1 TERESA AUGUSTA MARQUES PORTO MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA Análise de narrativas das Antologias Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX e Konjakumonogatarishuu, Antologia de Hoje e Antigamente, séc. XII ASSIS 2019 2 TERESA AUGUSTA MARQUES PORTO MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA Análise de narrativas das Antologias Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX e Konjakumonogatarishuu, Antologia de Hoje e Antigamente, séc. XII Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para obtenção do título de Doutora em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador: Prof. Dr. Francisco C. Alves Marques. ASSIS 2019 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vânia Aparecida Marques Favato - CRB 8/3301 P853m Por o, Teresa Augusta Marquest / . , . Mulheres na literatura japonesa setsuwa budista: análise de narrativas das antologias Nihon Ryouiki, Livro dos mila- gres do Japão, séc. IX e Konjaku Monogatarishuu, Antologia de hoje e antigamente, séc. XII. Teresa Augusta Marques Porto Assis 2019 .100 f - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Tese de Doutorado Orientador: Dr. Francisco Claudio Alves Marques 1. Literatura japonesa. 2. Mulheres - Japão. 3. Japão - História. 4. Budismo - Japão. I. Título. CDD 895.63 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA: Análise de narrativas das Anto logias Nihon Ryoik i , L ivro dos Mi lagres do Japão, séc IX e Konjakumonogatarishu, Antologia de Narrativas de Hoje e Antigamente, séc.XII   TÍTULO DA TESE: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTORA: TERESA AUGUSTA MARQUES PORTO ORIENTADOR: FRANCISCO CLAUDIO ALVES MARQUES Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Doutora em LETRAS, área: Literatura e Vida Social pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. FRANCISCO CLAUDIO ALVES MARQUES Departamento de Letras Modernas / UNESP/Assis Profa. Dra. KATIA APARECIDA DA SILVA OLIVEIRA Instituto de Ciências Humanas e Letras / UNIFAL/Alfenas Profa. Dra. MONICA SETUYO OKAMOTO Departamento de Letras Estrangeiras Modernas / UFPR/Curitiba Profa. Dra. ELIANE APARECIDA GALVÃO RIBEIRO FERREIRA Departamento de Linguística / UNESP/Assis Prof. Dr. ANDRÉ FIGUEIREDO RODRIGUES Departamento de História / UNESP/Assis Assis, 12 de agosto de 2019 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, 19806900, Assis - São Paulo www.assis.unesp.br/posgraduacao/letras/ 5 PORTO, Teresa Augusta Marques. MULHERES NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA. Análise de narrativas das Antologias Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX e Konjakumonogatarishuu, Antologia de Hoje e Antigamente, séc. XII. 2019. 99 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2019. RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar personagens e protagonistas femininas presentes nas antologias literárias japonesas setsuwa budistas Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, ou “Histórias Miraculosas de Retribuição Cármica do Bem e do Mal no Japão”, compilada pelo monge Kyoukai no século IX; e na Konjaku Monogatarishuu, “Coletânea de Narrativas de Hoje e Antigamente”, de autoria desconhecida. Para tal, utilizou-se como metodologia a análise literária, em especial o enfoque das narrativas voltadas para o heroico-miraculoso. O estudo também permite considerar o papel da mulher na sociedade desse período histórico Heian (794-1185). Tem como hipótese a multiplicidade de faces do feminino, porém restrita em relação à representatividade masculina em termos de protagonismo. O interesse deste presente trabalho é apresentar reflexões sobre o tratamento ao papel da mulher nessas narrativas, a partir de sua correlação com a visão do budismo original no tocante à questão soteriológica, ou doutrina da salvação. Palavras-chave: Literatura japonesa setsuwa. Literatura japonesa setsuwa budista. Período histórico Heian (794-1185). Protagonismo feminino. 6 PORTO, Teresa Augusta Marques. WOMEN IN THE BUDDHIST SETSUWA JAPANESE LITERATURE. Analysis of narratives of Nihon Ryouiki, The Book of Miracles of Japan, IX century and Konjakumonogatarishuu, Narratives of Today and Past, XII century. 2019. 99 f. Thesis (Doctor Degree) – São Paulo State University (UNESP), Science and Letters College, Assis, 2019. ABSTRACT This paper aims to analyze female characters and protagonists present in the buddhist setsuwa Japanese literary anthologies Nihonkoku genpou zen'aku ryouiki, or “Miraculous Stories of the Karmic Retribution of Good and Evil in Japan,” compiled by the monk Kyoukai in the ninth century; and in the Konjaku Monogatarishuu, “Collection of Narrative of Today and the Past”, of unknown authorship. The literary analysis was used as methodology, especially the approach focused on the miraculous- heroic. The study also allows to consider the role of women in the society of this historical period Heian (794-1185). It has as hypothesis the multiplicity of female faces, but restricted in relation to male representativeness in terms of protagonism. The purpose of this paper is to present reflections on the treatment of the role of women in these narratives, from their correlation with the view of original buddhism, regarding the soteriological point, or the doctrine of salvation. Keywords: Japanese literature setsuwa. Japanese buddhist setsuwa literature. Heian Historical Period (794-1185). Female protagonism. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 06 2 A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BUDISMO ORIGINAL 10 2.1 O Sutra do Lótus. A Princesa-dragão 10 2.2 A representação feminina no Japão. Primórdios. Crônica de viagem chinesa séc. III. Kojiki, Registro das coisas antigas, séc. VIII. Taketori Monogatari, A Narrativa do Cortador de Bambu, c. séc. VI 13 3 A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NA LITERATURA JAPONESA SETSUWA BUDISTA 21 3.1 Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, Histórias Miraculosas de Retribuição do Bem e do Mal no Japão, ou Nihon Ryouiki, Livro dos Milagres do Japão, séc. IX. Konjaku Monogatarishuu, “Narrativas de Hoje e de Antigamente; finais do séc. XII 21 3.2 Narrativas Setsuwa laicas e budistas. Alguns cotejos. A sociedade de Heian (794-1185) 21 3.3 Análise de três narrativas: Uma mulher disfarçada de raposa; uma mulher que sobe viva aos Céus; uma mulher que desce ao reino dos mortos 21 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 86 REFERÊNCIAS 89 ANEXO 1 - O RECORTE FOTOGRÁFICO DAS REPRESENTAÇÕES DE KANNON NO SUTRA DO LÓTUS 93 ANEXO 2 - A MULHER QUE SOBE VIVA PARA O CÉU 94 ANEXO 3 - A MULHER QUE DESCEU AO REINO DOS MORTOS E VOLTOU VIVA 95 ANEXO 4 - UMA RAPOSA TRAVESTIDA DE MULHER 97 6 1 INTRODUÇÃO A identificação com as lendas, contos, folclore, como os estudiosos da narrativa setsuwa a conceituam na década de 1920 no Japão, quando se empreende estudo acadêmico sobre este tipo de narrativa, levou-me, no mestrado na Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro, de 2003 a 2007, ao tratamento de três narrativas japonesas do Konjaku Monogatarishuu, ou “Coletânea de Narrativas de Hoje e Antigamente”, compilação de autoria desconhecida do final do século XII e também do período histórico Heian (794-1185). Nesse estudo anterior, foi possível identificar a previsão do Buda Sidarta, o buda histórico, Shakyamuni Butsu no Japão, no séc. VI a C, de algumas das trinta e três, ou infinitas, formas de transformações, mensageiros ou máscaras, como preferimos conceituar, da divindade budista da Compaixão, Avalokiteshvara na Índia, na China Kuan Yin ou Guan Yîn, no Japão Kannon Bosatsu, após a descoberta desse gênero de narrativa, na disciplina no curso de pós-graduação “Konjaku Monogatarishu, um estudo do gênero setsuwa”, ministrado pela Profa. Dra. Luiza Nana Yoshida, a partir do qual passamos a aprofundar nossa pesquisa. Konjaku Monogatarishuu é obra já apresentada ao universo acadêmico brasileiro pela pesquisa da Profa. Luiza Nana Yoshida por sua pesquisa de doutorado, com análise de narrativas laicas e atualmente em conjunto a Profa. Dra. Neide Hissae Nagae e pesquisadores no Centro de Estudos Japoneses da USP, também contemplando o universo budista. O trabalho do monge Kyoukai, com o Nihon Ryouiki, ou “ O Livro dos Milagres do Japão”, do século IX, é ainda de certo modo inédito, pois que apresentado na tradução do japonês para o inglês por Nakamura Kyoko Motomochi, da Universidade de Harvard. Com a discussão frequente do papel do carma na existência dos seres humanos, achamos interessante trazer a discussão do impedimento ou permissão da mulher ao patamar máximo da iluminação espiritual, ou nirvana, a partir do próprio título completo dessa que é uma das antologias consideradas, Nihon Ryouiki ou Nihonkoku genpou zen’aku ryouiki, “Histórias Miraculosas de Retribuição Cármica do Bem e do Mal no Japão”, o que pode permitir iluminar os conceitos de merecimento, milagre e maravilha. No mestrado tive a oportunidade de traduzir e analisar três narrativas que destaquei como significativas quanto à presença do salvacionismo da divindade budista da compaixão, ou misericórdia, Kannon, em torno de cuja devoção espalharam-se incontáveis relatos miraculosos. Nessas narrativas destacam-se três tipos 7 de demônios que serão vencidos: o oni, espécie, legião de ogros; o espírito-raposa, disfarçado de mulher e o próprio ser humano, em sua face mesquinha, capaz de infringir aos demais danos e sofrimento, por vingança, ambição ou desequilíbrio psíquico e espiritual. Dando prosseguimento à pesquisa no doutorado na Universidade Estadual Paulista, UNESP, Campus de Assis, onde também leciono, desde finais de 2010, Iniciação ao Curso de Japonês, Literatura Japonesa, Imigração Japonesa e Mestres da Literatura Japonesa, tive como orientadores o Prof. Dr. Antônio Roberto Esteves, da Área de Espanhol, e o Prof. Dr. Franscisco Claudio Alves Marques, da Área de Italiano, o primeiro dedicado ao estudo do romance histórico e o segundo às narrativas medievais italianas e ao cordel nordestino. Move-nos, também, a procura das vozes autorais e narrativas, bem como seus focos e gêneros no tratamento da figura da mulher na literatura budista em seus primórdios e na literatura japonesa antiga e medieval, e em alguns exemplos através dos séculos, seguindo-se a trilha da literatura heroico-miraculosa. Trata-se de uma questão primordial ao se tratar da situação da mulher na narrativa setsuwa budista, sem dúvida influenciada pela ótica de merecimento no budismo original. Em nossos estudos nestes últimos anos, pudemos contrastar algumas particularidades que marcam, em termos de diferença, o protagonismo dos personagens femininos das narrativas setsuwa budistas com o das laicas. Neste sentido, o presente trabalho propõe-se a contribuir com a discussão do fato miraculoso em narrativas setsuwa que começam a ser traduzidas pelo Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo e que já foram tema de nossa dissertação de mestrado, que envolveu a tradução de três narrativas budistas do Konjaku Monogatarishuu. O budismo, nascido na Índia, no século VI antes da era comum, chega ao Japão no século VI, via Coreia e China. Kannon, a Mãe Compassiva, advinda da divindade indiana Avalokiteshvara, desempenhará importante papel cultural e religioso, por volta do século XII será firmada como figura feminina. A devoção a Kannon pode ser verificada na narrativa budista 17, do Tomo XVI do Konjaku Monogatarishuu, compilação de finais do século XII, de autoria desconhecida, que será de novo analisada neste estudo. As duas outras narrativas, pertencentes ao Nihon Ryouiki, compilação do século IX, girarão em torno do merecimento da reta conduta e da cópia e recitação de sutras, recomendadas pelo budismo. Ambas significam ganho de méritos espirituais que 8 lançam luzes sobre os prodígios compilados e reinterpretados pelo monge Kyoukai, ou Keikai (NAKAMURA, 1997), cujo teor reconhecidamente revolucionário também discutiremos nesta pesquisa. Enquanto compilador, com sua releitura doutrinária da memória budista original sobre o papel da mulher em texto das primeiras traduções (Índia para a Ásia, sécs.III a. C. a III) do Sutra, ou Sermão, do Lótus, “permite-lhe” a possibilidade de iluminação espiritual, em uma releitura de narrativas originais. Tal postura aparece em especial na narrativa “Sobre uma mulher que agia de modo extraordinário, comia ervas sagradas e subiu viva para o Céu” . Este Céu poderia ser o Nirvana, estado de bem-aventurança suprema; ou talvez uma Terra Pura, território benfazejo e preparatório para o Nirvana., a que homens e mulheres teriam acesso após a morte física, e mesmo sendo imperfeitos, mas por serem confiantes em votos compassivos de budas. Temos então que o destaque se dá pelo fato de a protagonista fazer viva esta travessia, guiada por anjos e, como a seguir se verá, por não ter escapatória em termos de inserção social. O Tao e o budismo trazem exemplos de mestres ou personagens ilustres que foram agraciados com o privilégio de passarem para o mundo estritamente espiritual sem terem sido colhidos pela morte física, como o sábio chinês taoista Lao Tsé, que teria sido visto encaminhando-se para o paraíso Shambhala montado em um búfalo; e, também, o mestre indiano Zen Boddhidharma, que teria sido visto, também rumo a Shambhala, depois de ter sido assassinado, segurando apenas uma sandália e deixando a outra na sepultura como um recado incontestável. Na bíblia judaico‐cristã conhece‐se o exemplo de Maria, Mãe de Jesus, o do profeta Isaías e de Enoque, avô de Noé, arrebatados para o mundo espiritual sem passarem pela morte física. A protagonista do Nihon Ryouiki que alça aos Céus viva testemunha que o maravilhoso será tratado como sinonímia de ganho miraculoso e caminho heroico, fruto de esforço pessoal e de compartilhamento de qualidades (sobre naturais de espíritos realizados (PAUL, 2000). É nossa proposta refletir sobre o tratamento à mulher no universo das narrativas japonesas setsuwa miraculosas budistas, em contexto social e histórico-doutrinário do budismo original que, para alguns intérpretes, vedaria o acesso da mulher à realização espiritual, como poderia ser depreendido do Sutra do Lótus, último sermão do Buda histórico Sidarta Gautama, na Índia do século VI antes da era comum; para outros, como teóricos da escola Nichiren, considerada o Lótus vivo, Shakyamuni não teria fechado tal porta às mulheres. Um ponto importante de cotejo nos pareceu a visita ao 9 episódio da princesa-dragão, menina de oito anos, filha do célebre Rei Naga, devoto budista, menina essa que se ilumina mesmo sendo mulher, ou, em outro ângulo, sendo mulher realizada, mostraria essa “façanha” para uma plateia masculina de monges, narrada no Capítulo XII do Sutra do Lótus; e, também, como contraste, realizar cotejos temáticos e críticos entre narrativas budistas e laicas, compiladas nas antologias citadas. Foram escolhidas para estudo focal desta tese as narrativas: 17 do Tomo XVI da Seção Budista do Konjaku Monogatarishuu, “Como Kaya-no Yoshifuji, de Bichuu, tornou-se marido de uma raposa e foi salvo por Kannon”, traduzida do japonês por mim para o português durante meu mestrado com a supervisão da Dra. Madalena Cordaro; a Narrativa 19, do Tomo II do Nihon Ryouiki: “Sobre a visita ao palácio do Rei Yama por uma mulher devota do Shingyou, e o Evento extraordinário que se seguiu” e a Narrativa 13, também do Nihon Ryouiki, mesmo tomo, “Sobre a mulher que agia de modo extraordinário, comia ervas e voou viva para o Céu”. As narrativas trazem exemplos de visões sobre a mulher que nos remetem ao seu papel social e também ao tratamento de sua condição na doutrina budista da época. 86 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda é tarefa investigativa constante refletir sobre as influências que a compilação de Kyoukai produziu no universo budista e mesmo laico das narrativas setsuwa. A voz autoral é masculina, a mulher sobe aos Céus por intermédio de sua leitura de vontade transformadora e também desce ao reino dos mortos e por ele passa ilesa, retornando à vida física. A divindade da Compaixão assume feições maternais e femininas em vários países que recebem o budismo, como a Coreia, a China, o Japão, o Vietnam. Considerada iluminada, bodhisattva, no japonês bosatsu, instaura um paradoxo interessante e desafiador, uma vez que bosatsu pode equivaler a buda e, também, é interpretada como força e presença femininasqu e convive com a interdição da iluminação à mulher. Importante considerar que, mesmo na narrativa religiosa budista, a mulher pode aparecer em tons desfavoráveis, como na antiga associação com a raposa em sua faceta ardilosa, nos exemplos de ryauko, ou espíritos-raposa, que capturam o homem lascivo, como na narrativa 17 do Konjaku Monogatarishuu, tratada na dissertação de mestrado em 2007, e que foi também trazida a este presente estudo para ênfase diversa, ou complementar. Note-se que as facetas das personalidades associadas a características animais traduzem matizes diversas em cada cultura em particular, como o dragão, temido na teogonia judaico-cristã como inimigo da virtude e representado pisado, vencido por seres iluminados como Maria, mãe de Jesus e São Jorge, no contexto do budismo chinês será o animal de poder de Guan Yîn, representante chinesa da Compaixão, conduzindo-a pelos ares para operar prodígios e salvamentos. No Sutra do Lótus aparece como a insigne sabedoria subterrânea dos nagas, relacionada com o reino de Sagara, pai da princesa-dragão. Na introdução pelo autor narrador, Ueda Akinari, no conto “O Caldeirão de Kibitsu”, da obra Ugetsumonogatari, ou Contos da Chuva e da Lua, século XVIII, representante da literatura kaidan ou “de terror, de fantasma, de medo”, as tendências negativas das mulheres são recordadas como um alerta à inabilidade dos homens frente aos sentimentos que jamais deveriam ser “acordados” nas mulheres e que giram, sempre, em torno do terrível sentimento do ciúme e que podem ter efeitos devastadores. Importante considerar também que o demoníaco ou perturbador também pode provir de figuras masculinas, como o oni, ou ogro, ora zombeteiro, ora predador, 87 destruidor terrível, como na narrativa religiosa 32 do Konjaku Monogatarishuu, estudada no mestrado, em que um grupo de oni aterroriza e ameaça um distraído transeunte que se esquecera de não atravessar uma ponte – território dos oni – ao crepúsculo, acabando por ser amaldiçoado com a invisibilidade, que ele curará com a postura de fé inabalável em Kannon. O estudo das influências dos tabus ou interdições culturais em termos sociológico-antropológicos também surge como provocação investigativa deste presente trabalho de pesquisa e que se relaciona com o papel da mulher enquanto destacada transmissora familiar de valores culturais. Outros papéis também merecem ser mais conhecidos, em ambas as antologias compiladas, como os da mãe abandonada e as consequências daí advindas, observando-se o registro ou interpretação do monge Kyoukai. Como já comentamos, pode-se notar a existência de territórios fantásticos no miraculoso; porém o miraculoso será entendido, na ótica budista, como decorrência natural da prática das virtudes. Nesse sentido, a performance da Princesa Dragão também poderia ser entendida como exercício de dom espiritual já obtido por méritos. Ou, a rigor, a protagonista contrariaria, ela mesma como mulher barrada na porta da iluminação, um impedimento muito claro, valendo-se de expediente quase mágico. De qualquer forma, não terá quebrado o veto, uma vez que se mostrou com a roupagem de um homem, podendo este expediente, também, ser interpretado como uma previsão de uma vida futura mais gloriosa. Também o aprofundamento de uma hipótese teórica surgida no decorrer destas reflexões foi a de que a realização da Princesa-dragão pode significar uma atribuição privilegiada de dons espirituais à civilização mitológica subterrânea dos dragões, ou nagas; e, principalmente, o aprofundamento do diálogo do discípulo Ananda com o próprio Buda histórico sobre o impacto dos sutras na audiência de seres, dentre eles as mulheres humanas. Objeto ainda de aprofundamento investigativo é a ligação do feminino com o conceito de mono-no aware, pathos, sentimento de tristeza e sensibilidade diante do efêmero. E, ao mesmo tempo, se nos reportarmos ao Kojiki, ou “Registro das coisas antigas”, primeira encomenda (viva) imperial de memória, mitologia e história no século VIII, como já se viu aqui nesta tese, aprofundar a interpretação das explicações cosmogônicas em que a mulher é apontada, dentre outras coisas, como causadora da falha e insucesso dos filhos criados. O papel do compilador do Nihon Ryouiki, monge Keikai, ou Kyoukai, destacou-se aos nossos olhos como muito expressivo e revolucionário, nos exemplos que já pudemos conhecer em que se resgata a mulher e 88 sua capacidade de iluminar-se, de voar, de transitar no mundo dos mortos, de sair do reino dos mortos, de voar viva para os Céus. A passagem do Sutra do Lótus, em que o discípulo Ananda pergunta ao Buda se todos merecem a iluminação e o Buda diz que sim, também merece continuidade de pesquisa, a fim de ser possivelmente dissociada da questão da ordenação religiosa de mulheres, que não significa necessariamente o reconhecimento da iluminação espiritual. A escolha destas narrativas deveu-se ao fato interessante de, no caso da personagem protagonista que sobe aos Céus, ela não ser especificamente caracterizada como uma devota budista mas ser referida rapidamente como concubina e isso permitir que se pense no universo das mulheres sem homens do período Heian, no caso uma ex- concubina que passa a viver de modo de tão frugal que é interpretado pelo compilador, um monge budista, como heroico. O interesse pela narrativa da mulher que desce no sonho ao reino de Yama – senhor da morte e julgador do carma no contexto hindu e no contexto budista visto, dentre outros olhares, como uma dramatização do encontro do morto com seu carma e a consequente memória dos fatos que ele relata, mas não julga – deu-se pelo fato de uma mulher primeiro merecer visitar tal reino e ter sua permanência ali dispensada, isto é, voltar à vida provavelmente pelo merecimento de ser devota do Sutra do Coração e ter tido escrituras budistas roubadas e por merecimento devolvidas à saída do palácio de Yama, permitindo à protagonista terminar de cumprir seu compromisso de prática espiritual. Na narrativa 17 do Konjaku Monogatarishuu a mulher do personagem enfeitiçado é primeiro uma espécie de nuvem, sem rosto, sem nome, mas com a força da esposa e da fidelidade conjugal, cuja quebra é punida pelo rapto de seu distraído e dissoluto marido por um ser espiritual também associado à mulher, que é o espírito-raposa. É também o espírito-raposa, sem nome, desde o início da narrativa ela mesma auto-denominada “ninguém”. A devotada copiadora e recitadora de sutras não tem nome, mas é fartamente caracterizada por virtudes adjetivadoras. 89 REFERÊNCIAS A Doutrina de Buddha/The Teaching of Buddha.Tóquio, Bukkyou Dendo Kyoukai- Buddhist Promoting Foundation. 1982. BAGYALAKSHMI.The Creation of Goddess of Mercy from Avalokiteshvara.In Chinese Buddhist Encyclopedia. Disponível em: http://www.chinabuddhismencyclopedia.com/en/index.php?title=Wisdom_Accumulated CHUNG, Tan (Ed).Across the Himalayan Gap. An Indian Quest for Understanding China.Nova Deli, Gyan Publishing House, 1998. 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