RONDINELE APARECIDO RIBEIRO DE O BERÇO DO HERÓI A ROQUE SANTEIRO: análise da transposição do herói para a teleficção ASSIS 2019 RONDINELE APARECIDO RIBEIRO DE O BERÇO DO HERÓI A ROQUE SANTEIRO: análise da transposição do herói para a teleficção Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador: Prof. Dr. Francisco Cláudio Alves Marques. ASSIS 2019 AGRADECIMENTOS Preliminarmente, agradeço a Deus por todas as conquistas alcançadas em minha vida e por sempre me conduzir ao melhor caminho. Agradeço aos meus pais, João e Édina, à minha sobrinha, Ane Gabrielle, e aos meus irmãos, Amanda e Thiago, por me apoiarem constantemente, incentivando-me nos estudos e me proporcionando sempre o melhor. Agradeço à Larissa pela compreensão, pelo incentivo e pelo apoio incondicional nessa trajetória. De certa forma, acho que ela também se tornou grande admiradora da obra de Dias Gomes. Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Francisco Cláudio Alves Marques, pela receptividade, pela dedicação, pela orientação serena, segura e inspiradora com que me conduziu durante esse período em que estive sob sua supervisão. O resultado, que ora apresento à banca, não seria possível sem as brilhantes interlocuções que sempre tivemos. Também agradeço à professora Dra. Luciana Brito, que me deixou calmo com sua forma gentil, minuciosa e comprometida de avaliar o trabalho durante a qualificação, além de ter sugerido alguns acréscimos fundamentais para o andamento do trabalho. Por fim, agradeço à professora Dra. Gabriela Kvacek Betella pela forma detalhada, respeitosa e profunda empregada para avaliar o trabalho no exame de qualificação. Também não posso me esquecer de agradecer pelas brilhantes lições dadas durante o período em que cursei sua disciplina no programa. https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/download/635/646 https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/download/635/646 https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/download/635/646 https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/download/635/646 RIBEIRO, Rondinele Aparecido. De O Berço do Herói a Roque Santeiro: análise da transposição do herói teleficcional. 2019. 142 f. Dissertação (Mestrado em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019. RESUMO No cenário contemporâneo, marcado pela mobilidade, as relações entre literatura e audiovisual ocupam grande importância no ideário da sociedade como destaca Ivete Walty (2011). Podemos afirmar que esse vínculo entre o audiovisual e o literário se notabiliza por um laço profícuo, que, recentemente, adentrou o meio acadêmico sob novas perspectivas por eliminar o arraigado binarismo constitutivo das hierarquizações empregadas para se referir a esse processo. Destaca-se, nesse contexto, a produção de Dias Gomes. Dramaturgo responsável pela adoção de uma linguagem mais cotidiana na teledramaturgia nacional, adotava a concepção de que sua arte deveria manter um diálogo crítico com a realidade. Assim, nesse cenário tratado por Walty (2011) como a era da mobilidade, intentamos, a partir do fenômeno da adaptação, apontar como ocorreu a transposição da personagem protagonista da peça teatral O Berço do Herói (1965) para a telenovela Roque Santeiro (1985). Nosso estudo centra-se na transposição da personagem e objetiva apontar as conjunções e disjunções ocorridas nesse processo. Para tanto, vale-se da Literatura Comparada como arcabouço metodológico devido seu aspecto inter e transdisciplinar, que concebe a relação entre literatura e outras expressões como uma forma legítima de expressão cultural. Palavras-chave: Literatura Comparada. Telenovela. Mobilidade. Adaptação. Dias Gomes. RIBEIRO, Rondinele Aparecido. From the O Berço do Herói to Roque Santeiro: analysis of the soap opera hero transposition. 2019. 142 f. Dissertation (Masters in Languages). São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2019. ABSTRACT In the contemporary scenario, marked by mobility, the relations between literature and audiovisual have got great importance in the ideals of society as highlighted by Ivete Walty (2011). We can say that this link between the audiovisual and the literary is notable for a successful bond that has recently entered the academic world under new perspectives by eliminating the entrenched binarism as part of hierarchies employed to refer to this process. In this context, the production of Dias Gomes stands out. The playwright responsible for adopting a more everyday language in national television drama adopted the conception that his art should maintain a critic dialogue with reality. Thus, in this scenario treated by Walty (2011) as the era of mobility, we intend, from the phenomenon of adaptation, to point out how the protagonist character of the play O Berço do Herói (1965) transposed to the soap opera Roque Santeiro (1985). ). Our essay focuses on character transposition and aims to point out the conjunctions and disjunctions that occurred in this process. To this end, it makes use of Comparative Literature as a methodological framework due to its inter and transdisciplinary aspect, which conceives the relations between literature and other expressions as a legitimate form of cultural expression. KEYWORDS: Comparative Literature. Soap opera. Mobility. Adaptation. Dias Gomes. SUMÁRIO 1 LITERATURA NA ERA DA MOBILIDADE: SITUANDO AS DISCUSSÕES ......... 14 1.1 A Literatura Comparada: uma metodologia interdisciplinar ................................. 22 1.2 Televisão: a fantástica fábrica ficcional ............................................................... 29 1.3 Literatura na televisão: a adaptação na era da mobilidade ................................ 32 1.4 Uma breve história da adaptação no suporte televisivo ...................................... 41 2 TELENOVELA: UMA NARRADORA NA ERA DA MOBILIDADE ........................ 45 2.1 Uma análise da etimologia do gênero telenovela ................................................ 47 2.2 Telenovela: A transmutação do folhetim ............................................................. 50 2.3 O folhetim no Brasil: algumas considerações ...................................................... 57 2.4 A estrutura do “folhetim eletrônico” ...................................................................... 64 3 NAS TRAMAS DE DIAS GOMES: UM DRAMATURGO SUBVERSIVO ............... 74 3.1 O Berço do Herói: Uma peça subversiva ............................................................. 80 3.2 O Berço do Herói na televisão: Roque Santeiro .................................................. 92 3.3 O primeiro capítulo da “fantástica fábrica ficcional” ........................................... 104 3.4 Algumas especificidades sobre o processo de construção da personagem ...... 108 3.5 O arquétipo da malandragem na transposição do herói teleficcional ............... 115 3.6 Roque Santeiro e a revitalização do malandro no cenário da mobilidade ......... 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 134 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 138 8 INTRODUÇÃO As reflexões desenvolvidas nesta dissertação partem da postura analítica de atribuir o rótulo de mobilidade às especificidades que caracterizam o cenário contemporâneo. Como salienta Ivete Walty (2011), a contemporaneidade revela uma simbiose marcante entre letras, imagens e sons constantemente recepcionada pelos estudiosos de modo a conceber o audiovisual como uma expressão menor. Pode-se afirmar que parte dessa visão está calcada na herança teórica frankfurtiana, responsável por difundir no meio acadêmico posicionamentos segregacionistas atribuindo à adaptação uma designação pejorativa. A relação imanente entre literatura e teledramaturgia, aqui analisada longe de determinadas posturas acadêmicas excludentes, justifica-se pelo próprio traço do cenário contemporâneo, marcado pela multiplicidade de expressões, temas e formas, no que tange à produção artística. Ademais, a relação entre o audiovisual e o meio literário se notabiliza por um laço profícuo, que, recentemente, adentrou o meio acadêmico sob novas perspectivas teóricas, as quais conferem a esse vínculo uma relação complexa contribuindo para eliminar o incrustado viés depreciativo com que alguns ainda concebem essa relação, o que revela um certo redesenhamento da postura crítica, como manifesta Walty (2011). Enquanto gênero híbrido, a telenovela tem sua estrutura alicerçada na grande tradição narrativa herdada de vários gêneros, como o folhetim, o melodrama, a radionovela e a soap opera. Essa narrativa audiovisual traz em seu bojo fundamentos das narrativas primordiais, sendo que sua trajetória deve ser explicada pela sincronização de linguagens advindas do teatro, do cinema e do rádio. O pesquisador José Roberto Sadek (2008), ao se referir à telenovela, explica que um dos elementos responsáveis pelo sucesso do gênero está relacionado a uma das mais antigas tradições da espécie humana: a de contar e de ouvir histórias. Assim, o autor enfatiza o vínculo estabelecido entre a telenovela e as primeiras formas de narração. Ainda acerca da especificidade da telenovela em se constituir como um gênero narrativo, outros estudiosos, como Thomas Tuft (1995), concebem o gênero como uma moderna forma de contar histórias, podendo ser-lhe atribuída também a peculiaridade de se notabilizar como uma extensão das histórias contadas 9 oralmente: “São narrativas melodramáticas que – além de serem produtos comerciais – surgiram da história da cultura popular. Elas possuem matrizes históricas em antigas tradições de contar histórias verbalmente e literariamente, assim como em contagem de histórias via mass media mais recente” (TUFT, 1995, p. 36). O ponto de vista de Tuft (1995) pode ser complementado pelas pressuposições de Roberta Manuela Barros de Andrade (2014). Como salienta a autora, o Brasil ingressou no cenário da modernidade conjugando em sua cultura o ideário veiculado pela televisão com a longa tradição oral, o que significa que o país não abandonou essa forma de cultura milenar. Dessa forma, o hábito de assistir à televisão e acompanhar o desenrolar das histórias seriadas constitui uma espécie de oralidade secundária fundada nos dispositivos midiáticos responsáveis pela reatualização do imaginário da cultura oral. A partir desses traçados iniciais, é importante destacar que os estudos realizados neste trabalho pautaram-se no objetivo geral de compreender como se desnudam as relações entre literatura e audiovisual neste cenário complexo denominado de contemporaneidade, destacando-se como força expressiva a produção teledramatúrgica de Dias Gomes, artista que representa com maestria a situação típica da cena contemporânea, uma vez que sua trajetória revela a postura migrante de um intelectual que transitou por diversos meios. Tendo iniciado sua produção no teatro por volta dos anos 1930, migrou para o rádio e, posteriormente, para a televisão. A análise apresentada nesta dissertação ancora-se no estudo comparado entre a peça teatral O Berço do Herói (1965) e a telenovela Roque Santeiro (1985). Intentamos, a partir do fenômeno da adaptação, apontar como ocorreu a transposição da personagem protagonista da peça para a tela. Nossa proposição aponta a reverberação da figura arquetípica da malandragem na versão televisiva. Assim posto, o estudo centra-se na transposição da personagem protagonista e objetiva apontar as conjunções e disjunções ocorridas nesse processo. Para tanto, recorre ao arcabouço teórico da Literatura Comparada devido às especificidades interdisciplinares dessa metodologia, que se articula com várias teorias e fornece um instrumento teórico rico e coerente para se ater aos fenômenos literários e culturais. 10 Considerando-se o tema da pesquisa, partiu-se, primeiramente, para o levantamento junto aos Bancos de Teses e Dissertações da CAPES sobre trabalhos já desenvolvidos sobre a obra do dramaturgo. Nossa investigação identificou estudos sobre a vasta produção de Dias Gomes nas áreas de História, Sociologia, Comunicação Social e Letras. Dadas as especificidades do campo de investigação, os trabalhos verificados na área de História, em sua maioria, enfatizaram os aspectos relacionados ao contexto histórico de cerceamento de liberdade de expressão no Brasil. Constatamos também a existência de uma série de trabalhos voltados para o estudo da inclinação política do dramaturgo, dentre eles, sobressai a dissertação intitulada Diferentes faces de um subversivo: a relação entre história, política e cultura em Dias Gomes, defendida por Aline Monteiro de Carvalho Silva no Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense em 2012. Também se situa como exemplo fértil da produção sobre o dramaturgo a tese de doutoramento da mesma autora intitulada Entre a ficção e a memória? Dias Gomes e a trajetória de um intelectual “subversivo” (1980-1999), defendida no ano de 2017 no mesmo programa. Inclui-se também nesse rol a dissertação de Natasha Moreira Piedras Ferreira intitulada O Berço do Herói (1963): Dias Gomes, teatro engajado e censura, defendida em 2017 no programa já citado. Outro trabalho que segue as especificidades identificadas é a tese de Ana Maria de Medeiros intitulada Dias Gomes e a Telenovela Brasileira: O “Nacional-Popular” em O Bem-Amado, Saramandaia, Roque Santeiro, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina em 2016. Na área de Comunicação Social, dadas as perspectivas de caráter inter transdisciplinar assumidas pelo campo desde sua constituição, há uma preponderância de trabalhos que enveredam por esse caminho. Registra-se, como exemplo fecundo nesse campo, a tese intitulada Nos tempos de Dias Gomes: a trajetória de um intelectual comunista nas tramas comunicacionais. O trabalho defendido por Igor Sacramento em 2012 recorreu à análise do realismo grotesco, do fantástico e da carnavalização na produção de Dias Gomes e teve como objetivo principal analisar as relações entre as culturas comunistas e os segmentos da indústria cultural brasileira (o teatro, o cinema, o rádio e a televisão) na trajetória 11 artístico-intelectual do dramaturgo no período compreendido entre 1939 e 1999. De igual modo, corroborando os aspectos inter e transdisciplinares do campo, insere-se a dissertação defendida em 2016 por Laura Mattos Soares Quintas no Programa de Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo intitulada “Roque Santeiro” e a ditadura militar brasileira em três atos: a política por trás das telas. Na área de Letras, os trabalhos produzidos até o momento priorizam a produção de Dias Gomes ligada ao teatro destacando-se as peças relacionadas à segunda fase do dramaturgo. Podem ser citados, como exemplos férteis de estudos, os seguintes trabalhos: Dias Gomes: um dramaturgo nacional-popular (1987); O inquérito da ordem do discurso em Santo Inquérito, de Dias Gomes (1994); O Santo Inquérito e Breviário das Terras do Brasil: duas visões da Inquisição (2000); A linguagem popular e inventiva de Dias Gomes (2001); Branca Dias: uma paraibana de alma negra (2002); Um olhar épico sobre a dramaturgia de Dias Gomes (2003); A ironia e o irônico em Machado de Assis e Dias Gomes (2004); Ponte de Palavras – Didascálias: a dramaticidade das indicações cênicas no teatro de Dias Gomes (2008); O Pagador de Promessas: um drama trágico em tempos modernos (2009); O herói e o bode expiatório na tragicomédia de Dias Gomes (2018). Na seara dos estudos comparatistas que preconizam a relação entre literatura e audiovisual, detendo-se nas produções cinematográficas, pode ser citada a dissertação defendida por Roberta Vanessa Crispim Ribeiro em 2010, na UFPB, intitulada O Pagador de Promessas: dramaticidade e tragicidade, da literatura ao cinema. Outro trabalho nessa área é a tese de doutoramento intitulada Falsos mitos e heróis vencidos em O Pagador de Promessas e O Bem Amado: do texto dramático para a tela, defendida por Dislene Cardoso de Brito. Já no que se refere à análise de trabalhos que se detiveram às produções televisivas de Dias Gomes, podem ser citados os trabalhos: Muito além de vilãs e mocinhas - a construção de gênero e de representações femininas na novela Roque Santeiro (1985); Dias Gomes e Roque Santeiro: telenovela, saturnais e desfile de carnaval eletrônico (2008); A linguagem visual de Porcina: estudo sobre a recepção dos figurinos da personagem da telenovela Roque Santeiro (2010); Roque Santeiro: o (re)desenho do mito e as projeções do imaginário social (2016); Uma leitura comparada das adaptações em prosa da telenovela O Bem Amado, de Dias Gomes (2014); Linguagem transmidiática em Saramandaia: estética e recepção (2016); 12 Bárbara e Dona Redonda: de Murilo Rubião a Dias Gomes, realismo maravilhoso e retextualização (2018). Contudo, cabe esclarecer que não foram encontrados trabalhos que contemplem os mesmos interesses desta pesquisa, ou seja, o de promover um estudo entre as obras O Berço do Herói e Roque Santeiro pelo viés comparatista enfocando o processo de transposição da personagem protagonista da peça teatral para o suporte televisivo. Desse modo, o mérito da dissertação intitulada De O Berço do Herói a Roque Santeiro: análise da transposição do herói para a teleficção está relacionado à possibilidade de oferecer uma análise sobre a rica produção de Dias Gomes. Fruto das investigações empreendidas no Programa de Pós-Graduação em Letras, na linha intitulada Literatura Comparada e Estudos Culturais, da Universidade Estadual Paulista (UNESP-ASSIS), pretende contribuir com o meio acadêmico no sentido de superar o viés preconceituoso com que parcela dos estudiosos ainda concebe essa relação profícua entre a literatura e outras expressões culturais, além de adentrar em aspectos intrigantes, dentre eles, a fertilidade com que a ficção encontra espaço para ser propagar no cenário contemporâneo, revitalizando arquétipos. Ademais, a defesa desta dissertação no ano em que completa 20 anos da morte do dramaturgo é uma forma de demonstrar, num movimento sólido, o quão vigorosa é a atenção que a academia deve conferir ao intelectual, que, mesmo contando com uma fortuna crítica considerável, ainda oferecerá por um longo tempo, inúmeras possibilidades de abordagem de sua produção, especialmente no âmbito da Literatura Comparada. Em termos de estrutura, a dissertação foi organizada em três capítulos. O primeiro, denominado Literatura na era da mobilidade: situando as discussões, exerce uma função de contextualizar a situação experimentada pela contemporaneidade. Por esse motivo, elege como diagnóstico dessa era o conceito de mobilidade para caracterizar os traços das produções culturais, além de situar as discussões recorrendo às especificidades da Literatura Comparada como arcabouço teórico metodológico devido à possibilidade suscitada pelo campo em permitir o cotejamento de expressões artísticas consideradas díspares. Ainda neste capítulo, tratamos sobre migração de textos do suporte impresso para o televisivo de modo a 13 desnudar as especificidades do fenômeno da adaptação, encarado no trabalho longe de alguns posicionamentos apocalípticos. Avançando no percurso trilhado pela dissertação, o segundo capítulo, intitulado Telenovela: uma narradora na era da mobilidade, inicia situando a importância do gênero teleficcional dando primazia para sua peculiaridade em se constituir como uma potente contadora de histórias. Na sequência, mergulha nos traços sobre a origem do vocábulo telenovela, além de teorizar, de maneira não exaustiva, sobre as relações entre o folhetim e a telenovela para, depois, mergulhar na estrutura do gênero, apresentando suas especificidades reveladoras de uma longa tradição entre literatura e outros suportes. O último capítulo, intitulado Nas tramas de Dias Gomes: um dramaturgo subversivo, fornece, de forma não exaustiva, aspectos essenciais da biografia do dramaturgo, preocupando-se em mostrar como o escritor transitou por suportes diversos devido a problemas sofridos quanto à liberdade de expressão. Na sequência, o trabalho tece uma análise acerca da peça O Berço do Herói, mergulha na análise da telenovela Roque Santeiro e prossegue versando sobre a personagem de ficção enfatizando as conjunções e disjunções sofridas pelo protagonista da telenovela representado com traços da malandragem. 14 1 LITERATURA NA ERA DA MOBILIDADE: SITUANDO AS DISCUSSÕES “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.” (Camões) A epígrafe acima, extraída de um soneto de Camões, aponta para uma das características mais representativas do conjunto de sua obra: a efemeridade. Para balizar questões ligadas ao devir humano, os versos do poeta são extremamente representativos porque apontam para a constatação de que as maneiras de explicar as concepções de mundo são alteradas em virtude dos aspectos evolutivos da humanidade. Dessa forma, teorizar acerca da literatura no cenário atual é pensar numa lógica cultural complexa, multifacetada e marcada pela convergência devido às conexões constantes mantidas com outros artefatos culturais. Para Ivete Walty (2011, p. 110), na contemporaneidade, “a literatura é um elo de uma rede cultural que se expande para o norte, o sul, o leste e o oeste, sem se estabelecer em escaninhos prefixados, seja das bibliotecas, seja das escolas e dos museus”. Dessa forma, a complexidade do cenário exige um refinamento crítico capaz de conciliar o cânone literário com as influências sofridas no cenário cultural. Reverberando o ponto de vista de Walty (2011), podemos citar também o panorama da literatura contemporânea fornecido pelo estudioso Luís Camargo (2003). Na apresentação da obra Literatura, Cinema e Televisão, o autor traz à baila a ideia de que a literatura corresponde a um sistema cultural amplo notabilizando-se pela capacidade de se estabelecer relações com outras expressões artísticas. Por esse motivo, exige-se outro tipo de leitor que não mais esteja apenas ligado ao suporte físico dependente do código escrito. Nas palavras de Camargo (2003, p. 09): “A diversidade de meios e a hibridação de linguagens exigem um leitor que não se prenda à letra, mas esteja aberto à diversidade de suportes pelos quais a literatura circula, bem como às suas combinações com outras artes”. A partir das reflexões iniciais, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca da contemporaneidade. Para tanto, empregamos as definições expostas por Giorgio Agamben (2009). Esse estudioso evidencia algumas possibilidades acerca do que é ser contemporâneo. Para o autor, essa condição está alinhada à capacidade de, a quem ganhar tal rótulo, ser capaz de realizar deslocamentos e 15 anacronismos no tempo: “Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões [...] ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 59). A partir do ensaio de Agamben (2009), o crítico Karl Erik Schøllhammer (2009) define o contemporâneo como “aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 09), já que esse escritor não se identifica com o seu tempo, mantendo com ele uma relação de desconexão. Por esse motivo, cria um ângulo que possibilita expressá-lo. Com base nas teorizações do estudioso, compreendemos o contemporâneo como aquele capaz de mergulhar de forma paradoxal no agora e no outrora, ou seja, aquele capaz de, a partir de experiências passadas, ser capaz de enxergar de forma mais clara a fragmentação do presente. Dessa forma, aquele que se insere na contemporaneidade mantém com o seu tempo uma certa atitude de resignação ou, até mesmo, de negação plena do seu tempo. É Justamente essa capacidade que permite ao intelectual contemporâneo ser capaz de se voltar para as questões críticas de sua época. Conforme esclarecem Melo e Tosta (2008, p. 29), na atualidade: “Recebemos mídia por todos os poros. A cada passo que damos, cotidianamente, esbarramos em artefatos midiáticos: livros, jornais, rádios, televisores, anúncios, panfletos, discos, vídeos, celulares”. Em conformidade como o ponto de vista de Walty (2011), essa característica típica da produção artística contemporânea, engloba procedimentos de reciclagem e de reaproveitamento cultural. “Reciclagem seria, pois, um importante operador de leitura para se pensarem as práticas culturais do mundo atual” (WALTY, 2011, p. 109), haja vista que as produções culturais operam numa profusão de estratégias como o pastiche, a paródia, o plágio, a reescrita, a recriação, a intertextualidade e a adaptação para recontar as histórias num eterno jogo responsável por atualizar e ressignificar aquilo que um dia foi narrado. Dessa forma, no cenário da mobilidade, a narrativa, em seus múltiplos suportes, converte-se num espaço amplo de promoção à ficção, revelando a existência de uma pluralidade artística fundamentada na dependência humana da narrativa. Etimologicamente falando, o vocábulo mídia tem sua origem atrelada ao latim, haja vista que media é o plural de médium. Seu significado está associado a 16 vocábulos como “meio”, “veículo”, “canal”. Sua inclusão na Língua Portuguesa se deu, portanto, por meio de um estrangeirismo no qual os brasileiros aportuguesaram a palavra media e passaram a escrever mídia. “Mais do que dicionarizar, os brasileiros estabelecem com a mídia uma relação „macunaímica‟. Qualquer pessoa do povo se refere a esse tipo de fenômeno com bastante familiaridade, cordialidade, intimidade” (MELO; TOSTA, 2008, p. 30). Ampliando as discussões, valem as considerações de Melo e Tosta (2008, p. 30): A mídia tem a ver com a indústria dos bens simbólicos. Corresponde a um sistema complexo de produção, circulação e consumo de bens culturais. Seu foco está orientado a fabricar artefatos que se materializam em palavras, sons, imagens, seja no plano real, seja no plano imaginário. A partir do ponto de vista dos estudiosos em questão, percebe-se que as mídias deixaram de ser meros difusores de produtos midiáticos para se constituírem como responsáveis pela alimentação do imaginário social. Outra estudiosa fundamental para se compreender a lógica operada nesse contexto é Lúcia Santaella (2003). O ponto de vista da estudiosa concerne as mídias como forma rotineira empregada para se referir a quaisquer meios de comunicação de massa e se estende também para aparelhos, dispositivos e programas de comunicação. A autora afirma que vivemos em uma verdadeira cultura de mídia, que se constitui um fenômeno emergente na dinâmica cultural. “Hoje, o termo é rotineiramente empregado para se referir a quaisquer meios de comunicação de massa - impressos, visuais, audiovisuais, publicitários – e até mesmo para se referir a aparelhos, dispositivos e programas auxiliares de comunicação” (SANTAELLA, 2003, p. 53). Sobressai também na concepção da estudiosa o ponto de vista de que as mídias se constituem como princípios organizadores da sociedade. Para tanto, a autora apresenta a necessidade de se distinguir seis tipos de lógicas culturais encaradas como sequenciais e distintas, no entanto mescladas e conectadas de modo indissolúvel: a oral, a escrita, a impressa, a de massas, a de mídia e a digital. Santaella (2003; 2007; 2014) defende a tese de que não ocorreu a suplantação dessas eras, mas sim a coexistência de todos os formatos, notabilizando-se por um processo de sincronização de linguagens. Assim, a autora salienta que todos os formatos coexistirão, não havendo, portanto, a suplantação de 17 um formato como preconizam os estudiosos mais apocalípticos. A partir do ponto de vista da autora, podemos afirmar que a técnica seriada de contar histórias nunca deixará de existir, mas ocorrerão adaptações necessárias para continuar produzindo narrativas em uma sociedade que experimenta a mobilidade. A autora esclarece, ainda, que essas modificações operadas nas formas de narrar não deslocam os sistemas que vieram antes: A emergência de um novo sistema não desloca o que veio antes, mas adere como uma nova camada, tornando a ecologia midiática ainda mais estratificada. [...]. Assim, as pinturas nas cavernas coexistirão com a cultura oral; tapeçarias e vitrais fizeram a ponte entre a cultura oral e a cultura impressa; os quadrinhos existem dentre da cultura impressa, mas também aparecem nos meios de massa, e assim por diante. Colocando-se todas as camadas juntas, a paisagem midiática atual apresenta uma multiplicidade de características (SANTAELLA, 2014, p. 122). Lúcia Santaella (2014) assinala o caráter híbrido das eras culturais, uma vez que se observa uma sequencialidade no surgimento de cada período. Basta-se observar, como já afirmado, que o surgimento de uma era não é responsável pela suplantação da anterior. Ocorre, de fato, uma sincronização em que uma se sobrepõe a outra misturando-se numa constituição cultural, a qual se torna cada vez mais complexa e densa. A partir do ponto de vista da autora, percebe-se uma aproximação com a tese defendida por Walty (2011) ao destacar a mobilidade como uma característica inerente do cenário cultural contemporâneo. No que tange às especificidades da produção artística, Santaella (2007) explica que desde o mundo antigo até no Renascimento, as artes eram vistas como “artefatos utilitários” situados no mesmo rol da fabricação de móveis, sapatos etc. Como explica a autora, a partir desse período, ocorreu uma modificação na forma de se conceber as manifestações estéticas e “os artistas conseguiram levantar o status das artes ao colocar em destaque seu caráter intelectual e teórico” (SANTAELLA, 2007, p. 05). Dessa forma, conforme assinala a autora, as artes foram agrupadas no século XVIII de forma esquemática em cinco belas artes: pintura, escultura, arquitetura, poesia e música. Séculos depois, como esclarece Santaella (2007), a Revolução Industrial foi responsável pelo desenvolvimento de tecnologia, o que permitiu a produção em larga escala de bens de consumo. Dessa forma, as mudanças ocorridas a partir da Revolução Industrial foram responsáveis “pelo desenvolvimento do sistema 18 econômico capitalista e pela emergência de uma cultura urbana e de uma sociedade de consumo” (SANTAELLA, 2007, p. 05-06). A partir das definições da autora, pode- se concluir que esse processo será responsável por impor mudanças no contexto de produção artística. Em suas teorizações, Santaella (2007) ainda traz à baila uma discussão acerca da emergência da cultura de mídia e como essa expressão cultural se relaciona com as mudanças de produção artística. Desde a invenção da prensa por Gutemberg, o mercado de livros passou uma revolução, haja vista ter ocorrido a suplantação de uma estrutura artesanal destinada a um público restrito. O livro, a partir da possibilidade de ser reproduzido, adentrou em diversos lugares. Com a Revolução Industrial, esse aspecto se acentuou, uma vez que ocorreu uma intensa produção de bens de consumo a partir do surgimento de máquinas responsáveis pela expansão da força física e passaram a produzir bens materiais. Santaella (2007) também destaca nesse processo o surgimento de produção de bens simbólicos, tais como a fotografia, a prensa mecânica e o cinema. Nas palavras da autora, “essas são máquinas habilitadas para produzir e reproduzir linguagens e que funcionam, por isso mesmo, como meios de comunicação” (SANTAELLA, 2007, p. 11). A partir da explanação dada, entende-se como se processa na história essa convergência entre comunicação e artes, tese sustentada pela autora na obra Por que as mídias estão convergindo. Percebe-se que os meios de comunicação da modernidade surgiram atrelados ao modo de produção erigido com o advento do sistema capitalista, o que foi responsável pela criação de novos ambientes de consumo e de novos suportes. Nesse processo de reconfiguração propiciada pela disseminação de conhecimento calcado na introdução de recursos técnicos, incluem-se também a fotografia, o cinema, o rádio e a televisão, marcando o ponto culminante da comunicação de massa. Prosseguindo nas trilhas traçadas por Santaella (2007), um dos resultados dessa transformação operada no plano artístico, a partir da imersão dos meios massivos, foi um estreitamento entre cultura erudita e cultura popular, conceitos até então vistos como excludentes. Dessa forma, para a autora, existe uma “inoperância das separações rígidas entre cultura erudita, popular e de massas” (SANTAELLA, 2007, p. 11). A estudiosa salienta ainda que a cultura de massas não deve ser vista como uma terceira forma de cultura. Pelo contrário, ocorre entre elas um 19 entrelaçamento ocorrido nos diversos veículos midiáticos. Ademais, “a cultura de massas provocou profundas mudanças nas antigas polaridades entre a cultura erudita e a popular, produzindo novas apropriações e intersecções, absorvendo-as para dentro de suas malhas” (SANTAELLA, 2007, p. 11). Diante do diagnóstico traçado por Santaella (2007), e pensando também de forma mais pontual em como a ascensão da cultura de massa reconfigurou a circulação da literatura, recorremos ao ponto de vista do crítico Franco Moretti (2009). De modo profícuo, o estudioso investigou no artigo intitulado O romance: história e teoria aspectos atinentes à configuração desse gênero, tais como: por que o romance é escrito em prosa; por que esse gênero se constitui como histórias de aventuras; por que a ascensão do romance ocorreu na Europa. Para o crítico, todas essas reflexões “apontam para processos onipresentes na história do romance, mas não em sua teoria” (MORETTI, 2009, p. 201). Desse modo, um aspecto de grande importância trazido à baila centra-se na questão da ascensão da sociedade do consumo na Europa como um dos fatores preponderantes para a aclimatação do gênero. Para tanto, em seu estudo, o autor enfatiza que ocorreu, entre a primeira e a última década do século XVIII, um aumento significativo na publicação de títulos, sem contar no aumento das tiragens de obras e de reimpressões. Para Moretti (2009), o aspecto mais importante dessa reconfiguração está centrado na difusão de bibliotecas circulantes, que “fez os romances se difundirem de forma mais eficiente do que antes, conduzindo por fim à imposição do formato em três volumes tanto a escritores como a editores, a fim de permitir o empréstimo simultâneo a três leitores” (MORETTI, 2009, p. 209). Ao explicitar as consequências da ascensão de uma sociedade de consumo para o romance europeu, o crítico afirma: Mais romances e menos atenção. Romances baratos, não Henry James, dando o tom da nova forma de ler. Jan Fergus, que sabe mais do que todo mundo sobre registros de bibliotecas circulantes, chama de leitura “incoerente”: tomar de empréstimo o segundo volume das Viagens de Gulliver, mas não o primeiro, ou o quarto, de cinco de The Fool of Quality (MORETTI, 2009, p. 210). O ponto de vista de Moretti (2009) associa o romance ao mundo burguês como uma consequência da modernidade e avança nas incursões sobre os estudos 20 do gênero ao associá-lo ao consumo. Desse modo, a classe burguesa produz e consome romances num ritmo frenético, tornando-se quase impossível responder se essa particularidade está associada ao fator oferta ou demanda, se pensarmos na expressão máxima que move o sistema capitalista. Diante do que foi exposto, o ponto de vista de Moretti (2009) complementa as teorizações de Santaella (2007) acerca dos contornos sobre a cultura de massa. Prosseguindo nas trilhas propostas por Santaella (2007), a estudiosa, ao se reportar à cultura de mídia, deixa evidente a peculiaridade dessa forma de cultura estruturar-se nas mediações estabelecidas entre as pessoas e o mundo pelos meios tecnológicos de comunicação: Ao fazerem uso das novas tecnologias midiáticas, os artistas expandiram o campo das artes para as interfaces com o desenho industrial, a publicidade, o cinema, a televisão, a moda, as subculturas jovens, o vídeo, a computação gráfica, etc. De outro lado, para a sua própria divulgação, a arte passou a necessitar de materiais publicitários, reproduções coloridas, catálogos, críticas jornalísticas, fotográficas e filmes de artistas, entrevistas com ele(a)s, programas de rádio e televisão sobre ele(a)s (SANTAELLA, 2007, p. 14). Outra característica apontada por Santaella (2007) sobre a cultura de mídias relaciona-se com o processo de promoção da expressão artística, que vai além de bibliotecas, museus e cinema. Em suas incursões, a autora destaca, como traço marcante dessa cultura contemporânea, a grande intensificação das misturas operadas entre as mídias como traço marcante dessa cultura contemporânea: “filmes são mostrados na televisão e disponibilizados em vídeo; a publicidade faz uso da fotografia, do vídeo e aparece em uma variedade de mídias” (SANTAELLA, 2007, p. 14). A partir das discussões trazidas acerca da cultura de mídia, é importante recuperar o pensamento de Walter Benjamin (2000). O autor aborda as transformações ocorridas na produção da obra de arte e se preocupa também com surgimento de novos significados da expressão cultural a partir de sua reprodutibilidade. Com o advento das máquinas, as expressões artísticas puderam sair de seu espaço convencional para estampar camisetas, cartões postais ou xícaras. Assim, em conformidade com Benjamin (2000), é perfeitamente possível compreender que a evolução técnica experimentada pela sociedade ampliou a forma como o público se relaciona com a arte, despertando novas sensibilidades e novas 21 formas de se reconhecer uma manifestação artística, uma vez que o mercado traduz-se como um importante mediador cultural no cenário contemporâneo. Relacionando essa afirmação com a situação do meio literário mais recente, é oportuno recorrer ao ponto de vista de Beatriz Resende (2008) e de Ana Paula Franco Nobile Brandileone (2013). Ao tecerem considerações acerca do estágio da literatura no cenário atual, as estudiosas apontam a diversidade de temas e de formas como característica fundamental da produção literária mais recente. Sobressai no ponto de vista das estudiosas a concepção de que a ênfase na diversidade é responsável pela tradução de um traço diferenciador desse novo momento. Nas palavras de Brandileone (2013, p. 18): “O texto literário contemporâneo incorpora essa diversidade, que é de gênero, de temas, de imagens, de suportes e de outros mecanismos mais, bem como restitui gêneros populares do século XIX, como o romance policial e o histórico”. Nessa conjuntura, destacamos de modo mais evidente o ponto de vista de Resende (2008). A autora fornece, ainda que de forma provisória, os traços marcantes de nosso estágio contemporâneo. Para tanto, destaca a multiplicidade como característica essencial, de modo que a análise dessa produção não comporta os mesmos critérios empregados para se analisar as produções enquadradas no cânone. Dessa forma, essa multiplicidade, alinhada à mobilidade de que nos fala Walty (2011), exige novos parâmetros e o alijamento de preconceitos arraigados na forma de conceber o literário em seu aspecto movediço e midiático. No que tange aos formatos, a fertilidade de que trata Resende (2008), pode ser vista a partir da qualidade e da multiplicidade apresentada na linguagem, nos formatos bem como nas novas relações suscitadas com o leitor “[...] eis algo realmente novo – o suporte que, na era da comunicação informatizada, não se limita mais ao papel ou à declamação. São múltiplos tons e temas, sobretudo, múltiplas convicções sobre o que é literatura [...]” (RESENDE, 2008, p. 98). Como característica desse período, sobressai, na concepção da autora, a multiplicidade de autores e de suportes. Assim, o impresso não é mais a única forma de circulação da literatura, que, agora, expande-se em múltiplas telas e plataformas, corroborando as teorizações de Walty (2011) e de Santaella (2007; 2014). Ademais, se antes, a unicidade da obra era responsável pela forma artística, a partir da reprodução técnica, o público tem novas formas de apropriação e de usos para um 22 mesmo objeto. Comprova-se, assim, que se está imerso em uma verdadeira cultura da mobilidade. Como o estágio experimentado é o de mudanças rápidas, marcadas pela fluidez e instabilidade de conceitos e de crenças, os suportes midiáticos acabam se constituindo como agentes balizadores desse processo caracterizado por fluxos e trocas culturais. 1.1 A Literatura Comparada: uma metodologia interdisciplinar Nessa perspectiva da contemporaneidade, como forma de situar o campo marcado pela mobilidade, recorremos à Literatura Comparada como metodologia, haja vista se tratar de uma área que permite cotejar a literatura com outras expressões artísticas, como ocorrerá neste trabalho. Tânia Carvalhal (2006), ao tratar dessa área, esclarece que o ato de comparar é um procedimento inerente ao pensamento do homem. A autora enfatiza que essa expressão “designa uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas” (CARVALHAL, 2006, p. 06). Adentrando nas especificidades dessa área, recorremos às teorizações de Silvana Oliveira (2008). Para a estudiosa, a Literatura Comparada pode ser vista como uma estratégia interpretativa e uma metodologia para se compreender a literatura no tempo e no espaço. Dessa forma, “a sua proposta básica é colocar lado a lado obras que podem esclarecer-se mutuamente, e isso significa dizer que obras com elementos de composição semelhantes podem, quando comparadas, servirem de referência uma a outra” (OLIVEIRA, 2008, p. 167). Numa primeira constatação, a partir das definições dadas por Carvalhal (2006) e Oliveira (2008), a expressão “comparada” pode ser vista de forma superficial, já que a etimologia da palavra já traz implícita a denotação de cotejamento, ou seja, um estabelecimento de confronto entre produções culturais. Enquanto área surgida na França e fortalecida a partir do século XIX, como destaca Carvalhal (2006), essa área, em sua fase inicial, estava voltada apenas para o estabelecimento de comparações entre manifestações semelhantes. Dessa forma, os estudos empreendidos nesse período estavam calcados na aproximação entre literaturas estrangeiras por meio da comparação entre uma e outra. Assim, é legítimo afirmar que as considerações articuladas convergem no sentido de apontar que tais perspectivas estavam associadas ao estudo das fontes e influências, além de perpassarem pelo conceito de autoria e de hierarquização. 23 Carvalhal (2006), ao situar a origem dessa metodologia, assevera que a Literatura Comparada vincula-se à corrente cosmopolita do século XIX, caracterizada pelo emprego da investigação de base cientificista herdada das ciências naturais. Desse modo, como já explicitado, em sua fase incipiente, a Literatura Comparada centrava suas análises na perspectiva comparatista calcada na análise de estrutura ou fenômenos análogos. Para confirmar o ponto de vista da autora, podem ser citadas as obras Lições de Anatomia Comparada, de Cuvier (1800), História Comparada dos Sistemas de Filosofia, de Degèrand (1804) e Fisiologia Comparada, de Blanville (1833). Tais obras podem ser encaradas, a partir do título, como exemplos da influência exercida pelo cientificismo no ramo das ciências humanas e que acabou se irradiando para a literatura. Para Carvalhal (2006), além desse viés cientificista, a dissolução do gosto clássico foi outro fator decisivo para o alastramenento dessa área: “A definição da Literatura Comparada coincide, portanto, com o abandono do predomínio do chamado gosto clássico, que cede diante da noção de relatividade já estimulada” (CARVALHAL, 2006, p. 10). Sandra Nitrini (2000) complementa o ponto de vista de Carvalhal (2006) ao situar o florescimento da Literatura Comparada à constituição do Estado Moderno: O termo Literatura Comparada surgiu justamente no período de formação das nações, quando novas fronteiras estavam sendo erigidas e a ampla questão da cultura e identidade nacional estava sendo discutida em toda a Europa. Portanto, desde suas origens, a Literatura Comparada acha-se em íntima conexão com a política (NITRINI, 2000, p. 21). A partir da contribuição da autora, é perfeitamente lícito conceber a Literatura Comparada como o resultado de uma construção teórica calcada no século XIX, em especial, no desenvolvimento da modernidade operado no campo social, tecnológico e cultural. Na atualidade, os estudos comparados centram seu foco de atuação na investigação, no estudo do diálogo entre as literaturas e entre outras manifestações culturais. Assim, para Carvalhal (2006), essa corrente, na atualidade, pode ser definida como “a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana” (CARVALHAL, 2006, p. 74). No cenário contemporâneo, as estratégias comparatistas são amplas, haja vista o analista, a partir de seu interesse de estudo, eleger um ponto de interesse em comum em obras variadas. Ademais, como aponta Oliveira (2008), há na 24 contemporaneidade uma forte possibilidade de relação comparativa entre literatura e outras manifestações culturais, tais como cinema, pintura e televisão. “Dessa maneira, são propostas discussões críticas muito produtivas, que esclarecem tanto os modos de funcionamento da literatura como das artes com as quais ela pode ser comparada para fins de análise e compreensão” (OLIVEIRA, 2008, p. 172). Como assinala Walty (2011), devido à complexidade experimentada no cenário atual, uma crítica afinada com a produção operada na convergência midiática deve operar com novos parâmetros de leitura marcados por um movimento de reinscrição das práticas culturais. Para a autora, nesse contexto marcado pela mobilidade, a mídia ocupa grande importância no ideário da sociedade, prevalecendo como uma instituição hegemônica capaz de ditar a tônica das relações interpessoais, além de se constituir numa grande fornecedora do nutriente vital para a criação e manutenção do imaginário social. Ao se analisar a relação entre literatura e outras expressões culturais da esfera midiática, esse vínculo, embora bastante usual e antigo, foi visto de forma bastante conturbada ao longo dos estudos literários. Acusada de subversão, alienação e outros atributos associados ao empobrecimento e ao desaparecimento da literatura, as narrativas audiovisuais foram desqualificadas e encontraram resistência para serem vistas em sua legítima dimensão autônoma cultural. Com exceção do filme, gênero já legitimado no meio acadêmico, as demais formas audiovisuais ainda são vistas por estudiosos mais tradicionais como expressões menores, evasivas, alienantes e responsáveis pela perda da aura da literatura. Diante dessa conjuntura, compreender de que maneira os suportes midiáticos se relacionam com a literatura assume especial importância, uma vez que a adaptação encontra vitalidade a partir dessa relação operada entre fenômenos culturais. É possível ainda perceber, com respaldo na ideia defendida por Walty (2011), que a literatura do novo milênio, imersa num contexto em que a mobilidade dita a tônica de produção cultural, insere-se num contexto de fragmentação e de revitalização do cânone em que múltiplas tendências e formas de ficção surgem. Dessa forma, estabelecendo trocas com as mídias, tem-se um cenário cultural marcado pela diversidade de gêneros, de temas e, sobretudo, de suportes, o que evidencia o caráter híbrido da cultura contemporânea. 25 Diante do exposto, a telenovela emerge como gênero de expressão fértil da era da mobilidade. Essa narrativa de caráter popular encontrou uma boa recepção nos lares brasileiros, tornando-se o principal gênero da ficção televisiva brasileira. Situação bastante diferente se relaciona com a sua legitimidade acadêmica. Referendada de maneira não-oficial com uma legítima expressão cultural, encontrou em estudiosos não ortodoxos uma nova possibilidade de estudo e diálogo com a produção literária em um momento marcado, como já assinalado, pela mobilidade. Inspirada nas narrativas folhetinescas do século XIX, a telenovela pode ser denominada de “folhetim repaginado”. Sadek (2008), ao explicar a gênese dessa narrativa, explica que o fundamento é bastante simples: a telenovela pode ser incluída na forte tradição de contar e de ouvir histórias. Assim, a partir do posicionamento do estudioso, percebe-se que a essência do gênero responsável pelo sucesso e pela aceitação no Brasil se fundamenta primeiramente em uma necessidade humana: o gosto pela narração. O escritor e crítico literário Mario Vargas Llosa (2013) contribui, de forma profícua, ao tecer algumas considerações acerca dessa peculiaridade inerente ao ser humano. Em uma entrevista concedida ao programa Roda Viva, o autor salienta que a narração é uma forma de apresentar uma visão complexa do homem pelo fato de agregar uma realidade muito subjetiva. Para Llosa (2013), a narração expressa uma necessidade humana fundamental, ainda mais, pelo fato de os seres humanos terem uma grande limitação: serem dotados de uma pequena capacidade de inventar, o que se torna responsável pela criação de uma certa frustração. A ficção, para o crítico, cumpre o notório papel de preencher esse vazio por reunir a peculiaridade de propiciar aos homens viver aquilo que a vida real não permite. Bastante relevante para a compreensão da importância da narrativa para a vida humana é o ponto de vista do crítico literário Antonio Candido (1999). No ensaio intitulado A literatura e a formação do homem, o estudioso apresenta variações sobre a função humanizadora da literatura. O ensaio, dividido em três partes, inicia abordando aspectos inerentes à função e estrutura das obras literárias e expõe funções primordiais da literatura, tais como a função psicológica, a função formadora e a função social. Sobressai no ponto de vista do autor a singularidade da literatura se constituir como uma necessidade humana: 26 A literatura propriamente dita é uma das modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal, cujas formas mais humildes e espontâneas de satisfação talvez sejam coisas como a anedota, a adivinha, o trocadilho, o rifão. Em nível complexo surgem as narrativas populares, os cantos folclóricos, as lendas, os mitos. No nosso ciclo de civilização, tudo isto culminou de certo modo nas formas impressas, divulgadas pelo livro, o folheto, o jornal, a revista: poema, conto, romance, narrativa romanceada. Mais recentemente, ocorreu o boom das modalidades ligadas à comunicação pela imagem e à redefinição da comunicação oral, propiciada pela técnica: fita de cinema, radionovela, fotonovela, história em quadrinhos, telenovela. Isto, sem falar no bombardeio incessante da publicidade, que nos assalta de manhã à noite, apoiada em elementos de ficção, de poesia e em geral da linguagem literária (CANDIDO, 1999, p. 83). O ponto de vista do crítico atribui à literatura a especificidade de se constituir como uma das experiências mais ricas para sistematizar a fantasia. Para Candido (1999), a efabulação está relacionada a um dos fatores responsáveis pela contribuição dessa manifestação artística ao processo de humanização. Por meio de suas tramas, a literatura desperta o homem para uma necessidade vital de ter acesso à ficção. Ampliando essa peculiaridade da ficção, convém destacar, a partir do ponto de vista de Walty (2011) e Santaella (2007; 2014), que a relação entre literatura e telenovela reside no fato de ambas partirem de um processo imaginário de fabulação que, como produto da criação humana, encontra terreno de operação ou alicerce em vários suportes. Ademais, essa relação pode ser explicada como uma rica forma de recontar a literatura e veiculá-la para um público maior, uma vez que na era da mobilidade, o homem passou a depender das mídias para a finalidade de entretenimento, de informação e de ficção. Assim, em nosso cotidiano, estamos envoltos a uma série de textos que circulam em diferentes mídias, tais como espetáculos teatrais, filmes considerados adaptações, histórias em quadrinhos, canções, telenovelas, minisséries e séries. Acreditamos que, ao investigar essas relações, a Literatura Comparada ofereça um instrumento teórico valioso para desnudar as relações culturais instauradas por esses laços convergentes. Ademais, é importante acrescentar que essa relação entre literatura e audiovisual pode ser vista de modo complementar pela especificidade de se tratar de dois sistemas semióticos díspares, que se hibridizam formando uma nova categoria responsável por alimentar a ficção e o imaginário. Ao explicitar as especificidades da Literatura Comparada, Carvalhal 27 (1991; 1994) ressalta que a evolução dos estudos teóricos no campo comparatista foi responsável por permitir evoluir e modificar seus paradigmas tradicionais, superando a antiga tradição desse campo, que centrava suas análises a partir das fontes e das influências. No artigo intitulado Literatura Comparada: a estratégia interdisciplinar, a estudiosa evidencia a ampliação no campo de atuação pelo qual passa a Literatura Comparada. Se na época do seu surgimento, como teoriza a autora, o comparativismo estava preocupado em estabelecer relações entre duas literaturas diferentes ou, ainda, perseguia a migração de um elemento literário de um campo para outro. Na atualidade, sua atuação se ampliou significativamente. Carvalhal (1991) atribui essa reconfiguração a mudanças de paradigmas responsáveis por impor mudanças metodológicas na disciplina. Assim, passada a fase em que era concebida apenas como subsidiária da historiografia literária, a autora salienta que essa disciplina deixou de exercer uma função internacionalista “para converter-se em uma disciplina que põe em relação diferentes campos das Ciências Sociais” (CARVALHAL, 1991, p. 09). Ainda é possível entrever que as concepções da estudiosa convergem no sentido de conferir um dimensionamento inter e transdisciplinar à Literatura Comparada, posto que, antes, essa disciplina estava confinada em uma restrição de campos e formas de atuação. Na atualidade, destaca-se a possibilidade de procedimento em várias áreas. Desse modo, o comparatista deve se apropriar de diversos métodos e de diversos campos em razão da existência de uma complexidade nas formas de existência social em que os fenômenos não são mais concebidos como uma forma pura e pertencente a uma única esfera de conhecimento. “O comparativista terá de aprofundar-se em mais de uma área, ou seja, em todas aquelas que vai relacionar, dominando terminologias específicas e movimentando-se num e noutro terreno com igual eficácia” (CARVALHAL, 1991, p. 12). É válido ressaltar ainda que, para a autora, a exigência dessa múltipla especialização acarreta a distribuição de esforços que seriam destinados a apenas uma área, mas Carvalhal (1991) vê nesse aspecto algumas vantagens, dentre elas, a do enriquecimento metodológico responsável por possibilitar a leitura de modo mais enriquecedor. Vista dessa forma, essa disciplina torna-se, no mínimo, 28 duplamente comparativa devido à sua peculiaridade de atuar simultaneamente em mais de um campo de conhecimento. Carvalhal (1991) destaca essa característica da Literatura Comparada: Este novo modo de entendimento acentua, então, um traço de mobilidade na atuação comparativista enquanto preserva sua natureza "mediadora", intermediária, característica de um procedimento crítico que se move "entre" dois ou vários elementos, explorando nexos e relações. Fixa-se, em definitivo, seu caráter "interdisciplinar" (CARVALHAL, 1991, p. 10). Nas palavras da autora: “Ao integrar conceitos operacionais com base nas teorias de produtividade textual ou de recepção literária, por exemplo, pôde renovar antigas noções básicas como as de fontes e de influências” (CARVALHAL, 1994, p. 11). Assim, a lume do comparativismo, essa relação entre literatura e outras expressões culturais adquire uma legitimação no meio acadêmico e passa a ser vista como mais uma relação profícua no campo dos estudos literários. Dessa forma, expressões como “morte da literatura”, “subversão” e “empobrecimento”, corriqueiramente atribuídas pelos estudiosos mais ortodoxos e apocalípticos para se referir à relação entre literatura e mídia, ainda que ecoem constantemente, perdem importância nesse cenário marcado pela hibridização, portanto exigente de novas formas de análise. Sobre o aspecto interdisciplinar da Literatura Comparada, Carvalhal (1991) ressalta: Vista assim, é uma prática intelectual que, sem deixar de ter no literário o seu objeto central, confronta-o com outras formas de expressão cultural. É, portanto, uma maneira específica de interrogar os textos literários, concebendo-os não como sistemas fechados em si mesmos, mas na sua interação com outros textos, literários ou não (CARVALHAL, 1991, p. 13). A partir das considerações da autora, observa-se uma inclinação dessa disciplina em se voltar para as relações interartísticas. Trata-se, como já sinalizado, de um fenômeno comum que abrange todas as culturas e épocas, portanto não está restrito à arte dita erudita. Dessa forma, com a ampliação da área de atuação da Literatura Comparada, ocorreu uma verdadeira ampliação nos procedimentos analíticos dos textos literários. Conforme a autora destaca: “já não é mais a diversidade linguística que serve de base à comparação, mas a diversidade de „linguagens‟ ou de „formas de expressão‟, próprias e divergentes” (CARVALHAL, 29 2003, p. 37). Essa possibilidade de mover-se entre várias áreas acentua a importância da Literatura Comparada e dos seus estudos interdisciplinares como forma de investigação dessas manifestações culturais complexas. Para se ter um exemplo do quão profícua se mostra essa particularidade dos estudos comparados, destacamos a interligação promovida entre a literatura e os gêneros audiovisuais, dentre eles, a teleficção. Ao se falar desse intercâmbio de gêneros, ainda é necessário ressaltar a importância dos estudos comparatistas e a aplicação de uma análise conjunta entre duas obras de mídias diferentes, posto que, enquanto procedimento de análise, compete à Literatura Comparada a tarefa de integrar a literatura a outras formas de expressão. 1.2 Televisão: a fantástica fábrica ficcional A narrativa é uma necessidade intrínseca do ser humano. Dessa forma, comentar sobre ela nos remete à necessidade de ter acesso à ficção, que acaba dando sentido ao seu ideal de perpetuação. O hábito de contar histórias revela uma atitude que existe desde o momento em que o homem despertou sua capacidade de articular signos e desenvolveu a habilidade de se comunicar. Assim, “a origem da história em capítulos confunde-se com a origem da própria história do homem” (ALENCAR, 2002, p. 41). Presente no cotidiano da humanidade, enquanto necessidade inerente da capacidade humana, pode-se falar que a narrativa confere significação às ações humanas, sendo responsável por mediar as práticas do sujeito no mundo. Enquanto modalidade de intercambiar experiências, é lícito afirmar que ela ocupa o posto de modalidade discursiva híbrida à medida que pode valer-se dos recursos verbais, icônicos ou mistos. Correspondendo a um instinto humano bastante antigo, essa prática de contar e de ouvir histórias também se notabiliza como uma das primeiras formas populares de entretenimento. O estudioso comparatista, Marcelo Bulhões (2009), ao tratar das narrativas audiovisuais, ressalta que o advento das mídias nos séculos XIX e XX modificou o papel de produção e redistribuição da ficção para a sociedade. “Gostemos ou não, os veículos, meios e suporte midiáticos detêm um poder extraordinários de canalizar a atração de bilhões de pessoas pela ficção em todo o mundo” (BULHÕES, 2009, p. 30 07). O autor explica que, durante séculos, os principais fornecedores de ficção ficaram a encargo das diversas formas de narrativas orais, tais como, mito, lenda, e a fábula, mas com o advento das mídias (rádio, cinema, televisão, computador, videogames etc.), essa particularidade se reconfigurou. Enquanto suporte, a televisão apresenta uma forte potencialidade narrativa. Estruturada em vários programas e formatos, um dos mais cultuados são as narrativas de ficção seriada, com destaque para as telenovelas, que se fundamentam na necessidade atávica do homem em ter acesso à narração. Dessa forma, fica evidente a particularidade de a televisão, enquanto um forte componente midiático, ocupar o papel de promover o acesso à ficção na contemporaneidade. “Durante séculos, diversas formas de narrativas orais, mitos, lendas e fábulas figuraram como os principais fornecedores de ficção. Ao lado delas, a literatura e o teatro abasteceram fortemente o ficcional” (BULHÕES, 2009, p. 07). Assim, desde a narrativa primordial, passando pelas epopeias, pela ascensão do romance, do folhetim e da migração de gêneros operada no meio audiovisual, o ideal humano prevaleceu. Apenas alterou-se o suporte em que a ficção é oferecida. Ainda de acordo com o ponto de vista de Bulhões (2009), a presença da ficção na mídia é tão grande no cotidiano das pessoas que o autor emprega a metáfora “creme de chantilly” para designar essa tarefa de produção e distribuição da ficção audiovisual. Com relação ao tema ficção na mídia, é oportuno recorrer também às teorizações da estudiosa Renata Pallotini (2012). Para a autora, o aparelho de televisão integra o cotidiano da sociedade de forma indispensável tal qual o fogão e a cama. “E esse aparelho onipresente na nossa sociedade transmite, durante boa parte de seu tempo de exibição, a chamada ficção televisiva” (PALLOTTINI, 2012, p. 24). Na atualidade, embora não seja a única promotora de entretenimento e informação, a televisão mantém sua hegemonia na sociedade brasileira. Dados do OBITEL1 revelam que se trata de um meio de comunicação disponível na totalidade do território brasileiro presente em 97% dos lares, mostrando seu caráter onipresente na sociedade brasileira. Para a estudiosa Samira Youssef Campedelli (1987), a televisão se constitui como um dos inventos mais importantes da humanidade. A autora esclarece que 1 Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva. 31 alguns críticos acabam considerando esse veículo de comunicação como uma espécie de liquidificador cultural pela capacidade que o aparelho tem de misturar e diluir os diversos gêneros, tais como cinema, música e teatro. Francis Vanoye (apud CAMPEDELLI, 1987, p. 05) adota a concepção de que televisão é meio de comunicação de massas mais poderoso do século XX. Ainda com base no autor, a estudiosa reconhece que a televisão extrapolou o status de eletrodoméstico para se constituir numa conquista e numa revolução (do meio eletrônico associado a recursos: cinéticos, técnicos, comunicação e contato). Como se pode constatar, a televisão se caracteriza pela complexidade, de modo que seu referencial comunicativo trata-se apenas de um campo onde se entrecruzam várias influências, como o tecnológico, o artístico e o comunicacional. Por esse motivo, pode lhe ser atribuída a característica de deglutidora de formatos devido à particularidade desse meio adaptar, readaptar, incorporar e subverter gêneros, tal como esclarece Ana Maria Balogh (2002), que evidencia a especificidade da televisão operar como mecanismo de reciclagem: “Engolimos, incorporamos, readaptamos a cultura do outro, do estrangeiro, ou do outro brasileiro” (BALOGH, 2002, p. 25). Para a autora, é devido a essa especificidade que a televisão mantém seu sucesso e hegemonia, uma vez que nenhum outro veículo de comunicação tem presença e permanência tão grande quanto ela. “A televisão permanece verticalmente disponível para o espectador durante quase todas as horas do dia, durante todos os dias, ano após ano em contato com o espectador” (BALOGH, 2002, p. 25). Maria Aparecida Baccega (2002) contribui com as tessituras acerca da televisão ao afirmar que esse veículo de comunicação corresponde ao maior entretenimento de sala de estar no Brasil: A televisão é um aparelho doméstico, que compõe o cenário dos lares. Quando na casa existe apenas um aparelho de televisão, ele fica geralmente na sala, servindo para a congregação da família em determinados períodos do dia. Desse modo, a TV pauta o que a família vai discutir: os temas que ela escolheu para veicular. Ou então, onde há vários aparelhos de televisão, as pessoas se isolam, vendo programas muitas vezes diferentes, o que acaba por dificultar, inclusive, o diálogo familiar, levando a que pais sequer saibam que programação está sendo vista por seus filhos (BACCEGA, 2002, p. 02). 32 Com base no ponto de vista de Baccega (2002), compreendemos que o advento da televisão promoveu rupturas de fronteiras jamais vistas. Pode-se dizer que esse veículo de comunicação passou a se constituir como meio formativo e informativo da sociedade. Tal assertiva permite interpretar a televisão como um veículo de comunicação mais presente na sociedade brasileira responsável por definir valores, ditar modas, apresentar condutas para discussão, além de ter uma vocação na contemporaneidade em se constituir como uma fantástica contadora de histórias. 1.3 Literatura na televisão: a adaptação na era da mobilidade Ao se analisar as relações entre literatura e outras formas narrativas pertencentes a gêneros da esfera audiovisual, enfatizamos que esse vínculo, embora se constitua como uma prática bastante usual e imanente à narrativa, ao longo dos estudos literários, foi visto de forma bastante controversa, sendo um dos assuntos mais comentados entre os estudiosos que enfocam a relação entre literatura e outras artes. Inicialmente, a relação entre literatura e audiovisual era vista empregando o critério de fidelidade. Assim, o crítico analisava até que ponto a obra adaptada era fiel ao livro. Dessa forma, a literatura, como expressão artística, foi vista como ameaçada pela cultura de massa. Por sua vez, o sistema audiovisual ganhou status de parasita, porque, ao se valer da literatura para contar histórias e, dessa forma, buscar legitimação, a crítica endossada por um discurso pejorativo acerca das mídias, atribuía-lhe o rótulo de produções evasivas e de péssimo gosto. O estudioso Robert Stam (2006) discorre sobre esse rico diálogo intertextual travado pelas obras audiovisuais com as literárias e nos fornece um compêndio acerca dos preconceitos com que a adaptação era vista 2 . Em Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade, o autor ressalta o estigma de obra 2 O autor tratou desse aspecto relacionado ao cinema, mas tal aspecto também se estende para as narrativas teleficcionais. 33 subalterna que a obra adaptada é vista. O crítico salienta nesse ensaio que a linguagem convencional da crítica sobre a recepção das adaptações, notavelmente, prima por um tom moralista repleto de termos que sugerem que o meio audiovisual, ao recorrer à literatura, acaba lhe prestando um desserviço. Stam (2006) contextualiza essa situação: “Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “vulgarização”, “adulteração” e “profanação” proliferam e veiculam sua própria carga de opróbio. Apesar da variedade de acusações, sua motriz parece ser sempre a mesma – o livro era melhor” (STAM, 2006, p. 20). Inicialmente, o crítico apresenta o aspecto da antiguidade no qual os teóricos mais ortodoxos se fundamentam para criar o pressuposto de que as formas de artes antigas são melhores. Na sequência, Stam (2006) apresenta um “pensamento dicotômico” ao se ater ao fato de que, enquanto o meio audiovisual se enriquece por recorrer à literatura como fonte para criação de roteiros, na concepção dos críticos mais céticos, perde sua aura. Outros aspectos apontados por Stam (2006), que elucidam as origens desse estigma são: 3) iconofobia (o preconceito culturalmente enraizado contra as artes visuais, cujas origens remontam não só às proibições judaico-islâmico-protestantes dos ícones, mas também à depreciação platônica e neo-platônica do mundo das aparências dos fenômenos); 4) logofilia, (a valorização oposta, típica de culturas enraizadas na “religião do livro”, a qual Bakhtin chama de “palavra sagrada” dos textos escritos; 6) anti-corporalidade, um desgosto pela “incorporação” imprópria do texto fílmico, com seus personagens de carne e osso, interpretados e encarnados, e seus lugares reais e objetos de cenografia palpáveis; sua carnalidade e choques viscerais aos sistema nervoso; 6) a carga de parasitismo (adaptações vista como duplamente “menos”: menos do que o romance porque uma cópia, e menos do que um filme por não ser um filme “puro” (STAM, 2006, p. 21). Avançando nas especificidades acerca do fenômeno da adaptação, recorremos também às teorizações de Linda Hutcheon (2013). A estudiosa da área de Literatura Comparada, ao se referir ao processo de adaptação, afirma que um dos fatores responsáveis pelo sucesso das obras transcodificadas está relacionado ao prazer do reconhecimento. Para a autora, ao se reconhecer na adaptação audiovisual elementos da obra dialogizada, a obra torna-se mais atraente para o receptor. 34 Um aspecto importante a se considerar nas tessituras de Hutcheon (2013) relaciona-se à importância atribuída pela autora a esse fenômeno tão singular na esfera cultural, haja vista que os textos adaptados integram a memória da coletividade e ressoam repetidas vezes. Nas palavras da estudiosa: “experimentamos as adaptações como palimpsestos através da nossa memória de outras obras que ressoam através da repetição com variação” (HUTCHEON, 2013, p. 08). Ao se referir ao processo de transposição, a autora explica que a adaptação consiste numa forma de transcodificação de um sistema para outro. Em sua obra intitulada Teoria da Adaptação, Hutcheon (2013) se volta para esse tipo de passagem denominada por ela de “passagem transcultural que ocorre quando uma história é adaptada para outras línguas e culturas, e também para outras mídias” (HUTCHEON, 2013, p. 09). Ao resgatar a matriz histórica do processo de adaptação, a autora salienta que esse fenômeno se trata de uma relação constante na cultura e se estende muito além da relação habitual entre filmes e romances: Os vitorianos tinham o hábito de adaptar quase tudo – e para quase todas as direções possíveis; as histórias de poemas, romances, peças de teatro, óperas, quadro, músicas, danças e tableaux vivants eram constantemente adaptados de uma mídia para outra, depois readaptadas novamente (HUTCHEON, 2013, p. 11). Conforme o ponto de vista da crítica canadense, nós, pós-modernos, herdamos esse hábito e temos a possibilidade de empregar outros suportes para esse processo. Por esse motivo, Hutcheon (2013) destaca que a adaptação, de certa forma, acabou fugindo do controle, sendo impossível pensar nesse processo se considerarmos apenas a relação entre filmes e romances. A partir dessa constatação, sobressai uma visão abrangente acerca desse processo, tanto é que a autora destaca a importância de se empreender um estudo amplo acerca da adaptação devido à amplitude do fenômeno: “Grande parte dos estudos sobre adaptação tem como foco as transposições cinematográficas de textos literários, porém uma teorização mais ampla parece justificada adiante da variedade da ubiquidade do fenômeno” (HUTCHEON, 2013, p. 12). Para validar sua teoria, a crítica propõe um estudo da prática adaptativa como uma dupla articulação, que engloba as interfaces processo e produto. É importante acrescentar que Hutcheon (2013) atribui ao vocábulo adaptação boa 35 parte das dificuldades de se estudar esse processo de relação entre obras, uma vez que o vocábulo adaptação denomina, ao mesmo tempo, o processo e o produto. Tentando responder algumas perguntas (O quê? Quem? Por que? Como? Onde? e Quando? da adaptação), a estudiosa inter-relaciona três perspectivas de abrangência acerca do fenômeno da adaptação: adaptação como entidade ou como produto; adaptação como processo de criação e adaptação como processo de recepção e intertextualidade do espectador. A primeira perspectiva pode ser vista como uma transcodificação da obra, ou seja, uma adaptação particular da obra, a qual permite se contar uma história sob outro enfoque ou, ainda, sob uma nova interpretação. Já a segunda perspectiva pode ser explicada como um processo de reinterpreção e de recriação em que ocorre primeiramente a apropriação do texto fonte e depois se dá a recriação. Por fim, a última perspectiva pode ser compreendida, conforme a autora, a partir da intertextualidade, haja vista o texto adaptado ser baseado em outros textos para sua criação. Linda Hutcheon (2013) considera, ainda, o trabalho da adaptação um processo de criação, que pode envolver uma reinterpretação e uma recriação: a adaptação é uma transposição anunciada e extensiva de uma ou mais obras em particular. Essa "transcodificação" pode envolver uma mudança de mídia (de um poema para um filme) ou gênero (de épico para um romance), ou uma mudança de foco, e, portanto, de contexto: recontar a mesma histórica de um ponto de vista diferente, por exemplo, pode criar uma interpretação visivelmente distinta (HUTCHEON, 2013, p. 29). Para facilitar o estudo da adaptação, a autora estabelece ainda uma divisão das formas de contar uma história de acordo como engajamento: contar, mostrar e interagir. Para a estudiosa, a literatura se encaixa no modo contar, justamente por empregar as palavras para estimular o campo da imaginação. “Nós não apenas podemos parar a leitura a qualquer momento, como seguramos o livro em nossas mãos e sentimos e vemos o quanto da história ainda falta para ler” (HUTCHEON, 2013, p. 48). No modo mostrar, por sua vez, a autora afirma que está relacionado ao cinema e às peças teatrais. Por fim, há o modo interagir, em que o espectador é convidado a participar do mundo da narrativa. A autora salienta que os videogames e o teatro participativo são exemplos desse modo de engajamento. 36 Em resumo, a partir do ponto de vista da crítica canadense, pode-se compreender a adaptação como uma forma de transposição declarada de uma ou de várias obras reconhecíveis, uma forma de ato criativo, ao mesmo tempo, interpretativo e um engajamento intertextual (HUTCHEON, 2013). Assim, a partir do ponto de vista da autora, a adaptação deve ser encarada como um processo autônomo de contar histórias, que não se encaixa em designações valorativas, as quais empregam critérios como secundário e inferior para se referir a essa forma de relação dialogizada. Sobre as peculiaridades existentes entre os suportes narrativos, Hutcheon (2013) enfatiza as diferenças operadas na veiculação de histórias em suportes distintos: Enquanto na literatura podemos parar a leitura a qualquer momento, reler e pular passagens, nos filmes e no teatro somos capturados por uma história que sempre segue adiante. Contar uma história em palavras, seja oralmente ou no papel, nunca é o mesmo que mostrá-la visual ou auditivamente em quaisquer das várias mídias performativas disponíveis (HUTCHEON, 2013, p. 49). Ainda para essa autora, sobressai a concepção de que adaptar não significa fidelidade, uma vez que, nesse processo, há uma significação que associa transposição a uma interpretação, apropriação e uma atividade de intertextualidade. Por isso, sobressai o ponto de vista de que “adaptação é uma derivação que não é derivativa, uma segunda obra que não é secundária – ela é sua própria coisa palimpséstica” (HUTCHEON, 2013, p. 30). Ademais, o ato de adaptar envolve um gesto criativo, uma vez que ao se elaborar a “dialogização”, surge uma nova obra situada em outro contexto. É possível ainda perceber, com respaldo nas concepções da autora, que a adaptação corresponde a um fenômeno criativo, uma expressão autônoma, que deve ser encarada sem atribuição de rótulos hierarquizantes. Sem a pretensão de esgotar a discussão em torno dos aspectos inerentes à adaptação, acrescentamos o ponto de vista de Eliana Nagamine (2004). Ao abordar o fenômeno da adaptação no meio televisivo, a autora ressalta a peculiaridade desse veículo de comunicação se estruturar num ritmo intenso e seriado típicos da estética da repetição: “A adaptação, nesse sentido, vive do imediatismo da TV, embasada numa estética da repetição [...]” (NAGAMINE, 2004, p. 37-38). Esse ponto de vista também é partilhado por Ana Maria Balogh (2009). Para a estudiosa, 37 a televisão se estrutura em componentes comerciais e num modo de contar histórias marcado pela serialidade explícita, além da descontinuidade pelo fato de os programas se fragmentarem inúmeras vezes “não apenas nos capítulos ou episódios das séries, mas também nos vários intervalos para os comerciais de cada um destes” (BALOGH, 2009, p. 152). Para a autora, essa relação entre literatura e audiovisual se relaciona com o mercado pelo fato da obra audiovisual aumentar a vendagem de livros, além de propiciar o surgimento de uma série de produtos a partir do audiovisual. Também pode-se falar em uma relação complementar, haja vista ser muito comum a recepção ficcional ocorrer primeiramente por meio do audiovisual. Depois, o receptor, originariamente espectador, converte-se num leitor. Retomando a recepção crítica acerca dessa relação dialogizada, observa-se uma reconfiguração do ponto de vista dos críticos. Antes, a preocupação maior observada nessa relação recaía, como já assinalado por Stam (2006), no aspecto ligado à fidelidade que a adaptação mantinha com a obra literária. “Hoje se verifica uma grande liberdade quanto ao redimensionamento da obra literária, podendo, inclusive, resultar em um produto completamente diferente do original” (NAGAMINE, 2004, p. 36). A autora ainda salienta: “O que chamamos de adaptação pode ser, portanto, uma versão, uma inspiração, uma recriação, uma reatualização, um aproveitamento temático, um referência à obra” (NAGAMINE, 2004, p. 36). Nagamine (2004) define o processo de adaptação nos seguintes termos: Adaptar um texto significa reinterpretar e redimensionar aspectos da narrativa a fim de adequá-la à linguagem do outro veículo. Não precisa ser uma cópia fiel, pois nem sempre é possível simplesmente transportar uma sequência, um diálogo; além disso, a obra sofre uma atualização, provocando, às vezes, uma mudança na ambientação, na estrutura narrativa, sobretudo, quando adaptada para a televisão (NAGAMINE, 2004, p. 36). Assim, ao se dimensionar as particularidades acerca desse fenômeno, é importante destacar que essa recriação dialoga primeiramente com a obra dialogizada, mas também mantém um forte dialogismo com a sociedade e com o momento histórico no qual está situada. Sobre o fenômeno da adaptação, recorremos também às teorizações de Randal Johnson (2003). No artigo intitulado Literatura e Cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas, o autor afirma que o critério de fidelidade adotado para 38 analisar a obra adaptada do texto literário revela-se de modo irrelevante. O crítico propõe uma abordagem mais complexa caracterizada pela intertextualidade devido à possibilidade de múltiplas formas de inter-relacionar os meios e os suportes nos quais a ficção é oferecida. A obra audiovisual, como enfatiza o estudioso, pode recorrer a alusões ou a referências literárias, ainda que de modo breve. “Referências ou alusões fílmicas à literatura podem ser orais, visuais, ou até escritas (por exemplo, um plano em que a câmera focaliza um livro ou uma página de livro)” (JOHNSON, 2003, p. 38). Ao se referir ao emprego do critério de fidelidade entre as obras, o autor esclarece que essa hierarquia normativa entre obra original e derivada está calcada na concepção kantiana acerca da inviolabilidade da obra literária e da especificidade estética. “Essa atitude resulta em julgamentos superficiais que frequentemente valorizam a obra literária sobre a adaptação e o mais das vezes sem uma reflexão mais profunda” (JOHNSON, 2003, p. 40). Na sequência, o autor aponta como forma produtiva de se considerar essa relação a partir do dialogismo intertextual: “a insistência na fidelidade perde sentido. Uma obra artística, seja ela romance, conto, poema, filme, escultura ou pintura, tem de ser julgada em relação aos valores do campo no qual se insere, e não em relação aos valores de outro campo” (JOHNSON, 2003, p. 43). Explicitando o ponto de vista do crítico, percebe-se que ele concebe o fenômeno da adaptação como uma relação dialogizada situada em campos distintos. Assim, para o autor, quando se insiste no critério fidelidade, normalmente, ignora-se o fato de que a literatura e o audiovisual constituírem campos culturais distintos, mesmo que mantenham relações imanentes. Dessa forma, a obra audiovisual responde a questões suscitadas primeiramente no seu campo e depois pela sociedade e outros campos com que pode dialogar dadas as conexões mantidas com novos suportes. Também é importante trazer à baila as pressuposições de Ismail Xavier (2003). No artigo intitulado Do texto ao filme: a trama, a cena e a constituição do olhar no cinema, o autor também privilegia a relação dialogizada entre livros e filmes. Para o autor, a adaptação deve dialogar com o texto de origem, mas também com o seu contexto, até mesmo atualizando a pauta do livro. Para o crítico, a adaptação pode ser discutida levando em consideração múltiplos aspectos. O crítico 39 também explica que o critério de fidelidade deixa de ser o critério maior de juízo crítico quando se propõe a apreciação da obra como nova experiência, de modo que sua forma e seus sentidos sejam analisados e julgados levando em consideração especificidades do seu próprio campo. Assim, ao afirmar o lapso temporal que separa a obra audiovisual da obra literária, Xavier (2003) insiste em afirmar que o escritor e roteirista não apresentam a mesma sensibilidade, tampouco a mesma perspectiva. Dessa forma, é de se “esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas como seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com valores neles expressos” (XAVIER, 2003, p. 61). Do mesmo modo, converge o ponto de vista de Hélio Guimarães (2003). Ao se referir às especificidades da adaptação, o autor a encara como um processo cultural complexo relacionado ao aspecto fragmentário da produção cultural contemporânea. Apesar de não se tratar de um fenômeno recente, para o crítico, a adaptação foi vista como uma ameaça para a literatura. Em se tratando dessa relação aplicada à televisão, as discussões se amplificaram e acabaram levando ao rebaixamento da obra adaptada, uma vez que se a adaptação literária para o cinema tende a ser vista de forma mais amistosa, todavia, quando feita para o suporte televisivo, alimentou ainda mais o ponto de vista crítico calcado em visões pejorativas sobre esse meio. Dessa forma, como salienta Guimarães (2003, p. 95), “a relação quase sempre conflituosa entre TV e literatura pode ser entendida como sintoma de outros tipos de relações sociais”. O crítico concebe a adaptação como um processo dinâmico e uma forma de recriação: A procura de alternativas ao discurso da fidelidade abre espaço para se pensar nas adaptações como um processo dinâmico em que as distorções, os deslocamentos, as descontinuidades e os desvios entre os textos não são apenas uma repetição das relações de hierarquia e poder estabelecidas entre a instituição literatura e a instituição TV, mas em si mesmo uma recriação dessas relações de poder, prestígio e influência (GUIMARÃES, 2003, p. 95). O ponto de vista do estudioso concebe a adaptação como um fenômeno cultural complexo responsável por envolver processos dinâmicos, que estão associados à prática da transferência e da interpretação de valores históricos e 40 culturais dessa sociedade. É como se o discurso teleficcional amplificado se atualizasse e se constituísse como um fator de humanização e de socialização ao revelar uma notória função acidental do gênero, uma vez que sua função inicial está relacionada à esfera do entretenimento, mas, em se tratando de um país com forte carga de iletrismo, o gênero se converte num espaço institucionalizado para a socialização, além de se relacionar à alimentação do imaginário coletivo. Sobre adaptação, cabe ressaltar, ainda, as seguintes considerações de Guimarães (2003, p. 110-111): As adaptações continuam a nos colocar diante de problemas irresolvidos da cultura contemporânea, em que as tradicionais hierarquizações entre as expressões artísticas e culturais são constantemente questionadas e em que os limites entre a alta e baixa cultura, cultura de massa e cultura erudita, originalmente e cópia são constantemente redefinidos. As adaptações, portanto, estabelecem uma zona de conflito entre formas culturais diferentes, muitas vezes produzidas em tempos diferentes e voltadas para públicos também muito diferentes entre si e bastante heterogêneos. Justamente por estarem nesse terreno conflituoso é que as adaptações colocam questões de interesse, tais como a apropriação e ressignificação de produtos culturais do passado pelos meios de comunicação de massa, projetando-os para diferentes públicos e atribuindo- lhes novas significações e sentidos. Guimarães (2003) deixa entrever que o fenômeno da adaptação corresponde a uma prática cultural complexa. Além dessa relação de contar histórias em suportes diferentes, o audiovisual, em especial a teleficção, apresenta um caráter acidental no Brasil ligado a um certo pedagogismo. Por isso, ao incorporar em seu enredo os dilemas da sociedade brasileira, a telenovela passa a fornecer um amplo quadro de referências por meio de seu discurso, que são incorporadas e ressemantizadas pelos sujeitos devido às conexões cotidianas que o público mantém com o gênero e também devido à possibilidade que o meio tem em representar os dilemas da sociedade, mostrando que o formato teleficcional foi alçado no Brasil ao posto de uma verdadeira narrativa sobre a família devido sua peculiaridade de dar visibilidade a certos assuntos, temas e comportamentos capazes de definir uma certa pauta reguladora das intersecções entre a vida pública e a vida privada da sociedade. 41 1.4 Uma breve história da adaptação no suporte televisivo Enquanto gênero híbrido onipresente no cotidiano do brasileiro, a telenovela ganhou reconhecimento da crítica especializada como manifestação artística e cultural. Apesar de ter ganhado espaço acadêmico recentemente, esse gênero vem adquirindo visibilidade no meio acadêmico. As relações entre literatura e teleficção podem ser observadas desde a gênese da telenovela no Brasil. Embora não fosse o único gênero teleficcional a recorrer a essa estratégia, “o folhetim eletrônico repaginado” foi alvo de profundas críticas, já que o ponto de vista dominante na época lhe atribuía o status de uma produção desqualificada, alienante e evasiva. Dessa forma, recorrer a uma expressão artística já consagrada era uma tentativa de tentar legitimar a telenovela como uma expressão cultural. Superada a fase em que esse vínculo era encarado sob uma perspectiva empobrecedora, assentada em critérios hierárquicos, os quais concebiam a obra adaptada como sinônimo de desqualificação, dadas as configurações descontínuas do cenário contemporâneo, emerge a necessidade de uma postura mais flexível, aberta e desprovida de um estatuto aparentemente hierárquico para se analisar a produção cultural mais recente. Assim, essa relação entre o audiovisual e o literário se notabiliza por um laço profícuo, que recentemente adentrou o meio acadêmico sob novas perspectivas teóricas, que concernem esse vínculo como uma relação complexa, além de eliminar o arraigado binarismo constitutivo das hierarquizações comumente empregadas para se referir a tais relações. Nesse sentido, as hierarquizações tradicionais entre as expressões empregadas para se enquadrar as manifestações como alta cultura e baixa cultura, cultura de massa e cultura erudita foram redesenhadas comprovando o diagnóstico proposto por Walty (2011) de que a contemporaneidade exige novos parâmetros e o alijamento de preconceitos arraigados na forma de conceber as relações travadas entre a expressão literária e outros meios. Na fase incipiente da televisão, que se estende até 1968, as telenovelas eram apenas mais um produto da grade televisiva e vistas, até mesmo pelos atores, como um gênero desqualificado, já que, na época, os teleteatros, por se tratarem de transmissões televisionadas de espetáculos teatrais, eram vistos como gênero mais ligado à esfera artística. 42 Sobre a posição da ficção nessa fase, vale ressaltar ainda que, mesmo contando com a tentativa de exibição de adaptações de obras literárias, a televisão ainda não contava com um produto específico. Assim, ocupando papel notório na tevê brasileira, o Teleteatro TV de Vanguarda, que permaneceu no ar durante quinze anos, encenou peças de origem estrangeira e nacional, bem como peças clássicas e contemporâneas. Como características de produção, pode-se falar que empregava recursos oriundos do rádio e, em termos visuais, recorria-se também à linguagem cinematográfica. Nas palavras do crítico de mídia Artur da Távola (1996, p. 63): “Nesse período de 1952 a 1967, o TV de Vanguarda levou ao ar perto de quatrocentos espetáculos. O programa era quinzenal, tempo necessário para sua organização e ensaios a fim de ser preparado para ser exibido no formato ao vivo. A estudiosa Sandra Reimão (2004) apresenta uma síntese histórica acerca das telenovelas adaptadas a partir de obras literárias. Para a autora, “a literatura ficcional nacional e, em especial, os romances, têm frequentemente, fornecido personagens, tramas e enredos a este formato televisivo” (REIMÃO, 2004, p. 18). A partir da constatação da autora, pode-se concluir que a inspiração literária esteve atrelada ao gênero desde a sua inserção no Brasil, mostrando que a relação entre livro e televisão vai mais além do que o ato de contar histórias comum aos dois suportes. Inicialmente, Reimão (2004) apresenta uma síntese histórica das produções televisivas criadas a partir de obras literárias. O trabalho da autora revela a preponderância de telenovelas criadas a partir do diálogo com a narrativa folhetinesca, particularidade que pode ser explicada pela semelhança estrutural que a telenovela assimilou da narrativa literária veiculada em formato parcelado no rodapé dos jornais. Em seu estudo, a autora evidencia que essa particularidade se estende até a década de 1970 e se notabiliza pela concepção crítica em conceber a supremacia da obra literária em relação à televisão. Para a autora, esse olhar de supremacia do livro em detrimento da obra televisiva “serviu tanto para fornecer temáticas e modelos narrativos quanto para emprestar prestígio cultural às telenovelas no conjunto da programação da tv” (REIMÃO, 2004, p. 29). As telenovelas exibidas até 1963 não tinham o formato diário. Eram produções esparsas exibidas cerca de duas ou três vezes por semana em capítulos 43 com duração de 20 minutos e exibidas em formato ao vivo, já que não existia o videotape 3 . Em seu estudo, a autora aponta entre os anos de 1951 e 1963, portanto englobando as telenovelas não-diárias, 164 produções. Desse número, 95 se enquadram como adaptações literárias, sendo que dezesseis eram adaptações de romances de autores brasileiros. Conforme os estudos empreendidos por Reimão (2004), as obras literárias adaptadas pelas emissoras paulistas nesse período foram: Senhora e Diva, adaptadas pela TV Paulista, Canal 05; Helena, Casa de Pensão, adaptadas em 1952; em 1953, Iaiá Garcia e A Muralha (obra que contou com duas versões: uma da Record, em 1954, e outra da TV Tupi em 1958); em 1958, foram adaptadas Éramos Seis (Record, 1958 e TV Tupi, 1959) e O Guarani; em 1961 foram adaptadas: Gabriela, da obra de Jorge Amado, Helena, Olhai os Lírios no Campo e Clarissa (TV Tupi); em 1962, A Muralha contou com uma nova adaptação agora pela TV Cultura, e Senhora também teve mais uma adaptação (em 1963 pela Tupi). No mesmo ano, a TV Paulista adaptou O Tronco de Ipê, de José de Alencar. A partir dessa relação intrínseca entre audiovisual e literatura, percebe-se uma dependência do novo suporte e do novo gênero em relação aos meios anteriores. Com isso, ao se valer da adaptação de obras literárias, essa peculiaridade revela que o gênero estava em busca de uma forma de se legitimar enquanto uma produção artística, uma vez que “o livro, este objeto de existência multissecular, passa a conviver, especialmente a partir do século XX, com outros meios de comunicação de massa e, entre eles, com a televisão” (REIMÃO, 2004, p. 14). Avançando na teorização sobre o fenômeno da adaptação, Reimão (2004) também trata desse fenômeno a partir do momento em que a telenovela passou a ser exibida diariamente. Tomando como recorte os anos compreendidos entre 1963 e 1969, a autora elencou cerca de 167 produções. Como atesta a autora, desse conjunto apenas seis foram adaptadas de romances nacionais: 3 A autora explica que as telenovelas eram produzidas nessa fase inicial por profissionais oriundos do rádio. Para Reimão (2004), esse aspecto foi um dos fatores que contribuiu para a concepção desqualificada com a qual o gênero foi visto, restando ao teleteatro o status de produção culta e prestigiada tanto pelo público quanto pelos autores e atores. 44 Sonhos de Amor (adaptação de O Tronco do Ipê, de José de Alencar), Record, 1964; O Moço Loiro, de Joaquim Manoel de Macedo, Cultura, 1965; As Minas de Prata, de José de Alencar, Excelsior, 1966; Éramos Seis, de M. J. Dupré, Tupi, 1967; O Tempo e O Vento, de Érico Veríssimo, Tupi, 1967 e A Muralha, de D. S. de Queiroz, Excelsior, 1968. Em 1965, a TV Globo transmitiu em telenovela em versão de O Ébrio, que já havia sido sucesso em música (disco), em cinema (Cinédia, 1946), em versões teatrais e em livro; fica difícil saber qual dessas linguagens serviu de base para a adaptação televisiva (REIMÃO, 2004, p. 22). O estudo de Sandra Reimão (2004) revela também que a telenovela se afirmou como produto comercial no período compreendido entre os anos 1980 e 1990. Ela adquiriu linguagem própria e passou a representar um “ponto de prestígio da tv brasileira” (REIMÃO, 2004, p. 29). Com efeito, é preciso também destacar que, a partir da década de 1980, observa-se uma diminuição do número de telenovelas adaptadas de obras literárias. Situação bastante diversa ocorre com o gênero minissérie, que apresenta formato fechado e tem uma duração menor que a telenovela. Assim, dadas as relações diretas que esse gênero mantém com a literatura, além de sua produção elaborada com parcelas de refinamento estético mais apurado que a maioria das telenovelas, a minissérie passou a ser vista de forma menos preconceituosa pelo meio acadêmico do que a telenovela. 45 2 TELENOVELA: UMA NARRADORA NA ERA DA MOBILIDADE Para a estudiosa Ana Maria Balogh (2002, p. 24), “a existência da televisão está ligada a um complexo processo de evolução e entrelaçamento entre os campos da tecnologia, das comunicações e das artes”. A partir do ponto de vista da autora, a telenovela emerge na cultura nacional como gênero ficcional mais promissor da televisão. Respondendo por ser a grande promotora de ficção na contemporaneidade, é lícito lhe atribuir a denominação de “folhetim eletrônico” devido sua peculiaridade de se estruturar no formato seriado e por constituir-se como um gênero híbrido herdeiro do vasto conjunto de narrativas. Ao tratar das particularidades das narrativas veiculadas pela televisão, a pesquisadora Maria Aparecida Baccega (2003) explica que esse meio de comunicação apresenta-se como uma “pessoa”: É esse seu jeito de "contar histórias" que faz com que ela [ a televisão] atue como se fosse uma "pessoa" de nossas relações. Ela sempre narra "casos" que aconteceram aqui e acolá, construindo uma história sem fim (como as Mil e Uma Noites), caracterizando uma conversação em andamento dentro de uma comunidade local, nacional ou internacional onde as últimas notícias, dramas, esportes e modas são nad