UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO DOUTORAMENTO EM DIREITO FUNDAMENTAÇÃO NATURAL E MORAL DAS OBRIGAÇÕES José Carlos Garcia de Freitas FRANCA-SP 2000 JOSÉ CARLOS GARCIA DE FREITAS FUNDAMENTAÇÃO NATURAL E MORAL DAS OBRIGAÇÕES Tese apresentada ao Curso de Pós- Graduação da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca, para a obtenção do título de Doutor em Direito (Área de Concentração: Direito das Obrigações). Orientador: Professor Doutor CHRISTIANO JOSÉ DE ANDRADE. FRANCA-SP 2000 DADOS CURRICULARES JOSÉ CARLOS GARCIA DE FREITAS Nascimento: 04/09/1949 – Batatais-SP Filiação: Ubirajara Alves de Freitas Iraydes Garcia de Freitas Graduações: Ciências Jurídicas e Sociais (1970/1974) – Faculdade de Direito de Franca (Municipal) – SP; Filosofia (1990/1992) – Faculdades Claretianas de Batatais-SP (Habilitações: Filosofia, Psicologia da Educação, História Geral e História do Brasil/Sociologia); Teologia (1993/1995) – Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto (CEARP) - Ribeirão Preto-SP; Letras (1996/1998) – Faculdades Claretianas de Batatais-SP (Habilitações: Língua e Literatura Portuguesas e Língua e Literatura Inglesas). Pós-graduação: Mestre em Direito (Área de Concentração: Direito das Obrigações) pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. Atividade Profissional: Advogado com inscrição na OAB (SP) sob o n.º 43.195. Procurador Municipal (Município de Batatais-SP). Atividade Docente: Professor Voluntário de Filosofia Geral e Jurídica e de Direito Romano na Faculdade de História, Direito e Serviço Social – Universidade Estadual Paulista - UNESP - Campus de Franca-SP; Professor de Filosofia Geral e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Franca (Municipal) – SP; Professor de Ética, Ontologia, Filosofia no Brasil e Filosofia Política do Curso de Filosofia das Faculdades Claretianas de Batatais-SP; Professor de História da Igreja do Curso de Teologia das Faculdades Claretianas de Batatais-SP; Professor de Direito Educacional (Curso de Pós-graduação) da Faculdade Unificada São Luís – Jaboticabal-SP. À memória de Ubirajara Alves de Freitas (meu pai). Temos, ainda, um novo encontro na Eternidade, porque, nunca mais, é tempo demais. À minha mãe, Iraydes Garcia de Freitas. Às minhas irmãs Maria Aparecida, Maria Rita e Terezinha de Fátima. Dedicatória Especial. À minha esposa, Marta Mariúcia, e às minhas filhas, Raíssa Helena e Rebeca Eugênia. Agradecimentos acadêmicos. A todos os Professores da UNESP - Campus de Franca-SP, pelo constante incentivo e pelo valioso apoio. Agradecimento especial. Professor Doutor Christiano José de Andrade. Uma paternidade espiritual acadêmica de extraordinária importância. Sabedoria, prudência e humildade são as suas maiores virtudes. É muito gratificante tê-lo em minha trajetória acadêmica. O meu reconhecimento pelas sábias lições. SUMÁRIO Introdução...................................................................................................... 1 1 A Origem do Direito.................................................................................... 5 1.1 Histórico........................................................................................ .......... 5 1.2 Voluntarismo.......................................................................................... 14 1.3 Naturalismo........................................................................................... 22 1.4 Ecletismo............................................................................................... 37 2 Ontologia e Axiologia.................................................................................. 44 2.1 Teoria dos objetos................................................................................. 44 2.2 Objetos físicos e psíquicos.................................................................... 47 2.3 Objetos ideais........................................................................................ 53 2.4 Os valores e o mundo do “dever ser”..................................................... 55 2.5 Os valores e o Direito............................................................................. 60 3 Direito, Ética e Moral.................................................................................... 65 3.1 Direito e Moral na Grécia e em Roma.................................................... 65 3.2 Direito e Moral na Idade Média.............................................................. 76 3.3 Direito e Moral na Época Moderna......................................................... 83 4 O Direito Positivo.......................................................................................... 93 4.1 Os fundamentos históricos do Direito Positivo....................................... 93 4.2 Direito Positivo e Política Social............................................................. 96 4.3 Direito Positivo e Estado Democrático de Direito................................... 100 5 Conceito de Obrigação................................................................................ 103 5.1 Histórico.................................................................................................. 103 5.2.Distinção: natural, moral e civil.............................................................. 108 6 Fundamentação Natural das Obrigações.................................................... 116 6.1 Histórico................................................................................................. 116 6.2 O mundo da natureza............................................................................ 121 6.3 Fato Social............................................................................................ 122 7 Fundamentação Moral das Obrigações..................................................... 125 7.1 Moral e Ética........................................................................................ 125 7.2 O conceito axiológico.......................................................................... 131 7.3 Direito Natural Transcendental Axiológico.......................................... 134 8 Obrigações e Teoria dos Valores............................................................. 139 8.1 A ação humana e os seus valores..................................................... 139 8.2 Os valores e as Obrigações............................................................... 144 9 Obrigações e Filosofia do Direito............................................................. 150 9.1 O culturalismo jurídico......................................................................... 150 9.2 Interpretação da norma jurídica.......................................................... 154 10 Obrigações e Eqüidade.......................................................................... 161 10.1 O conceito jurídico........................................................................... 161 10.2 Eqüidade no Direito moderno.......................................................... 165 10.3 Eqüidade, teoria da imprevisão e cláusula rebus sic stantibus....... 169 11 Eqüidade e Jurisprudência..................................................................... 173 11.1 A fundamentação moderna no Direito.............................................. 173 11.2 Obrigações e jurisprudência............................................................ 177 11.3 Jurisprudência e Ética....................................................................... 180 12 Direito e Justiça........................................................................................ 184 12.1 Fundamentação moderna................................................................. 184 12.2 A problemática dos valores na relação obrigacional........................ 188 12.3 Valor, princípio e sistema.................................................................. 191 Observações Finais...................................................................................... 195 Bibliografia.................................................................................................... 199 RESUMO FUNDAMENTAÇÃO NATURAL E MORAL DAS OBRIGAÇÕES A característica fundamental do ser humano é a inteligência. Isto o torna profundamente consciente dos seus respectivos valores. Neste sentido, o homem produz cultura constantemente. Particularmente, no mundo do Direito, o ser humano tem duas vertentes distintas: o Direito Natural e o Direito Positivo. O primeiro é uma herança arquetípica, o segundo corresponde a uma conquista empreendida em seu “habitat” natural. E apesar da evidente distinção, há uma relação cultural presente entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Estruturalmente, o Direito Positivo tem a sua verdadeira origem na Ética. É o resultado de um processo lento. Todavia, sempre dinâmico. Para todos os efeitos doutrinários, temos que a Ética é a essência da Moral. A presente tese de Doutoramento corresponde à Fundamentação Natural e Moral das Obrigações. A verdadeira essência do Direito Natural é a Ética que está presente na dignidade original do ser humano. Conseqüentemente, temos a efetiva influência da Ética nos mais recônditos fundamentos do Direito Positivo. Este trabalho acadêmico, portanto, demonstra a influência marcante da Ética na Fundamentação Natural e Moral das Obrigações. A temática Obrigações é a mais extensa do nosso Código Civil. Há juristas que defendem a idéia de um Código das Obrigações, considerando a complexidade que envolve a sua discussão problematizada no mundo do Direito. No princípio era a Ética e a Ética se fez no Direito. E o Direito se perpetua na Justiça, que sempre será a Ética. RÉSUMÉ FONDEMENT NATUREL ET MORAL DES OBLIGATIONS L‘intelligence c‘est la caractéristique fondamentale de l‘être humain. Cela lui fait devenir fort conscient de ses valeurs. Dans ce sens, l’homme fait toujours produire de la culture. En particulier, au monde du Droit l’homme est répandu dans deux sommets distincts: Le Droit Naturel et le Droit Positif dont le premier est un héritage archétypique et le deuxième s‘agit d’une conquête entreprise dans son “habitat” naturel. Malgré la distinction évidente il y a une rélation culturelle entre le Droit Naturel et le Droit Positif. Concernant la structure, le Droit Positif a vraiment tiré son origine dans la Science de la Moral. C‘est le résultat d’un lent procès, cependant tout à fait dynamique. Enfin, par tous les effets doctrinaires la Science de la Moral est l’essence de la moralité. Cette soutenance de Thèse au Doctorat s‘agit du Fondement Naturel et Moral des Obligations. La Science de la Moral est la vraie essence du Droit Naturel. Elle est toujours présente dans la dignité originelle de l’être humain. En conséquence, cette Science influe sur les fondements du Droit Positif les plus secrets. Ce travail académicien démontre donc la forte influence de la Science de la Moral sur le Fondement Naturel et Moral des Obligations. “Des Obligations” c’est le sujet le plus étendu de notre Code Civil. En considérant la complexité qui engage la discussion polémique dans les domaines du Droit, il y a des juristes qui défendent même l’idée d’un Code des Obligations. Au début c’était la Science de la Moral . La Science de la Moral a été fondée dans le Droit. Le Droit est perpétué dans la Justice qui sera toujours la Science de la Moral. RIASSUNTO FONDAMENTO NATURALE E MORALE DELLE OBBLIGAZIONI La caratteristica fondamentale dell’essere umano è l’intelligenza. Questo lo torna profondamente cosciente dei suoi rispettivi valori. ln questo senso, l’uomo produce coltura costantemente. Particolarmente, nel mondo del Diritto, l’essere umano ha due vertenti distinte: il Diritto Naturale e il Diritto Positivo. Il primo è una eredità archetipica, il secondo corrisponde a una conquista intrapresa nel suo “habitat” naturale. E, malgrado la evidente distinzione, esiste una relazione colturale presente tra il Diritto Naturale e il Diritto Positivo. Strutturalmente, il Diritto Positivo ha la sua vera origine nell’Etica. È il risultato di un processo lento. Tuttavia, sempre dinamico. Per tutti gli effetti dottrinari, l’Etica è l’essenza della Morale. La presente tesi di Laurea corrisponde al Fondamento Naturale e Morale delle Obbligazioni. La vera essenza del Diritto Naturale è l‘Etica che è presente nella dignità originale dell‘essere umano. Consequentemente, abbiamo la effettiva influenza dell‘Etica nei piú reconditi fondamenti del Diritto Positivo. Questo studio accademico, pertanto, dimostra l’influenza marcante della Etica nel Fondamento Naturale e Morale delle Obbligazioni. Il tema Obbligazioni è il piú esteso del nostro Codice Civile. Ci sono giuristi che difendono l’idea di un Codice delle Obbligazioni, considerando la complessità che involve la sua discussione problematizzata nel mondo del Diritto. Al principio era l’Etica e l’Etica si fece nel Diritto. E il Diritto si perpetua nella Giustizia, che sempre sarà l’Etica. APRESENTAÇÃO O ser humano é efetivamente pluridimensional em sua realidade ontológica. Neste mundo, a sua meta primordial é a constante procura pela Verdade, mesmo sabendo que a própria Verdade não admite a Verdade. O homem, em termos de conhecimento, está adstrito a dois mundos essencialmente distintos: o mundo da realidade e o mundo que ele constrói a partir dos seus próprios valores. O que é o ser humano? Qual é a sua origem? Qual seria a sua destinação espiritual? São questionamentos constantes que fazem parte integrante da realidade intelectual do homem. O ser humano tem uma herança cuja origem é desconhecida mas que está sempre atuante em sua essência espiritual: os arquétipos. Isto faz o homem ter uma intuição dinâmica a respeito da sua destinação histórica. Antropologicamente, o homem é capaz de produzir cultura e produz em todas as dimensões do saber porque possui inteligência. A inteligência é a sua característica fundamental no mundo dos valores. O bem faz parte da natureza essencial do ser humano e é por isso que ele tem uma dimensão profundamente ética. O homem existe em relação a si mesmo e coexiste intimamente em relação ao seu semelhante. Este princípio conhecido como alteridade se constitui na causa essencial da existência do vínculo. No mundo da essência da natureza do homem nós temos o vínculo ético- moral e no mundo do Direito nós temos efetivamente o “vinculum juris”. Dois mundos distintos e dois vínculos também distintos. Todavia, profundamente relacionados com a existência do ser humano. A presente tese de Doutoramento corresponde à Fundamentação Natural e Moral das Obrigações. Temos que a Ética nos obriga pela consciência, enquanto que o Direito nos obriga em decorrência do “vinculum juris”. No princípio era a Ética e a Ética se fez no Direito. E o Direito se perpetua na Justiça, que sempre será a Ética. Ser ético significa promover a Justiça em sua plenitude ontológica. Esta tese de Doutoramento incursiona no mundo da Filosofia do Direito, onde não há Verdade, mas constantes reflexões. E estas reflexões procuram pela demonstração de que a Fundamentação Natural e Moral das Obrigações tem o seu princípio na Ética, que é a primeira manifestação cultural do Direito. 194 INTRODUÇÃO A característica fundamental do ser humano é a inteligência. Isto o torna profundamente consciente dos seus respectivos valores. Neste sentido, o homem produz cultura constantemente. Particularmente, no mundo do Direito, o ser humano tem duas vertentes distintas: o Direito Natural e o Direito Positivo. O primeiro é uma herança arquetípica, o segundo corresponde a uma conquista empreendida em seu “habitat” natural. E apesar da evidente distinção, há uma relação cultural presente entre o Direito Natural e o Direito Positivo. Estruturalmente, o Direito Positivo tem a sua verdadeira origem na Ética. É o resultado de um processo lento. Todavia, sempre dinâmico. Para todos os efeitos doutrinários, temos que a Ética é a essência da Moral. A presente tese de Doutoramento corresponde à Fundamentação Natural e Moral das Obrigações. A verdadeira essência do Direito Natural é a Ética que está presente na dignidade original do ser humano. Conseqüentemente, temos a efetiva influência da Ética nos mais recônditos fundamentos do Direito Positivo. Este trabalho acadêmico, portanto, demonstra a influência marcante da Ética na Fundamentação Natural e Moral das Obrigações. A temática Obrigações é a mais extensa do nosso Código Civil. Há juristas que defendem a idéia de um Código das Obrigações, considerando a complexidade que envolve a sua discussão problematizada no mundo do Direito. 2 O Direito é um fenômeno pluridimensional, complexo, e, portanto, complexa é a sua metodologia. Como conseqüência efetiva, temos um sincretismo metodológico, tendo em vista a aplicação de métodos indutivos, dedutivos, dialéticos, comparativos, intuitivos, etc. Os pressupostos teóricos deste trabalho é a Teoria Geral das Obrigações e a Filosofia do Direito, no que concerne, pois, à Fundamentação Natural e Moral das Obrigações. O material utilizado para a elaboração da presente tese de Doutoramento foi: legislação, doutrina – nacional e estrangeira – e jurisprudência. É imperativo destacar a predominância, neste trabalho, do método histórico-comparativo, porque, em termos de uma verdadeira visão geral e linhas teóricas, há a preocupação histórica inerente à evolução do pensamento filosófico até os nossos dias, procurando pontuar a atuação de alguns autores, demonstrando a importância e a contribuição do Direito Natural, certamente, em relação ao Direito Positivo. Nesta vertente, temos os pressupostos e as características do Direito Natural e a sua efetiva contribuição na formação do Direito Moderno. Assim, pois, sendo o Direito Moderno o resultado de um processo ético legalizado, temos, portanto, que não é somente Ética, mas Ética legalizada, para os efeitos doutrinários A modernidade tem experimentado um processo de retorno ao estudo do Direito Natural e a consciência nítida de sua influência na estrutura social. Neste sentido, temos o pensamento do jusfilósofo Luis Recaséns Siches, ao elaborar o Prólogo da obra “El fundamento filosofico del Derecho Natural” de Rigoberto Lopez Valdivia, quando diz: “(...) porque en nuestros días estamos viviendo un segundo 3 renacimiento, muy vigoroso y de larguísimo alcance, de las concepciones iusnaturalistas”.∗ O processo Ética + Direito tem por finalidade a Justiça, em uma visão dialética. Porque, neste sentido, não é apenas Ética e não é apenas Direito, mas é Ética Legalizada. Conseqüentemente, a Ética como tese, o Direito como antítese e a Ética Legalizada como síntese. Esta tese de Doutoramento é um trabalho filosófico, baseado em reflexões diversificadas, com o intuito de elaborar, efetivamente, mais uma contribuição para a Filosofia do Direito. Sendo o Direito uma obra aberta, comportando várias interpretações, mais ainda é a Filosofia do Direito que constantemente depende de reflexões cada vez mais aprofundadas, visando, portanto, alcançar outras dimensões, ainda ignotas, do Direito. A proposta consagrada do Positivismo Jurídico relacionada à simples interpretação das normas não satisfaz. Portanto, há necessidade de incursões cada vez mais aprofundadas no mundo da Filosofia para que haja uma explicação clara de cada conceito jurídico-legal. Neste sentido, houve o socorro constante de pensadores cristãos e não- cristãos. Para o entendimento do Direito Moderno, neste trabalho acadêmico, houve o recurso de uma verdadeira leitura transversal. Enfim, houve uma opção por um sincretismo metodológico com a intenção de se chegar a uma conclusão mais satisfatória e sem nenhum reducionismo a respeito do tema escolhido: Fundamentação Natural e Moral das Obrigações. ∗ SICHES, Luis Recaséns. Prólogo da obra “El fundamento filosofico del Derecho Natural”. Rigoberto Lopez Valdivia. Cuarta Edición. México: Editorial Tradicion S.A., 1973. p. V. CAPÍTULO 1 A ORIGEM DO DIREITO Sumário: 1.1 Histórico - 1.2 Voluntarismo - 1.3 Naturalismo - 1.4 Ecletismo. 1.1 Histórico O pensamento jurídico não é exato; é problemático. O discurso jurídico, como o discurso estético, é obra aberta que admite várias interpretações1. O universo da cultura humana – o homem é o único animal que é capaz de produzir cultura – se desenvolve intensamente. A destinação histórica do ser humano é pensar e procurar descobrir a própria essência de sua natureza cósmica. Assim, pois, o Direito se nos apresenta como sendo uma extraordinária conquista cultural do gênero humano. Durante a trajetória da civilização, dois fatores do mundo dos valores e do conhecimento sempre marcaram de forma rigorosa e vigorosa a sua presença indiscutível: a Filosofia e o Direito. A civilização grega ensinou o homem a pensar, a procurar pela verdade, porque tinha plena consciência de que o conhecimento na sua expressão pluridimensional permite a libertação em relação aos seus próprios preconceitos. A sabedoria é dinâmica e abrangente, não pode ser estática e reducionista. A verdade sempre foi o objetivo do homem que procura pela efetiva essência do conhecimento. O mundo grego é o exemplo histórico da odisséia do ser humano que procura a verdade constantemente. 1 VIEHWEG, Theodor. Topica e Giurisprudenza. Milano: Giuffrè-Editore, 1962. p. 31-46. SICHES, Luis R. Introducción al estudio del Derecho. México: Editorial Porrúa S.A., 1974. p. 260-262. 6 Evidentemente, seria extremamente temerário procurar descrever de uma forma relativa, com muita parcimônia, a posição da Grécia na história da educação humana2. O problema da verdade realmente perturba o espírito humano. Vale destacar que é o problema sem solução do “homo viator”, segundo Gabriel Marcel, grande existencialista cristão. É sem dúvida, também, o problema sem solução de Sartre, com o seu existencialismo ateu, que definiu como única verdade o fato de o homem ter nascido apenas para a morte. Eis, pois, a angústia de Sartre, diante do mundo e do homem. O problema da verdade angustia o homem! Por mais que o homem procure defini-la, ele nunca saberá o que é a verdade! “Quid est veritas?”. Foi a pergunta de Pôncio Pilatos! “Est Vir qui adest!”. Poderia ter sido a resposta de Jesus Cristo para Pilatos! Porém, prevaleceu o silêncio de Jesus Cristo, diante de Pôncio Pilatos. Foi o misterioso desígnio de Deus que levou Cristo a permanecer em silêncio ou induzir Pilatos a adentrar no templo romano da justiça para que o diálogo não tivesse o prosseguimento indispensável para elucidar o problema referente à definição da verdade. Uma resposta que o homem, constantemente, continuará aguardando com ansiedade. Portanto, um problema ainda sem nenhuma solução efetiva e satisfatória. Os grandes filósofos sempre enfrentaram a problemática inerente à verdade. 2 JAEGER, Werner. Paidéia – A formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 7. 7 Por causa da verdade, Sócrates foi obrigado a ingerir a cicuta; Platão foi vendido como serviçal, sendo posteriormente resgatado por um discípulo; Aristóteles, acusado, foi obrigado a fugir, para morrer longe da sua pátria intelectual. E tudo isto aconteceu naquela Atenas, onde a preocupação eloqüente era conhecer a verdade. Naquela Atenas, onde havia uma hostilidade até doentia contra o homem que estivesse interessado em desvendar para o outro homem a problemática alusiva à verdade. A Idade Antiga, a Idade Média e a Idade Moderna conheceram o problema da verdade e foram totalmente impotentes para defini-la. Inclusive, a dificuldade ainda persiste na Idade Contemporânea. Nem mesmo Santo Agostinho, “Doutor da Graça” e Mestre do Direito Natural, conseguiu desvendar o enigma da verdade para os homens. Nem mesmo Santo Tomás de Aquino, o “Pai da Escolástica”, denominado “Doutor Angélico” e partidário do jusnaturalismo, também, soube desvendar para o mundo do conhecimento a definição da verdade. O enigma da pirâmide é o enigma da verdade! A civilização romana ensinou para o homem o conceito do Direito. Até, então, prevalecia a noção do sagrado, como fundamento efetivo para a solução dos conflitos humanos. Não é excessivo destacar, para uma maior elucidação desta expressão do pensamento, que a Moral pode ser considerada, certamente, como sendo a primeira manifestação da intenção consciente da elaboração do Direito. A Moral sob uma visão crítica faz o ser humano conceber a Ética para que venha a ser fundamento ontológico do Direito. A constante problematização do Direito faz o homem procurar pela Filosofia. Direito e Filosofia se unem na consciência humana para que o objetivo específico seja a Justiça. 8 O Código de Hamurabi e o Código de Manu representam, para todos os efeitos, um avanço na sistemática da cultura humana. Dois momentos históricos de suma importância para um visão cultural que já vislumbrava a perspectiva inicial do Direito. É bem verdade que preceitos morais e religiosos se fazem presentes nestes dois monumentos da cultura humana. Todavia, o ser humano já demonstra uma nítida preocupação com a elaboração de um ordenamento jurídico. Certamente, podemos concluir que se trata de uma questão no mundo cultural que é inerente à realidade arquetípica. O Direito, como produto da cultura humana, nasce em Roma. A fonte primordial do Direito brasileiro, verdadeiramente, é o Direito de Roma. Este tem o seu nascedouro na antiga “Lei das XII Tábuas”. Historiadores do Direito ensinam que o conhecimento humano possui três principais famílias jurídicas: a família “romano-germânica”, a família denominada “common law” e a família dos “direitos socialistas”.3 O Brasil alinha-se com a tradição “romano-germânica” (tendo como fonte mediata o Direito Romano e como fonte imediata as Ordenações do Reino). Abelardo Lobo4, célebre romanista, dizia e com segura propriedade que dos 1.807 artigos do Código Civil Brasileiro, 1.445 artigos “são produtos de cultura romana”. O gênio romano sempre esteve preocupado com a organização do Direito. Indispensável lembrar que os romanos distinguiam o Direito da Moral. Não havia nenhuma confusão. Aliás, faziam esta distinção com muita segurança. A própria “Lei das XII Tábuas” bem demonstra a preocupação do romano em ter um 3 DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo. Lisboa: Meridiano, 1972. p. 30. 4 LOBO, Abelardo. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Tipografia de Alvaro Pinto, 1931. p. LI. 9 conjunto de leis perfeitamente distinto das normas morais, e, até dos princípios religiosos. Com isto, Roma começou a organizar o Direito! Pode-se concluir que a partir do momento em que o Direito passou a ser organizado pelos romanos, houve um marco assaz significativo na história da humanidade. A problemática do binômio certeza-segurança, tão afeita ao Direito, desde então vem experimentando um processo consciente de desenvolvimento para o constante aperfeiçoamento das nossas instituições. O Direito, portanto, é um produto da cultura humana, que está sendo submetido a um processo dinâmico e efetivo de plena consciência, em relação às transformações que ocorrem no meio social, com a mais estrita observância inerente aos valores humanos mais positivos. O mundo da cultura está em constante processo de motivado aperfeiçoamento. O homem, na proporção de sua evolução espiritual, promove transformações do mais profundo alcance social. O Direito é uma realidade arquetípica na mais recôndita condição do ser humano. Ele está latente, na plenitude pluridimensional do homem, porque sendo um produto originário e original do mundo das idéias, na proporção efetiva em que a humanidade vai descerrando o véu de Ísis referentemente ao seu inconsciente coletivo, o Direito vai se transformando em uma realidade consciente. Quanto mais se torna claro na consciência de um grupo social, mais ocorre o aperfeiçoamento em sua manifestação para o próprio homem. Desta maneira, muito antes de ser escrito na pedra ou no papiro, para o conhecimento do grupo social, o Direito já estava pois estigmatizado na consciência cósmica do ser humano. É o Direito Natural existindo muito antes do Direito Positivo. 10 Assim, então, o Direito é uma criação humana para garantir, verdadeiramente, a estabilidade social. Celso definia o Direito como sendo de certa maneira, para efeitos pedagógicos, “ars boni et aequi”5. Evidentemente, uma identificação entre a Moral e o Direito. Ulpiano ensinava que o Direito estava supedaneado em preceitos – “honeste vivere”, “alterum non laedere”, e, “suum cuique tribuere” – também envolvendo o fator da moralidade e o fator da legalidade.6 Por sua vez, o jurisconsulto Paulo nos deixou a célebre máxima: “non omne quod licet honestum est”.7 Tais conclusões bem demonstram, na sua essência, que o povo romano não tinha a Moral e o Direito como expressões sinônimas. Eram conceitos nítidos em sua respectiva e inconfundível concepção. Ainda mais: o “fas” estava profundamente relacionado com o espírito da religiosidade, e, o “jus”, conseqüentemente, pertencia ao saber do ser humano. A histórica “Lex Duodecim Tabularum” pode ser considerada, efetivamente, como sendo o pródromo do Direito Positivo. Praticamente, é o nascimento do Direito. É o momento, indubitavelmente, em que as primeiras reflexões passam a fazer do Direito esta monumental obra aberta. Com isto, a fase histórica do “jus non scriptum” vai cedendo espaço efetivo para a concretização da idéia de justiça social. O “Corpus Juris Civilis" foi a consumação máxima do esforço do romano em promover a organização do Direito. Em função disto, Hermogeniano disse, com propriedade concisa, que “a ordem jurídica é estabelecida no interesse dos homens”.8 5 DIGESTO. I, 1,1, pr. e § 1. 6 DIGESTO. I, 1,1. Institutas, I, 1, 3. 7 DIGESTO. 50, 17, 144, 1. 11 As transformações sociais têm garantido, através dos séculos, o processo sempre dinâmico que é inerente à formação do Direito. Obviamente, se o Direito fosse uma realidade estática, não haveria a doutrina e não haveria, ainda, a jurisprudência. Tudo se resumiria ao enunciado legal. Praticamente, a hermenêutica não teria como fundamento a arte de problematizar o Direito. O gênio romano pôde, assim, proporcionar para a nossa civilização o resultado de um extraordinário trabalho de pesquisa e de organização, com a preocupação fundamental do aperfeiçoamento das instituições. O intuito maior do romano era no sentido de que a civilização fosse motivada e protegida por um sistema de enunciados com a destinação de estabilidade social e econômica. Como produto fundamental de um processo cultural, o Direito tem a finalidade de proporcionar o binômio certeza-segurança para o ser humano, independentemente de sua própria localização histórica. Possível é a conclusão de que os romanos não possuíam a dimensão efetiva da influência que a sua conquista cultural exerceria sobre a vida dos povos. É oportuna a lembrança de Gilissen9, a respeito do processo histórico de organização do Direito, e que teve os seus pródromos em Roma: “O direito de cada país não foi criado de um dia para o outro; não foi instituído; antes é a conseqüência de uma evolução secular”. Ao povo romano estava destinada a missão de penetrar nos recônditos mais profundos do processo ético grego, para obter a essência indispensável para a elaboração de preceitos reguladores da conduta humana. Preceitos de profundo alcance histórico e social. Enquanto a Ética diz respeito 8 ibid. I, 5, 2. 9 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 14. 12 efetivo à essência individual do ser humano, o Direito está relacionado com a identidade cultural da coletividade humana. Desde a sua origem mais remota, o Direito está sujeito constantemente à influência das transformações culturais do ser humano. Temos que a dimensão de maior alcance nas transformações sociais está inerente ao desenvolvimento de um processo sempre dinâmico na essência do Direito. O homem possui a concepção do verdadeiro sentido da necessidade do Direito e por isso está sempre incursionando nos meandros da sua História na esperança de fortalecer cada vez mais os valores e os aperfeiçoamentos culturais que ensejam o constante desenvolvimento da civilização. Nesse ínterim, temos também a influência que a cultura hebraica, por intermédio da Mesopotâmia e da Grécia, exerceu sobre a cultura romana. Na verdade é um processo de dinâmica interação de valores culturais entre todos os povos em toda e qualquer dimensão histórica. O Direito, sendo o produto da cultura humana, reconhece claramente que não há povos superiores e povos inferiores. Há, a bem da verdade histórica, povos que possuem, tão-somente, o fator de características culturais próprias, sem nenhum propósito reducionista ou de superioridade de valores fundamentais. O processo de desenvolvimento dinâmico da Direito está supedaneado na dimensão pluridimensional dos valores humanos. O Direito está presente na cultura humana, na proporção efetiva da necessidade social de equilíbrio entre os povos, independentemente de sua especificada identidade de valores e de conquistas intelectuais. Apesar de o Direito ser uma identidade cultural de Roma, não deixou de experimentar as influências marcantes da cultura de outros povos, inclusive, daqueles que foram conquistados pelas campanhas bélicas de escopo expansionista dos romanos. É uma conclusão extremamente pacífica na história 13 humana, no sentido específico de que “os romanos foram os primeiros a organizar o direito.”10 Constatação histórico-cultural de grande relevância para um povo que possuía como característica de caráter a sua constante disposição para expandir as suas extensões territoriais. Nunca, em toda a história humana, houve, efetivamente, um povo tão consciente de sua destinação cultural, porque Roma era a capital do mundo antigo, sempre ditando e impondo os seus próprios valores como único referencial da inteligência humana. A filosofia permanece como herança da Grécia, enquanto que, o Direito permanece como herança cultural de Roma, verdadeiro marco referencial de todos os povos civilizados. 1.2 Voluntarismo No decorrer dos séculos da história do homem, sempre houve uma preocupação acentuada em justificar culturalmente a origem do Direito. O voluntarismo tem o Direito como sendo a efetiva expressão da vontade do homem. Uma vontade direcionada em função da necessidade de uma defesa espontânea em relação ao seu próprio semelhante. Se o homem fosse apenas uma identidade inteligível, ele não seria livre, porque a liberdade é uma expressão cultural que está fundamentada, com exclusividade, na vontade e não na inteligência. Filosoficamente, temos duas tendências doutrinais diferentes. Uma determinando o primato da vontade sobre o intelecto. E a outra que tem na vontade a substância do mundo. O primeiro indicativo é gnosiológico e ético. Houve a aplicação desta estimativa no sentido de caracterizar determinadas conclusões afeitas à filosofia medieval. Neste ínterim, era afirmada a superioridade da vontade em relação ao intelecto. A segunda indicação 10 CRETELLA JR., J. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1970. p. 17. 14 corresponde à definição de que a vontade é a substância do mundo, tendo, assim, o mundo natural como a manifestação ou revelação da própria vontade. Evidentemente, o ser humano está propenso, constantemente, a empreender as mais profundas reflexões, com o escopo exclusivo de, investigando todos os ramos do saber, descobrir a verdade em seu sentido cada vez mais recôndito. Em nenhum momento histórico, o homem conseguiu erguer um sistema metodológico de pura expressão da verdade. E isto é porque a verdade é um enigma para o ser humano. O homem não pode conhecer a verdade em sua plenitude unidimensional, porque se isto fosse possível, a condição humana perderia pois o sentido de liberdade. A procura pela verdade é um ato exclusivo da vontade humana. Não é a inteligência que dá o impulso para o ser humano procurar pela verdade, e, sim a vontade. A inteligência apenas direciona a busca do ser humano pela verdade. Esta é a razão pela qual o homem concebeu efetivamente a necessidade de organização do Direito. A vontade, para esta corrente doutrinário- filosófica, expressa com isso o ato – a ação consciente – de criação do Direito. Não é excessivo destacar, nesse ínterim, que a vontade produz o meio indispensável para que o Direito se concretize na esfera social. O homem idealizou e criou a sociedade. A sociedade a bem da verdade histórica idealizou e criou o Estado. O Estado, definitivamente, idealizou e criou o Direito Positivo a fim de promover a segurança do homem e das instituições. Na trajetória do Direito está a manifestação consciente da vontade do ser humano. Desta feita, a natureza do Direito constitui com razão um dos permanentes problemas principais de qualquer filosofia jurídica, no pensamento 15 conciso de Ross11. Certamente, não deixa de ser uma reflexão muito profunda, como se houvesse uma quase que certeza de uma solução menos problematizada a respeito da verdadeira natureza do Direito. O ser humano está sempre promovendo investigações com a finalidade de melhor esclarecer a problemática da natureza afeita ao Direito. Como um problema concreto, a natureza do Direito sempre será objeto de questionamentos variados. A vontade humana, portanto, nos tempos primevos, promoveu a criação dos sistemas e dos ordenamentos jurídicos. É bem verdade que há necessidade de constantes questionamentos, porque o Direito tem um verdadeiro sentido de problema problematizado. Cabível, nesse ínterim, uma indagação: qual é o sentido ontológico do voluntarismo que tem no Direito uma efetiva expressão da vontade humana? Este sentido ontológico é inerente à Moral. O ser humano tem na Moral – mais especificamente na Ética – o fundamento do voluntarismo. Moral e Ética não são expressões sinônimas no mundo dos valores. Tem uma distinção embasada na sutileza. Pode-se concluir epistemologicamente que a Ética é a essência da Moral. Os romanos tinham plena consciência da distinção que há entre o Direito e a Moral, no mundo do conhecimento humano. O jusfilósofo é tentado, constantemente, a indagar: por que o voluntarismo e a condição moral do ser humano têm uma indiscutível intimidade no universo dos valores, de conformidade com esta corrente doutrinária do fundamento ontológico do Direito e da sua conseqüente expressão cultural? Não é demasiado lembrar que a corrente voluntarista, para efeitos pedagógicos, destaca a existência de três escolas: a teológica, a autocrática e a do contrato social. Teologicamente, o Direito é uma criação específica de DEUS. Na verdade, é a vontade divina que se faz presente entre os homens por obra exclusiva 11 ROSS, Alf. Sobre el derecho y la justicia. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos 16 daqueles que estão sempre anunciando as boas novas. São os mensageiros de DEUS que despertam, paulatinamente, na essência da condição humana uma nova relação de valores. É a mais primitiva expressão do fundamento ontológico do Direito na consciência humana. Nesse ínterim, podemos concluir que o Direito é uma realidade arquetípica no mundo dos valores que constituem a identidade cultural da civilização humana. Aliás, para Radbruch12, toda a organização que encontramos na constante expressão dos incontáveis ramos do saber humano tem no Direito a origem de sua nomenclatura. Assim, pois, a Teologia consiste na palavra de DEUS, manifestada nas Escrituras Sagradas. Eis a origem fundamentada do Direito na expressão teológica. DEUS criou o Direito na essência da condição humana como um ato com bases fundamentadas no amor, e, também, porque a própria estabilidade social é indispensável para o crescimento espiritual dos homens. É bem verdade que na proporção em que o ser humano, historicamente, vai ampliando a sua concepção do Direito no mundo dos valores, há um aperfeiçoamento dinâmico nas estruturas das instituições. Perfeitamente cabível, nesta oportunidade, a teoria inerente à “omoiosis theô” que a filosofia escolástica descobre no gênio do ateniense Platão13. Na verdade, esta teoria alusiva à “imago Dei” está incluída na teologia cristã, no propósito de divinização do ser humano. Para a corrente autocrática, o Direito corresponde à exclusiva vontade do soberano. Uma vontade que se manifesta no mundo dos valores humanos, através das leis, que são propostas pelo soberano. A vontade do soberano se expressa nas proporções do desenvolvimento social e cultural do ser humano, tendo em vista a necessidade da existência dos mecanismos indispensáveis para que haja a Aires, 1974. p. 6. 12 RADBRUCH, Gustav. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 1. 13 MONDIN, Battista. Antropologia Teológica. São Paulo: Paulinas, 1986. p. 96. 17 estabilidade entre os homens. Nesse ínterim, praticamente, a lei passa a ser a fonte exclusiva do Direito. A filosofia escolástica também incursionou nesta dimensão do conhecimento humano, quando destacou que o poder é uma dádiva que o homem recebe de DEUS. Todavia, mister se torna observar, nesta mesma oportunidade, que esta doutrina caracteriza os regimes despóticos de toda a extensão da tradição histórica do homem. Vale destacar que, neste sentido, ocorre uma confusão entre a legalidade e a justiça. A escola autocrática defende a teoria de que o Direito é a expressão exclusiva da lei. É o princípio inerente a “regis voluntas suprema lex”. Aliás, uma conclusão que nos lembra a cultura romana, especificamente, no que diz respeito ao “jus civile”. Um exemplo clássico, no sentido de que o Direito é a manifestação exclusiva da vontade de decisão do soberano, é a legislação correspondente às Ordenações do Reino, durante o apogeu jurídico-monárquico de Portugal. O soberano desfrutava da condição de onisciência e para tanto nem sempre promovia a elaboração de leis que realmente favorecessem a população. Os desmandos em nome da legalidade comprometiam sobremaneira o verdadeiro e indispensável sentido de justiça. Era o governo legal do poder absoluto do soberano. Na verdade, não havia nenhum espaço para qualquer questionamento. É o momento da lembrança efetiva da máxima consagrada pelo romano, qual seja, “dura lex, sed lex”. Ainda persistia a influência inflexível do “jus civile”, sem nenhum abrandamento promovido pelo “jus honorarium”, já mais flexível. Certamente, as próprias transformações sociais foram promovendo, de uma maneira assaz racional, o processo de constante flexibilização do Direito. É um momento histórico que passou a exigir profundas reflexões entre os construtores do Direito como uma expressão universal. 18 Este sentido autocrático do fundamento do Direito, a bem da verdade, sempre encontrou a efetiva oposição de Santo Tomás de Aquino14, na sua constante pregação contra a tirania. O aquinate projeta o seu pensamento em favor irretorquível da dignidade humana em sua maior plenitude, destacando que o Estado somente atinge o seu fim ético através do Direito. Para ele, as leis que são elaboradas pelo homem representam um nível médio em relação ao crime e a virtude. Apesar de a filosofia escolástica reconhecer que o poder do soberano é algo que vem de DEUS, no entanto, pregava a efetiva resistência à tirania, como sendo um direito inquestionável da própria condição de dignidade original do ser humano, em qualquer dimensão histórica. Há, ainda, neste contexto, a escola inerente ao denominado contrato social. Para esta corrente doutrinária, não há nenhuma dúvida de que o Direito nasce de uma relação contratualista, concretizada entre aqueles que fazem parte integrante de um determinado grupo social. O contrato social, desta feita, se torna indispensável para que haja uma garantia de verdadeira coexistência entre os seres humanos. Teoria que defende a consistência do Direito a partir da aprovação pela vontade da maioria. Muito problemática esta conclusão, uma vez que menciona a vontade da maioria. Nem sempre a maioria tem razão consciente na expressão de sua vontade. Nesse ínterim, bastas vezes, o processo de legalidade pode comprometer os anseios de justiça do grupo social. Não é demais ressaltar que a finalidade última do Direito é consistente com o pleno e pluridimensional anseio de Justiça. Com isso, todas as vontades do grupo social – governados e governantes – devem permanecer subordinadas à vontade generalizada da maioria em menção. 14 TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica. 2a., 2ae., q. 42 a.2. 19 Tais conclusões despertam novos debates no mundo dinâmico do Direito. Em decorrência desta realidade, o Direito se nos apresenta cada vez mais problematizado no universo dos valores humanos. A necessidade de coexistência pacífica induz os seres humanos a optarem pelo contrato social. É uma forma efetiva de garantia de direitos e de obrigações no âmbito social. A teoria contratualista visa ao constante aperfeiçoamento das instituições humanas, para que o ser humano não viva sob um permanente estado belicoso. Conseqüentemente, o Direito é indispensável à vida em comum15. E como tal, deve promover a estabilidade social. Em nenhum momento histórico, o ser humano deixou de sentir a influência do Direito. Por mais rudimentar que tenha sido a característica de identidade cultural de um povo, na verdade, ele jamais deixou de ter contato com um conjunto de normas que direcionasse a sua vida social. Em sua essência pedagógica, a teoria contratualista, quando bem fundamentada, pode orientar no mundo político os anseios democráticos. Sendo o Direito uma conquista social, temos também que a sua expressão tem um cunho ideologizador de profundo alcance doutrinário-filosófico. A teoria contratualista está sempre se projetando para uma dimensão de futuro. Os seus objetivos obedecem a uma estruturação bem definida, e, sendo algo afeito às obrigações no desenvolvimento de um processo de alteridade, mesmo que de uma forma esmaecida, nos lembra o princípio do “pacta sunt servanda” do mundo jurídico dos valores romanos. Platão, em uma determinada fase de sua vida acadêmica, chegou a constatar que, em determinadas situações, o Direito poderia ser um instrumento de dominação em favor do Estado, aqui representado pelas elites privilegiadas em seus objetivos. 15 NOGUEIRA, Rubem. Curso de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 15. 20 Melhor observando o desenvolvimento do sistema referentemente ao contratualismo, lembrando Weber, o jusfilósofo Warat16 nos induz à conclusão de o Direito moderno ser visto exclusivamente como um Direito de juristas. Na verdade, todo e qualquer ordenamento jurídico deve expressar o anseio equilibrado de um determinado grupo social. Não pode o Direito representar o resultado de aspirações privilegiadas de uma elite que procura no sistema jurídico um instrumento de dominação, sem nenhuma perspectiva de paz social e de previsão em benefício pluridimensional da comunidade humana, independentemente do momento histórico. Mesmo em se tratando do contratualismo, há determinadas situações em que o Direito tutela algo que não é moral, conforme conclusão de Reale17. Na verdade, o Direito deveria apenas tutelar aquilo que seja ético. O contrato social tem que ser o mais amplo possível, na esfera dos valores humanos. Neste raciocínio, há o ensinamento conciso de Bobbio18, quando conclui que a democracia, indubitavelmente, é a sociedade dos cidadãos. O resultado do contrato social deve expressar sempre e de uma forma abrangente o Estado Democrático de Direito, quando da elaboração de todo e qualquer ordenamento jurídico. 16 WARAT, Luís Alberto, PÊPE, Albano M. B. Filosofia do Direito. São Paulo: Moderna, 1996. p. 15. 17 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 43. 21 1.3 Naturalismo A corrente naturalista se nos apresenta de uma maneira doutrinária muito complexa. Há uma diversidade específica de escolas doutrinárias que defendem esta teoria que considera o Direito como sendo um fenômeno natural. Todavia, é bem verdade que há divergências acentuadas na efetiva caracterização do Direito como um fenômeno natural. Os doutrinadores mais destacados da corrente naturalista defendem especificamente as teorias do Direito Natural, do Evolucionismo, do Historicismo e do Materialismo. A teoria do Direito Natural corresponde ao Direito como sendo um atributo da natureza interior do ser humano. É algo que pertence à intimidade da condição humana. Está profundamente afeito à dignidade original da civilização humana. O Direito Natural se desenvolveu anteriormente ao Direito Positivo. Aliás, o Direito Natural é o fundamento histórico do Direito Positivo. Pode-se concluir para efeitos filosóficos, que o Direito Natural é uma realidade arquetípica na condição humana. É algo que está profundamente inerente à essência do homem. Indubitavelmente, é uma constatação na natureza da na- tureza do ser humano. São valores que norteiam a conduta do homem em toda a expressão da pluridimensionalidade abrangente de sua dignidade original. Em suma, é próprio da realidade ontológica da condição humana. O ser humano sempre será, concretamente, o enigma de sua própria natureza. Reflexões, por mais profundas que sejam, não serão o suficiente para o homem penetrar nos seus recônditos e descobrir ao menos sua destinação histórica e, sobretudo, cósmica. Ideologia e Direito são inseparáveis no contexto do conhecimento humano. Ao emitir um juízo de valor, o ser humano está exercendo o propósito ideológico. Ao pensar o Direito, o ser humano já está ideologizando o seu 18 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 1. 22 ordenamento jurídico. Todavia, no universo do Direito Natural, este propósito é totalmente impraticável, porque o Direito Natural não é um produto da cultura humana. Cultura se produz. O Direito Natural, a bem da verdade, faz parte integrante da natureza humana e como tal é possível apenas o seu descobrimento paulatino na proporção em que o homem pluridimensionaliza a realidade da abrangência do seu conhecimento conquistado. O Direito Natural não pode ser considerado um produto da cultura humana e simplesmente porque, antropologicamente, ele não é produzido pelo homem, mas, sim, é o resultado de uma conquista que o ser humano promove na realidade ontológica do seu ser, enquanto ser. O Direito Natural está na essência mais profunda do ser humano, como uma condição inerente da sua própria natureza. O Direito Positivo, por sua vez, é um produto cultural, motivado pela inteligência humana. Na esfera do Direito Positivo, a pretensão de um sistema jurídico que deve tratar todos os seres humanos em sociedade como titulares efetivos de determinadas proteções e liberdades fundamentais é fundamental para a sua validade e aceitabilidade, segundo Hart19. Na constatação do Direito Natural, intuitivamente, o ser humano promove um crédito de natural aceitabilidade, sem nenhum questionamento porque não se trata de algo problematizado e sim natural. A doutrina naturalista conta com inúmeras correntes, para a efetiva defesa de suas idéias, com destaque especial para uma divergência muito acentuada em vários direcionamentos da conclusão cultural. É bem verdade que o debate se intensifica, na proporção em que o ser humano amplia o seu horizonte cultural interior. Neste sentido, a denominada escola clássica, em voga entre os filósofos gregos e também entre os jurisconsultos romanos, posteriormente, com o consumado apoio da doutrina cristã, especificamente, a patrística e a 23 escolástica, concebe o Direito Natural, como a expressão essencial da própria justiça, que é aplicável no contexto histórico de todos os povos, independentemente da sua dimensão temporal. O Direito Natural seria uma conseqüência – de forma natural, em sua essência – de princípios considerados eternos e imutáveis, eis que, estão supedaneados na essência mais recôndita da natureza moral do ser humano. Possuem tais princípios uma identidade que não varia. São princípios idênticos em toda e qualquer dimensão histórica, onde quer que esteja a presença da condição humana. Para o jurisconsulto Gaio, o que a razão natural estabelece entre todos os seres humanos é igualmente respeitado por toda a humanidade20. Não é excessivo lembrar, para uma maior elucidação, que este mesmo jurista equiparava, para todos os efeitos doutrinários, o denominado “jus gentium” ao “jus naturale”. Para os filósofos estóicos, um elemento muito importante na concepção do Direito Natural correspondia ao princípio da igualdade. Esta conclusão foi admitida em parte na filosofia política e na jurisprudência – como uma conquista cultural – do mundo romano. Esta influência se fez sentir na definição inerente à escravidão devidamente encontrada no “Corpus Juris Civilis”, que foi organizado por determinação de Justiniano. Interessante é observar que esta definição a respeito da escravidão destaca que esta contraria a própria natureza. Outro fator de suma importância é que o Direito Natural promoveu uma prática mais acentuada em relação ao huma- nitarismo. Houve um princípio de efetiva humanização em todas as instituições humanas. Uma nova dimensão cultural referente ao Direito passou a ocupar ulteriormente um novo espaço na sistemática dos debates elucidadores. É o 19 HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. p. 222. 20 INSTITUTAS. I, I, I. 24 princípio que daria, futuramente, fundamento à doutrina do solidarismo, principalmente, em relação ao propósito de alteridade. A doutrina evolucionista tem o Direito como sendo um fenômeno essencialmente desenvolvido na esfera social, como sendo uma conseqüência natural da evolução. Neste mesmo sentido estariam todas e quaisquer projeções inerentes à condição intelectual do ser humano. Porém, com uma sujeição efetiva ao denominado determinismo das leis encontradas na própria natureza. Assim, pois, o Direito não seria uma criação arbitrária da vontade do ser humano em sua projeção de conquistas culturais, mas, certamente, uma conseqüência da evolução da civilização na sua expressão mais social. Antropologicamente, não há culturas superiores e culturas inferiores. Há, sim, características próprias de cada cultura, não sendo isto nenhum indicativo de superioridade de um povo sobre um outro povo. Outros fatores estariam exercendo a sua influência e conseqüentemente com o intuito específico de aperfeiçoar os próprios fundamentos culturais da civilização humana. Não é demasiado observar que o fenômeno social possui características muito marcantes no processo de desenvolvimento das estruturas jurídicas em seu constante dinamismo. Este fenômeno é objeto de análises e de debates os mais variados, considerando a identidade cultural de cada grupo social no mundo dos valores humanos. É um propósito de plena influência, no sentido pluridimensional da evolução social. A problematização do Direito obedece a esta transformação social. As transformações sociais seriam a determinante neste processo de evolução do fenômeno jurídico. É muito importante considerar que o fenômeno social tem as suas características próprias, que vão ensejando o aperfeiçoamento DIGESTO. I, I, 9. 25 conseqüente dos fundamentos do Direito. Na proporção em que um grupo social vai desenvolvendo e aperfeiçoando o seu ordenamento jurídico, isto somente se torna possível em face específica da própria evolução do fenômeno social. É a determinação sociológica que está presente na evolução do fenômeno social. Lévy- Bruhl21 ensina que o Direito emana de uma maneira consciente do próprio grupo social. Ainda mais: considerando todas as variações existentes em cada grupo social, em decorrência de suas peculiaridades e respectivas identidades culturais, o Direito também tem uma influência considerável do fator econômico. Com isso, outros fatores culturais de expressiva importância, como a própria dimensão histórica, influenciam nas transformações operadas no dinamismo do fenômeno social, com as implicações decorrentes no mundo dos valores da construção efetiva do Direito. Os doutrinadores sempre se preocuparam neste sentido com as eventuais conseqüências inerentes à transformação operada, constantemente, na essência cultural do grupo social. Porque, na verdade, tal transformação será constatada no universo jurídico. Ferreira da Cunha22 destaca que o Direito, filosoficamente pensado, implica em alguns temas clássicos, por exemplo, no que consiste o próprio Direito. Desta maneira é muito interessante observar que a intenção filosófica que questiona pelo que é o Direito é pluridimensional. O fenômeno social está presente em todos os estágios da conseqüente construção do Direito, sempre em nível dinâmico e operando, também, de conformidade com as transformações sociais. Evidentemente, o desenvolvimento do processo de civilização é de suma importância para que o ser humano promova intensamente o seu aperfeiçoamento cultural. Não é demasiado concluir que o homem tem uma história 21 LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 40. 26 extraordinariamente fundamentada nas tradições. E estas tradições sempre evoluíram de uma maneira especialmente rigorosa. Homem, Sociedade, Estado e Direito. Eis a realidade do processo de evolução social. O homem, a sociedade, o Estado e o Direito estão nos fundamentos da doutrina evolucionista. Desta feita, o Direito, como uma conseqüência da evolução social, é pois caracterizado em cada grupo social de conformidade com suas conquistas culturais. Assim, pois, como uma realidade cultural, em decorrência do desenvolvimento de um processo de pura evolução das estruturas sociais, tem no fenômeno social, efetivamente, a sua origem. A conduta humana é preponderante neste processo de evolução social. Há, neste sentido, e, de uma forma específica, a distribuição igual da justiça como um dos objetivos fundamentais da estrutura jurídica inerente à condição humana23. Para tanto, quanto maior for a intensidade evolutiva do homem, maior será o seu aperfeiçoamento nas instituições sociais. A própria civilização humana é uma conseqüência deste processo evolucionista. Há um Direito como aspiração suprema do ser humano e há um Direito como inegável realidade social. O Direito como uma inegável realidade social é caracterizado pelo denominado fenômeno das estruturas da sociedade. Na proporção em que o homem evolui, o Direito se nos apresenta como uma realidade em estado de constante transformação social, motivada no processo de desenvolvimento cultural da civilização humana. Há um constante desafio, neste processo de desenvolvimento cultural, porque cada grupo social possui uma somatória de características fundamentais em seu estágio evolutivo e que influenciará de uma forma diversificada na estruturação do ordenamento jurídico. O fato social deve ser analisado em toda a sua plenitude, considerando que o fenômeno da evolução exige um desenvolvimento constante em sua manifestação como agente cultural. O 22 CUNHA, Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito. Coimbra: Almedina, 1998. p. 124. 27 ser humano participa deste processo com um objetivo muito determinado porque tem prioridade fundamental no desenvolvimento das instituições. Efetivamente, outros aspectos das conquistas culturais da civilização humana se fazem presentes neste contexto fenomenológico. O Direito, na sua estruturação social, não é caracterizado como sendo um ramo do saber humano isoladamente. Possui uma forma coexistencial em relação aos demais ramos inerentes à condição cultural humana. Não é um fenômeno isolado porque não corresponde a um saber independente. Em outra dimensão cultural, a escola histórica nega, veementemente, que haja a possibilidade da existência de um Direito sem mudanças estruturais e que seja então uma realidade comum em relação a todos os grupos sociais que compõem a humanidade civilizada e em qualquer extensão territorial. É bem verdade que, neste sentido, o Direito é caracterizado como sendo uma conseqüência de uma ocorrência histórica. Podemos afirmar que se trata de uma produção da história dinâmica de cada grupo social. Nesse ínterim, a História se destaca como sendo uma espécie de guardiã das tradições do ser humano. Cada grupo social possui um conjunto inquestionável de acontecimentos que formam a sua identidade cultural. Não é excessivo ressaltar que o Direito, em sua formação cultural, corresponde a uma das características deste fator denominado como sendo a expressão deste processo de identificação de cada grupo social. Cada povo possui a sua vida específica e isto tem profundos reflexos na sua história. Reflexos que identificam o resultado de suas conquistas sociais. Conseqüentemente, o Direito se nos apresenta como sendo uma manifestação da identidade cultural de cada grupo social. O Direito é, portanto, um produto espontâneo para esta doutrina que cuida de promover os seus pródromos. Para esta corrente doutrinária, melhor 23 CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 32. 28 esclarecendo, o Direito tem a sua origem, assim como o seu conseqüente desenvolvimento, de uma forma natural, sem qualquer intervenção de um processo legislativo. Este é um recurso notável e coerente com as estruturas culturais, porque diz respeito a um Direito espontâneo, nascido em decorrência da manifestação da consciência do ser humano. A bem da verdade, o homem é o agente propulsor da História, porque esta é indispensável na própria formação cultural da civilização. Sem a História, seria totalmente impossível para o homem ter conhecimento das raízes de sua própria identidade cultural. Jamais o ser humano poderá se desvincular de suas tradições históricas. Não é excessivo destacar, nesse ínterim, que a História é a guardiã incontestável do resultado da operação humana em seu verdadeiro sentido pluridimensional. A escola histórica nos induz à conclusão de que a importância das tradições humanas é fundamental na elaboração e no desenvolvimento do Direito. Antes mesmo da codificação de Justiniano, temos que o próprio Direito Romano havia sido um Direito itinerante24. Sim! Era um Direito que se formava de conformidade com as transformações sociais. O homem estava necessitando de mecanismos que garantissem a estabilidade social e das próprias instituições. Usos e costumes foram moldando o ordenamento jurídico, sob o testemunho silente da própria História. Aristóteles ensinava com muito acerto que o homem não pode viver independente da História, sob o risco de não construir a sua história. Neste sentido, a alma popular tem uma presença fundamental no nascimento e no desenvolvimento do Direito. A teoria de que o Direito é espontâneo merece a atenção rigorosa do doutrinador da história jurídica. O pensamento humano possui a dimensão histórica do Direito. 24 FRISCHAUER, Paul. Está Escrito. São Paulo: Melhoramentos, 1973. p. 164. 29 A alma popular, mesmo sendo de difícil penetração em sua essência, possui, naturalmente, a intuição do Direito e a necessidade extrema da sua importância para a estabilidade social. Isto porque o Direito é uma realidade arquetípica na condição pluridimensional do ser humano. A nossa história tem demonstrado a profundidade do desafio que o homem tem encontrado na formação de sua estrutura cultural. E com especial destaque para a formação e o desenvolvimento do Direito. Certamente que cada grupo social tem as suas características culturais. Todavia, para esta corrente doutrinária do Direito, como fator de origem, o ordenamento jurídico em sua formação e desenvolvimento está relacionado com a estrutura histórica de cada povo. Nesse ínterim, há uma constatação efetiva de que o Direito se constitui em um fato histórico. Temos que a condição humana apenas está limitada a melhorar as estruturas deste Direito que é considerado espontâneo para a corrente doutrinário-histórica. O questionamento inerente à origem do Direito, e, sobretudo, quanto ao seu significado essencial, é uma constante no mundo cultural dos valores humanos. O homem é uma verdadeira esfinge, quando se trata de penetrar em seus recônditos, para encontrar uma explicação satisfatória no que se relaciona com a origem fundamentada do Direito. Há uma constatação histórica, no que diz respeito ao fato de que vivemos de acordo com a lei e segundo o Direito25. Na verdade, é algo que procura encerrar toda e qualquer perspectiva de debate em torno de um assunto de expressiva importância. Indubitavelmente, o Direito não pode se expressar no universo cultural sem o constante debate das idéias. Neste sentido, se identifica o valor da História para esta efetiva corrente doutrinária. É uma dimensão expressiva da cultura humana, sob a tutela da própria História. 30 Para os doutrinadores do materialismo histórico, também identificado como marxismo, o Direito é tido como sendo um produto das relações econômicas que se desenvolvem constantemente no mundo dos valores culturais da civilização humana. Há uma movimentação dialética em torno deste relacionamento econômico que é uma característica de um determinado fenômeno social. Assim, pois, qualquer fenômeno social – o Direito, a Moral, a Ética, a Arte, a Estética, enfim, toda manifestação cultural do ser humano – tem o seu fundamento essencial na realidade econômica, que é uma conseqüência natural do relacionamento Trabalho-Capital. Este fator econômico pode ser considerado como sendo o suporte da vida social. Para tanto, o Direito não tem a sua origem em valores espirituais do ser humano, e, sim, nas condições materiais, que são inerentes à vida, considerando os mais diversificados meios de produção de riquezas e a sua conseqüente forma de distribuição entre os componentes do grupo social. Esta escola de origem do Direito tem como fundamento inquestionável a conclusão histórica de que todo e qualquer processo econômico em constante desenvolvimento estrutura a vida em sociedade. O processo econômico é dependente do trabalho do ser humano. Trabalho que não é nada mais e nada menos do que o uso da força de trabalho26. Com isso, o Direito estaria estruturado na própria Economia. E esta teria como fator de propulsão o binômio Trabalho-Capital, com todas as suas características fundamentais. Portanto, tudo seria uma conseqüência das relações econômicas no próprio curso da História. Nesse ínterim, a História seria a exclusiva testemunha e partícipe com a Economia na formação do ordenamento jurídico. Desta feita, o Direito depende da constante harmonia deste sistema globalizado e fundamentado na dialética dos valores humanos e da força do trabalho. 25 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. XI. 31 O conflito nas relações Trabalho-Capital demonstra a constante preocupação do ser humano. Sempre houve uma necessidade de melhor compreender a constatação, bem como, o desenvolvimento do fenômeno econômico, considerando a sua inegável influência nas relações sociais. Certamente que devemos procurar desenvolver um processo de constante humanização nas conseqüências decorrentes do fenômeno econômico. Na verdade, nada impede que o fenômeno econômico seja direcionado em favor da distribuição da justiça social. Temos ainda que considerar que as próprias estruturas sociais, tendo em vista a constatação do fenômeno econômico, precisam experimentar este indispensável processo de humanização, visando a própria felicidade pluridimensional da condição humana e o efetivo aperfeiçoamento das instituições. O fenômeno econômico é uma realidade na vida do ser humano, devendo então ser trabalhado no seu sentido mais abrangente. A complexidade do assunto nos remete a uma realidade histórica, observada por Weber27, sob o ponto de vista do seu próprio significado cultural. E isto se justifica ainda por uma conclusão recente, no sentido de que o capitalismo industrial não teve uma relação social amena, durante os seus primeiros cem anos28. Indubitavelmente, uma nova e complexa dimensão de ordenamento jurídico passou a se manifestar com uma ênfase nos princípios do materialismo histórico. As relações econômicas, neste sentido, passaram a determinar o encaminhamento de uma nova fase do Direito. Vale destacar que o ser humano tem plena consciência deste propósito marxista. Com isso, os doutrinadores desta escola afeita à origem do Direito possuem uma justificativa sólida que se acentua cada vez mais no mundo da natureza cultural. 26 MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 37. 27 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, 1996. p. 35. 32 O próprio processo de globalização econômica tem efetivamente influenciado no conceito inerente ao materialismo histórico. As relações históricas têm promovido um novo direcionamento nesta sistemática da origem do Direito. Há uma preocupação acentuada em relação à estruturação do Estado – tendo em vista este processo de globalização econômica – no final deste século. Celso Furtado29 demonstra esta concentração de poder em relação aos mercados financeiros. Não é demais ressaltar que a problemática econômica está preocupando cada vez mais os construtores do Direito. As transformações sócio-econômicas deste final de século têm proporcionado até um novo direcionamento no marxismo, com novas teses sobre a explicação e a teoria da História. Há até uma demonstração doutrinária de reconstruir todas as estruturas do marxismo. É comum os historiadores discutirem a respeito da crise do marxismo30. Com isso, há um destaque muito acentuado na constante preocupação em torno do fenômeno do materialismo histórico e a sua influência no aperfeiçoamento do ordenamento jurídico. O problema ético tem permitido um constante questionamento destas estruturas sociais que não têm garantido nenhuma felicidade social para os seres humanos. Há alguma preocupação ética, em relação a este processo de globalização econômica que tem modificado até a visão ortodoxa do materialismo histórico? Nada é mais preocupante em decorrência destes novos conceitos de redimensionamento da explicação e da teoria da História. Possivelmente, em nenhum momento histórico, o ser humano tenha experimentado um processo tão complexo de transformações sócio-econômicas e a sua conseqüente e inquestionável influência no mundo dos valores jurídicos. 28 GÉNÉREUX, Jacques. O Horror Político. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 51. 29 FURTADO, Celso. O Capitalismo Global. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 7. 30 WRIGHT, Erik Olin, LEVINE, Andrew, SOBER, Elliott. Reconstruindo o Marxismo. Petrópolis: 33 É evidente que, sendo o Direito um produto da cultura humana, as transformações sócio-econômicas vão se fazendo cada vez mais presentes, em uma escala dinâmica, considerando o processo dialético do materialismo histórico, que é uma efetiva constatação na análise e na interpretação sistemática da História, nos termos da visão marxista. O ordenamento jurídico, em seu desdobramento social, demonstrará então a influência do fenômeno econômico em toda a sua plenitude dialética. Com a mesma intensidade, o Direito varia de conformidade com a forma e o conteúdo que estão em desenvolvimento pleno e pluridimensional nos processos econômicos. Sendo o Direito, pois, para o materialismo histórico um produto das relações econômicas, é importante destacar a sua condição profundamente complexa. Uma complexidade que é cada vez mais problematizada na proporção em que o fenômeno econômico experimenta novas transformações no mundo dos valores humanos. Certamente, que não se pode concordar com referido conceito de que o Direito é exclusivamente dependente do produto econômico, eis que, então, seria uma visão reducionista. Todavia, conforme ensinamento de Worsley31, Marx, provavelmente, influenciou a história deste século mais do que qualquer outro pensador. Esta é uma constatação histórica sem precedentes. Muitas reflexões têm sido despertadas entre os pensadores econômicos e entre os historiadores. Na verdade, é um desafio muito preocupante, se considerarmos a perspectiva de que ainda não há nenhum estudo conclusivo sobre a eventualidade de um vencedor neste embate desenvolvido entre o Trabalho e o Capital. Evidentemente, tal fator é de suma importância para as relações jurídicas. Habermas desenvolve um trabalho interpretativo do marxismo muito original, Vozes, 1993. p. 15. 34 preocupado com a eventualidade de um sobrepujar concretamente o outro. Marx não deixou nenhum indício desta possibilidade. Aliás, nem mesmo os intérpretes mais eminentes do marxismo moderno conseguiram formular uma hipótese satisfatória sobre assunto tão complexo. Desta feita, prevalece este desafio preocupante e de essencial importância para o Direito, na fundamentação de sua origem, de acordo com o pensamento do materialismo histórico. 1.4 Ecletismo A doutrina eclética pretende demonstrar que há, conseqüentemente, uma possibilidade conciliatória entre o pensamento voluntarista e o pensamento naturalista, a respeito da origem do Direito. Com isso, o Direito seria o resultado de características espirituais e materiais. Há, pois, verdadeira conclusão de integração. Esta atitude conciliadora, a bem da verdade, nos encaminha de encontro com um fato histórico de profunda relevância, pois que, neste sentido, o Direito pode ser a expressão de união entre o divino e o humano. Este itinerário histórico tem o seu início com a cultura hebraica que é a patrona do verdadeiro sentido da liberdade nos recônditos da condição humana32. O ser humano, neste processo de síntese integradora, demonstra um respeito muito acentuado com esta teoria sobre a origem do Direito. Indubitavelmente, o ecletismo representa uma indiscutível sintonia de acordo comum entre os seres humanos, na expressão mais popular do conceito filosófico. Pode ser considerado como sendo uma conexão com os sistemas de origem das conquistas obtidas no mundo dos valores jurídicos. Conseqüentemente, como expressão filosófica, o ecletismo tem por escopo formular um sistema único que una a escolha de conceitos de uma 31 WORSLEY, Peter. Marx e o marxismo. São Paulo: Mestre Jou, 1983. p. 6. 35 forma coerente. É a procura do valor como condição necessária, para a estruturação de um novo sistema. É, portanto, um ato de escolha entre as escolas de pensamento, sempre visando pelo método da coerência. Não é excessivo ressaltar, como uma melhor elucidação, que este sistema filosófico tem o conhecimento como sendo o resultado de um processo conciliatório, desde que os conceitos sejam coerentes na sua expressão como forma do pensamento motivado no mundo dos valores humanos. O ser humano procura a essência do conhecimento, principalmente, em se tratando do próprio Direito. Esta tentativa de combinar os melhores aspectos existentes em outros sistemas bem demonstra a sua importância para o mundo jurídico. Etimologicamente, ecletismo – “eklegein” – significa escolher, no grego clássico. Porém, é uma escolha que precisa estar fundamentada no princípio da coerência. Uma coerência que deve ser a expressão da própria harmonia. O univer- so do conhecimento humano é algo extremamente problemático. Nesse ínterim, temos a explicação coerente da causa de o Direito ter uma abertura pluridimensional na sua condição interpretativa. A sistemática inerente ao ordenamento jurídico se destaca pela sua condição de não representar a verdade como um objetivo conclusivo, mas, sim, no sentido de procurar constantemente pela verdade, que depende deste processo de interpretação do Direito em sua mais reconhecida e indispensável essência. Inúmeras são as causas que motivaram, como escola de pensamento, o ecletismo, conforme uma conclusão de Giovanni Reale33. Assim, pois, o Direito está envolvido, quando se trata de sua origem, com as teorias ecléticas. Neste sentido, o processo cultural é de muita importância para a expressão constante da linguagem do Direito e da sua aspiração mais alcandorada, 32 BEN-CHORIN, Schalom. A eleição de Israel. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 13. 36 que consiste na Justiça. O ordenamento jurídico expressa esta finalidade de procurar a Justiça para a efetiva harmonia nas relações sociais. Este século é considerado o mais violento da história humana. Talvez, esta seja a razão de o ser humano procurar mais intimidade com a Justiça. O mundo dos valores é algo complexo na sua expressão mais recôndita. O homem sempre teve necessidade de uma profunda reconciliação com a sua dignidade original, razão pela qual ele aspira pela Justiça. O universo cultural é algo impressionante, em decorrência de sua expressão pluridimensional. Nesta complexidade que identifica a natureza do ecletismo, em suas mais profundas relações com o mundo do Direito, temos que, entre os romanos, o “jus gentium” representava esta primeira tentativa prática de conciliação de conceitos coerentes. Neste sentido, temos o ensinamento conclusivo de Ulpiano, quando destaca com muita ênfase esta tentativa conciliatória: “Jus gentium est, quo gentes humanae utuntur”34. E foi justamente este “jus gentium” que deu origem ao Direito Internacional Privado, devidamente associado com a instituição do “proetor peregrinus”35. Nunca houve uma preocupação acentuada, antes dos romanos, em relação com a proposta de promover uma verdadeira conciliação entre os conceitos coerentes que pudesse favorecer o Direito como uma conquista cultural e a sua manifestação no universo dos valores humanos. Há, evidentemente, uma série de manifestações inerentes a esta escola de pensamento que promove, indubitavelmente, uma proposta de conciliação entre os conceitos coerentes em favor do ordenamento jurídico. 33 REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994. p. 439. 34 DIGESTO, 1, 1. 35 BEVILAQUA, Clovis. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 15. 37 O ser humano procura, constantemente, aperfeiçoar as estruturas do mundo jurídico, considerando que o denominado fenômeno cultural é uma conseqüência do próprio crescimento intelectual que está presente na vida do grupo social. Vale considerar, nesse ínterim, que o Direito, como expressão incontestável de uma conquista humana no mundo dos valores sociais, experimenta um processo constante de transformações. O pensamento jurídico em Roma tem as suas raízes fundadas em duas características relevantes da cultura da civilização grega: o pensamento jurídico de Platão, e, a filosofia estóica. Uma manifestação consciente da vontade de conciliação entre conceitos coerentes. Havia uma certeza efetiva em relação ao significado de uma proposta eclética, considerando a necessidade que o mundo romano constatava sobre a importância de uma estabilidade social, como fator de garantia para o desenvolvimento pleno das instituições jurídicas. O gênio romano, em sua natureza mais prática do que especulativa, estava consciente do verdadeiro valor do sentido essencial do Direito. A teoria eclética tem como escola fundamental na procura da origem do Direito o culturalismo jurídico. O Direito, neste sentido, corresponde a uma conseqüência da cultura humana. É, portanto, um processo de adaptação plena e indubitável da própria natureza em relação às necessidades da condição humana em sua mais abrangente pluridimensionalidade. O ser humano deve conquistar a própria natureza. Posteriormente, adaptá-la às suas necessidades mais essenciais e sempre com o intuito de torná-la sensível em seu próprio benefício. Isto bem demonstra que o Direito surge quando o homem passou a viver em sociedade e teve necessidade de mecanismos específicos para a garantia da vida em comum. O ordenamento jurídico transforma com uma naturalidade espantosa o “modus vivendi” do ser humano. É por isso, a bem da verdade, que muitos 38 doutrinadores têm o Direito como sendo o reflexo do espírito cultural de um grupo social. Há um verdadeiro propósito no sentido de que o ser humano sempre amplie a sua conquista no mundo dos valores. Na proporção em que o homem evolui, as instituições também estão experimentando um aperfeiçoamento em suas estruturas. Tanto as doutrinas voluntaristas quanto as doutrinas naturalistas experimentam acirradas críticas dos jusfilósofos, tendo em vista, pois, a sua característica de evidente unilateralidade em seus respectivos fundamentos. Uma análise valorativa, entrementes, vai constatar a presença incontestável de um pouco de verdade em cada uma delas. A escola teológica tem o Direito além do mundo dos valores humanos e o considera como sendo um ato exclusivamente de fé, sem nenhuma perspectiva investigatória para a elaboração de um conhecimento especulativo ou mesmo objetivo. É o crédito compulsório sem a possibilidade de uma ação questionadora. Não é demais ressaltar que há um fator determinante em torno da escola teológica. Sempre foi uma preocupação, inclusive, dos teólogos, em todos os momentos históricos, desvendar esta perspectiva de um Direito exclusivamente oriundo da vontade de DEUS. Na verdade, como uma efetiva determinação de uma legislação interna do próprio Espírito. Recentemente, Paulo VI, meditando sobre o assunto, direciona o debate acadêmico em relação a um possível “ius communionis”36. A própria Igreja tem manifestado um interesse crescente com referência à finalidade da escola teológica. Isto é um fato histórico. Independentemente da identidade cultural da fé, mas vamos certamente encontrar a manifestação da vontade de DEUS, em legislações contidas, exemplificativamente, no Código de Hamurabi, no Decálogo, no Código de Manu, entre outras, também conhecidas no mundo cultural da civilização humana. 39 As outras escolas de orientação voluntarista, que reconhecem o Direito como sendo um ato da vontade humana, demonstram claramente o seu envolvimento com o poder, com todas as manifestações arbitrárias, e, até com a própria força do ser humano. Também o seu sentido unilateral é uma característica específica, sem nenhuma perspectiva de questionamentos. Em decorrência de tal fato, o Direito não poderia ser considerado uma obra aberta e problemática, como também não teria uma linguagem própria, uma vez que não haveria necessidade de um processo interpretativo. Não é demais destacar que a hermenêutica é indispensável no mundo dos valores jurídicos. Sem esta característica, não haveria nenhuma possibilidade de o Direito experimentar o resultado das transformações sócio-econômicas. Para inúmeros jusfilósofos, as doutrinas que são conhecidas como naturalistas estariam mais próximas da verdade, ao considerarem o Direito como sendo um dado da realidade, qual seja, um produto da natureza. Todavia, não haveria assim, com exclusividade, o concurso da natureza moral, porque outros elementos estariam concorrendo com a sua elaboração, exemplificativamente, nas esferas antropológicas e econômicas, entre outras conquistas culturais do ser humano. É um fenômeno essencialmente problemático, com as suas características históricas. Finalmente, em uma análise crítica do ecletismo, podemos ser induzidos à conclusão de sua imparcialidade com a origem do Direito. Há uma verdadeira expectativa de possibilidade de harmonização entre o elemento moral e o fator natural do Direito. Esta conclusão não é antiga. Caenegem37 nos lembra que durante os pródromos da Idade Média, para uma melhor elucidação histórica, a 36 GHIRLANDA, Gianfranco. Introdução ao Direito Eclesial. São Paulo: Loyola, 1998. p.111. 37 CAENEGEM. R. C. van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. São Paulo: Martins 40 legislação teve para a sociedade uma importância apenas secundária. Isto significa, portanto, a predominância, até então, das teses voluntaristas e das teorias naturalistas. Sem nenhuma sombra de dúvida, o ecletismo se nos apresenta como uma conclusão inerente ao estudo da origem do Direito um tanto recente. Uma conclusão que mesmo satisfazendo, não deixa de promover, pois, uma nova e constante problematização pluridimensional do Direito. Ao que tudo nos indica, o ecletismo pode aproximar o ser humano de uma concepção mais valorável, em termos de expressão de um juízo. O ecletismo pode ser considerado então a vanguarda na busca da verdade no mundo da origem do Direito, uma vez que, não permite a presença do elemento da parcialidade, mesmo porque, tem por princípio e término a própria característica da moderação. Assim, pois, as doutrinas ecléticas são, exclusivamente, aquelas que nos permitem uma concepção integral e multidimensional do fenômeno jurídico. Fontes, 1995. p. 25. CAPÍTULO 2 ONTOLOGIA E AXIOLOGIA Sumário: 2.1 Teoria do objetos - 2.2 Objetos físicos e psíquicos - 2.3 Objetos ideais - 2.4 Os valores e o mundo do “dever ser” - 2.5 Os valores e o Direito. 2.1 Teoria dos objetos Ontologia e Axiologia: duas presenças fundamentais, no mundo do conhecimento humano, que são objetos de constante reflexão para a epistemologia. Ser e Valor: conseqüentemente, duas expressões que demonstram um processo de interiorização na investigação que o ser humano empreende para o conhecimento da verdade. O homem é o ponto de partida na procura pela verdade. É o ser enquanto ser, como objeto da Ontologia. O valor corresponde ao juízo emitido e de forma sempre dinâmica e não reducionista, a respeito de um determinado fato que impressiona a nossa condição intelectual – racionalismo e empirismo – na obtenção do conhecimento. Assim, pois, corresponde a uma manifestação do homem, em relação àquilo que desperta a sua atenção no mundo da cultura, emitindo um juízo de valor. É o estudo dos valores, como objeto da Axiologia. Efetivamente, Ontologia e Axiologia correspondem então a conceitos que estão intimamente relacionados no universo da teoria do conhecimento. O ser humano está constantemente direcionado no sentido de desvendar todos os segredos do conhecimento que antecedem a conquista da verdade e a própria formação de juízos de valor. Evidentemente, o conhecimento se produz no mundo da cultura humana, na proporção em que o ser humano amplia a sua visão intelectual. E, nesse ínterim, como fator preponderante, ontologicamente e como característica fundamental da teoria do conhecimento, há a teoria dos objetos, com a 45 finalidade de determinar então qual deve ser a natureza ou a estrutura daquilo que se destaca como sendo possível de ser especificado como objeto do conhecimento38. A teoria do conhecimento, neste momento histórico e de expressiva relevância intelectual, tem procurado demonstrar a profunda intimidade que existe entre o homem que conhece e o objeto que corresponde ao que é conhecido. Desta maneira, a Ontologia diz respeito às estruturas, ou formas dos objetos em um sentido geral. Todavia, para fins elucidatórios, não é excessivo destacar que Karl Popper defende a possibilidade de uma teoria do conhecimento em que o sujeito que conhece é perfeitamente dispensável. Modernamente, os doutrinadores têm se preocupado em demonstrar que não se deve confundir a expressão conhecida como sujeito cognoscente com a expressão inerente a sujeito de um juízo. A distinção é fundamental no mundo da teoria do conhecimento. A bem da verdade, no mundo do conhecimento, não há objeto sem sujeito, como também, não há sujeito sem objeto. Conclusivamente, há uma correlação efetiva entre um sujeito que se refere a um objeto, e, um objeto ao qual o sujeito se identifica. Por intermédio da intencionalidade da consciência, temos que o método fenomenológico demonstra uma nova relação entre o sujeito e o objeto, assim como, entre o pensamento e o ser. Husserl, citado por Giles39, conclui que toda consciência é consciência de algo. Há uma constante indagação, entre os doutrinadores: quais são as espécies de objeto que podem ser estudadas pelas ciências humanas? A perspectiva do real é algo que exerce uma influência acentuada na condição intelectual do ser humano. A bem da verdade, é indispensável que nós, muitas vezes, indaguemos sobre as condições reais daquilo que temos como 38 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 175. 46 efetivamente real. Certamente, como o objeto está profundamente relacionado com a Ontologia, epistemologicamente, racionalismo e empirismo se convergem no intelectualismo para nos proporcionarem os meios adequados à concepção do real. Não é demais ressaltar, nesse ínterim, que o ser humano permanece muito receptivo a todo e qualquer tipo de conhecimento. É bem verdade que o conhecimento é algo que pluridimensionalmente nos afeta em todos os sentidos. Epistemologicamente, qual é o verdadeiro sentido da realidade? Podemos dizer que há muitas dimensões para a manifestação da realidade? Qual é o verdadeiro sentido entre a realidade e o objeto? Um dos grandes problemas enfrentados pelos jusfilósofos corresponde em especificar com claridade solar a natureza e a estrutura de uma realidade que se nos apresenta na forma jurídica. Para tanto, possível o constante questionamento: aonde nós devemos localizar concretamente o fenômeno jurídico como objeto efetivo do estudo problematizado e dinâmico do Direito? Desta maneira, somente a Ontologia poderá nos esclarecer a contento, considerando o estágio atual do conhecimento humano. É uma forma de nós analisarmos e entendermos a verdadeira interação existente entre a realidade e o objeto. 39 GILES, Thomas Ransom. Introdução à Filosofia. São Paulo: E.P.U., 1979. p. 25. 47 2.2 Objetos físicos e psíquicos Fundamentalmente, a Epistemologia, quando faz análises a respeito da origem do conhecimento, destaca especialmente o racionalismo e o empirismo. Para o racionalismo, o pensamento, ou seja, a razão, corresponde à principal origem do conhecimento humano. Entrementes, o empirismo destaca que a experiência é a única fonte para a obtenção do conhecimento humano. Considerando posições tão antagônicas e reais, quanto à origem do conhecimento, surge uma terceira via – uma verdadeira tentativa de mediação – que nós denominamos de intelectualismo. E é justamente neste contexto, para todos os efeitos culturais, que os objetos físicos, e os objetos psíquicos, como um todo, encontram o campo propício para a sua constante manifestação no mundo do conhecimento. É bem verdade que a constatação da atuação dos objetos em nossa realidade cultural é bem diversificada. O objeto físico tem uma realidade concreta. Nem mesmo o efetivo poder de abstração do homem pode modificar a sua natureza e a sua estrutura convencionais, o objeto físico é especificamente aquilo que é para a nossa realidade cultural e consequentemente o produto da nossa própria experiência na forma mais rudimentar de constatação. O objeto físico ocupa, para os nossos sentidos, uma dimensão espaço-temporal. E mesmo se considerarmos o ensinamento de Kant de que tempo e espaço são meras durações de consciência. O objeto físico impressiona os nossos órgãos sensoriais, na medida em que corresponde a um nível de experiência para o homem. Assim, pois, o binômio tempo-espaço é fundamental a fim de que nós tenhamos possibilidade de constatar a constante presença dos objetos físicos com a sua efetiva transformação natural. Esta transformação natural é ocasionada, certamente, pela própria ação do binômio tempo-espaço. Não é demais ressaltar que os objetos físicos têm a sua incontestável fase de duração. Evidentemente, que 48 temos que considerar, nesse ínterim, os ataques de Ernst Mach ao espaço e tempo absolutos40. A complexidade do assunto deve estar patente com os próprios limites científicos. Neste sentido, Freire-Maia41 é categórico, quando aborda a característica de limitação da ciência. Os limites da ciência correspondem à limitação da própria condição humana. Os objetos físicos se manifestam no mundo da natureza e no mundo da cultura, perfeitamente percebidos pelo ser humano. Às vezes, o ob