UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de Artes – Campus São Paulo MESTRADO PROFISSIONAL EM ARTES - PROF-ARTES ANA LARA HENRIQUES DE SOUSA ARTE NO CORPO DA ESCOLA PÚBLICA: um exercício de “esperançar” atravessado pela pandemia SÃO PAULO 2023 ANA LARA HENRIQUES DE SOUSA ARTE NO CORPO DA ESCOLA PÚBLICA: um exercício de “esperançar” atravessado pela pandemia Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Profissional em Artes (PROF- ARTES), com a área de concentração em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes. Linha de Pesquisa: Processos de ensino, aprendizagem e criação em Artes. Orientadora: Profa. Dra. Lilian Freitas Vilela SÃO PAULO 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S725a Sousa, Ana Lara Henriques de, 1991- Arte no corpo da escola pública : um exercício de “esperançar” atravessado pela pandemia / Ana Lara Henriques de Sousa. -- São Paulo, 2023. 130 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lilian Freitas Vilela. Dissertação (Mestrado Profissional em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Artes - Estudo e ensino. 2. Educação básica. 3. Arte e dança. 4. Artes cênicas. I. Vilela, Lilian Freitas. II.Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 707.1 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 ANA LARA HENRIQUES DE SOUSA ARTE NO CORPO DA ESCOLA PÚBLICA: um exercício de “esperançar” atravessado pela pandemia Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Profissional em Artes (PROF- ARTES) do Instituto de Artes da Unesp, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes. Dissertação aprovada em: 20/04/2023 Banca Examinadora _________________________________________ Prof.ª Dra. Lilian Freitas Vilela PROF-ARTES/IA UNESP - Orientadora _________________________________________ Prof.ª Dra. Carolina Romano de Andrade PROF-ARTES/IA UNESP ___________________________________________ Prof.ª Dra. Josiane Franken Corrêa Universidade Federal de Pelotas mailto:lilian.f.vilela@unesp.br mailto:josianefranken@gmail.com Às Mulheres, Professoras, Mães e Marias, que possuem a estranha mania de ter fé na vida AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente a todas as pessoas que participaram direta ou indiretamente deste trabalho, a começar pela orientação atenciosa da Prof.ª Lilian que sempre acolheu meus momentos de incerteza, enalteceu os momentos de descoberta da pesquisa e celebrou os momentos de conquista. Agradeço às professoras Carol Romano e Josiane Corrêa pelo olhar generoso na leitura do trabalho com contribuições que potencializaram a pesquisa. Agradeço aos professores do Mestrado Profissional Acadêmico por terem proporcionado novas perspectivas de estudo e formação a nós professores que atuamos na rede básica de ensino. Agradeço aos colegas de turma do PROF-ARTES que, mesmo a distância, foram suporte e apoio em momentos de desesperança, foram inspiração para criar outras formas de ensinar Arte e dividiram os desafios do “chão de escola”. Agradeço a integrantes do grupo de pesquisa GEMA pelas trocas de experiências, partilhas sempre afetuosas e instigantes: Ana Claudia, Bruno, Gabriel, Dafne, Clara, Carol, Julia, Giovanna e Renata. Agradeço a toda a gestão da EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estavam (Adriana, Arnaldo, Carla, Maíza, Ângela, Edil, Nei, Sônia e Renata) e a todos que contribuíram para que este projeto de pesquisa fosse realizado na escola. Agradeço a todos os professores que me apoiaram e estiveram presentes. Agradeço às crianças que participaram do projeto na escola, agradeço a todos os estudantes da EMEF, o apoio e confiança de seus familiares. Agradeço a toda minha família por me apoiarem em todas minhas escolhas e compreenderem minhas ausências: Ângela, Francisco, Luís Guilherme, Karla, Manuela e Maria Clara. Agradeço às amigas e aos amigos que foram alicerce nessa caminhada: Tamara, Rayssa, Beatriz, Vanessa, Flora, Talyssa, Tatiana, Felipe, Renan, Alex e Rafa. Obrigada por compartilharem comigo tantos momentos maravilhosos. RESUMO Esta pesquisa originou-se de um projeto de iniciação artística nas linguagens de dança e teatro, denominado Arte no Corpo, iniciado nos primeiros meses do ano de 2020, na EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam no CEU Parque Anhanguera, na região do Morro Doce - Zona Oeste de São Paulo. Após o fechamento da escola em decorrência das medidas sanitárias dadas pelo controle da pandemia de Covid-19, o projeto sofreu diversas transformações e, como forma de aprofundar estudos teóricos a respeito do ensino de artes do corpo na escola pública e os atravessamentos da pandemia, o projeto Arte no Corpo se estabeleceu como uma pesquisa acadêmica. No ano de 2022 o projeto foi organizado através da metodologia qualitativa no modelo de uma pesquisa-ação com proposição de novos olhares e ações que pudessem contribuir para um retorno presencial afetivo na escola. A pesquisa foi realizada com uma turma de, aproximadamente, trinta e duas crianças, do terceiro ano do Ensino Fundamental, com idades entre oito e nove anos. O desenvolvimento do projeto consistiu na realização de práticas pedagógicas envolvendo as artes do corpo distribuídas em quatro momentos de experimentação artística denominadas de Estação Sentir, Mover, Brincar e Criar. O trabalho compartilha desafios, mudanças e experiências vividas ao longo do desenvolvimento do projeto atravessado pelos planejamentos e ações interrompidas no ano de 2020 e 2021 e sua realização em 2022. Com os dados coletados através de registros das Estações, fotografias, desenhos e falas das crianças, a pesquisa propõe uma leitura interpretativa sobre as reverberações de sua existência na vida escolar das crianças participantes. Como resultado nota-se a construção de autonomia criativa das crianças durante os encontros, o crescimento de vínculo e pertencimento ao espaço escolar e nas relações de grupo, aumento das possibilidades de movimentação e exploração do corpo e dos espaços da escola e transformações significativas na minha atuação docente, como a importância da escuta dos educandos e da valorização de suas expressões artísticas no projeto Arte no Corpo. Palavras-chave: Arte no Corpo; Dança; Teatro; Educação Básica; Ciclo de Alfabetização. ABSTRACT This research originated from an arts initiation project focused on dance and theater, named Arte no Corpo, that began in the early months of 2020 on the EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam at CEU Parque Anhanguera in the region of Morro Doce, on the west zone of São Paulo. After the school closed due to sanitary measures to control the Covid-19 pandemic, the project had to overgo several adjustments. In order to enhance theoretical studies regarding body arts teaching in public schools and the pandemic impacts, the project Arte no Corpo established itself as academic research. In 2022, the project was organized through qualitative methodology, using action research with the premise of new viewpoints and actions that could contribute to an affectionate return to face-to-face classes. The study developed with one class, of about 32 children, in the third year of Ensino Fundamental, ages between 8 and 9 years old. This project developed through pedagogical practices involving the body arts distributed in four experimental moments - Feeling, Moving, Playing, and Creating Station. This work shares the challenges, the changes, and the experiences lived throughout the project development crossed by the interruption of its planning and actions in 2020 -21 and its accomplishment in 2022. With the data collected through the Stations reports, photography, drawing, and quotes from the children, the study proposes an interpretative reading about the impacts of its existence on the school life of the participating children. As a result, it’s noted the creative autonomy of the kids during the project meetings, the growing engagement and belonging to the school and group relations, the increase of possibilities of movement and explorations of their body and school spaces, as well as significant transformations in my teaching, like the crucial need to listen to the students and to value their artistic expressions on the project Arte no Corpo. Keywords: Body Arts; Dance; Theater; Basic Education; Literacy Cycle. LISTA DE IMAGENS Figura 1 – Morro Doce – Km 23 da Rodovia Anhanguera ...................................................... 23 Figura 2 – CEU Parque Anhanguera ........................................................................................ 24 Figura 3 – Estrutura física do CEU .......................................................................................... 25 Figura 4 – Porta de entrada do Teatro do CEU Parque Anhanguera ........................................ 26 Figura 5 – Cartaz ...................................................................................................................... 40 Figura 6 – Arthur e Luiza em atividades de arte remotas ......................................................... 46 Figura 7 – Nicole e sua boneca de papel .................................................................................. 49 Figura 8 – Desenho de crianças pulando corda ........................................................................ 50 Figura 9 – Desenho da Sophia .................................................................................................. 50 Figura 10 – Desenho de Manuela ............................................................................................. 50 Figura 11 – Mapa Mental 1 das Estações do projeto Arte no Corpo........................................ 57 Figura 12 – Mapa Mental 2 das Estações do projeto Arte no Corpo........................................ 58 Figura 13 – Estação Sentir: crianças com bolinhas .................................................................. 62 Figura 14 – Estação Sentir: crianças com massinhas ............................................................... 63 Figura 15 – Estação Sentir: crianças brincando com massinhas .............................................. 63 Figura 16 – Estação Sentir: expressões faciais ......................................................................... 65 Figura 17 – Expressão facial: Maria Luíza ............................................................................... 65 Figura 18 – Estação Sentir: Bolinhas nos pés .......................................................................... 66 Figura 19 – Estação Sentir: Caminhar pelo espaço usando diferentes apoios dos pés ............. 67 Figura 20 – Estação Sentir: Momento de exploração de movimento pelo espaço ................... 67 Figura 21 – Estação Sentir: Jogo do Espelho em duplas .......................................................... 68 Figura 22 – Estação Sentir: Moldando o corpo do outro .......................................................... 69 Figura 23 – Currículo da Cidade - Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento .............. 69 Figura 24 – Crianças se deslocando de diferentes maneiras pela escola .................................. 70 Figura 25 – Estação Mover: Apoios e suportes para o deslocamento ...................................... 71 Figura 26 – Maria Luiza em destaque e crianças observando .................................................. 73 Figura 27 – Sala de aula com espaço livre ao centro................................................................ 76 Figura 28 – Crianças na brincadeira “Coelhinho sai da toca” .................................................. 77 Figura 29 – Crianças durante a brincadeira da cadeira ............................................................. 77 Figura 30 – Dança com projeção de imagens e desenhos corporais ........................................ 79 Figura 31 – Crianças na janela ................................................................................................. 80 Figura 32 – Encontro do dia 19 de agosto ................................................................................ 81 Figura 33 – Brincadeira Yapo na quadra .................................................................................. 81 Figura 34 – Danças no corredor - deslocamento até banheiro e o bebedouro .......................... 83 Figura 35 – Nicole e João desenhando na janela ...................................................................... 84 Figura 36 – Dia dezesseis de setembro ..................................................................................... 85 Figura 37 – Brincadeira Vampiro Vampirão ............................................................................ 86 Figura 38 – Meninos em destaque na brincadeira do Vampiro Vampirão ............................... 86 Figura 39 – Meninas dentro e fora da brincadeira .................................................................... 87 Figura 40 – Estátuas que geraram imagens corporais .............................................................. 87 Figura 41 – Brincadeira Cabra-Cega Musical .......................................................................... 88 Figura 42 – Desenhos com giz de lousa no espaço externo ..................................................... 89 Figura 43 – Escolha do material para a Mostra Cultural .......................................................... 90 Figura 44 – Espaço xadrez na Mostra Cultural ........................................................................ 92 Figura 45 – Painel do projeto Arte no Corpo na Mostra Cultural. ........................................... 93 Figura 46 – Desenhos feitos no ano de 2021 - turmas do 2° ano ............................................. 93 Figura 47 – Outros estudantes interagindo com os instrumentos musicais .............................. 94 Figura 48 – Estudantes e familiares jogando xadrez ................................................................ 94 Figura 49 - Apresentação dos Projetos do Território do Saber para as famílias ...................... 95 Figura 50 – Palavras escritas no painel interativo .................................................................... 96 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BEC Bloco Esportivo Cultural BNCC Base Nacional Comum Curricular CEI Centro de Educação Infantil CEU Centro Educacional Unificado DRE PJ Diretoria de Ensino Pirituba-Jaraguá EJA Educação de Jovens e Adultos EMEF Escola Municipal de Ensino Fundamental EMEI Escola Municipal de Ensino Infantil EOL Escola Online ETEC Escola Técnica Estadual HA Hora-Atividade JBD Jornada Básica Docente LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional OMS Organização Mundial da Saúde PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PEA Projeto Especial de Ação POT Programa Operação Trabalho PPP Projeto Político Pedagógico PROF-ARTES Mestrado Profissional em Artes SGP Sistema de Gestão Pedagógica SME Secretaria Municipal de Ensino TCA Trabalho Colaborativo de Autoria TCC Trabalho de Conclusão de Curso TIC Tecnologias de Informação e Comunicação TNT Tecido não tecido SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 13 1° CAPÍTULO: ESPAÇOS DE ESPERANÇAR ................................................................. 23 1.1 O Morro Doce, o CEU e a EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam ...................... 23 1.2 Ensino Integral e o Território do Saber ..................................................................... 29 1.3 Ensino de dança na escola ............................................................................................ 32 1.4 Projeto Arte no Corpo na pandemia (2020/2021) ...................................................... 40 1.4.1 Os tempos atravessados pela pandemia ................................................................... 41 1.4.2 As experiências atravessadas pela pandemia .......................................................... 43 2° CAPÍTULO: TEMPOS DE ESPERANÇAR .................................................................. 53 2.1 Projeto Arte no Corpo em 2022 .................................................................................... 53 2.1.1 O Planejamento da Pesquisa-Ação .......................................................................... 53 2.2 Dançar entre Estações: Sentir, Mover, Criar e Dançar ............................................ 59 2.3 Mudanças nas Estações ................................................................................................ 73 3° CAPÍTULO: AÇÕES DE ESPERANÇAR ..................................................................... 76 3.1 Registros do Projeto Arte no Corpo 2022 .................................................................... 76 3.2 Mostra Cultural - Partilhas ......................................................................................... 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 97 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 101 APÊNDICE A - TCLE ......................................................................................................... 104 ANEXO A – VÍDEOS DO PROJETO ................................................................................ 105 ANEXO B - DESENHOS FEITOS PELAS CRIANÇAS AO LONGO DO PROJETO 106 ANEXO C - PARECER DA PLATAFORMA BRASIL ................................................... 108 ANEXO D - TCLE ASSINADOS ........................................................................................ 111 13 INTRODUÇÃO A trajetória desta pesquisa é permeada pelos caminhos e escolhas que tracei ao longo de minha vida, por isso, para começar, me apresento e convido o(a) leitor(a) a conhecer meus interesses pelas áreas de dança e teatro desde os primeiros contatos com a arte até a profissionalização. A dança sempre esteve presente em minha trajetória. Aos cinco anos de idade, tive meu primeiro contato com a dança e foi nas salas de aula e ensaio que conheci o ballet clássico, o jazz e, mais tarde, a dança contemporânea. Fui uma criança que brincava de dançar, dançava brincando e durante essa brincadeira dançada eu podia me expressar e criar, decorando uma sequência de passos, criando coreografias, selecionando um repertório musical e produzindo apresentações para minha família e plateia de amigos, com figurinos, cenários e iluminação. Eu fui uma criança que melhor se expressava através dos movimentos e gestos do que pelas palavras, portanto, a dança abriu um caminho de descobertas e de possibilidades do meu corpo. A minha iniciação artística foi, majoritariamente, em ambientes de educação informal (em academias de dança e aulas de piano). Na educação formal, estudei grande parte em escolas públicas (escola municipal, estadual e ETEC1) e lembro de apenas ter aulas de arte no Ensino Médio. Vivenciar a arte em diferentes ambientes e contextos proporcionou aprendizados significativos e diversos. As experiências de formação livre nas academias de dança despertaram a possibilidade de profissionalização da arte em minha vida e em como eu poderia aprofundar estudos e práticas para seguir a carreira artística e docente. A carreira docente não era uma possibilidade tão clara nesse período, porém havia em mim uma admiração e referência nas mulheres professoras da minha família, minha mãe, Ângela Maria, professora de língua portuguesa que se aposentou dando aula para o Ensino de Jovens e Adultos (EJA) em uma escola pública estadual e minha tia, Maria Madalena, que me alfabetizou na escola estadual em que lecionava. Durante a adolescência pratiquei a dança com a intenção de me profissionalizar enquanto bailarina, portanto, ensaiava durante longos períodos e fazia aulas de ballet, jazz e dança contemporânea. Na escola em que estudava dança, na cidade de Mogi das Cruzes, participamos de diversos festivais e competições, principalmente pelo interior de São Paulo e 1 A Escola Técnica Estadual (ETEC) faz parte do Centro Paula Souza “[...] é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação. Presente em 365 municípios, a instituição administra 224 Escolas Técnicas (Etecs) e 75 Faculdades de Tecnologia (Fatecs) estaduais, com mais de 323 mil alunos em cursos técnicos de nível médio e superiores tecnológicos.” Disponível em: https://www.cps.sp.gov.br/sobre-o-centro-paula-souza/. Acesso em: 18/03/2023. https://www.cps.sp.gov.br/sobre-o-centro-paula-souza/ 14 outros estados, como Rio de Janeiro e Santa Catarina (Festival de Dança de Joinville2). Ao final da adolescência e início da vida adulta tive muitas dúvidas com a carreira profissional em dança, o estudo para vestibulares e possibilidades de cursar uma universidade. Formada no Ensino Médio, porém decidindo os próximos passos, tive vontade de vivenciar a linguagem do teatro, cursei algumas oficinas livres, depois um curso técnico profissionalizante de teatro (no Célia Helena Centro de Artes e Educação - entre os anos de 2010 e 2012). Após a experiência do curso técnico em teatro, decidi continuar na área artística ampliando interesses e possibilidades de atuação. Com maior proximidade da linguagem teatral cheguei ao curso de Licenciatura em Arte-Teatro, curso que realizei entre os anos de 2012 e 2016, no Instituto de Artes da UNESP – Câmpus São Paulo. Lá, pude pesquisar a relação entre dança e teatro, e descobrir a arte-educação. Em 2012, no início da graduação, soube da existência do grupo IA Dança - Núcleo ContemporânIA3 que atuava com pesquisa em dança contemporânea e processos criativos para bailarinos-intérpretes. Comecei a participar desse projeto de extensão e foi um espaço de dança, dentro da universidade pública, que trouxe novas reflexões para minha relação com a linguagem da dança e a pesquisa inserida em um âmbito acadêmico. Na constante busca de entrelaçar as artes da cena, juntamente com a graduação, cursei técnico em Dança na ETEC de Artes (Escola Técnica Estadual localizada no Parque da Juventude, zona norte de São Paulo) aprofundando estudos teóricos e práticos relacionados à dança, diferentemente da formação livre que tive ao longo de muitos anos, em uma academia de dança. Na ETEC estive durante os anos 2013 e 2014, me formando no mês de junho com a mostra de pesquisa em dança realizada pela minha turma. No segundo semestre de 2014 fui estudar na Universidade de Évora em Portugal durante seis meses de intercâmbio pela UNESP. Lá cursei disciplinas como: Corpo e Movimento Cênico, Teatro Educação e Comunidade, Treino Corporal, Voz e Antropologia Teatral. 2 O Festival de Dança de Joinville é um conjunto de eventos de dança que acontecem simultaneamente, na cidade de Joinville/SC, desde 1983, evento este que transformou uma cidade industrial, em cidade da dança, tornando o maior evento de dança do mundo e responsável pela implantação da Escola do Teatro Bolshoi/Brasil naquele município catarinense. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/3684/. Acesso em: 25/02/2023. 3 O grupo IA Dança - Núcleo ContemporânIA é um grupo de dança formado no ano de 2005 pela Prof.ª Dr.ª Kathya Maria Ayres de Godoy. O grupo também faz parte do Grupo de Pesquisa Dança Estética e Educação (GPDEE) coordenado pela Prof.ª Kathya Godoy. https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/3684/ mailto:kathya.godoy@unesp.br mailto:kathya.godoy@unesp.br 15 A Licenciatura em Arte-Teatro do Instituto de Artes me apresentou, de forma mais profunda, à docência em artes e como poderia desenvolver minhas áreas de interesse em diferentes contextos, como na educação formal ou informal. Em minha formação acadêmica, pesquisei e conduzi laboratórios de expressão corporal para o grupo de teatro chamado Trupe Rosa Vermelha, formado por mim e outros colegas de turma de Licenciatura em Arte-Teatro e uma estudante de música do Instituto de Artes, durante três anos dentro da universidade (entre 2014 e 2016). O grupo se reuniu, a princípio, para montagem de uma apresentação que era um exercício prático da disciplina de Fundamentos da Encenação, ministrada pelo professor José Manoel. Nos anos de 2014 e 2015 nos estabelecemos enquanto uma trupe, ensaiamos e montamos algumas apresentações de teatro de rua, pesquisamos a cultura popular, brincadeiras de rua, contação de histórias e literatura de cordel. Escrevemos alguns editais de teatro e apresentamos na Virada Cultural de Mogi das Cruzes. A Trupe foi o espaço em que pude realizar a pesquisa de movimento, que posteriormente se tornou meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), orientado pela Prof.ª Dr.ª Lilian Freitas Vilela, no ano de 2016. Nesse trabalho, busquei relacionar técnicas e métodos de investigação para consciência corporal e estado de criação para o ator de teatro de rua. A partir das experiências em dança vindas de diferentes fontes e referências, criei uma sequência de laboratórios corporais que tinham como objetivo desenvolver uma escuta corporal e ampliar possibilidades expressivas dos atores e atrizes do grupo. Os laboratórios de pesquisa corporal na Trupe Rosa Vermelha foram documentados e analisados em meu trabalho de conclusão de curso, concluído no segundo semestre de 2016. A Trupe enquanto grupo encerrou sua pesquisa no ano de 2017, tanto eu quanto outros integrantes iniciaram a carreira docente na Prefeitura Municipal de São Paulo e no momento não foi possível conciliar as atividades. Todos esses caminhos, escolhas e vivências estão inscritos em meu corpo, em minha memória e compõem minha atuação como arte-educadora. No ano de 2017, iniciei minha carreira como professora de Artes na Prefeitura Municipal de São Paulo4 e busquei aproximar minhas experiências artísticas na dança e no teatro para a construção de uma prática pedagógica que estivesse alinhada com minha formação, construída em uma trajetória de diálogo, transformação e escuta. Assim como Paulo Freire chama o professor de “ensinante”, me coloco no lugar de “ensinante” das artes, pois a professora não nega o constante estado de aprendizagem: 4 O acesso ao cargo de professora na rede pública municipal de São Paulo se dá por meio de concurso. No ano de 2017 eu já havia sido aprovada no concurso (realizado no ano de 2016), porém não tinha sido chamada. Iniciei como contratada em junho de 2017 e em abril de 2018 saiu minha nomeação no Diário Oficial de São Paulo. 16 [...] reconstruindo os caminhos de sua curiosidade – razão por que seu corpo consciente, sensível, emocionado, se abre às adivinhações dos alunos, à sua ingenuidade e à sua criatividade – o ensinante que assim atua tem, no seu ensinar, um momento rico de seu aprender. (FREIRE, 2001, p. 1) Compartilho desse olhar sensível com o ofício da profissão, pois acredito na potência das linguagens da arte como forma de leitura do mundo, de emancipação do ser, construção de identidade. Acredito que o ensino de artes na educação básica pode transformar a experiência escolar e encontrei no ensino público um espaço para compartilhar parte da minha trajetória e construir, junto com os(as) estudantes, os próximos passos desta caminhada. A cada novo tempo e espaço, em cada escola por onde passo5, são novos desafios, novos(as) estudantes e professores(as), uma nova comunidade escolar. Sigo movida por esta pulsão que busca transformar a realidade pela arte, ou mesmo vê-la de outras formas: “[...] A arte não representa ou reflete a realidade, ela é realidade percebida de um outro ponto de vista.” (BRASIL, 1997, p. 28). O início do meu trabalho como arte-educadora na rede municipal de São Paulo expôs os desafios de ensinar arte na escola, entre eles ter espaço e tempo (e outros recursos físicos, materiais e humanos) dentro da grade curricular (a própria palavra grade limita, impõe barreiras) para que as aulas de artes pudessem contemplar não somente as linguagens em si, mas as diferentes possibilidades de fruição da arte. Durante a Licenciatura em Arte-Teatro estive algumas vezes em sala de aula de escolas de educação formal e informal em diferentes situações como estagiária ou assistente de turma, porém somente ao entrar como professora da rede municipal que entendi a responsabilidade do cargo de professora de Artes do ensino público. Para além de conhecimentos de artes ou pedagogia, percebi que, nesse espaço e com as condições dadas, as demandas trazidas pelos(as) estudantes ultrapassam qualquer tipo de aprendizagem que temos durante a graduação em artes. Trago como recorte o ensino público municipal de São Paulo que é o espaço em que todos os dias me desenvolvo enquanto professora de artes e que me permite construir uma identidade com esse trabalho e também contestá-lo. No início do meu trabalho na rede entendi que a estrutura da escola, separada por componentes curriculares em espaços curtos de tempo (quarenta e cinco minutos de aula) é um fator determinante para que procedimentos antigos de ensino (aulas expositivas e teóricas) continuem se repetindo. Na primeira escola em que lecionei (EMEF Dilermando Dia dos Santos) fui professora substituta de outros professores que 5 Iniciei como professora contratada da Prefeitura de São Paulo na Diretoria Regional de Pirituba-Jaraguá e continuo na mesma região, a Zona Oeste de São Paulo. Ao ser nomeada no cargo no ano de 2018, no processo de atribuição de aulas escolhi permanecer na mesma Diretoria Regional. A atribuição é feita pela pontuação no concurso. Os melhores colocados escolhem primeiro a escola em que desejam trabalhar. 17 faltavam, na Prefeitura nomeia-se como professora módulo. Estar nessa função já ditava o formato da aula. Por não saber quando entraria na sala de aula nem a turma que entraria eu planejava aulas “avulsas” sem continuidade planejada. Por vezes, os professores que faltavam deixavam atividades de seus respectivos componentes curriculares e pediam para o professor de módulo aplicar a atividade na turma. Na segunda escola da Prefeitura de São Paulo que lecionei, no ano de 2018, a EMEF Dr. José Kauffmann, minha primeira escola como professora efetiva do cargo, fui professora regente de artes de doze turmas. Pude desenvolver um planejamento que contemplasse sequências didáticas, porém comecei a entender a dificuldade do professor de Artes na rede. No Ensino Fundamental I as turmas têm apenas uma aula de Artes por semana e no Ensino Fundamental II possuem duas aulas de Artes por semana. O professor de Artes com Jornada Básica Docente (JBD) que compõem vinte e cinco aulas semanais, é obrigado a ter muitas turmas para completar sua jornada. Dentre os fatores e consequências que se desencadeiam com essa estrutura da escola, são eles: o excesso de trabalho; o desgaste para preencher tantos registros diários como frequência e desenvolvimento da aula no Sistema de Gestão Pedagógica6 (SGP); e a falta de tempo e conexão com os estudantes (geralmente trinta estudantes por turma). Penso que esse ponto seja de muita importância no ensino de Artes que se conecta diretamente com temas subjetivos e sensíveis. Pude perceber, nas escolas em que lecionei, que o professor de Artes ainda é visto como a figura responsável pela decoração da escola em festas comemorativas e normalmente é associado às pessoas que possuem conhecimento em desenho, artesanato e outras habilidades manuais. Durante o ano letivo, quando se aproxima a data de alguma festa, como festa junina (atualmente chamada de Festa das Tradições Brasileiras, na EMEF em que trabalho), o professor de Arte é solicitado para cumprir essa expectativa que ainda segue como senso comum. Por ter ficado pouco tempo nessas escolas – EMEF Dilermando Dias dos Santos e EMEF Dr. José Kauffmann (um ano em cada uma) – não tive oportunidade de mostrar que minha formação em Arte era voltada para o ensino de teatro e dança. Ao iniciar minha jornada na EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam (no ano de 2019), fui construindo aos poucos esse espaço para desenvolver projetos que estivessem alinhados com minha formação. É de se considerar que a formação de profissionais em Licenciaturas em Arte, com ênfase em dança, teatro e música, foi ampliada nos últimos anos, mas ainda é menor o número 6 Sistema de registros online de frequência, planejamento e calendário de turmas e aulas da Prefeitura de São Paulo. 18 de profissionais especializados em cada área comparado ao número de profissionais formados em cursos de educação artística.7 Sobre a ampliação das formações, e seus desdobramentos na inserção da Arte e da Dança na escola, Corrêa e Santos (2019, p. 4) dizem: Com o crescimento da oferta de possibilidades formativas, cresce o número de profissionais dedicados à reflexão sobre diferentes aspectos envolvidos na prática da Dança no contexto escolar, como já mencionado, gerando maior pressão para a criação de leis que regulamentem a profissão e incidindo na abertura de vagas de trabalho. Desse modo, é preciso ter consciência da existência desse movimento sistêmico, pois qualquer ação ocorrida em parte dessa rede tende a reverberar modificações em toda a sua estrutura. A partir das mudanças ocorridas nos últimos anos a respeito das leis e do aumento no número de graduações em Artes aumentou-se o número de profissionais dentro da educação básica que possuem formação em diferentes linguagens artísticas, sobre essa conquista Corrêa e Santos (2019, p. 7) citam: Acredita-se que a isonomia entre as linguagens artísticas no texto da Lei representa uma conquista da classe de professores de Arte, caldeada no debate em torno da valorização do seu ensino, tornado urgente sempre que se questiona o direito à Arte na Educação Básica. Apesar das alterações que vêm ocorrendo, ao entrar na escola pública para lecionar Artes, percebi que o componente curricular em questão ainda está muito atrelado ao campo das artes visuais, das habilidades do desenho, das técnicas de pintura, escultura e história da arte no geral. A expectativa dos estudantes quando estou em sala de aula é produzir desenhos. A pesquisadora Márcia Strazzacappa8 (2001, p. 71) explicita essa situação no seguinte trecho: Os cursos de Educação Artística, cujo caráter "menos formal" poderiam possibilitar uma maior mobilidade das crianças em sala de aula, tendem a priorizar os trabalhos em artes plásticas (desenho, pintura e algumas vezes escultura), atividades onde o aluno acaba tendo de permanecer sentado. Embora a LDB 9394/96 garanta o ensino de Arte como componente curricular obrigatório da Educação Básica representado por várias linguagens – música, dança, teatro e artes visuais –, raramente a dança, a expressão corporal, a mímica, a música e o teatro são abordados, seja pela falta de especialistas da área nas escolas, seja pelo despreparo do professor. 7 No ano de 2005 foi aprovada a mudança da nomenclatura de “Educação Artística por Arte” a fim de preservar, dentre alguns pontos, a formação específica de cada professor [...] licenciados em Educação Artística, em Arte ou em quaisquer linguagens específicas, Artes Visuais e Plásticas, Artes Cênicas ou Teatro, Música e Dança, que utilizarão os seus conhecimentos específicos, com a finalidade de atingirem os objetivos preconizados pela legislação em vigor para o Ensino 2 Fundamental e, de modo mais direto, o objetivo do ensino da arte, que é “promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. Disponível em http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb22_05.pdf. Acesso em: 25/02/23. 8 Atriz, bailarina, pesquisadora, pedagoga e bacharel em dança (Unicamp); mestre em Educação (Unicamp) e doutora em Artes – Estudos Teatrais e Coreográficos (Universidade de Paris VIII/França); professora da Faculdade de Educação e atual coordenadora das Licenciaturas da Unicamp. mstrazzacappa@uol.com.br. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fef/article/view/55. Acesso em: 06/09/2022. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb22_05.pdf mailto:mstrazzacappa@uol.com.br https://revistas.ufg.br/fef/article/view/55 19 Na rede municipal de São Paulo, o professor de arte é polivalente, ou seja, responsável pelo ensino das quatro linguagens artísticas: dança, teatro, música e artes visuais. No Currículo da Cidade, documento norteador de práticas pedagógicas da Prefeitura temos o seguinte trecho sobre a formação de professores em arte: Cada professor reúne em si percursos exclusivos de vida. São diferentes estudos, interesses, repertórios, posturas, metodologias e modos de se relacionar com o mundo. As escolas abarcam docentes que tiveram sua formação inicial em períodos mais distantes e outros que acabaram de concluir a licenciatura. Essas diferenças conferem colorido às aulas de Arte da Rede Municipal de Ensino, tão autênticas quanto seus professores. Respeitando esse colorido, propomos dar aos docentes a possibilidade de criar percursos de aprendizagem com ênfase em sua linguagem de formação específica, focalizando conceitos e práticas gerais da área de Arte. Assim, procuramos ressaltar o que é específico de cada linguagem, mas também pensar o que as atrelam, o que é comum a todas. (SÃO PAULO, 2019, p. 66) O curso de Licenciatura em Arte-Teatro, do Instituto de Artes da UNESP, no período de minha graduação, tinha como eixo central de formação a linguagem do teatro, mas continha disciplinas de outras linguagens artísticas como Linguagem Sonora, Linguagem Visual e Dança na Escola. Considerando o Currículo da Cidade, minha formação buscou dialogar com o ensino de música, artes visuais e dança. Assim, em múltiplas relações entre teoria e prática, busco caminhos e possibilidades para que eu – como professora de arte na rede municipal de São Paulo – possa construir sentido para as experiências artísticas na vida escolar do(a) estudante enquanto uma mediadora dessas experiências. A linguagem teatral pode se relacionar diretamente com as outras linguagens artísticas que fazem parte do Currículo da Cidade de São Paulo e de outros documentos como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Com as artes visuais, no teatro podemos pensar cenários, figurinos, projeções, a música pode construir a trilha sonora de um espetáculo e/ou efeitos sonoros e a dança pode trazer suporte para direção de gestos, movimentos de cena e os estados corporais do(a) ator/atriz. A linguagem da dança também é repleta de elementos que podem ser desenvolvidos em diferentes perspectivas e relações com as demais linguagens artísticas. Pensar e refletir sobre arte e educação em diferentes contextos é uma oportunidade de ampliar possibilidades e pontos de vista e se deparar com contradições, especificidades, histórias e quem as constrói. Para além da formação dos professores especialistas em cada linguagem e sua função polivalente na escola, penso o quão borradas podem ser as fronteiras que definem as linguagens artísticas e seus desdobramentos em processos de arte educação, como por exemplo, ao pensar as artes integradas.9 9 Na BNCC as artes integradas “[...] exploram as relações e articulações entre as diferentes linguagens e suas práticas, inclusive aquelas possibilitadas pelo uso das novas tecnologias de informação e comunicação.” (BRASIL, 2018, p. 197) 20 Vejo como responsabilidade do(a) educador(a) colocar-se no exercício de pensar e repensar sua prática diária, ao levantar hipóteses para questões, apontar e sugerir mudanças para o pensar e fazer da arte na escola. Com isso penso que esse exercício diário de pensar e repensar sua prática pedagógica é um momento importante de colocar-se diante do futuro, de outras maneiras de pensar e agir sobre o mundo e que nossos pactos, enquanto sociedade, sempre podem ser revistos e melhorados. “[...] É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática” (FREIRE, 1996, p. 39). Pelas minhas vivências nas artes do corpo, a dança e o teatro sempre foram foco de interesse, pesquisa e ensino. Na educação básica, o cargo de professora de artes polivalente traz a responsabilidade e o desafio de integrar as linguagens artísticas durante as aulas. Outro ponto desafiador como professora de Artes é que nas escolas municipais de São Paulo, o Ensino Fundamental I – Anos Iniciais (1° ao 5° ano) – possui apenas uma aula de artes por semana e o Ensino Fundamental II – Anos Finais (6° ao 9° ano) – possui duas aulas por semana. Nas escolas em que lecionei anteriormente, EMEF Dilermando Dias dos Santos (2017) na Vila Leopoldina e EMEF Dr. José Kauffmann (2018) no Jardim Rincão, ambas na região oeste de São Paulo e pertencentes à Diretoria de Ensino Pirituba-Jaraguá (DRE PJ), não havia uma sala específica para o ensino de artes, na qual eu pudesse organizar o espaço e materiais com antecedência para a realização das aulas. Torna-se então um desafio ensinar Artes, em quarenta e cinco minutos, em salas de aula diversas e organizadas de formas diferentes, principalmente as salas de Ensino Fundamental Anos Iniciais que possuem uma professora regente da turma, com limitações físicas, estruturais e gerais para o professor de Arte com questões que precisam ser resolvidas cotidianamente. Toda a estrutura da escola (a grade curricular, o espaço físico ou a falta dele) parecem contribuir para um ensino de Artes que aconteça apenas no âmbito teórico. Aulas expositivas, estudo de textos, atividades escritas são propostas que se resolvem no tempo e espaço que as Artes ocupam na escola. Sair da dinâmica de aula expositiva e teórica é um desafio para qualquer professor, de qualquer área de conhecimento, mas para o ensino de Artes, romper essa proposta de ensino se torna fundamental para alcançar objetivos além da leitura e interpretação de obras de arte. As aulas expositivas teóricas se aproximam do que Freire (1996) nos diz sobre a educação bancária e a transferência de conhecimentos, na qual não existe espaço para experiências artísticas e a construção de sentidos pela arte. A educação bancária se aproxima de uma metodologia de ensino que o estudante é passivo, o que revela o pensamento sobre educação que busca, de forma equivocada, uniformizar a todos, ignorando suas respectivas 21 culturas, saberes e vivências. “[...] Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção [...]” (FREIRE, 1996, p. 47) faz parte do meu pensamento sobre o ensinar. Em contraponto à uma educação bancária, no documento oficial, Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o ensino de arte na escola exerce papel fundamental para: [...] a interação crítica dos alunos com a complexidade do mundo, além de favorecer o respeito às diferenças e o diálogo intercultural, pluriétnico e plurilíngue, importantes para o exercício da cidadania. A Arte propicia a troca entre culturas e favorece o reconhecimento de semelhanças e diferenças entre elas.” (BRASIL, 2018, p. 193) Tais saberes podem contribuir para que os estudantes, conscientes de sua identidade possam “[...] compreender as relações entre tempos e contextos sociais dos sujeitos na sua interação com a arte e a cultura.” (BRASIL, 2018, p. 193). E como realizar estas indicações propostas na BNCC, com a estrutura de aulas de Arte que possuímos? Ao longo dos últimos seis anos de experiência como professora de Arte na rede pública municipal de São Paulo, sigo em constante reflexão sobre o ofício de professora de Arte nesse contexto e a cada ano são novos desafios e perguntas as quais movem novas formas de atuar na escola. Tais movências e questionamentos me trouxeram de volta à universidade, para que pudesse organizar e elaborar minha prática pedagógica com suporte teórico, promovendo também meu encontro com colegas e pares profissionais que atuam dentro da sala de aula como professores de Arte. No segundo semestre de 2020, prestei o processo seletivo do Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES10) com intuito de aprofundar minha pesquisa na escola como docente em Artes e fomentar o projeto de dança e teatro que eu havia iniciado no mês de fevereiro de 2020, dois meses antes de a escola ser fechada pelas medidas sanitárias de prevenção à pandemia de Covid-19. Fui aprovada como estudante da pós-graduação no Mestrado Profissional em novembro de 2020, e desde então a escola, as aulas, a pesquisa e os estudos passaram por muitas modificações e inseguranças que marcaram todos os encaminhamentos dos anos que se seguiram. A pesquisa e a escrita da dissertação foram acompanhadas de momentos de incertezas, mudanças, solidão e muitos outros desafios. Mesmo diante de tantos desafios, chego ao final deste ciclo agradecida por ter vivido tantas experiências que me atravessaram e me transformaram, entre os anos de 2020 e 2023. 10 O Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) é um programa de mestrado exclusivo para professores de arte que atuam em escolas públicas (municipais, estaduais e/ou federais). É um programa nacional vinculado a instituições de ensino associadas, o Instituto de Artes da UNESP faz parte do programa. 22 Apresento, então, a dissertação construída no terreno movediço dos acontecimentos dos últimos anos. Seu título – Arte no corpo da escola pública: um exercício de “esperançar” – atravessado pela pandemia, carrega este termo “esperançar”, cunhado por Paulo Freire que com suas contribuições à educação nos lembra que a esperança enquanto verbo é ação, por isso nesta pesquisa trago nos nomes dos capítulos os espaços, tempos e ações do “esperançar” que foram essenciais para esta travessia. A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro capítulo apresenta a região do Morro Doce onde atuo como professora de Artes desde o ano de 2019 na EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam, que fica dentro do CEU Parque Anhanguera – Zona Oeste de São Paulo. Nesse capítulo entrelaço a localização, o contexto histórico e a transformação da região do Morro Doce a partir da construção do Centro Educacional Unificado (CEU) Parque Anhanguera e seus respectivos desdobramentos. Conhecer a região e sua história é fundamental para compreender as especificidades da comunidade escolar. Apresento os documentos norteadores de práticas pedagógicas da Prefeitura de São Paulo, a implementação do Programa São Paulo Integral na EMEF em questão, o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola e a chegada da pandemia no ambiente escolar. No primeiro capítulo trago o início das ações do projeto Arte no Corpo nos anos de 2020 e 2021. O segundo capítulo aborda o projeto Arte no Corpo no ano de 2022. Os encontros foram organizados, planejados e realizados à luz de referências nas áreas de dança, teatro, infância e cultura popular que alimentaram momentos de criação e exploração durante as aulas. Ao longo de sua execução, o projeto se transforma, recebe das crianças movimentos, músicas, brincadeiras e, ao meu olhar como pesquisadora, novas perguntas e reflexões. O terceiro capítulo traz os registros feitos do projeto Arte no Corpo no ano de 2022, registros apresentados em forma de fotografias, relatos, desenhos e palavras que contam as experiências vividas em conjunto com os estudantes participantes do projeto. O momento de partilha com a família e gestão escolar foi a Mostra Cultural de 2022 em que o projeto foi apresentado em formato de vídeo e exposição de fotos, objetos e instrumentos musicais relacionados às aulas. 23 1° CAPÍTULO: ESPAÇOS DE ESPERANÇAR 1.1 O Morro Doce, o CEU e a EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam A escola em que atuo, CEU EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam está localizada na região do Morro Doce (Figura 1), Zona Oeste de São Paulo, próximo à rodovia Anhanguera. A escola foi inaugurada em 2008 e está inserida no Centro Educacional Unificado Parque Anhanguera (CEU). Os CEUs integram a rede municipal de São Paulo e tem como objetivo: [...] Promover uma educação à população de maneira integral, democrática, emancipatória, humanizadora e com qualidade social. Juntando não somente educação, mas também, a cultura, o esporte, lazer e recreação, possibilitando o desenvolvimento do ser humano como um todo, como pessoa de direitos e deveres e dono de sua história.11 Figura 1 – Morro Doce – Km 23 da Rodovia Anhanguera Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora O polo do CEU Parque Anhanguera (Figura 2), para essa comunidade, se constitui como um lugar de lazer, cultura, esportes e promove desenvolvimento social e econômico da região. A comunidade e as famílias dos estudantes da EMEF são diversificadas, muitas trabalham na região central de São Paulo e passam o dia todo fora de casa. Os alunos frequentam a escola e no contraturno realizam atividades proporcionadas pela gestão do CEU, como oficinas livres e aulas de esportes. 11 Informação disponível em: https://ceu.sme.prefeitura.sp.gov.br/sobre/. Acesso em: 01/08/22. https://ceu.sme.prefeitura.sp.gov.br/sobre/ 24 Os CEUs se inserem como equipamentos fundamentais nas periferias de São Paulo no que se refere à concepção da Cidade Educadora e na perspectiva da Educação Integral, articulando cultura, esporte, corpo, lazer e cidadania, em afinação à atual gestão. (SÃO PAULO, 2016, p. 24) Figura 2 – CEU Parque Anhanguera Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora Diante de toda a estrutura física (Figuras 3) oferecida pela gestão do CEU Parque Anhanguera, a maioria dos estudantes da EMEF em que trabalho são crianças que estudam nesse espaço desde o Centro de Educação Infantil (CEI) e Escola Municipal de Ensino Infantil (EMEI), portanto, sua trajetória escolar é permeada por um espaço educativo diferenciado de outras escolas públicas (Municipais ou Estaduais) da região. Notavelmente as salas de aula de uma escola dentro do CEU costumam ser mais cheias pelo próprio interesse das famílias em colocar o filho em uma escola que multiplique as possibilidades das crianças em realizar as atividades escolares e atividades fora do período regular de estudo. 25 Figura 3 – Estrutura física do CEU Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora A região do Morro Doce cresceu e se desenvolveu diante da construção da rodovia Anhanguera e o acesso a transporte público, educação e saúde na região foram conquistas que vieram após muita luta dos moradores, principalmente de mulheres que chefiavam suas casas. 26 No Projeto Político Pedagógico12 da EMEF13 conta-se: Caracterizada por uma história de lutas e conquistas, a região do Anhanguera, conhecido como Morro Doce é um distrito situado na Zona Noroeste da Cidade de São Paulo, pertencente à Prefeitura Regional de Perus. Suas origens remontam às antigas plantações de cana-de-açúcar existentes especialmente no bairro e que serviam para produção de cachaça em alambiques. (PPP, 2022, p. 13) Da cana-de-açúcar às ruas pavimentadas e serviços públicos como posto de saúde e escola, a região do Morro Doce cresceu. A comunidade carrega, em si, o histórico de lutas e transformações que foram conquistadas ao longo de anos. Essa valorização reflete na própria expectativa das famílias em relação à escola e ao trabalho de toda equipe. A região possui alguns pontos de cultura como casas de capoeira e coletivo de maracatu de mulheres, porém não possui uma variedade de espaços culturais14. O CEU Parque Anhanguera é uma referência de polo cultural (Figura 4) da região por ter a estrutura e receber peças de teatro, dança, contação de história, apresentações musicais entre outros eventos. Figura 4 – Porta de entrada do Teatro do CEU Parque Anhanguera Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora 12 O Projeto Político Pedagógico é “[...] a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar, é um importante caminho para a construção da identidade da instituição. É um instrumento teórico- metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição neste processo de transformação.” (VASCONCELLOS, 2014, p. 169) 13 Projeto Político Pedagógico da EMEF CEU Parque Anhanguera. Disponível em: https://emefceupqanhanguera.blogspot.com/p/ppp.html?m=0. Acesso em: 31/07/2021. 14 No ano de 2023 durante a iniciação de um projeto de teatro com os estudantes do 6° ano propus uma tarefa de entrevistar parentes e familiares sobre hábitos de frequentar o teatro e/ou espaços culturais da região e a maioria das respostas trazidas pelos estudantes era de que os pais/familiares conheciam somente o teatro do CEU como referência de espaço cultural do bairro. 27 Desde o início do trabalho da EMEF (2009), a equipe gestora e professores se uniram para a elaboração de um Projeto Político Pedagógico que valorizasse a gestão democrática, visando afirmar alguns valores intrínsecos à prática educacional da unidade. Defendemos uma escola pública, democrática e de qualidade para todos e todas. Uma escola que ultrapasse o ensino conteudista, tecnicista, e que atenda aos interesses da classe trabalhadora, que seja capaz de formar pessoas críticas e sensíveis, e que elas possam construir uma sociedade livre, justa e solidária. (PPP, 2022, p. 19) Iniciei meu trabalho como professora de Artes do Ensino Fundamental I e II na EMEF no ano de 2019. No começo quis ouvir os estudantes para conhecê-los melhor. Pedi para que eles me apresentassem a escola e o CEU como forma de me integrar a esse espaço junto com quem o habita e conhece há mais tempo do que eu. Nessa primeira investigação territorial vislumbrei muitos cenários e possibilidades para experienciar a arte nesse contexto com os estudantes. Ao fortalecer os laços com a equipe escolar, estudantes e famílias a partir da escuta e diálogo pudemos pensar juntos quais eram as demandas trazidas pelas crianças e quais eram as potências de uma comunidade tão diversa. O estudo do Projeto Político Pedagógico da escola e a participação na comissão de escrita, formada anualmente também foi de extrema importância durante meu início de trabalho na EMEF. Foi durante a leitura, discussão e processo de escrita que aprendi sobre o histórico da escola e de algumas práticas pedagógicas que, até então, a meu ver, se mostram como diferenciais de outras unidades. Alguns exemplos dessas práticas são os Conselhos de Classe formativos. A coordenação pedagógica inicia o conselho com uma sensibilização e reflexão sobre algum tema que esteja latente na rotina escolar, como violência, comportamentos atípicos dos estudantes, acolhimento, educação emocional etc. O objetivo dos conselhos formativos é ultrapassar/transcender as discussões sobre o perfil e o comportamento de cada aluno e propor um momento de formação sensível da equipe docente. As Reuniões de Pais também possuem esse caráter formativo que tem a intenção de, além de ser um momento de aproximação e diálogo com as famílias, por em debate e/ou reflexão (através de momentos de fruição estética de elementos artísticos como a leitura de uma poesia, escuta de música, projeção de vídeo e/ou imagens – para que seja ativado um estado de sensibilização e atenção dos participantes da reunião) temas que estão recorrentes no cotidiano escolar e que precisam ser tratados de alguma forma com essas famílias. A Hora-Atividade (HA)15 compartilhada também faz parte de uma das ações da EMEF que compõem o PPP que consiste em planejar, uma vez por semana, uma hora-atividade em 15 Hora-atividade são três horas-aula dentro da jornada do professor em que ele realiza atividades como planejamento, organização de material, reuniões com outros professores etc. 28 comum com os outros professores do mesmo ciclo, para se reunirem e discutirem o plano interdisciplinar anual e seu desenvolvimento com as respectivas turmas e ciclos. Para a escrita do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola foi realizado um questionário investigativo, no ano de 2017, para levantamento do perfil socioeconômico da comunidade escolar para que o trabalho pedagógico estivesse alinhado com as necessidades de seu público. Após todos esses anos e principalmente após a pandemia, a comissão de revisão anual do PPP avaliou a necessidade de refazer essa pesquisa a fim de atualizar os dados sobre a comunidade e para mapear os estudantes que não retornaram à escola (aumento do índice de evasão escolar) no ano de 2022. O aumento do trabalho informal/autônomo sem vínculos trabalhistas durante a pandemia gerou instabilidade nas estruturas familiares e nas casas dos moradores do Morro Doce. A falta de atendimento presencial das escolas durante o isolamento social em 2020 também aumentou significativamente a insegurança alimentar dos estudantes. Todos esses dados são fundamentais para compreender a realidade das famílias e para que a escola consiga promover uma parceria efetiva com a comunidade. No documento PPP estão apontadas as características das famílias e o reflexo delas na educação das crianças: A condição escolar dos familiares revela um histórico de pouca educação formal, porém, a comunidade consegue se viabilizar com conhecimento informal e experiências de vida, elementos de fundamental importância para aprendizagem dos nossos educandos, valorizando o território como espaço de formação. Há uma valorização cultural juntamente com os conhecimentos prévios dos alunos. (PPP, 2022, p. 14) A valorização cultural e do território são elementos diferenciais na formação desses estudantes que passam pelo processo de assimilação da sua realidade, a sua identidade, ao reconhecerem onde vivem e os processos históricos que envolvem esse território. Esses fatores fazem com que a comunidade na qual se insere essa escola veja a mesma com expectativa de luta efetiva contra a exclusão e a desconstrução da meritocracia, do racismo, do sexismo, da homofobia como discursos reprodutores da desigualdade social. Faz-se necessário colocar em prática: narrativas, memórias e saberes dos grupos historicamente invisibilizados, excluídos. (PPP, 2022, p. 14) A EMEF possui uma quantidade significativa de professores que trabalham na unidade há alguns anos e isso, a meu ver, contribui para que algumas práticas pedagógicas obtenham sucesso e permanência. É preciso ir além de estar alinhado a essas práticas e colocá-las no movimento de ação, reflexão e ação. Alguns desses valores podem ser considerados neste trecho do PPP: Faz-se necessário ressaltar que a qualidade social da educação que desejamos não se baseia nos valores mercadológicos, e sim em valores éticos, sustentáveis, de 29 erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e raciais, respeitando o tempo de aprendizagem dos educandos; atendendo aos interesses de todos os envolvidos. Uma escola com qualidade social só terá sucesso se o seu aluno, sujeito de direitos e deveres, aprender. (PPP, 2022, p. 15) Tal compreensão e visão sobre nossa sociedade e a busca de uma sociedade mais justa, menos desigual, reflete nas propostas didáticas da escola. Nosso trabalho consiste na interdisciplinaridade, ou seja, projetos integrando todos os saberes, não fragmentando o conhecimento, promovendo a equidade, caminhando para a ressignificação do aprendizado, tendo uma escola como um lugar de construção do senso crítico, de cidadãos mais conscientes e autônomos, um espaço de convivências e vivências. Para que esses projetos se concretizem, existe a necessidade de organizar e implementar planejamentos coletivos pautados pela otimização dos espaços e tempos. Deve-se considerar a diversidade, pluralidade de concepções, experiências, saberes, ritmos, culturas e interesses para elaborar as atividades de forma a reestruturar as práticas. A escola é um organismo vivo! (PPP, 2022, p. 15) E, enquanto docente integrante do grupo da escola, acredito que escolher estar nesse espaço é resistir e acreditar na transformação. Em nossas formações, boa parte dos professores têm consciência da importância de lutar contra as opressões que são reforçadas diariamente, seja na escola, seja em casa, para que o conhecimento seja o caminho da libertação. No PPP temos: O último eixo e não menos importante é o currículo: rico, diversificado e descolonizado, que dê espaço para que o aluno possa problematizar a sua realidade, entendê-la e transformá-la, desconstruindo o paradigma da história única, natural, abrindo precedente para a reflexão. Paulo Freire dizia que educar é um ato político. Não só nossas posturas refletem o mundo que queremos cultivar, mas também os temas e assuntos que iremos abordar. Os conceitos e direitos de aprendizagem são simples, cabe a nós enxertar no currículo tudo que promova a reflexão, a criatividade, a pluralidade, o respeito, a coletividade e a promoção de uma sociedade mais igualitária para a formação e transformação do nosso aluno. (PPP, 2022, p.16) No ano de 2020 a escola teve seu nome anterior (CEU EMEF Parque Anhanguera) alterado como forma de homenagem ao Prof. Valter, que atuou como docente de matemática desde a inauguração da escola e veio a falecer de Covid-19 em maio de 2020. 1.2 Ensino Integral e o Território do Saber O percurso que iniciou a Educação Integral na Prefeitura de São Paulo foi a implementação do Programa Mais Educação (2013) que foi: [...] indutor da ampliação da jornada escolar e da organização curricular na perspectiva da Educação Integral, de acordo com o projeto educativo em curso, optaram por desenvolver atividades nos diferentes macrocampos, com o objetivo de ampliar os tempos, os espaços e as oportunidades educativas nos diferentes ciclos da educação básica. (SÃO PAULO, 2016, p. 7) 30 A partir das experiências e práticas vivenciadas nos programas Mais Educação nas unidades escolares, um grupo de trabalho foi criado pela Secretaria Municipal de São Paulo com o propósito de aprofundar debates e reflexões sobre essas experiências em rede e como estas poderiam integrar a construção de uma concepção de educação integral. A concepção de Educação Integral em tempo integral que irá se apresentar é assumida como diretriz pedagógica e não se esgota nessas páginas, renovando-se na sua implementação ao contemplar as vozes das crianças e dos adolescentes, das famílias e de todos os profissionais envolvidos. Contudo, compreendemos a complexidade em propor um sentido concreto e objetivo aos conceitos de currículo, de articulação de projetos e de gestão democrática na perspectiva da Educação Integral. (SÃO PAULO, 2016, p. 4) A EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam possuía diversos projetos do Programa Mais Educação que compunham a carga horária das turmas no contraturno das aulas regulares (se o estudante estuda de manhã, pode frequentar projetos do período da tarde e vice-versa), projetos com diferentes temáticas como esportes, clube de leitura, ciências e meio ambiente, desenho etc. No final do ano de 2019, a EMEF implementou o Programa São Paulo Integral. A gestão escolar e a equipe de docentes se reuniram para discutir quais seriam as turmas contempladas pelo programa e como seria a organização da escola para o ano de 2020. Em 2020, com o início do Programa São Paulo Integral e a extensão da grade horária das turmas participantes16, foi possível criar projetos voltados para as áreas de artes e educação física permitindo assim que os estudantes de Ensino Integral tivessem até três aulas de Artes por semana. Vi nessa oportunidade a chance de elaborar um projeto de arte que tivesse tempo e espaço para ser realizado. A partir do potencial artístico, expressivo e pedagógico que as linguagens da dança e do teatro possuem, apontadas no Currículo da Cidade de Artes17, o projeto de pesquisa buscou aproximar a arte educação e os processos de ensino e aprendizagem durante a alfabetização, dando ênfase no acolhimento, vínculo e socialização dos estudantes, no retorno às atividades escolares presenciais. A Educação Integral passa pela expansão de tempos, espaços e oportunidades educativas, cujo ponto central marca uma aprendizagem conectada à vida e aos interesses e possibilidades dos educandos, reconhecendo as múltiplas dimensões do ser humano e as especificidades inerentes ao processo de desenvolvimento das crianças e dos adolescentes. (SÃO PAULO, 2016, p. 6) 16 Não foram todas as turmas da escola que entraram para o Programa São Paulo Integral, apenas três turmas de 1° ano e três turmas de 9°ano. 17 Documento oficial pedagógico da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. 31 O projeto Arte no Corpo em 2020 fez parte do Território do Saber, que dentro do Programa São Paulo Integral caracterizam-se como: O Programa São Paulo Integral cunha o termo “Territórios do Saber”. Caracterizam- se como “territórios do saber”: 1) Culturas, Artes e Memórias; 2) Educomunicação, Oralidade e Novas Linguagens; 3) Orientações de Estudos em invenção crítica; 4) Consciência, Sustentabilidade Socioambiental e Promoção da saúde; 5) Ética, convivência e protagonismo e 6) Cultura Corporal, Aprendizagem Emocional e Economia Solidária. Essas dimensões impactam diretamente no trabalho pedagógico visando um currículo emancipador, permitindo a aprendizagem para além da rigidez curricular, (re)discutindo-se possibilidade de romper com o enrijecimento das disciplinas e permitindo o uso de outros espaços e experiências como potenciais educativos. (SÃO PAULO, 2015, p. 19) O projeto em questão foi classificado como Território do Saber 6 - Cultura Corporal, Aprendizagem Emocional e Economia Solidária. Apesar de os autores dessas classificações juntarem diferentes campos de conhecimento, quem atribui os projetos dentro dos Territórios do Saber é a gestão escolar no momento de atribuição das aulas do projeto no sistema online conhecido como “EOL Servidor”. Um dos maiores desafios da rotina escolar é o gerenciamento do tempo das aulas, das atividades e até mesmo da preparação prévia das atividades. Na Educação Integral a proposta de aumento do tempo do estudante na escola reflete em outras possibilidades de se pensar e construir uma aula. No documento oficial da Prefeitura, sobre o Ensino Integral reflete-se sobre a ampliação do tempo na escola e o quanto esse tempo precisa ser integrado e contextualizado para que a Educação Integral faça sentido na vida escolar do estudante. O tempo, ou melhor, a ausência dele, é outro fator que impede a conexão significativa entre um saber e outro, de modo que a velocidade da informação e a falta de silêncio e de memória são também inimigas da experiência. O fato de o aluno estar mais tempo na escola e com um currículo repleto de disciplinas que, na maioria das vezes, apresenta informações fragmentadas e descontextualizadas, não permite que o educando tenha tempo para conceber e refletir sobre os conteúdos que lhe são apresentados. Neste sentido, a educação integral que aqui se defende não pode se orientar por um currículo amparado, apenas, na transmissão de conteúdos específicos, pois, se assim o fizer, estará fomentando a ausência de experiência durante o processo educativo. (SÃO PAULO, 2015, p. 10) Penso que para a efetivação de um ensino que se proponha a ser integrado à realidade do estudante, seja necessário o desenvolvimento de um trabalho coletivo entre os professores e a gestão escolar e novamente esbarramos no desafio do tempo de trabalho conjunto na escola. Apesar de a Prefeitura Municipal de São Paulo possuir espaços de formação, como o Projeto Especial de Ação (PEA18) e das ações propostas pela EMEF Prof. Dr. Valter Paulino Estevam 18 O Projeto Especial de Ação (PEA) é um espaço formativo que reúne professores e coordenação pedagógica sob orientação em Instrução Normativa - INSTRUÇÃO NORMATIVA SME Nº 14, DE 04 DE MARÇO DE 2022 6016.2022/0019417-0. Possui diretrizes a serem seguidas e é utilizado como tempo para se alinhar ações coletivas na escola. 32 (como a HA Coletiva), tais recursos ainda não são suficientes para estabelecer um trabalho que seja, de fato, coletivo. 1.3 Ensino de dança na escola Antes de adentrar no desenvolvimento do projeto de dança e teatro, iniciado em 2020, trago alguns pontos pertinentes de reflexão sobre o ensino de dança na educação básica, sendo assim possível investigar as lacunas e desvios dessa(s) história(s), bem como destacar como a dança está inserida no meu contexto como professora de artes. A história do ensino de dança no Brasil é composta por uma trajetória de múltiplos caminhos, interpretações, técnicas e métodos distintos. Essa multiplicidade também se reflete nos profissionais que atuam como professores e pesquisadores. Isabel Marques19, pesquisadora da área da dança educação aponta em seus estudos que: [...] A arte/dança e o ensino de arte/dança, estão inseridos no mundo, estão intrincados de histórias e de historicidades, tecem com seus atores (os artistas, professores, alunos e público) as histórias e as vidas das pessoas que convivem em um mesmo planeta. Não há mais como negar que as danças que ensinamos são processos e produtos culturais (sociais e políticos) das relações entre os atores sociais e políticos que co- habitam o planeta Terra e, portanto, deveriam fazer explicitamente parte dos processos de ensino aprendizagem de dança. (MARQUES, 2010, p. 30) A partir do princípio de que corpo é/contém história(s) em si, a linguagem da dança no ensino de educação básica se faz necessária enquanto linguagem em si, enquanto experiência significativa de reflexões sobre si e sobre o mundo que nos rodeia. Vieira (2017)20, em seu texto “História das ideias do ensino da dança na educação brasileira” traça um breve panorama histórico do ensino de dança no Brasil, por meio das universidades que incluíram, em seus cursos, a Licenciatura e o Bacharelado em Dança. Os cursos de Licenciatura em Dança, formam os profissionais que irão ensinar dança, em espaços de educação formal ou informal. São as Licenciaturas que iniciam as professoras em estágios dentro de escolas públicas. 19 Isabel Marques é Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (1996), Mestre em Dança (MA in Dance Studies) pelo Laban Centre (hoje Trinity Laban, 1989), graduada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (1987). Atua e pesquisa nas áreas de dança, ensino de dança, interatividade, currículo, pedagogia crítica, formação docente. Disponível em: https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/666782/isabel-maria-meirelles-de-azevedo- marques. Acesso em: 01/09/2022. 20 Marcílio de Souza Vieira é artista da Cena. Pós-doutor em Artes e em Educação, Doutor em Educação, Professor do Curso de Dança e dos Programas de Pós-Graduação PPGArC e PROF-ARTES da UFRN. Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa em Corpo, Dança e Processos de Criação (CIRANDAR) e do Grupo de Pesquisa Corpo, Fenomenologia e Movimento (Grupo Estesia/UFRN). Disponível em: https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=1958705. Acesso em: 01/09/2022. https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/666782/isabel-maria-meirelles-de-azevedo-marques https://bv.fapesp.br/pt/pesquisador/666782/isabel-maria-meirelles-de-azevedo-marques https://sigaa.ufrn.br/sigaa/public/docente/portal.jsf?siape=1958705 33 O texto de Vieira (2017) nos apresenta que, apesar de não ser uma história tão recente a chegada de Licenciaturas em Dança nas universidades (públicas e privadas) brasileiras, o ensino de dança na escola de educação básica ainda não tem muito alcance, sejam por questões estruturais, seja pela falta de profissionais da área ou por a dança ser a última das linguagens de arte a entrar nos currículos das escolas. Vieira (2017, p. 5) explicita: Contudo, mesmo a dança sendo apontada como uma das formas mais antigas – e registradas – de expressão do homem (GARAUDY, 1980; BOURCIER, 1987), sua validade como ação educativa somente vem a ser referendada na penúltima década dos anos 2000, no Brasil, depois de outras linguagens artísticas que, no decurso da história, aparecem como sendo posteriores à utilização do movimento corporal como ato representativo/performativo. Outro material utilizado como referência, o texto “Políticas Educacionais e Pesquisas Acadêmicas sobre Dança na Escola no Brasil: um movimento em rede”, de Corrêa e Santos, revela sobre a relação entre universidade e educação básica: Com a multiplicação expressiva de estudantes das Licenciaturas em Dança, novos professores ingressam nas instituições de Ensino Superior, configurando seus quadros docentes de modo a abarcar diversificados aspectos da formação e atuação docente na Educação Básica. Assim, muitos professores universitários que originalmente não demonstravam interesse pela temática da Dança na Escola passam a aproximar-se dela em razão de demandas específicas da Licenciatura, direcionando a sua atenção a estudos desenvolvidos na intersecção dos campos da Dança e da Educação. (CORRÊA; SANTOS, 2019, p. 10) Tais mudanças refletiram diretamente no aumento de projetos relacionados à dança no âmbito escolar. Ao iniciar minha trajetória como arte educadora na rede pública municipal de ensino de São Paulo pude perceber essa realidade e o quanto a arte, enquanto componente curricular, estava ainda vinculada às artes visuais, às técnicas de desenho. Estas costumam ser as primeiras referências que os próprios estudantes trazem como expectativa para a sala de aula de artes. Sou formada em Licenciatura em Arte-Teatro, e minha busca em sala de aula sempre foi a de aproximar as linguagens da dança e do teatro (as quais tenho mais experiência enquanto artista e pesquisadora das artes do corpo) e fomentar projetos na escola que tivessem como mote norteador o desenvolvimento da expressão corporal integral dos estudantes, seja através de jogos teatrais, brincadeiras, dinâmicas, músicas, reflexões, debates, apreciação e fruição em arte, em busca da relação entre os contextos e as experiências individuais/coletivas dos estudantes. A pesquisadora Strazzacappa (2003) discute temas importantes e pertinentes que se aproximam da realidade em que trabalho. Em seu texto “Dança na Educação: Discutindo questões básicas e polêmicas”, a pesquisadora revela: 34 Estudos realizados nos últimos cinco anos têm apontado que essas aulas são oferecidas como parte integrante de projetos apresentados às escolas, de onde advém seu caráter extracurricular. Trata-se de projetos isolados, frutos de iniciativa pessoal, seja de um professor da escola, seja de um aluno (já dançarino ou que estuda dança em cursos livres) que almeja criar um grupo de dança no ambiente escolar. (STRAZZACAPPA, 2003, p. 76) Esse trecho evidencia a questão ainda atual sobre o lugar que a dança ocupa na escola em que atuo, em atividades extracurriculares e não dentro da grade curricular. A partir da minha experiência na escola pública de São Paulo, problematizo também meu projeto que é realizado dentro da expansão curricular21 no Ensino Integral apenas com três turmas e não com todos os estudantes da escola. Essa foi uma iniciativa minha, enquanto professora da rede, pelo desejo de pensar em outras possibilidades de ensino de arte, dentro da atual escola que leciono, que apoia uma iniciativa como essa e oferece o apoio possível com recursos físicos, materiais e humanos para realização do projeto. Ao perceber o espaço/tempo que meu projeto ocupa dentro da escola e a quantidade de estudantes participantes (somente as turmas de Ensino Integral), reconheço pontos que ainda precisam ser trabalhados para que de fato as ações e iniciativas pedagógicas transformadoras possam se solidificar nesse espaço e fazer com que se tornem mudanças permanentes, no sentido de que projetos como esse possam integrar o Projeto Político Pedagógico da escola e que essas possibilidades e experiências artísticas sejam ampliadas para atingir mais turmas e, consequentemente, mais estudantes. São questões como essa que evidenciam as fragilidades do ensino de dança na escola, que apesar do grande esforço de se realizar em projetos extracurriculares, não se concretiza dentro da grade curricular com a maioria dos estudantes da escola. O projeto foi realizado no período do Território do Saber, que compreende o período entre os turnos da manhã e da tarde (entre 12h e 13h30) nas turmas do Ensino Integral. Os projetos que integram o Território do Saber não são optativos, portanto, é obrigatória a participação de todos os estudantes matriculados nessas turmas, o que difere de um projeto optativo extracurricular para estudantes interessados em dança. Desde seu início em 2020, o projeto trouxe inúmeros desafios como organização do espaço e logística dentro da rotina dos alunos do primeiro ano, tais desafios ficaram perceptíveis nos dois primeiros meses de realização (fevereiro e março de 2020), porém quando a escola precisou ser fechada diante da pandemia global22, novos desafios foram colocados à prova dessa 21 A expansão curricular foi uma das formas de ofertar novos espaços de tempo na Educação Integral. 22 O ano de 2020 transcorreu de maneira inusitada. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) anunciou em 26 de março as orientações de distanciamento social, considerando a Declaração de Emergência em Saúde Pública 35 experiência. O projeto precisou ser suspenso de forma presencial e os estudantes recebiam atividades semanais, de forma online, as quais necessitavam de auxílio e mediação das famílias. No ano de 2021, todos os projetos do Território do Saber tiveram que ser adaptados para um único objetivo: recuperação de aprendizagem nas linguagens de português e matemática, devido às dificuldades que os estudantes apresentaram após o isolamento social no ano de 2020. Todos os projetos passaram pela supervisora da escola e precisavam estar de acordo com as instruções normativas regentes do período, o que implicou na adaptação do projeto a fim de se encaixar em um modelo posto pela Secretaria Municipal de Educação. Diante dessa situação vivida pelo projeto Arte no Corpo, penso o quanto ainda é preciso reforçar a necessidade e a importância das linguagens de arte no ensino básico. Durante a pandemia, o lugar da disciplina de artes foi, mais uma vez, colocado à parte enquanto aprendizado, dando lugar à exclusividade de propostas de reforço de português e matemática, limando outras possibilidades de Projetos Mais Educação23, por exemplo. Percebemos assim que o componente curricular de Artes na escola pode ser subjugado, colocado de lado diante de outras “prioridades”, principalmente ao pensar na linguagem da dança. Apesar de terem se passado vinte anos, o texto de Strazzacappa (2003) defende a dança enquanto linguagem potente em si: Evidenciam-se nesses objetivos dois extremos. De um lado, a concepção romântica da dança, isto é, a dança como “salvadora dos males do mundo”, e, na outra ponta, uma concepção concreta e utilitária de dança – a dança como ferramenta para os desenvolvimentos motor, psicológico, social e afetivo, ou para a apreensão direta de conceitos de outras disciplinas. (STRAZZACAPPA, 2003, p. 77) É relevante perceber o quanto a linguagem da Dança é colocada junto à Educação Física, seja nas apresentações de final de ano quanto em outras datas e comemorações festivas. Apesar de as duas áreas, dança e educação física, possuírem confluências, como a cultura corporal, consciência do movimento, a importância de manter o corpo ativo e saudável, ainda assim é preciso e necessário reforçar a dança enquanto linguagem da arte com seus códigos e conhecimentos específicos em si. A autora Márcia Strazzacappa levanta a questão dos diversos nomes para o ensino de dança na escola e, mais uma vez, reforça a importância de legitimar a dança como educação: Toda dança promove transformação, logo, toda dança é educação. É por esta razão que termos como ‘dança educativa’, ‘dança expressiva’, ‘dança criativa’ e tantas outras nomenclaturas para nomear a dança trabalhada na escola devem ser evitadas. Internacional feita pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 30 de janeiro em razão da pandemia de Covid- 19, doença causada pelo SARS-CoV-2, o novo coronavírus. (ANDRADE; SANTOS; BANOV, 2021). 23 Projetos Mais Educação são projetos extracurriculares que podem ser realizados por professores da rede municipal de ensino, antes da pandemia podiam ser projetos de diversos temas, agora só podem ser reforço de português e matemática. 36 A dança em si já é educativa, expressiva e criativa, dispensando adjetivos. Se não é constituída desses três fatores, então, simplesmente não é dança. (STRAZZACAPPA, 2009, p. 44) Tais questões se fazem presente na pesquisa ao pensar na dança realizada na escola, uma dança que não se limita a códigos técnicos como os de: dança clássica, dança moderna, danças urbanas e, sim, uma dança que possa contemplar os corpos ali presentes, todas as potências criativas e expressivas de cada estudante, que valorize e reconheça as diferenças para que possa transcender limites que foram preestabelecidos por um passado, ainda que recente, sobre a visão do ensino de dança na educação básica. A presença da dança no espaço escolar pode transformar a percepção que os estudantes possuem sobre seus corpos em desenvolvimento e os professores e gestão, ao pensarmos que os corpos docentes e discentes se relacionam nesse espaço e compartilham de uma mesma rotina que promove um repertório gestual e de movimentação. Ao levar em consideração a figura de referência que o professor se torna, é também responsabilidade do educador se colocar em movimento. Sobre o professor que se torna referência para os estudantes, Strazzacappa (2001, p. 78) nos diz: Assim, diante de uma classe de crianças, queiramos ou não, somos sempre um modelo para a imitação pela mimesis. Dessa forma, acredito que os cursos de formação de professores, seja a graduação em Pedagogia ou as demais licenciaturas específicas, deveriam pensar com seriedade no oferecimento de disciplinas de cunho artístico corporal. A escola é um ambiente no qual a estrutura disciplinar autoriza ou desautoriza a mobilidade dos corpos que ali estão. O corpo docente é um corpo que tem autorização para circular entre os ambientes da escola apesar de também possuir restrições, tal qual o corpo discente, os estudantes. Ao propor uma atividade para o espaço externo da sala de aula, o corpo docente é cobrado constantemente sobre os riscos envolvidos dos corpos em movimento, que podem ser de alguma criança se envolver em acidente ou outros acontecimentos. Fica ressaltado o aspecto negativo de risco do movimento e nunca os benefícios e a potência de vida expressas pelas ações e dinâmicas ativas. Apesar de existirem propostas de trabalho e de projetos na escola em que os estudantes brincam, se movimentam, exploram outros ambientes escolares, existem regras e contradições que os próprios alunos já questionaram. Uma delas é o espaço do corredor de entrada da escola, um local amplo e vazio. No momento em que o portão se abre, os alunos entram correndo, brincando de pega-pega ou apostando corrida com os colegas, e a regra estabelecida na cultura do ambiente escolar é restritiva: não pode correr no corredor. 37 Ainda que seja necessária uma organização que garanta a segurança dos corpos discentes na escola, na maior parte do tempo de permanência do aluno na escola é exigido que permaneça sentado em sua carteira. O estímulo ao movimento é restrito e está associado à bagunça e desordem. Diante de tantos receios e responsabilidades, é difícil que uma professora sozinha realize uma atividade diferenciada com a presença de mobilidades e diferentes ativações de estados corporais com um grupo de, em média, trinta estudantes. As restrições impostas direta ou indiretamente somadas à rotina de uma grade de horários limitada e espaços restritos são desestimulantes para a realização de propostas que saiam do formato sala de aula com carteiras e crianças sentadas. São circunstâncias que parecem pequenas, porém geram bastante estresse, tais como sair da sala de aula e se deparar com os portões trancados, ausência de chave, necessidade de auxílio dos inspetores, que são poucos e possuem muitas tarefas, os barulhos gerados pelos estudantes fora da sala de aula, os ruídos que podem atrapalhar outras turmas, são incômodos que dificultam a realização de novas atividades e experiências dinâmicas. Todos esses desafios diários, que muitas vezes podem desestimular a prática criativa do professor, mostram como a escola pode ser um ambiente muito limitante no que diz respeito à exploração de movimentos, gestos, expressões, que são fundamentais na construção do sujeito e de sua identidade cultural24. Paulo Freire (1996, p. 41) escreve que: Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Para ampliar esses conhecimentos trazidos pelo autor, acredito que esses processos de assunção devem ser assimilados fundamentalmente pelo professor que pensa e reflete criticamente sua prática e que, no exercício de refletir sobre sua formação, tome consciência das lacunas existentes nesse processo e as transformações necessárias para que ele(ela) não se torne um reprodutor de práticas contraditórias dessa forma de pensar e agir na escola. É importante ressaltar que a própria implementação da dança na escola gera uma exploração de movimentos e expressões que vão no sentido contrário ao que é ensinado, que é a permanência do aluno sentado em seu lugar. “[...] Professores e diretores lançam mão da imobilidade física como punição e da liberdade de se movimentar como prêmio [...]” (STRAZZACAPPA, 2001, p. 70). Não é raro ver uma situação na escola em que o aluno 24 “A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista [...].” (FREIRE, 1996, p.41-42) 38 “perde” o intervalo (é obrigado a ficar sentado na sala de aula junto com a professora) por ter tido um comportamento inadequado durante a aula. E com a pandemia, as restrições físicas aumentaram os desafios relacionados ao ambiente escolar. O uso restrito de espaços, o controle dos corpos para se manterem distantes limitou e piorou a relação entre as crianças, a forma de olhar para si e para o outro. Pudemos observar que o número de casos de agressões físicas e verbais aumentaram, crises de ansiedade e choro, apatia, automutilação, todas essas formas de agir do/no corpo se intensificaram após os dois anos de isolamento social e que gerou preocupação dos educadores sobre o acolhimento dessas demandas na escola. As pautas das reuniões pedagógicas e os momentos de formação coletiva foram utilizados como espaço de discussão acerca desse cenário escolar após o período de isolamento social. Muitos professores relataram casos de estudantes que estavam apresentando sintomas de alterações de ordem psíquica e física como: dificuldade de concentração, apatia, falta de ar, angústia, dor no peito, entre outros sintomas que ficaram evidentes como consequências da pandemia. Certamente, nós professores não temos formação necessária para identificar e designar tais sintomas a alguma doença ou transtorno psíquico nos estudantes, porém pudemos perceber que tais assuntos e demandas se tornaram pautas urgentes na escola. As consequências e marcas deixadas pelo período de pandemia afetaram toda a comunidade escolar que teve, em seus corpos, marcas deixadas pelos anos de distanciamento social. A falta de rotina e socialização escolar fez com que o convívio e as relações entre estudantes, professores e gestão entrassem em desequilíbrio, que acabaram gerando situações de conflito. É importante lembrar que a escola que foi deixada no mês de março de 2020 não existe mais, foi transformada, afinal, as pessoas que compõem esse espaço também passaram por transformações. Tais transformações físicas, emocionais e estruturais, que geraram diferentes consequências na sociedade, foram trazidas para o espaço escolar, como um reflexo do contexto local da comunidade. De acordo com Katz (apud ANDRADE; SANTOS; BANOV, 2021, p. 76), “Cognitivamente, não somos mais os mesmos. A convivência que viemos intensificando com as telas que ainda nos rodeiam não produz mudanças genéticas, mas altera nossos hábitos cognitivos.” Além das problemáticas relacionadas às consequências da pandemia, a implementação de um projeto de dança na escola envolve também as próprias questões do ensino de dança na escola. 39 Na escola, seja em atividades extracurriculares, seja na sala de aula de artes, a linguagem da dança nos provoca a pensar como: reconhecer e legitimar o ensino da dança como linguagem artística, desvinculando de outras linguagens como a da música, das artes cênicas ou da educação física; pensar a dança como projeto possível de ser aplicado dentro da grade curricular na escola pública e que não sirva como “ocupação” para os alunos fora do horário de aula; entender algumas problemáticas do ensino de dança na escola formal, como utilização do uniforme escolar, os projetos extracurriculares, a necessidade de se criar um “produto” (dança ou apresentação de final de ano ou em festas da escola para os pais e comunidade verem o trabalho realizado); formação dos professores de arte, diferentes metodologias e técnicas aplicadas à dança, espaço adequado para aulas práticas de dança, materiais disponíveis para o trabalho com os estudantes, apreciação e fruição em dança, tempo adequado de aula, entre outras questões e fatores que podem ser facilitadores de projetos artísticos de dança na escola. Coloco esses questionamentos como problemas atuais da rotina como professora de Artes da rede pública, e discuto alguns aspectos que, ao longo da realização do projeto de pesquisa, se tornaram objeto de investigação e de reflexão. A partir da perspectiva da educação como processo de transformação, me aproximo e dialogo com esses autores já citados – Paulo Freire, Márcia Strazzacappa e Isabel Marques – ao falarem sobre os processos de transformação significativa de aprendizagem ao lerem o mundo, seja através da arte ou da dança. Paulo Freire é leitura fundamental para educadores/ensinantes que pensam sua prática como ato de aprendizado mútuo. Em seu texto Carta de Paulo Freire aos professores, Freire conta sobre a alfabetizanda nordestina que transforma a experiência cotidiana em “experiência escolar”, quando percebe que, ao fazer cerâmica para sobreviver, também faz cultura, faz arte. Da mesma forma, no contexto de ensino de artes com ênfase em dança, é imprescindível que a criança ao fazer a transição da “experiência cotidiana” para a “experiência escolar”, sinta a importância da relação entre o “dançar cotidiano” como forma de manifestação artística e cultural. Desta forma, a experiência particular da criança torna-se parte do processo dialético entre consciência e mundo, citado pelo autor. Isso cria um vínculo efetivo entre as experiências do ensinando e a “generalização escolar”, o que torna o processo muito mais efetivo e nunca dicotomizado. Todo o processo é mediado pelo educador, que aprende com a experiência cotidiana da criança e se recria nessa prática conjunta. Ao falar sobre a mediação do educador e do educando, nesses processos de aprendizagem mútua, acredito que esses espaços de troca no ambiente escolar possam ser 40 multiplicadores de relações pautadas pelo respeito, pela escuta, que possam fortalecer o coletivo e o cotidiano escolar. Isabel Marques, sobre as relações, nos diz que: “[...] As relações, ao contrário, têm como definição a transcendência, a possibilidade e a capacidade humana de vislumbrar e viver horizontes que não se resumem à sobrevivência cotidiana.” (MARQUES, 2010, p. 34). Penso que no contexto em que atuo, infelizmente, diante de tanta desigualdade, muitas famílias precisaram lutar para a sobrevivência cotidiana e o quanto isso pode ter gerado de sofrimento às crianças que não têm ainda uma dimensão consciente da crise gerada na pandemia. A retomada do atendimento presencial da escola foi capaz de garantir o básico para seu desenvolvimento como: alimentação, estudos e a relação/convivência com outras crianças. Nessa caminhada contínua de construção do espaço escolar, precisamos sempre ir além da necessidade básica e sermos capazes de oferecer ao estudante um ambiente de aprendizagem e convívio amparado pelo respeito e igualdade. E diante dos desafios da educação em relação ao ensino que ocorreu durante a pandemia, busquei realizar um caminho coerente com as questões apontadas, com o desenvolvimento do projeto na escola alinhado ao pensar e fazer dança na escola, adaptado à realidade que nos foi imposta desde março 2020, reconstruída em 2021 e com diferentes perspectivas em 2022. 1.4 Projeto Arte no Corpo na pandemia (2020/2021) Foi criado um cartaz de divulgação do projeto Arte no Corpo (Figura 5) em 2020. Figura 5 – Cartaz Fonte: Criação da autora 41 1.4.1 Os tempos atravessados pela pandemia Após ter conquistado um número maior de aulas de arte por semana (ao invés de uma aula, foram três aulas por semana) e com desejo de usar outros espaços dentro do CEU, iniciei um projeto de aulas práticas de arte, com ênfase nas linguagens da dança e do teatro, focando no corpo, no movimento e na expressão corporal com os alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental. Pude contar com o apoio da gestão escolar e com a utilização da sala de dança dentro do CEU Parque Anhanguera. O projeto se chamava Arte no Corpo: Dança, Movimento e Expressão Corporal. O projeto artístico foi aprovado pelo Conselho de Escola e pela gestão e teve início em fevereiro de 2020. Os alunos do primeiro ano foram recepcionados com uma dinâmica de integração entre todos os professores que iriam atuar dentro do programa de Ensino Integral. Diante desse primeiro contato, os estudantes recém-chegados da EMEI, que agora estavam na escola de Ensino Fundamental, tiveram uma surpresa: aulas de Arte com uma professora de Artes. Diferente do Ensino Infantil onde tinha somente uma professora para todas as atividades, iriam se relacionar com mais de um professor ou professora. Todo o período de adaptação foi repleto de boas novidades. Para o desenvolvimento do projeto utilizamos um espaço diferenciado da sala de aula, a sala de dança do CEU Parque Anhanguera, onde os estudantes tiveram seu primeiro contato com as aulas de Artes em uma sala sem carteiras e cadeiras, um espaço com espelhos, barra, aparelho de som e colchonetes. Nesse espaço, apropriado para a prática artística, estudantes puderam descobrir e experimentar novas possibilidades motoras, expressivas e relacionais. Os encontros do projeto, naquele momento, consistiram em experiências, mediadas por mim, que buscavam integrar as artes cênicas utilizando: narrativas, histórias, jogos, brincadeiras, músicas entre outros recursos pedagógicos. As crianças foram convidadas a descobrir a arte com o corpo em movimento. Com a pandemia, no final de março de 2020, o projeto precisou ser suspenso, toda a escola entrou em recesso provisoriamente e, posteriormente, em trabalho remoto. O retorno presencial era avaliado mês a mês a partir das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os funcionários da escola, professores e estudantes deram continuidade a seus trabalhos e estudos em casa. Os professores se reuniam 42 com os coordenadores e preparavam atividades que eram enviadas através do Google Sala de Aula, WhatsApp e o Blog da EMEF25. No ano de 2021, as escolas retornaram ao ensino presencial, porém no primeiro semestre com diversas restrições e com apenas 30% dos estudantes em sala de aula. É de se considerar que no primeiro semestre do ano de 2021 os profissionais da educação e os estudantes retornaram de forma presencial à escola sem terem tomado a vacina contra Covid-19, que só foi garantida no mês de junho de 2021. Nesse momento os projetos do Território do Saber tiveram que ser adaptados para a recuperação de aprendizagens em português e matemática. Todos os projetos tiveram que colocar em seu planejamento os objetivos e as justificativas para que continuassem sendo feitos na escola. No projeto Arte no Corpo adaptei as atividades assíncronas para que as temáticas se relacionassem de alguma forma com comunicação, expressão e linguagem (relação com português) e noções espaciais e de tempo (relação com estudos matemáticos). No segundo semestre de 2021, no mês de agosto, as aulas do projeto retornaram ao ensino presencial, po