ser humano. O uso e criação de novas tecnologias propicia um grande poder de transformação, em que o potencial criativo do ser humano se manifesta, mudando o que o cerca, de maneira genial e profunda, como testemunham as obras de arte. Uma das questões a que nos propomos é discutir se tal capacidade poderia ser entendida por meio do conhecimento de suas origens evolutivas. Outro elemento importante refere-se à linguagem. A função simbólica da linguagem é aquilo que mais profundamente distingue o homem dos outros animais. Evolutivamente, o desenvolvimento desta função cerebral ocorre em estreita ligação com o bipedalismo e a libertação da mão, que permitiram o aumento do volume do cérebro, junto com desenvolvimento de órgãos fonadores. Os sistemas vivos em geral podem ser entendidos como sistemas de comunicação. Como assinala Morin, os seres humanos alimentam-se não apenas de matéria, mas também de informação, trocando-as entre si, com outros seres vivos e com o meio ambiente (MORIN 1999, p.198). As formas de comunicações dos demais seres vivos, como o canto de uma espécie determinada de pássaro no acasalamento, possuem e produzem sentido, mas, mesmo quando apresentam alguma possibilidade de recombinação e modulação, como nos pássaros mais admirados pelos seres humanos por seu canto ou capacidade de imitação, são formas de comunicação bastante rígidas de cada espécie em que - e apenas para um reduzido número de espécies - a variabilidade permissível ao indivíduo restringe-se a poucas séries de combinações. Alem do mais, não há função de referência ou critérios semânticos de relevância nas formas de comunicação de outros seres vivos, o que nos faz hesitar em classificá-las como linguagem. A linguagem humana ultrapassa a fronteira do simples em direção ao hipercomplexo: constitui um sistema de infinitas combinações e não somente mero veículo de transmissão de informações; tanto reflete o real quanto por si mesma cria 16 outras realidades, especificamente humanas, como a arte, o sonho e a música. No ser humano, a linguagem não apenas produz sentido - como reprodução das percepções do meio ambiente - mas produz novos sentidos. A criação desses novos sentidos ocorre porque o domínio da linguagem, tal como proposto por Maturana (1997), é por si mesmo autopoiético, isto é, se auto-reproduz de forma não-rígida e evolui em seu próprio grau independente de complexificação e criação de novas formas. Quanto ao bipedalismo, notamos que enquanto os pés das espécies de macacos são adaptados essencialmente à vida nas árvores, () os pés dos humanos são adaptados à locomoção bípede, e o dedão do pé provê uma plataforma flexível para caminhar e correr. Outras adaptações do pé humano incluem uma porção proximal estendida e arcos para equilíbrio. A estrutura do pé permite o uso () de nossos poderes físicos para andar e correr eretos, livrando nossas mãos. O bipedalismo induziu o surgimento de diversas características, tais como a liberação das mãos, que influenciou o uso e a habilidade de fabricar tecnologia, mudou a estrutura osteo-crânio-cefálica, influenciando nas mudanças cerebrais que propiciaram a emergência das formas de cognição humanas. O desenvolvimento do bipedalismo foi uma adaptação que permitiu aos descendentes dos Hominídeos sobreviverem e florescerem após os eventos que tornaram o clima mais seco após 4 M.a., que converteram ambientes florestais em savanas. A postura ereta e o bipedalismo precedem o aparecimento de espécie humana, e, inclusive, a produção de ferramentas, podendo portanto serem arrolados como possíveis causas deste aparecimento. Já a socialização diferenciada é a capacidade natural que o ser humano tem para a convivência em sociedade, desenvolvendo-se pelo meio da sociabilidade e é por meio da gregariedade que o indivíduo () realiza seu desenvolvimento cognitivo, absorvendo o conjunto de hábitos, costumes e regras característicos de seu grupo. Nossa socialização () só acontece quando efetivamente participamos da vida em sociedade, assimilando suas principais características. O ser humano não é o único ser social do planeta, mas é o único que, em sua socialização, é afetado profundamente no plano cognitivo. A sociabilidade é influenciada pela tecnologia, pois para aprender seu uso e fabricação é necessário que seja ensinada por outros indivíduos de um grupo organizado. 17 Vale destacar que a maior vantagem do uso de tecnologia foi proporcionar uma rica alimentação através da caça, e, para caçar eficientemente, teve de contar com a cooperação do grupo, elaborando estratégias eficientes, e ainda teve de complexificar sua comunicação para ensinar a fabricação dos instrumentos paras as novas gerações. O bipedalismo também influenciou a socialização, pois sua principal conseqüência, a neotenia, fez com que os filhotes de nossos ancestrais ficassem mais dependentes dos cuidados do grupo no qual viviam, estabelecendo elos particulares de ligação. Quanto ao elemento linguagem, é patente sua interdependência para com a socialização, pois é na convivência com outros que criamos a linguagem e cooperamos em causalidade circular com a relação língua- sociedade. Portanto, ao abordar este complexo de fatores evolutivos, este trabalho procura trazer contribuições para se responder a questão filosófica: “o que é esse ser: o homem?”, uma interrogação central da Antropologia Filosófica, a parte da filosofia que investiga a estrutura essencial do homem. “Antropologia”, como se sabe, significa “ciência do homem” e compreende tudo aquilo que pode ser explorado da natureza do homem, tanto no plano do corpo quanto da mente. O domínio da antropologia não engloba somente o estudo das propriedades que diferenciam a espécie humana das outras espécies existentes no planeta, mas ainda suas disposições latentes, seu comportamento e relacionamento com o mundo e como ambiente que o cerca. E como o homem não aparece apenas sob a forma de um ser natural, mas que ainda age e cria, a Antropologia Filosófica deve também buscar saber aquilo que o homem como ser atuante "tira de si mesmo” (expressão de MONDIN, p.03), aquilo que pode e deve tirar de si. A tecnologia, a linguagem e a socialização são elementos os quais, integrados, capacitam à existência do homem, não exsitindo homem sem eles e não havendo estes sem homem, todos eles se auto-geram, auto-produzem e se auto- organizam emergindo1 no que é a humanidade. Para tanto, nos cinco capítulos que se seguem enfocaremos o que é considerado, por muitos estudiosos, como o tripé das características humanas: a técnica, a linguagem e a sociabilidade. 1 Mais tarde, preocupar-nos-emos melhor com o termo emergência. 18 No Capítulo 1, traçamos a história evolutiva, do inicio da vida até os primatas que tinham o potencial para ser ascendentes do ser humano, discutindo quais fatores que possibilitaram sua capacidade cognitiva diferenciada. Um dos tópicos mais interessantes da neuroantropologia é o estudo da evolução do trabalho humano, suas relações com as atividades corporais, o desenvolvimento cerebral e a evolução das ferramentas cognitivas tais como a inteligência. Além disso, apresentamos o estudo de outros tópicos igualmente relevantes: as influencias dos fatores biológicos, como o desenvolvimento do aparelho neuropalatal e as aquisições neurais provindas da neotenia; as alterações dos fatores comportamentais, influenciados pela adoção do bipedalismo; as relações de socialização; a linguagem; a estratégias de caça e outros. Consideramos a cognição humana diferenciada como produto da evolução, faz-se necessário mencionar as teorias evolutivas vigentes. Ainda nesse capitulo, enfatizamos a evolução do sistema nervoso dos animais até os cérebro s do primatas já que destes evoluirão o cérebro humano. Já no capitulo 2, abordamos a trajetória dos ancestrais que participaram do processo seletivo natural, desde os primatas até os hominídeos. Enfocamos o fenômeno da bipedalização que é a capacidade de andar sobre os dois membros posteriores, característica que diferencia o homem dos outros primatas. Bipedalismo e postura ereta são duas características co-relacionadas, que precederam o advento da espécie humana e já se manifestavam em alguns de nossos ancestrais mais remotos. O fato de serem bípedes lhes permitiu sobreviver às mudanças climáticas que transformaram as florestas em savanas, há 5 milhões de anos. Além disso, discutimos os fatores decorrentes do bipedalismo que influenciaram nas mudanças cerebrais, o que possivelmente causou sua cognição diferenciada, a neotenia e o crescimento cerebral. Com a nova postura, as mãos ficaram livres para realização de outras atividades que levaram ao aparecimento de um modo distintamente humano de vida donde se destaca a produção de ferramentas, com que o homem e seus ancestrais adquiriram vantagens na adaptação ao meio natural. O capitulo 3 trata especificamente do uso de tecnologia. Sem invenção tecnológica não há inteligência eficiente para suprir o corpo e a amplitude dos desafios, principalmente em determinados estágios de nosso processo evolutivo. 19 O animal (não-humano) é dotado de todas as ferramentas necessárias para viver no seu habitat. Por conseguinte, se esse animal, com seu cérebro rudimentar (no sentido de menos complexo), é capaz de satisfazer adequadamente aos objetivos comportamentais a que foi adaptado; mas o ser humano, para sobreviver, precisa de tecnologia. Mostraremos aqui em que condições evolutivas e corpóreas ela surgiu tendo suas interferências sentidas na socialização. Mostraremos a história e capacidade do primeiro elemento do gênero humano, o Homo Habilis e quais contribuições ele deixou a nossa cognição. Destacaremos algumas conseqüências do uso de tecnologia e explicaremos como a tecnologia interferiu na evolução da inteligência e portanto da cognição humana. O capitulo 4 mostra as vantagens da linguagem e da indícios de seu surgimento, enfatizando a teoria da autopoiese da linguagem. A autopoiese está intrinsecamente ligada à cognição, no âmbito das características de cada espécie, implicando em que as atividades de organização dos sistemas vivos humanos são mentais e as interações destes organismos com o seu ambiente são cognitivas. Damos ênfase ao fato de como o desenvolvimento da linguagem cooperou na socialização, na fabricação de ferramentas e cognição do homem. A hipótese revista (cuja origem remonta a GREENFIELD, 1998), relaciona-se ao desenvolvimento das habilidades manuais, propiciada pelo uso de instrumentos, como indutora de um desenvolvimento no córtex motor, vindo a originar a área de Broca, área do cérebro que tem papel central no processamento sintático da linguagem; o crescimento das habilidades lingüísticas, por outro lado, teria acelerado a comunicação interindividual, facilitando a emergência de conceitos e categorias voltados à subjetividade alheia que, posteriormente, vêm a ser empregadas para se referenciar ao próprio sujeito humano e ao mundo que o cerca, caracterizando a cognição humana. No capitulo 5 destacamos como a cognição humana surgiu da interação dos fatores anteriores. Relacionamos as características da mente do hominídeo e do homem, enfatizando as vantagens do cérebro humano no contexto de sua evolução. É importante evocar a teoria de evolução das espécies, na construção de princípios teóricos sobre a cognição, visto que ambas as construções teóricas intersectam-se para explicar as peculiaridades cognitivas de seres humanos, conforme as teorias de Varela e Maturana. 20 Na conclusão, fazemos o balanço do caminho percorrido. Em algum ponto espaço-temporal do passado algo relevante aconteceu, fazendo com que um ancestral do homem descesse das árvores e sobrevivesse nas savanas; desde então, ocorreu um processo multicausal que culminou na cognição humana. As mudanças corpóreas resultantes da adoção do bipedalismo possibilitaram o uso da técnica que, por sua vez, possibilitou novas mutações permitindo que o homem evoluisse em uma relação complexa em sua ação sobre o ambiente. Essa evolução culminou em processos mutativos internos que ocorrem no sistema2 que se integra e se manifesta nas funções sistemicas em corpo/cérebro/mão/técnica/linguagem/cultura, as qualidades próprias do ser humano. A cada passo evolutivo, o homem foi se complexificando, partindo do proncosul ao homo sapiens sapiens. Após explorar a dimensão “técnica”, percebeu-se que ela é essencial ao homem: através do trabalho, o homem usa da força para suprir suas necessidades biológicas, por meio da técnica/tecnologia; desse modo, “o homem é essencialmente faber, é essencialmente sapiens” (MONDIN, 2003, p. 84). 2 Refere-se à teoria geral dos sistemas de Bertalanffy (1977), (BERTALANFFY, 1977, p. 32) que constatou que existem princípios que são comuns a diferentes disciplinas e áreas de pesquisa. Baseado nisto, ele desenvolveu uma nova teoria, chamada Teoria Geral dos Sistemas, cujo “objeto principal é a formulação e derivação dos princípios que são válidos para ‘sistemas’ em geral”. Bertalanffy mostrou como estes princípios são comuns a diferentes campos de estudo. À vista disso, experiência e informação podem ser trocadas. Ele pensou neste conceito como algo que pudesse trazer a unificação da ciência. Se isto tornar-se-á um fato, é algo além do escopo desta discussão. No desenvolver de sua teoria, ele preparou o caminho para uma nova maneira de pensar sobre a realidade. Esta salienta que os elementos de uma realidade estão interligados, de modo que a maneira correta de entender a realidade e seus elementos é estudando-os em conjunto, assumindo a existência de inter-relacionamentos e efeitos recíprocos. Isto significa interação entre cientistas e pesquisadores, obtendo-se a integração do conhecimento. Um exemplo desta integração do conhecimento humano é a disciplina ou ciência (não existe consenso a respeito disto) chamada ciência cognitiva dinâmica, em que o conhecimento proveniente de diferentes atos do corpo, em integração com o ambiente, é agrupado de maneira a se alcançar um objetivo comum: o fenômeno da mente. 21 CAPÍTULO 1 - HISTÓRIA EVOLUTIVA DA VIDA E NEUROANTROPOLOGIA Nesse capítulo, apresentamos as evidencias evolutivas que possibilitaram a existência de um ser vivo bípede, cuja história é fundamental para os objetivos do presente trabalho: mostrar as influências evolutivas que resultaram na cognição diferenciada do ser humano. Torna-se necessário apontar os caminhos evolutivos do inicio da vida até os primatas; destacando que nestes surgiram às bases da cognição humana. Mostraremos que a cognição é produto da evolução provinda dos primatas e para tanto discorreremos sobre alguns aspectos relevantes relacionados com a neuroantropologia, apontando seus principais conceitos, para explicar os ascendentes humanos e em outro capitulo (2) realizaremos exercício dessa ciência. Faremos considerações acerca da origem da vida, desde seus primórdios até o aparecimento dos mamíferos. Discorremos como as eras geológicas, o clima e o meio ambiente influenciaram na evolução dos mamíferos até a origem dos primatas, bem como buscamos demonstrar a sua adaptabilidade ao ambiente, diante das constantes mudanças paleo – geológicas ocorridas ao longo do tempo e espaço. Mostraremos também que o ser humano enquanto espécie é resultante da evolução e pincelando as principais teorias evolucionistas, para em outro capitulo(5) explicar os efeitos desta evolução na cognição humana. Enfatizamos a origem evolutiva do sistema nervoso nos seres vivos e a sua mais complexa estruturação: o cérebro. 1.1 CONCEITO DE NEUROANTROPOLOGIA A neuroantropologia consiste em um dos ramos da antropologia física ou biológica que estuda os mecanismos de evolução biológica, herança genética, adaptabilidade e variabilidade humana, primatologia e compila o registro fóssil da evolução do sistema nervoso humano. A neuroantropologia analisa o processo da evolução biológica do cérebro humano, através de estudos dos crânios de homens e hominídeos; da adaptabilidade de populações extintas e realiza sua comparação com as não extintas; do apontamento da localização de estruturas cerebrais que 22 existem em fósseis, da primatologia cerebral comparada a hominídeos e registro de crânios fossilizados, testando sua autenticidade. A neuroantropologia3 cognitiva estuda, as relações entre alterações corporais e cerebrais, no processo da evolução biológica, tendo como objetivo explicar os processos neurocognitivos do o que é considerado como propriamente humano como capacidade de compreender símbolos, orientação diferenciada do ser humanos, uso diferenciado de tecnologia, da capacidade de design, de destreza e de outras habilidades. Será utilizada em nosso trabalho principalmente ao apontar as capacidades cerebrais de ascendentes do homem. A neuroantropologia ganhou destaque nos anos 1970, quando Oliver Sacks, professor de neurologia da Escola de Medicina Albert Einstein da Universidade de Nova York, começou a trabalhar também como neurologista, no Hospital Berth Abraham, no Bronx, em Nova York, onde trabalhou com pacientes que se caracterizavam, por estarem há décadas, em estado catatônico, incapazes de qualquer tipo de movimento (este caso inspirou-o a escrever, em 1973, o livro Awakenings, retratado no filme “Tempo de Despertar”). Dez anos depois, Oliver Sacks constatou que esses doentes eram sobreviventes e descendentes de portadores de uma grande epidemia da doença do sono que assolou o Alasca, entre 1916 e 1927. Tratou-os então com um medicamento novo, A L-dopa, que permitiu que eles aos poucos regressassem a vida normal. A Universidade de Nova York realizou pesquisa multidisciplinar entre os cursos de medicina e antropologia, analisando os crânios dos antecedentes de algumas vítimas daquele estado catatônico, constatando que havia pequenas diferenças (anomalias) nos lóbulos laterais cerebrais esquerdos, patologia também encontrada em necropsias dos pacientes desse mesmo caso4. Uma vez apresentado o conceito do que é neuroantropologia (que mais adiante nos será útil nessa dissertação), partiremos para o estudo da manifestação de um sistema biológico e orgânico bastante específico surgido nos seres vivos: o sistema nervoso, ponto fundamental do nosso trabalho. Como o sistema nervoso é parte integrante de nossa pesquisa, e é resultante das origens da vida, faremos considerações referentes ao surgimento 3 Ver detalhes in: http://neuroanthropology.net 4 COUSER, Thomas G. Essays of Awkenings in(p.05, the Cases of Oliver Sacks: The Ethics of Neuroanthropology, monograph of Indiana University, program of medical ethics research, 2001) 23 da vida afim de que possamos fazer mais a frente, uma analise de um dos mais interessantes manifestações da vida: a cognição humana. Já que a consideramos como uma vantagem evolutiva. 1.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE BIOGÊNESE Esse trabalho é centrado em responder questões sobre cognição, “a cognição é um dos fenômenos mais intrigantes da vida (MATURANA,2001, p. 8)”, esta surgiu num viés evolutivo, é necessário falar sobre origem da vida para estabelecer em que ponto do decurso da evolução surgiu a cognição. A definição de vida tem sido um problema epistemológico muito grande, (EL HANI p. 2000 p. 15). Algumas características da vida e princípios gerais da evolução, tais como: adaptação, crescimento, desenvolvimento, comportamento e aprendizagem, podem ser melhor compreendidas e cientificamente aceitas. Entendemos, como ser vivo, o indivíduo (aquele que não pode ser dividido sem perder suas características essenciais) dotado de capacidade de auto- organizar-se e de estabelecer inter-relações com o meio onde se encontra e com as reações físico-químicas que ocorrem dentro de si, através dos elementos captados do meio ambiente e metabolizados. Concomitantemente estabelece suas relações com outros indivíduos de sua espécie e com os de outras espécies, transformando ou não nesse meio, herdando especiações de seus ascendentes e mudando seus descendentes através do tempo. Segundo El-Hani e Videira, A origem da ordem no universo e a emergência da organização biológica na Terra e em outros planetas devem ser compreendidas num único quadro (causal, histórico e físico). A emergência de princípios especiais de organização (por exemplo, o código genético e, portanto, a informação biológica) pode conferir à biologia, autonomia conceitual e aos organismos uma ontologia e modo de ser especiais – mas a evolução do universo, da vida e da mente deve ser explicada, em última análise, numa grande narrativa propiciada pela ciência e informada pela semiótica e pela filosofia. A descoberta de novas leis de auto-organização e evolução pode finalmente reformar nosso retrato do cosmos numa direção mais “orgânica”, em que nossa percepção do mundo talvez seja reencantada. Mas nós não devemos desistir da busca de um retrato científico unificado do mundo (EL-HANI; VIDEIRA, 2000, p. 5). Seguindo os autores Emmeche e El-Hani (2005), a biologia moderna explica os seres vivos como entidades materiais altamente organizadas, produzidas por um longo processo de evolução e compostas por células que, por sua vez, são 24 compostas por moléculas. A abordagem deste nosso trabalho vai ao encontro com El-Hani ao afirmar que a origem da vida pode manifestar-se de forma emergente, cuja teoria trata sobre o emergentismo, a partir das condições gerais da explicação da biogênese. Muitos obstáculos se apresentam para a formulação de uma teoria suficientemente ampla para explicar a origem da vida. (MAYR, 1988, p. 112). Supõe-se que determinados ambientes constituíram-se de condições propícias para a formação da vida num sistema emergente(FUTUYMA, 1992, p. 67). Do mesmo modo, tais condições apareceram na terra há bilhões de anos. Sustentando que a vida é como processo emergente e complexo, surgem algumas considerações sobre sua origem até o aparecimento dos seres cordados. Segundo Coutinho e Paretoni (2004), a história da vida pode ser didaticamente dividida em dez padrões: 1. As disposições dos oceanos e das massas de terra mudaram ao longo do tempo, assim como o clima; Estas mudanças afetaram a distribuição geográfica dos organismos. A Biogeografia, ciência que estuda as distribuições dos seres vivos no planeta, pode fornecer algumas respostas para várias perguntas formuladas acerca desse fato; 2. A composição taxonômica dos seres vivos mudou continuamente, devido ao surgimento de novas formas e extinções; 3. Ao longo do tempo, as taxas de extinções têm sido particularmente altas; 4. As radiações evolutivas de níveis taxonômicos mais altos ocorrem, algumas vezes, rapidamente (algumas dezenas de milhões de anos); 5. A diversificação de níveis taxonômicos mais altos incluiu o aumento do número de espécies e habitats ecológicos, gerando o aumento na variedade de nichos ocupados; 6. Níveis taxonômicos mais altos, freqüentemente, foram substituídos por outros, ecologicamente similares. Não somente no tempo, mas também no espaço, membros de diferentes taxa algumas vezes radiaram em uma variedade de “equivalentes ecológicos”; 7. Os membros ancestrais de taxas mais altas são freqüentemente formas generalizadas ecológica e morfologicamente; 25 8. De toda a variedade de formas num nível taxonômico mais alto, que existiu numa determinada época, somente poucos persistiram ao longo do tempo; 9. A distribuição geográfica de muitas taxas sofreu grandes mudanças; 10. Ao longo do tempo, a composição dos seres vivos cada vez mais se pareceu com a do presente, como uma conseqüência da extinção e da evolução das linhagens sobreviventes; Tabela 1 –Quadro evolutivo da vida por era geológica. Fonte: Laboratório de biodiversidade e evolução. (Instituto de ciências biológicas da UFMG)5. 5 Instituto de ciências biológicas da UFMG. Laboratório de biodiversidade e evolução. Acesso em 02/2006 Disponível em: http://www.icb.ufmg.br/lbem/aulas/grad/evol/evolmol/) 26 A vida em termos moleculares não mudou muito no decurso da evolução, apenas que há dois bilhões de anos era encontrada ainda exclusivamente no oceano em forma unicelular e faltando apenas 30 milhões de anos para o fim do Pré Cambriano, surgiram as primeiras criaturas multicelulares. Tais criaturas ainda não possuíam partes duras e calcárias (como conchas ou dentes), daí a dificuldades de serem encontrados seus fósseis (MORIN, 1987, p. 122). Durante os últimos dois bilhões de anos, as algas e as bactérias, que dominaram o oceano, consumiram bastante dióxido de carbono, liberando neste processo um terrível poluente: o oxigênio livre6. Boa parte deste oxigênio foi combinado com ferro e com outros elementos, formando grandes depósitos minerais, não sem antes provocar um desastre ecológico de notáveis proporções. As maiorias das bactérias que dominavam o planeta até agora, por seem anaeróbicas, não conseguiram sobreviver nesse ambiente rico em oxigênio, e foram dizimadas (MORIN, 1987 p.123). Após algum tempo desenvolveram-se as bactérias aeróbicas com a ação da fotossíntese que, por sua vez, foi originada pela junção da bactéria anaeróbica Stiolithoma com outra conhecida como mitocôndria primária, a mesma que está distribuída pelas células em todos os corpos multicelulares. Quando a fotossíntese apareceu nas cianobactérias7 e em outras bactérias, os seres vivos adquiriram a capacidade de metabolizar o oxigênio (MORIN, 1987, p.125). A respiração aeróbica de trilhões de bactérias causa o aumento de O2, criando a camada de ozônio, nesta atmosfera elas se auto-organizam no meio ambiente troposférico, com maior disponibilidade de minerais, aparecem as células eucariontes (JONAS, 1998.p.03). Níveis moderados de O2(oxigênio metabolizável) datam de 2,3 bilhões de anos. Houve um grande aumento desse componente em torno de 700 milhões de anos (M.a) e uma aproximação dos níveis atuais a aproximadamente 570 M.a. 6 O aparecimento das primeiras formas de vida unicelulares avançadas e multicelulares coincide aproximadamente com o início da acumulação de oxigênio livre que era, para as antigas bactérias anaeróbias um gás tóxico. Só com o surgimento da mitocôndria é que ele se tornou essencial a vida. 7 As cianobactérias não podem ser consideradas nem algas e nem bactérias comuns. São microorganismos com características celulares procariontes (bactérias sem membrana nuclear), porém com um sistema fotossintetizante semelhante ao das algas (vegetais eucariontes), ou seja, são bactérias fotossintetizantes. Existe uma confusão na nomenclatura destes seres, pois, a princípio, pensou tratar-se de algas unicelulares, posteriormente, os estudos demonstraram que elas possuem características de bactérias. Para simplificação, neste texto, serão denominadas simplesmente cianobactérias. 27 Quase todos os seres eucariontes possuem mitocôndrias e cloroplastos. Estas organelas descendem de bactérias que foram provavelmente ingeridas por procariontes heterotróficos e mais tarde se tornaram simbiontes e possibilitaram o surgimento dos protozoários (MAYR, p.79). Relativamente em pouco tempo, viriam a surgir os primeiros animais pluricelulares invertebrados no início da era paleozóica (ver Tabela 1). Uma vez tendo mostrado o início do surgimento de vida na terra, apontamos o resumo do esquema temporal da evolução até um outro ponto relevante da nossa pesquisa: o surgimento dos mamíferos: Aproximadamente 600 milhões de anos atrás: CRAMBRIANO A explosão do Cambriano foi “a grande explosão” da vida animal, quando o oxigênio atmosférico aproximou-se aos níveis atuais, surgindo uma enorme diversidade dentro de alguns poucos milhões de anos. Aproximadamente 500 milhões de anos atrás: ORDOVICIANO Logo depois do aparecimento das primeiras plantas terrestres, o primeiro evento principal de extinção (Extinção Permo -Triássica8) eliminou muitos tipos de trilobitas e outras formas de vida invertebrada marinha. Aproximadamente 395 milhões de anos atrás: DEVONIANO Após o surgimento dos primeiros insetos sem asa, dos peixes com armadura (Pteraspideos) e dos anfíbios (Icthyostega), uma onda de extinção (A Extinção Massiva do Devoniano - ver glossário) eliminou muitos invertebrados, corais e placodermos marinhos (peixes primitivos). Aproximadamente 280 milhões de anos atrás: PERMIANO Répteis, como o Dimetrodon (não dinossauro), transformaram-se nos animais terrestres dominantes, mas, antes, uma extinção (A Extinção do Triássico - Jurássico) mais severa causou o desaparecimento de grupos inteiros de animais, incluindo alguns répteis semelhantes a mamíferos. 8 Extinção Permo -Triássica – ver glossário 28 Aproximadamente 225 milhões de anos atrás: TRIÁSSICO Enquanto a vida se recuperava, répteis surgiram e os primeiros dinossauros apareceram. Uma onda de extinções eliminou muitos tipos de dinossauros “arcaicos”, deixando lugar para os gigantes do Triássico, como os braquiossauros. Aproximadamente 135 milhões de anos atrás: CRETÁCEO Tubarões, tais como aqueles que vivem até hoje, sobreviveram à extinção, muitas vezes atribuída ao impacto de um asteróide, mas a maior parte dinossauros (à exceção dos possíveis ancestrais das aves), répteis marinhos e voadores, não resistiram ao desastre. Hoje: OLIGOCENO Nos últimos 38 milhões de anos do tempo geológico em que os mamíferos surgiram, deu-se início o e capacitação para o desenvolvimento da humanidade. A grande glaciação desse período teve maior impacto do que se julgava no clima da terra, fato que favoreceu aos mamíferos, por resistirem melhor às baixas temperaturas. Tendo apontado os períodos essenciais ao surgimento de vida e esclarecido no ultimo, as condições em que surgiram os mamíferos, questão pontual em nossa pesquisa, faremos breve análise das principais teorias evolutivas, para a seguir, discorrer sobre o surgimento da base biológica da cognição: o cérebro. 1.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE TEORIAS DO PROCESSO EVOLUTIVO A cognição humana, e seus produtos, tais como, linguagem, uso e fabricação de ferramentas e inteligência é um fenômeno evolutivo para resolver problemas, para tanto deter-nos-emos em algumas considerações sobre a teoria da Evolução e suas tórias mais recentes que as complementam para depois explicarmos a evolução da cognição humana. Até o surgimento da teoria evolutiva de Charles Darwin, na segunda metade do século 19, a melhor explicação sobre a origem da natureza, era apresentada pelo Reverendo inglês William Paley, criador do conceito de Deus-relojoeiro, ao comparar 29 a complexidade do mundo natural com a de um relógio e concluir pela existência de um criador: “Todos os indícios de projeto, todas as manifestações de ‘design’ que existem no relógio, existem na obra da Natureza, com a diferença, em favor da Natureza, de serem maiores e mais ainda, Num grau que excede todas as estimativas”. (PALEY, 1802 apud MORIN, 1987, p. 25). Assim, se a única alternativa à proposta do Reverendo, for o acaso e o aleatório, qualquer pessoa de bom senso optaria pela existência de um Deus- relojoeiro. Entretanto, a teoria darwiniana não se explica pelo acaso, ela é um algoritmo lógico e funcional. O termo algoritmo, de origem árabe, identifica um processo lógico-formal e confiável e que produz um determinado resultado sempre que “posto a funcionar” ou evidenciado. As características do algoritmo são: indiferença em relação ao substrato (sua força vem do processo, não do material usado); simplicidade interna e resultados garantidos (DENNETT, 1998, p.06). Softwares são exemplos de algoritmos. Receitas de bolo também são. O algoritmo darwiniano consiste em: “se existe variabilidade genética e esta causar um diferencial reprodutivo, decorre evolução (EL-HANI; VIDEIRA, p. 2000, p 33)”. Assim, o sentido técnico do termo, equivale a mudanças nos genes de determinada população. Isto é evolução. O sistema de cópias do material genético, localizado no núcleo das células, por maior que seja sua eficiência, acaba por produzir erros e o organismo adapta-se a esses erros, as mutações. Elas são a fonte da variabilidade genética (MATURANA; VARELA, 1997, p.75). Por esta simplicidade técnica, o darwinismo vem suportando muito melhor às críticas, quando comparado a outras teorias, da mesma idade, que também tentam explicar a natureza humana, como a psicanálise e o marxismo (MAYR, E. p.100) Porém, estamos tratando de evolução e esta nem sempre pode ser explicada em um algoritmo; mas outras análises fornecem novos rumos a essa problemática. Na maioria das vezes, quando um cientista trata de “evolução”, refere-se ao modelo aceito do processo pelo qual os organismos se modificam através do tempo. O modelo científico da evolução, atualmente aceito, foi primeiramente planejado no livro Sobre a origem das espécies através da seleção natural, de Charles Darwin. A teoria darwiniana da evolução se resume em alguns postulados simples (resenha nossa): 30 1. Os membros de qualquer população biológica em particular, irão diferir entre si em pequenas singularidades e terão características ligeiramente diferentes de estrutura e comportamento. Este é o princípio da “variação”. 2. Estas variações podem ser passadas de uma geração para outra e a prole daqueles que possuem um tipo particular de variação também tenderá a adquirir aquela mesma variação. Este é o princípio da “hereditariedade”. 3. Algumas destas variações conferem ao seu possuidor uma vantagem na vida (ou evitar alguma desvantagem), permitindo que o organismo obtenha mais alimentos, que fuja de predadores mais eficientemente. Desta forma, aqueles organismos que possuem uma variação adaptativa, tenderão a sobreviver por mais tempo e gerar mais descendentes que os outros membros daquela população. Estes descendentes, através do princípio da hereditariedade, também estarão propensos a possuir estas variações vantajosas, obtendo o efeito de aumentar, sobre um número de gerações, a proporção de organismos na população que possuem esta variação. Este é o princípio da “seleção natural”. Estes princípios são combinados para formar a essência do modelo evolucionário. A visão darwiniana tradicional sustenta que pequenas mudanças na estrutura e no comportamento, efetuadas pela seleção natural das variações, produzem, após um longo período de tempo, organismos que diferem de seus ancestrais, pois deixam de ser o mesmo organismo e por isso, devem ser classificados como uma espécie separada. Este processo de especiação, repetido há mais de 3,5 bilhões de anos, e que atravessou o tempo desde o aparecimento da primeira forma de vida na Terra, explica a produção gradual de toda a diversidade da vida. Recentemente, uma nova teoria complementa a teoria da evolução tradicional e tem sido amplamente aceita. A mesma, evidencia o “equilíbrio pontuado”, tese defendida por Stephen Gould e Niles Eldredge no início da década de 1970 (GOULD e ELDREDGE In Foley p. 45). A teoria darwiniana original considera que o aumento de mudanças, resultando numa espécie nova, ocorre por toda a população das espécies “parentais” e essa que se completa gradualmente é substituída por uma nova espécie, um cenário conhecido tecnicamente como “especiação simpátrica” 31 (simpátrico significa “o mesmo lugar”). Em 1972, Gould e Eldredge manifestaram que a maioria das especiações tomou lugar não na população inteira daquela espécie parental, mas dentro de um grupo pequeno, isolado geograficamente dela. Após esta transição isolada, para uma nova espécie tomar lugar, move-se para fora da área de sua origem, para substituir as espécies mais antigas por todo seu habitat. Este cenário é conhecido como “especiação alopátrica”, que significa “lugar diferente”. Gould e Eldredge apontaram que um modo aloprático de especiação, em que a transição evolucionária de uma espécie para outra, tivesse lugar somente numa área geográfica isolada e por curto período de tempo, necessariamente limitaria o número dos fósseis intermediários, que poderiam ser encontrados pelos paleontólogos. Estas populações intermediárias se apresentariam extremamente limitadas tanto no espaço como no tempo e não seriam encontradas, a não ser que fossem preservadas como fósseis (uma ocorrência rara) e também a menos que um caçador de fósseis descobrisse, por acaso, a área específica onde tal transição tivesse ocorrido. Foley relembra da famosa experiência de Gould e Eldredge que conseguiram descrever uma destas áreas – uma pequena pedreira isolada em Nova York que ilustrou a transição de uma espécie de trilobita Phacopsto para outra; os níveis mais baixos continham as espécies originais de trilobitas, os níveis superiores continham as espécies novas e no meio havia uma série de transições indo de um nível ao outro (FOLEY, 2003, p. 38-40). Isso aconteceu com os primatas como poderemos observar, através da história evolutiva havia uma série de transições entre primatas primitivos evoluindo, até as mais novas que geraram o gênero homo9. Na visão darwiniana, todas as características de um organismo são o resultado da seleção natural, que continuamente se livra das variações inadequadas e seleciona as adequadas, para serem conservadas na próxima geração. (NEI,2005 p. 28). Isto é freqüentemente referido como “sobrevivência do mais afortunado” (FOLEY, 2003, p. 34). A evolução, como modelo científico, omite completamente à origem definitiva da vida sobre a terra, apesar (do modelo evolucionário) afirmar que toda vida descende de alguma fonte comum, que pode ter sido um organismo original simples, 9 A alopatria aconteceu porque os ascendentes de Australopithecus tiveram de sair das arvores indo morar nas savanas (FOLEY, 2003, p. 41-42). 32 ou diversos organismos diferentes que apareceram mais ou menos ao mesmo tempo. O modelo por si próprio não tem nada a dizer sobre o processo através do qual este organismo original, ou organismos, apareceram na Terra. A teoria do mecanismo evolucionário preocupa-se somente com a questão de como a vida pode ser transformada em formas novas de vida. Não existe nenhuma teoria evolucionária ocupando-se com o desenvolvimento original da vida, a partir de substâncias químicas não vivas, uma vez que este tópico não faz parte da estrutura do modelo evolucionário. A questão das origens pertence a uma disciplina biológica inteiramente separada, conhecida como “abiogênese”, competindo a área dos bioquímicos e não dos biólogos evolucionistas. Do mesmo modo, o modelo evolucionário não se relaciona com a astronomia ou cosmologia, que estudam a formação original do universo. A teoria da evolução não defende a tese de que o acaso se encarrega de combinar os elementos básicos, ou seja o de formar órgãos complexos por um golpe do destino. As mutações ocorrem de maneira aleatória, se não considerarmos causas físicas definidas. Contudo, o que faz da seleção natural um evento provável está no processo cumulativo. Isto significa que, pela aleatoriedade das mutações, alguns indivíduos são mais favorecidos, outro não (ROSSI, 1992, p. 99). Os que vão sobrevivendo com maior adaptabilidade se recombinam geneticamente, de maneira que, após muitas gerações, resulta indivíduos cada vez mais bem adaptados; e muitas vezes implicando uma complexidade crescente (MORIN, 1987, p. 114). Conforme qualquer outro modelo científico (gravidade, relatividade, física quântica, química molecular), o modelo evolucionário não apresenta nenhum programa moral, ideológico, econômico ou político. A teoria da evolução, além de não postular qualquer maneira de como os humanos “deveriam” agir, ou manifesta qualquer afirmação sobre como a sociedade “deveria” se organizar, não mais que a teoria da relatividade ou a teoria eletrodinâmica quântica. Do mesmo modo, a teoria evolucionária não afirma que a história (tanto humana, como biológica) é inevitavelmente “progressiva”, movendo-se inexoravelmente do “bom” para o “melhor”, tampouco a história move-se do “menos complexo” para o “mais complexo” (MORIN, 1987, p. 39). O processo evolutivo é totalmente ad hoc e sem direção, assumindo a posição ao longo deste trabalho, de que a evolução se constitui através de um 33 processo auto-organizável e autopoiético e que a cognição humana é um processo auto-organizável emergente das adaptações de um sistema evolucionário. Resumindo: a evolução significa que características comuns se transmitem a descendentes biológicos. Ao encontrar alguma dificuldade advinda do meio, o organismo pode apresentar pequenas mudanças que passam aos seus descendentes e através do tempo essas mudanças transformarão o descendente em um ser diferente do ascendente, mas mantendo as características comuns. Mostraremos nesse trabalho, que o desenvolvimento da cognição humana, esta capacidade altamente especializada, tem causa evolutiva, afinal este é nosso objetivo. Para tanto, breve ilustração da evolução do sistema nervoso, se torna necessária, já que o consideramos a base biológica da cognição. 1.4 AS ORIGENS E AS VANTAGENS EVOLUTIVAS DE UM SISTEMA NERVOSO Neste trabalho investigo determinadas causas da cognição humana. Por este motivo, é válido deter-se na história evolutiva do sistema nervoso, o mais complexo de todos os sistemas corpóreos de um animal, pois as circulovicções cerebrais do lóbulo frontal que permitem a existência da cognição complexa surgiram num processo evolutivo que detalharemos adiante, mostrando desde a célula neural até o surgimento dos sistemas nervosos. Temos de considerar que a cognição humana co - evoluiu com uma base biológica, o cérebro. As unidades cerebrais básicas são células organizadas em redes e circuitos vivos, que processam as relações entre organismo e ambiente. A célula nervosa é um receptor e emissor de sensações provenientes do ambiente e do próprio organismo do ser vivo (KANDEL; SCHWARTZ; JESSEL, 1995, p. 18), o que reside não apenas na propriedade de gerar respostas imediatas a estímulos, mas também na capacidade de reter e recordar estes estímulos e respostas, bem como de relacioná-los com outras experiências e de aprender com elas (KANDEL; SCHWARTZ; JESSEL, 1995, p. 40). Todas as células são excitáveis ou irritáveis; o que resulta deste fato que todos os organismos são sensíveis a alterações ambientais e a estímulos de diversas fontes. Devido à complexidade dos estímulos, internos e externos, que recebe, a vida animal pluricelular necessitou estruturar um sistema (nervoso) para 34 perceber, transmitir a todo o corpo e efetuar respostas adequadas a esses mesmos estímulos. Este sistema funciona igualmente como coordenador e integrador das funções das células, tecidos, órgãos e aparelhos, de modo a que se obtenha um todo que funcione como uma unidade (KANDEL; SCHWARTZ J. H; JESSEL T. ,1995, p. 42). Durante o período cambriano, houve uma explosão de vida de animais unicelulares (MORIN, 1987, p.99). O organismo celular interage através de relações com o meio ambiente. Todo organismo vivo dispõe de sensitividade e busca sobreviver no meio, sendo que este processo de integração com o meio, complexifica-se para melhor resolver os problemas apresentados durante a evolução. “Evolução”, a nosso ver, significa que organismos se modificam com o passar do tempo; alguns desapareceram do planeta, sendo substituídos por outros que não existiam antes. “Evolução” não é apenas uma teoria científica ou hipótese (opinião nossa), mas sim um fato observável, (da mesma maneira que o ciclo de vida de um sapo é um fato observável). O registro fóssil (FUTUYMA,1992, p. 225) é muito claro em indicar organismos que já existiram e que não existem mais (dinossauros, trilobitas, pterodátilos, mastodontes); organismos que existem agora e que não existiam nas eras geológicas anteriores (humanos, chipanzés, cervos, serpentes) e organismos que existiam no final do pré-cambriano e existem agora (protozoários, fitoplânctons, zooplâncton). O organismo unicelular organizou-se em colônias (por exemplo esponja e corais), e deste modo ficou melhor protegido contra fatores de riscos externos ao individuo.10 Tais colônias, para melhor sobreviverem, organizaram-se e especializaram, através do tempo, as suas células de tal modo que, num destes processos de tornar-se mais e mais complexo, geraram a célula nervosa sensorial, o neurônio (MORIN, 1987, p.97). Todos os seres vivos, mesmo os mais primitivos unicelulares (procariontes), possuem, forçosamente, duas características essenciais (FUTUYMA,1992, p. 225): 10 Os primeiros registros de vestígio de vida foram encontrados na África e Austrália; os estromatólitos, ou seja, camadas de sedimentos capturados e aglutinados pelas células procarióticas (bactérias e cianofíceas). Estas camadas se acumulavam umas sobre as outras, trocando interações bioquímicas. Esse termo, organizaram-se, pode ser melhor entendido como auto-organização evolutiva. Fonte: site do instituto de ciências biológicas da UFMG- http://www.icb.ufmg.br/~lbem/aulas/grad/evol/especies/preposcambriano.html. acesso em 01/2008 35 A. Cromossomos contendo ácido nuclêico, para assegurar a perpetuação do padrão genético da espécie. B. Algum sistema de “comunicação” que permita: 1. Manter um equilíbrio organizado entre moléculas, organelas, células, tecidos, órgãos ou sistemas (dependendo do grau de complexidade estrutural que se tenha atingido). 2. Manter relacionamento adequado com o meio ambiente. Essas características visam a garantia das duas necessidades básicas para a manutenção da vida: obtenção de nutrientes a partir do meio ambiente e desenvolvimento de estratégias de evitação e neutralização da ação de agentes nocivos, existentes neste mesmo meio. Para conseguir tais objetivos, o ser necessita de detectar, identificar e “interpretar11” sinais ou estímulos provenientes do ambiente em que se encontra inserido – seu nicho ecológico. Ao que tudo indica, nos seres mais primitivos, unicelulares, que habitavam os mares, a “comunicação” se efetuava através de “mensageiros” químicos, que exerciam três funções; simples, mas vitais (STEPHAN, 1998, p.643): 1. Integrar os diferentes elementos intracelulares; 2. Detectar, por meio das membranas, os nutrientes e neutralizar ação de os agentes nocivos presentes no meio; 3. Promover a captação dos alimentos detectados. A velocidade das informações transmitidas pelos mensageiros químicos era demasiado lenta: em torno de 2u/seg (KANDEL; SCHWARTZ; JESSEL, 1995, p. 31), o que podia ser suficiente para seres muito pequenos, com apenas uma ou poucas células (os primeiros multicelulares). Porém, à medida que os organismos tornavam- se mais desenvolvidos e complexos, agregando um maior número de células, já apresentando, entre si, certo grau de diferenciação, impunha-se um processo de transmissão mais rápido, para garantir os requisitos necessários à sobrevivência. Neste ponto da evolução, ocorreu uma complexa adaptabilidade celular, promovendo (algumas) mutações, a partir do material genético dos cromossomos citoplasmáticos: nos celenterados – como a anêmona-do-mar –, surgiram filetes 11 Interpretação, no meio ambiente, é uma ação que consiste em estabelecer, simultânea ou consecutivamente, comunicação entre uma entidade e ambiente. É um termo ambivalente, tanto podendo referir-se ao processo quanto ao seu resultado e consistir na descoberta do sentido de algo (NEI, 2005, p.64). 36 nervosos, que são protótipos dos futuros axônios, formando uma estrutura reticular intracelular. A velocidade das mensagens aumentou para cerca de 0,5m/seg (DORFMAN et al., 2002). Decerto, um grande avanço (mas ainda muito limitado), já que, nesta difusão em rede, a intensidade da excitação não é uniforme: ela se espalha pelo corpo de forma decrescente,12 e principalmente, porque a ausência de um centro coordenador que, a partir da percepção dos estímulos, codifique as informações captadas e planeje a melhor resposta a ser adotada – em função do que foi processado, restringe muito a potencialidade comportamental desses animais. Na etapa evolutiva posterior, surgem os platelmintos. Com eles, novo e significativo avanço neurofilogenético: o esboço do sistema nervoso centralizado (FUTUYMA 1992, p. 227). Numa das extremidades do corpo desses seres, convencionou-se denominar cefálica, que se constitui de duas estruturas especializadas: os gânglios cerebrais, dispostos lado a lado e interligados e de onde saem dois cordões nervosos, apresentando, ao longo do trajeto, “estações intermediárias” (gânglios de menor tamanho), originando conexões transversais, de onde emergem ramos para a periferia do corpo (DORFMAN, et AL http://www.pucrs.br/fabio/histologia/tecnerv/Platelmintos/Celulas.htm acessado em 03/2007). Como estruturas sensoriais, os vermes apresentam: 1. Manchas ocelares – fotorreceptores, sensíveis à luz, mas incapazes de definir imagens. 2. Células táteis (receptores periféricos). 3. Quimiorreceptores, situados nas laterais da extremidade cefálica, com sensibilidade olfativa e gustativa.13 Esses platelmintos, sendo animais longos e finos, deslocam-se de uma maneira peculiar, condizente com sua estruturação física. Assim é que o verme adianta, primeiro, a extremidade cefálica e através dos receptores aí localizados, explora o novo ambiente. Se este se mostra favorável – rico em nutriente e desprovido de ameaça –, ele avança a outra parte do corpo e progride – 12 Mais concentração de nervos em relação ao centro do corpo e maior dispersão em relação aos limites periféricos do corpo do animal (KANDEL; SCHWARTZ; JESSEL, 1995, p. 20). 13 Fonte: http://www.pucrs.br/fabio/histologia/tecnerv/Platelmintos/Celulas.htm acessado em 03/2007 37 aproximação. Se o meio se mostra adverso, ele recua para o ambiente anterior, evitando o novo. Nos gânglios cerebrais se localiza o neurônio propriamente dito, que é considerado a unidade básica da estrutura do cérebro e do sistema nervoso. A membrana exterior de um neurônio toma a forma de vários ramos extensos chamados dendritos, que recebem sinais elétricos de outros neurônios e de uma estrutura que se chama axônio, que envia sinais elétricos a outros neurônios (DORFMAN, et AL, 2002 http://www.pucrs.br/fabio/histologia/tecnerv/Platelmintos /Celulas.htm). O espaço entre o dendrito de um neurônio e o axônio de outro é o que se chama sinapse: os sinais são transportados através das sinapses qu se estabelecem através de uma variedade de substâncias químicas, chamadas neurotransmissores (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, 1995, p. 19). A fase evolutiva seguinte é significativa na evolução do sistema nervoso, é quando foi configurada nos insetos uma casca protetora chamada exoesqueleto, constituída de uma mistura protéica e calcária. Numa classe dos artrópodes, alguns únicos seres invertebrados conseguem voar e neles, o sistema nervoso, do tipo ganglionar, atinge o maior grau de complexidade (MORIN, 1987 p. 133). Os insetos nascem com receptores altamente diferenciados nas antenas, nas pernas e na cavidade bucal e – o avanço mais importante –, nos olhos. Através deles, a evolução dotou o animal da capacidade de, não só sentir a presença de luz, mas também distinguir forma e tamanho (COLBY, http://www.evoluindo.biociencia. org acesso em 01/2009). Porém, esse par de olhos, situados lateralmente, não permite que ambos vejam, simultaneamente, um mesmo objeto. A visão binocular e estereoscópica apareceria mais tarde, na linha evolutiva, nos primatas. Existe, entre os insetos, certo representante da ordem dos himenópteros que constitui um mistério no aspecto comportamental: as formigas, portadoras de um sistema nervoso ganglionar, portanto, elementar do ponto de vista evolutivo (COLBY,http://www.evoluindo.biociencia.org), formam um sistema social organizado, centrado em princípios hierárquicos rígidos, dir-se-ia, quase cibernéticos.14 No período devoniano, aparecem os primeiros vertebrados marinhos e com eles, surgiram, em nível de sistema nervoso, as mais significantes modificações adaptativas, desde o surgimento dos primeiros unicelulares e a partir daí, o tempo 14 Cibernética: ver glossário. 38 evolutivo da neurofilogênese acelerou-se, até chegar ao estágio do complexo cérebro do gênero homo (FUTUYMA,1992, p. 642). O cérebro se estruturou dentro de um padrão anatômico básico, composto de três regiões bem delimitadas: cérebro anterior (forebrain), cérebro médio (midle brain) e cérebro posterior (hindbrain). Este padrão pouco se alterou daí em diante (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL,1995, p.62); entretanto, apareceram algumas modificações específicas, traduzindo novas adaptações em relação aos invertebrados. Dentre elas, destacamos: 1. Emergindo da extremidade cefálica, surgiu um longo conduto de feixes nervosos (a medula espinhal), correndo por dentro da coluna de mesmo nome e emitindo, de espaço em espaço, filamentos ou nervos periféricos, para levar e trazer impulsos do centro para a periferia e vice-versa. A essa altura do processo evolutivo, o antigo sistema ganglionar se transformava no sistema nervoso autônomo, estabelecendo interligações com o Sistema Nervoso Central (SNC). 2. Na extremidade cefálica, para abrigar o encéfalo (que havia evoluído do gânglio cefálico dos invertebrados), desenvolveu-se uma carapaça óssea, esboço do futuro crânio, para proteger as estruturas cerebrais. Nos vertebrados inferiores, a massa encefálica era ainda rudimentar: o tronco cerebral era responsável pelo controle das funções vitais; havia também, algumas formações do sistema talâmico – estriado e um córtex incipiente, sendo, melhor desenvolvidos os bulbos óticos e olfativos. Essa relativa simplicidade encefálica (COLBY, http://www.evoluindo.biociencia.org/bioevolutiva.htm) possibilitava ao animal desenvolver, frente a situações diversas, apenas reações estereotipadas, instantâneas e limitadas – o arco reflexo. Entre esses vertebrados (inferiores), uma classe se destacaria: a reptiliana, que veio para terra firme, desenvolveu as estruturas peitorais e a pélvis e os seus ovos passaram a ser dotados de casca, o que lhe permitiu se reproduzir em meio terrestre. Em pouco tempo, ocorreu uma autêntica explosão reptiliana (FUTUYMA,1992, p. 655). Uma das variantes de répteis deu origem a diversas espécies de dinossauros, alguns de tamanho gigantesco, que dominaram a Terra durante a era mesozóica, de 39 225 a 100 milhões de anos, até sucumbirem (SAGAN,1997, p.22) em conseqüência de diversos fatores que lhes causaram extinção15. Para sobreviver ao processo extintivo exigiu-se (dos répteis) maior controle cerebral e desta forma, o cérebro reptiliano cresceu muito de volume em relação aos anfíbios predecessores, graças, principalmente, ao desenvolvimento das estruturas do mesencéfalo. A parte superior do tronco encefálico e do córtex primitivo, contava com novos centros neuronais, que iriam conferir aos répteis algumas características (DORFMAN et al http://www.pucrs.br/fabio/histologia/tecnerv/Repteis/SN.htm).Dentre elas destacam-se: intenso instinto predador; noção de demarcação territorial; tendência a um sistema de vida gregário e a criação de autênticos rituais comportamentais, como sugere o ato executado pelo crocodilo macho, de abanar a cauda para a fêmea, repetida e cadenciadamente, a fim de atraí-la para a prática sexual. Carl Sagan descreve o período mesozóico como de grande atividade predatória inter- espécies: Durante o dia, répteis carnívoros caçavam os sabidos mamíferos, adormecidos em cavernas e nos topos das arvores. E comiam os que conseguiam capturar. À noite, os mamíferos desciam de seus esconderijos para contra-atacar, aproveitando o sono noturno dos répteis. E como os estúpidos dinossauros não guarneciam seus ovos semi-enterrados nem seus recém nascidos filhotes, os mamíferos carnívoros se banqueteavam (SAGAN, 1997, p. 23). Apesar de parecer que os répteis prevaleceriam e que os mamíferos se extinguiriam, um fenômeno cósmico (SAGAN, 1997, p. 26) ocorreu, alterando essa previsão16. No oligoceno surgiram as aves e os mamíferos, estes últimos formando a mais evoluída classe do reino animal. No que concerne ao sistema nervoso, as principais modificações apresentadas pelas aves foram (DORFMANN et al, 2002): Aprimoramento dos lobos óticos, ampliando o alcance visual, no sentido de permitir identificar de longe, alimentos, presas e predadores. Aumento significativo da massa cerebral em relação à massa corporal, provavelmente relacionada ao desenvolvimento de centros coordenadores dos músculos e das demais estruturas responsáveis pelos movimentos associados ao ato de voar. 15 A extinção K-T ou evento K-T: ver glossário. 16 A extinção K-T. 40 Há cerca de 200 milhões de anos, emergiram os primeiros representantes da classe d os mamíferos e a evolução deu outro (gigantesco) salto, em termos de neurofilogenia, visto que considerando-se iguais as massas corporais, o cérebro dos mamíferos mostrava-se, em média, de dez a vinte vezes mais volumosas que o dos répteis e de aves. O aumento da massa de células corticais aperfeiçoou o aparelho visual, surgiu o sistema límbico17 e, com ele, provavelmente, nasceram as emoções18. As fêmeas passaram a cuidar dos filhotes, não apenas para protegê-los, como determina a lei da sobrevivência, mas também com um toque de afetiva dedicação (DAWKINS,1979, p.66), uma característica comportamental que, mais adiante, entre os mamíferos superiores, transformar-se-ia no afeto maternal. A medida que cresciam, esses filhotes inventaram o ato de brincar19 – a segunda característica, que também se intensificaria mais tarde, com o surgimento dos felinos, caninos, eqüinos, cetáceos e primatas. Nos mamíferos, além do surgimento do sistema límbico, verifica-se o progressivo desenvolvimento, do telencéfalo. Contudo, este “salto” evolucionário, de réptil para mamífero, não aconteceu como um passe de mágica: uma classe não se transformou em outra, da noite para o dia (JACOBS, WINKLER, MURRY,1989 http://www.jstor.org/stable/34031 acessado em 02/2007). Decorreram-se milhões de anos, durante os quais os representantes do ramo reptiliano, em transformação, incorporaram, aos poucos, novas características, incluindo-se as estruturas do sistema límbico, além das mudanças de sistema de homeostase (pele e respiração). Os primatas, (surgidos no oligoceno), porém, desenvolveram o mais expandido e fascinante cérebro dos mamíferos, e sua capacidade cognitiva de primatas extintos será devidamente abordada no capitulo 2. A próxima analise foca nossa atenção para a formação da estruturas corpóreas, cerebrais e cognitivas dos primatas ascendentes do homem, a fim de abordar mais algumas causas evolutivas da cognição humana. 17 Na superfície medial do cérebro dos mamíferos, o sistema límbico é a unidade responsável pelas emoções. Constitui-se de uma região constituída de neurônios, células que formam uma massa cinzenta denominada lobo límbico. Originou-se a partir da emergência dos mamíferos inferiores, os mais antigos. Através do sistema nervoso autônomo, ele comanda certos comportamentos necessários à sobrevivência de todos os mamíferos, interferindo positiva ou negativamente no funcionamento visceral e na regulamentação metabólica de todo o organismo (KANDEL; SCHWARTZ; JESSEL, p.477). 18 Maturana (1998) define “emoções” como disposições corporais para um agir. 19 Cf. MORIN, 1987, p. 142: “as brincadeiras servem para treinar para a vida adulta e estabelecer relações emocionais”. 41 CAPÍTULO 2 - COMO, ONDE E POR QUE O MACACO FICOU EM PÉ? Neste capítulo, abordar-se-ão mais alguns aspectos evolutivos importantes relacionados com o desenvolvimento da cognição e traçar-se-á a trajetória dos ancestrais que participaram do processo seletivo natural, dentro de determinado período da existência, desde os primeiros da ordem dos primatas até os hominídeos. Entende-se que parte da cognição diferenciada do homem se constituiu de uma gradativa adaptação, impulsionada por várias circunstâncias, sendo uma delas ter ficado na posição ereta, gerando várias mudanças no corpo e no cérebro, consequentemente alterando a maneira de relacionar e conhecer o mundo. A aquisição da postura ereta, chamada bipedalismo, ocorreu entre quatro a cinco milhões de anos atrás, permitindo aos hominídeos ampliar sua distribuição geográfica, ao mesmo tempo em que ocorria o processo de savanização na África, quando as vastas florestas foram substituídas por campos abertos (BRONOWSKI, 1969, p. 120). Essas alterações climato-ambientais atuaram como uma forte pressão seletiva e os indivíduos com características favoráveis à ocupação dessas Savanas deixaram mais descendentes e foram selecionados mais favoravelmente (CLARKE, 1961, p. 28). Mas será que essa mudança era eficiente inicialmente? A resposta imediata é não. Ora, um grupo de indivíduos que perde a proteção das copas das árvores e se encontra gradualmente no solo, o único habitat disponível à sua movimentação, torna-se mais lento. O correr bípede também é mais lento que o quadrúpede, expondo os indivíduos a serem capturados mais facilmente por animais carnívoros. Enquanto assumiam a posição ereta, várias alterações ósseas e neurais ocorreram, interferindo inclusive no seu estado neurovegetativo, podendo-se presumir que a locomoção bípede, em especial nos seus estágios primordiais, pode ter sido uma forma ineficiente de movimentar-se (DART, 1997). No entanto, algumas vantagens seletivas sobrevieram, como: permitir melhor visão das redondezas, favorecendo a prevenção20 contra ataques de predadores; visualização dos alimentos disponíveis ao redor; observação ao longe do 20 Em se tratando de prevenção, já demonstra como o ser bípede tinha que ter uma cognição diferenciada, uma vez que, sem poder fugir, para sobreviver, ele tinha que intuir como será uma situação futura e não estar em enação no ambiente. À disposição da natureza. 42 comportamento alimentar e de escape dos outros animais; liberação dos membros superiores para lidar com situações novas, já que possibilitou melhor aproveitamento e utilização das mãos para transportar comida e confecção de ferramentas. Facilitou também a captação de alimentos em horários mais quentes dos dias, tendo em vista que a posição ereta diminuiu a área corporal que sofria a incidência de radiação solar, em campo aberto, quando outros tipos de animais estavam inativos na sombra (CLARKE, 1961, p. 28). O início do bipedalismo se encontra nos primórdios da linhagem hominídea, porém, seu aperfeiçoamento ocupou a maior parte do tempo subsequente. As diferenças de pélvis e extremidades posteriores entre Australopithecus e Homo mostram que foram necessários cerca de dois milhões de anos para aperfeiçoar o bipedalismo (GODOY, 1987, p. 56), algo que vários médicos entendem não estar ainda totalmente adaptado.21 Para melhor compreensão destes fatos, considera-se necessário apresentar dados importantes sobre a evolução dos primatas, bem como sua adaptação ao tempo e nas condições de cada período evolutivo, até os hominídeos, além de destacar uma das maiores consequências do bipedalismo, a neotenia, e quais seus efeitos na maneira de viver em grupo e se relacionar no mundo criando gradualmente os processos de socialização. Dar-se-á ênfase a alguns dados relevantes usando a neuroantropologia na análise de ossos de Australopithecus e etapas subsequentes de sua existência até o surgimento do gênero Homo. Também se julgou necessário selecionar outros efeitos interligados e não menos importantes, para complementar o raciocínio. Esses efeitos se originam de causas climáticas associadas às novas posturas ambientais, que afetaram alguns sistemas neurofisiológicos tais como: homeostase, suor, termorregulação e também afetaram o cérebro, bem como a cognição. Para embasar esta análise e fornecer respostas à proposta que consiste em apresentar reflexões sobre o desenvolvimento da cognição humana, adicionaram-se também algumas considerações sobre as origens das habilidades manuais dos hominídeos, o que se convencionou chamar de destreza e seus impactos na evolução da cognição. 21 Disponível em: . Acesso em fev. 2007. 43 2.1 A HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DOS PRIMATAS A ordem dos primatas, que inclui lêmures, macacos e humanos, surgiu com pequenos animais insetívoros há aproximadamente 70 milhões de anos. Esses pequenos mamíferos se espalharam por vários continentes, dando origem a diversas linhagens de espécies. Um dos mais antigos primatas que se conhece é o Plesiadapis,22 que surgiu há aproximadamente 60 milhões de anos e era semelhante a um esquilo. A partir daí, seus descentes se refugiaram no alto das árvores e esse estilo de vida trouxe mudanças evolutivas importantes, como as garras que se transformaram em unhas achatadas; os olhos que “migraram” para frente da cabeça, tornando a visão mais acurada, facilitando avaliar distâncias e cores. Surge, então, há aproximadamente 55 milhões de anos, o Adapis,23 que já possuía os olhos voltados para frente da cabeça e “garras modificadas”, pois seus hábitos eram arborícolas. Há 50 milhões de anos, durante o Paleoceno, havia uma espécie de mamífero que vivia nas árvores, os lêmures (JACOBS; WINKLER; MURRY, 2007). Sua diferença em relação aos outros é que eles eram pequenos e rápidos demais para que fossem comidos pelos predadores então existentes. Viviam em colônia, permitindo-lhes sobreviver às glaciações, aos meteoros ou a outros fatores destrutivos, devido ao mútuo aquecimento e à divisão de provisões. Eram seres que se organizaram para sobreviver de modo particular. Esses mamíferos são considerados uma variação dos roedores parecidos com o rato moderno, cuja natureza, em sua especialização-seleção-adaptação, fez com que seus dedos se especializassem em não escorregar das árvores que os protegiam. Transformaram-se nos primeiros símios. Como os atuais roedores, esses seres eram dotados de um sistema nervoso central que funcionava como um complexo solucionador de problemas. Nesta análise, além dessa função, esse cérebro tinha, como primeira diferenciação dos outros animais da época, a capacidade de imitar os seus semelhantes (daí a palavra símio, do latim símile, similar). Dada essa capacidade, observa-se, desde os primeiros símios, um arremedo de comunicação diferenciada referencial ou uma protolinguagem. 22 Ver Glossário. 23 Ver Glossário 44 Há aproximadamente 40 milhões de anos, ocorreu uma divisão no ramo das espécies que deu origem aos macacos do novo mundo (os platirríneos, pequenos macacos das florestas tropicais e subtropicais com caudas compridas que não mudaram muito até a atualidade) e os macacos do velho mundo (os catarríneos, ancestrais diretos dos homens). O sentido do olfato dos primatas diminuiu, porém, sua inteligência aumentou com o desenvolvimento do córtex cerebral (JACOBS; WINKLER; MURRY, 1987). Há cerca de 30 milhões de anos, alguns primatas desceram das árvores e retornaram à vida no solo; porém, eram maiores, mais fortes e mais inteligentes que seus ancestrais. Dentre eles, alguns começaram a adotar a posição intermediária do caminhar ereto, isto é, começaram a ficar “de pé” para apanhar alimento, ver a longas distâncias, entre outras tarefas; mas ainda passavam boa parte do tempo em cima de árvores, como o Dryopithecus24 e o Proconsul,25 ancestral comum entre os grandes símios e os humanos.26 Há aproximadamente 17 milhões de anos, a África se chocou com a Ásia, formando uma “ponte de terra” entre os dois continentes, possibilitando a passagem de diversas espécies para ambos os continentes (MUNFORD, 1956, p. 177). Uma foram os ancestrais, atuais orangotangos, que migraram da África para o sudeste asiático; um deles foi uma das maiores espécies de primatas que já existiram, o Gigantopithecus.27 Porém, com as fortes chuvas e o calor intenso da época (40º à sombra) (COLE, 1965, p. 44), houve um novo problema a ser solucionado por essas criaturas, necessitando viver em sociedade e não tendo o espaço necessário: tiveram que descer das árvores, seu habitat natural e de proteção, ficando sujeitos às intempéries e também aos predadores. Quando estavam nas árvores, seus corpos eram crescidos e havia disponibilidade de alimento, agora, nas savanas, eram seres de significativo tamanho, mas sem espaço e comida disponíveis de modo eficiente. Todo esse processo durou milhões de anos. Há mais ou menos 22 milhões de anos, surgiu o primeiro ancestral comum entre primata e homem na superfície 24 Ver Glossário. 25 Ver Glossário. 26Fonte:The Talk Origins Explanations. Disponível em: . Acesso em: fev. 2007. 27 Ver Glossário. 45 terrestre, o Proconsul. Era um dos primatas com maior importância, visto que é apontado por todos os biólogos, antropólogos e neuroantrotropólogos como o antepassado comum dos pongídeos e dos hominídeos.28 Sua descendência bifurcou- se, originando, por um lado, os antepassados diretos do homem e, por outro, os antepassados dos símios, como o chimpanzé e o gorila. O Proconsul surgiu na África, no início do Miocêno médio, por volta de 22 milhões de anos atrás. Possuía estatura semelhante à de um gorila fêmea, pertencendo, portanto, aos grandes símios. Apresentava características evoluídas, tais como, dentição semelhante à do homem, frontal elevado com capacidade craniana de aproximadamente 150cm2; a face era moderadamente projetada para frente e as arcadas supra-orbitais, pequenas. O esqueleto encontrava-se adaptado à vida nas árvores como também à vida no solo (DART, 1925, p. 195). Um fato fundamental ocorrieu ainda no Miocêno, há 17 milhões de anos: o fenômeno geológico que se refere à formação da Placa Afro-árabe que uniu a África – até então considerada geologicamente uma ilha, isolada – à Ásia (COLE, 1965, p. 49). Essa união intercontinental permitiu aos grandes símios africanos, como o driopiteco, passarem à Eurásia, adaptando-se às suas condições ambientais, bastante distintas das encontradas no continente africano (idem, p. 50). Supõe-se que teria ocorrido, nessa época (segunda metade do período Mioceno, 16 a 5,5 milhões de anos), a separação definitiva entre os símios africanos (gorila, chimpanzé) e os símios euro-asiáticos (orangotango), já que tinham dificuldades de viver nas poucas árvores que restavam na região, hoje conhecida como África ( GODOY, 1987, p. 65). Os macacos hominoides povoavam a Eurásia; a África e a Ásia se juntaram após tremendas mudanças geológicas,29 ocorrendo o mesmo com as Américas. As florestas tropicais apresentavam forte crescimento na banda meridional da Eurásia. Enquanto alguns macacos hominoides permaneciam na África, outros povoaram a Europa e a Ásia. 28 Fonte: Onelife reviewn. Disponível em: . Acesso em fev. 2007. 29 As evidências apresentadas por Wegener (principal expoente da teoria da Pangea) além da já óbvia geometria das terras que margeiam o oceano Atlântico, foram geológicas e paleontológicas. Em primeiro lugar, haveria coincidência das estruturas geológicas nos locais dos possíveis encaixes entre os continentes, tais como a presença de formações geológicas de clima frio nos locais onde hoje imperam climas tropicais ou semitropicais. Estas formações, que apresentam muitas similaridades, foram encontradas em localizações tão distantes como a América do Sul, África e Índia. Ver Cole (1965, p. 15). 46 Macacos hominóides (ou antropóides) são diferentes de hominídeos; estes últimos já tinham plena capacidade de se tornarem humanos devido à posição bípede; os hominoides tinham potencial para se tornarem bípedes (GODOY, p. 48), e os hominoides estavam divididos entre os hilobatíneos, pongídeos e hominídeos. Há 16 milhões de anos, surgiam no leste da África, Europa e Ásia, os macacos hominoides do gênero Ramapithecus,30 que pesavam de 40 a 80kg, apresentavam focinho menor do que os outros antropoides e talvez uma dieta exclusivamente vegetariana (JOHANSON; SHREEVE, 1998, p. 66). Dos Ramapithecus descenderam duas ramificações. A primeira teve uma evolução paralela extinta, o gênero Gigantopithecus, que viveu no sudeste da Ásia entre 1,4 e meio milhão de anos. Pesando de 170 a 300kg, foi o maior primata que já existiu na Terra. A segunda ramificação originou o gênero Pongo, dos dias atuais, com cerca de 90kg (os orangotangos das florestas tropicais de Bornéu e Sumatra, no sul da Ásia; JOHANSON; SHREEVE, p. 68). Quando a linhagem hominídea se separou dos antropóides, há hipóteses, pois não existem registros fósseis do orangotango, os estudos devem se basear na comparação dos antropóides atuais. Havia, antigamente, uma aceitação de que a linhagem do homem tinha se separado muito antes dos antropóides por se diferenciarem do orangotango, gorila e chimpanzé. Um estudo comparativo das proteínas, cromossomos e parasitas internos e externos, contudo, indicou decisivamente que os antropóides africanos (gorilas e chimpanzés) são mais semelhantes ao homem do que os orangotangos da Ásia. Por isso, é quase certo que a linhagem do orangotango tenha-se separado bem antes dos demais antropóides /hominídeos. Cavalli-Sforza acredita que o desenvolvimento da pesquisa genética poderá fornecer várias respostas. (CAVALLI-SFORZA; CAVALLI-SFORZA, 2002, p. 17). Há 14 milhões de anos, surgiam na África os macacos hominoides do gênero Kenyapithecus, que já apresentavam uma adaptação a ambientes de florestas com grandes clareiras. Pesavam em torno de 30kg; possuíam mandíbula robusta, molares com esmalte grosso e grandes pré-molares superiores, indicando que as frutas com casca dura (nozes ou amêndoas) faziam parte de sua dieta. Desapareceram por volta dos dois milhões de anos sem deixar descendência (MITHEN, 2003, p. 44). Já há oito milhões de anos, ocorriam na África novas movimentações tectônicas no Rift Valley, forçando a emersão de rocha liquefeita e criando a 30 Ver Glossário. 47 elevação dos planaltos __ cadeias de montanhas (complexo Kilimanjaro) com 6.400km de extensão, no sentido norte-sul da África. Essa barreira natural recém- formada passou a reter os ventos e as nuvens que chegavam do oeste, modificando drasticamente o clima na região leste (COLE, 1965, p. 69). Esse evento marcou nossa evolução e nos ajuda a responder quando, onde e por que a linhagem hominídea se separou da linhagem antropoide. Pode-se também admitir que, provavelmente, o “elo perdido”31 estava presente nessa época, em que as espécies de macacos humanoides viviam nas árvores em toda a África. Essa linha divisória criou dois ambientes distintos. O lado oeste ou ocidental da África permaneceu recebendo a influência dos ventos e nuvens, significando chuvas constantes, e não sofreu grandes mudanças climáticas (COLE, 1965, p. 147). Suas florestas tropicais foram o ambiente da ramificação dos ancestrais dos gorilas e chimpanzés. Por volta dos seis a cinco milhões de anos, ocorreu uma bifurcação dessa ramificação. Uma originou o gênero Gorilla dos dias atuais, os maiores primatas, com 90 a 200kg (os gorilas das florestas tropicais da África). A outra originou o gênero Pan, dos dias atuais, com 30 a 60kg (os chimpanzés e bonobos da África) (MITHEN, 2003, p. 45). O lado leste ou oriental, por sua vez, passou a não receber essa influência e, com as drásticas mudanças climáticas, foi gradativamente se tornando o ambiente semiárido das savanas (COLE, 1965, p. 148). Sem as grandes florestas e suas árvores, que significavam abrigo e alimento, nossos ancestrais tiveram que se adaptar a este novo habitat e evoluir para a vida no chão e para uma mudança em sua dieta; essa influência ambiental aproxima os ancestrais dos seres humanos. Vale lembrar que temos como consequência imediata que alguns macacos permaneceram nas árvores, adaptando-se muito bem e mantendo o gênero Pan (chipanzé, orangotangos). Outros subiram as montanhas da África, evoluindo para o gênero Gorilae (gorilas) e outro grupo ficou na savana, tendo de evoluir para a posição bípede, esse foi ancestral do homem.32 31 Dart considerou o Australopithecus africanus uma espécie nova e, possivelmente, o “elo perdido” da evolução entre os símios e os seres humanos, devido ao pequeno volume do seu crânio, mas com uma dentição relativamente próxima dos humanos e por ter provavelmente uma postura vertical. Hoje sabemos que era, na verdade, o Australopithecus afarensis graças aos estudos de Johanson e Shreeve (1998). 32 Fonte: The Talk origins archive. Disponível em: . Acesso em: fev. 2007. 48 Entre o período plioceno e o pleistoceno (5,5 milhões a 1,6 milhão de anos), fim da Era Terciária, surgiram os hominídeos; a geografia da Terra foi se tornando praticamente igual à que hoje conhecemos. Ocorreram os ciclos glaciais e os níveis dos oceanos tornaram-se inconstantes (COLE, 1965, p. 88). Na África, a alternância de períodos frios e quentes provocou a sucessão de épocas secas e úmidas e fez com que a savana progredisse. Os macacos humanoides ultrapassaram o Rift Valley em direção ao oeste tropical. Os hominídeos se expandiam por toda a África e provavelmente a Ásia e Europa (JOHANSON; SHREEVE, 1998, p. 102). Surgia, nas savanas do leste da África, o último ascendente primata antes da linhagem hominídea. Assim, começar-se-á o estudo dos Australopithecus, enfocando a contribuição evolutiva desses hominídeos, a posição bípede ereta. Defender-se-á que tal condição biológica, o bipedalismo, possibilitou em muito a condição para um cérebro desenvolvido que, por sua vez, facilitou a evolução em um cérebro adequado para desenvolver a cognição humana diferenciada. 2.2 O BIPEDALISMO, A NEOTENIA E O CRESCIMENTO CEREBRAL O corpo, entendido como expressão factual do ser, nesse caso o ser humano, acolhe o estado (a ontologia) e o processo (fenomenologia) (MORIN, 1993, p. 32): o “estado”, como expressão de um código genético, de algumas características químicas, físicas, nervosas e energéticas, e o “processo”, chamado por Morin de hominização (MORIN, 1993, p. 33). Dele surgem as condutas sociais, afetivas, cognitivas e motoras que possibilitaram a aprendizagem, a educação, portanto, definindo o ser humano frente a outros seres; nesse processo, precisa ser melhor destacada a neotenia e as capacidades diferenciadas no nascimento humano. Neotenia, além de ser um fato, o de nascermos imaturos demais devido à bipedalização, também é a retenção de características juvenis na forma adulta (maturidade). É fato facilmente observável entre os mamíferos, sobretudo das espécies primatas (MAYR, 1998). Os jovens de várias espécies de mamíferos tendem a ter a face arredondada e não especializada; mas, durante o processo de amadurecimento, trilhas de desenvolvimento são seguidas e as características específicas se desenvolvem. Por exemplo, filhotes de babuínos nascem com cara arredondada crescem rapidamente e passam a ostentar o focinho prolongado típico. 49 Afirmar que a neotenia é uma característica principal da espécie humana