UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP RAFAEL DOS SANTOS DE ALMEIDA CAMPOS O Curinga na Educação: O Teatro do Oprimido como Prática Pedagógica ARARAQUARA – SP 2018 RAFAEL DOS SANTOS DE ALMEIDA CAMPOS O Curinga na Educação: O Teatro do Oprimido como Prática Pedagógica Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção de título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Profª. Dra. Silvia Beatriz Adoue ARARAQUARA – SP 2018 RAFAEL DOS SANTOS DE ALMEIDA CAMPOS OOO CCCUUURRRIIINNNGGGAAA NNNAAA EEEDDDUUUCCCAAAÇÇÇÃÃÃOOO::: OOO TTTEEEAAATTTRRROOO DDDOOO OOOPPPRRRIIIMMMIIIDDDOOO CCCOOOMMMOOO PPPRRRÁÁÁTTTIIICCCAAA PPPEEEDDDAAAGGGÓÓÓGGGIIICCCAAA Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Profª. Dra. Silvia Beatriz Adoue Data da defesa/entrega: ___/___/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Professora Doutora Unesp Membro Titular: Doutor Unesp Membro Titular: Professora Doutora Unesp _____________________________________________________________________________ Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Agradeço a cada pessoa presente na minha vida quando, mesmo sem saber, me motivou a finalizar esse trabalho durante as crises que apareceram no decorrer do seu processo. Seja por coisas práticas ou pela palavra solidária, que fortalece. Agradeço aos meus pais pelo amor e suporte nestas crises. Também sou grato a cada companheira e companheiro de luta; artistas de grande dedicação; amigos e amigas; pessoas que inspiram na prática do dia-a- dia a superar os dramas do cotidiano com os quais nos deparamos. Agradeço à Silvia, orientadora e amiga, pela paciência e grande inspiração que também não me deixou desanimar. Dedico esse trabalho a cada educador, educadora, artista ou ambos que acreditam no potencial transformador da sua prática, buscando aprendizado crítico e dando matéria à sua palavra. RESUMO O estudo que se segue intenta demonstrar, a partir da pesquisa da bibliografia escolhida e relatos de oficinas teatrais, de que forma o Teatro do Oprimido, tal como sistematizado por Augusto Boal, se constitui enquanto instrumento pedagógico. A partir da totalidade de suas técnicas e de sua filosofia artística, que denota uma intimidade com uma prática pedagógica libertadora, realiza-se o questionamento do papel da arte enquanto potência transformadora da realidade, enquanto disparadora de um empoderamento dos sujeitos sociais que dela se apropriam. Palavras-chave: Teatro do Oprimido, Pedagogia, Arte. ABSTRACT The following study intends to demonstrate, through the research of chosen bibliography and stories from theater workshops, how the Theater of the Oppressed, as systematized by Augusto Boal, constitutes itself as a pedagogical instrument. Through the whole set of its techniques and artistical philosophy, which shows an intimacy with a liberating pedagogical pratice, it’s made an questioning of the role of art as a force of change of the reality, as an source of empowerment of the social actors that claims it. Keywords: Theater of the Oppressed, Pedagogy, Art. SUMÁRIO Resumo .......................................................................................................... I Abstract ............................................................................................................ II Introdução ...................................................................................................... 1 1. Capítulo 1 – Fundamentos do Teatro do Oprimido: O espaço estético enquanto produtor de questionamento ........................................................ 3 2. Capítulo 2 – Perspectiva de uma prática artística e pedagógica: sobre a posse da palavra .............................................................................................. 10 3. Capítulo 3 – O Curinga e seu papel pedagógico ...................................... 22 3.1. Curingagem: experiências artísticas e pedagógicas ................................... 26 3.1.1. Sobre uma prática de Teatro-Fórum durante a paralisação das aulas na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara ................................................. 27 3.1.2. Sobre as experiências teatrais com o projeto de extensão Aprendendo a Ensinar na Diversidade ...................................................................................... 28 3.1.3. Sobre a oficina realizada na XVIII Semana de Ciências Sociais na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara ................................................. 32 4. Considerações Finais – Reverberações do Teatro do Oprimido ............ 34 5. Referências Bibliográficas .......................................................................... 36 1 INTRODUÇÃO O objetivo do presente trabalho é identificar as potencialidades do Teatro do Oprimido, tal como sistematizado pelo dramaturgo e teatrólogo Augusto Boal, enquanto prática pedagógica. Para tanto, aliei a pesquisa bibliográfica pertinente ao tema com o relato de algumas experiências de oficinas de Teatro do Oprimido que ministrei. O que é mais fundamental em uma sessão de Teatro do Oprimido é a quebra da fronteira entre atores e espectadores, e a tomada de lugar de oprimidas e oprimidos enquanto artistas. É a tomada de uma linguagem, de um processo estético que se confunde com o próprio entendimento do mundo e em uma consequente transformação da realidade. O que vislumbramos em uma prática de Teatro do Oprimido, tanto quanto em uma prática pedagógica libertadora, são esforços mobilizados para um exercício pleno do diálogo. De forma horizontal. Isso se expressa tanto pela qualidade própria das práticas quanto pela conduta necessária para o exercício da função do curinga, que é o chamado facilitador, oficineiro (entre outras nomeações) que na condução de oficina ou espetáculo procura causar intervenções da plateia, a partir de seus próprios anseios. É mais como um provocador dos reais sujeitos daquele contexto, oprimidas e oprimidos, que tomam o método como forma de expressão de suas opressões e ensaiam soluções para superá-las na vida real. Sumarizando, dividi o trabalho em três capítulos. No primeiro capítulo é realizado um retrospecto histórico da linguagem teatral, e de como o teatro, antes chamado “canto do povo”, é apropriado pelas elites em cada contexto enquanto um poderoso método de dominação. É proposta uma reflexão acerca de quais são as propriedades da linguagem teatral, e quais são as suas potencialidades. No segundo capítulo são expostas as relações entre o Teatro do Oprimido e um ideário de educação popular. São aprofundadas as relações da estética proposta pelo TO com a posse de uma palavra e de uma práxis libertadora. Resumidamente, as qualidades pedagógicas imanentes do Teatro do Oprimido são postas à tona. O terceiro e último capítulo contextualiza o surgimento do Curinga, que é chamado facilitador do Teatro do Oprimido, e qual seria o seu papel artístico e pedagógico no exercício das práticas do TO. Também aqui são apresentados os 2 relatos de algumas oficinas realizadas por mim enquanto realizava o presente trabalho. Por fim, para as considerações finais deste estudo, se provoca a reflexão acerca de como o Teatro do Oprimido pode constituir-se enquanto instrumento pedagógico libertador. 3 1. FUNDAMENTOS DO TEATRO DO OPRIMIDO: O ESPAÇO ESTÉTICO ENQUANTO PRODUTOR DE QUESTIONAMENTO. Pensar acerca dos desdobramentos pedagógicos do Teatro do Oprimido implica necessariamente refletir sobre como o teatro pode ser um instrumento que auxilie a transformação da realidade, e qual seria o seu papel social em uma pedagogia que se proponha libertadora dos sujeitos que nela atuam. O Teatro do Oprimido, tal como sistematizado por Augusto Boal, insere-se em um movimento de reflexão sobre o próprio teatro, problematizando suas convenções tradicionais. Boal, em Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas (1975) se propõe a fazer um resgate histórico a respeito de como por tempos o teatro, nascido “canto do povo”, foi instrumentalizado pelas classes dominantes em cada contexto histórico para ser convertido em ferramenta de dominação e preservação de privilégios. Boal – remetendo rapidamente à história do teatro ocidental – expõe a poética de Aristóteles como percussora de uma forma teatral domesticadora, que se adapta ao decorrer dos séculos enquanto sistema de difusão dos ideais das classes dominantes. O princípio apresentado pelo autor é o de que o teatro é político, bem como a atitude dos que procuram separá-lo da esfera política: “Teatro” era o povo cantando livremente ao ar livre: o povo era o criador e o destinatário do espetáculo teatral, que se podia então chamar “canto ditirâmbico”. Era uma festa em que podiam todos livremente participar. Veio a aristocracia e estabeleceu divisões: algumas pessoas iriam ao palco e só elas poderiam representar enquanto que todas as outras permaneceriam sentadas, receptivas, passivas: estes seriam os espectadores, a massa, o povo. E para que o espetáculo pudesse refletir eficientemente a ideologia dominante, a aristocracia estabeleceu uma nova divisão: alguns atores seriam os protagonistas (aristocratas) e os demais seriam o coro, de uma forma ou de outra simbolizando a massa. “O Sistema Trágico Coercitivo de Aristóteles” nos ensina o funcionamento desse tipo de teatro. (BOAL, 2013. p. 13) E citando Arnold Hauser, Boal dá os contornos desse cenário: A tragédia é a criação mais característica da democracia ateniense; em nenhuma outra forma artística os conflitos interiores da estrutura social estão mais clara e diretamente apresentados. Os aspectos exteriores do espetáculo teatral para as massas eram, sem dúvidas, democráticos. Mas o conteúdo era aristocrático. Exaltava-se o indivíduo excepcional, 4 diferente de todos os demais mortais: isto é, o aristocrata. (...) A própria separação do protagonista do resto do coro demonstra a impopularidade temática do teatro grego. A tragédia grega é francamente tendenciosa. O Estado e os homens ricos pagavam as produções e naturalmente não permitiam a encenação de peças de conteúdo contrário ao regime vigente (HAUSER apud BOAL, 2013, p. 29). Para expor de forma mais sistemática esse uso político do teatro, nos é introduzido o conceito de catarse. Fundamental para apreender as reais dimensões da tragédia grega e o seu uso coercitivo, para manutenção da ordem: Independentemente de sua forma, a catarse (do grego: katharsis) significa purga, purificação, limpeza. Nesse ponto é que se encontra sua grande e única semelhança: o indivíduo ou o grupo se purifica de qualquer elemento perturbador do seu equilíbrio interno. A purga do agente perturbador se constitui no elemento comum a todos os fenômenos catárticos. (BOAL, 1992, pg. 81) O ponto a se atentar, que justifica a sobrevivência do sistema até as formas modernas do teatro (ou no cinema ao estilo Hollywood, que Boal também utiliza como exemplo), é o uso político da catarse como forma de “purificação” das mazelas e insatisfações sociais. O “agente perturbador” a ser purgado do espectador no sistema aristotélico é a tendência a subverter a lei e a ordem. No esquema aristotélico, a partir do teatro grego, essa “limpeza” começa pela exaltação da culpa do espectador refletida nas falhas trágicas do protagonista ou herói, falhas que constituem a chamada hamatia, em grego. As mesmas são expostas em um processo confessional no espetáculo (anagnorisis) e entram em choque com a ordem estabelecida. O terror ou piedade (no teatro grego são principalmente estas duas emoções, mas outras também podem ser invocadas) desatado pelo choque é transmitido empaticamente ao espectador, que vicariamente compartilha do destino sofrido pelo protagonista. (BOAL, 2013) Boal aponta essa empatia imposta como a reveladora do caráter coercitivo na relação espectador/personagem: o último age pelo primeiro, eximindo a culpa e a transgressão em um processo purificador. O espetáculo termina em repouso, com os problemas apresentados e resolvidos no seu interior. O “equilíbrio” social é reestabelecido. Assim, a ideia de catarse, tal como concebida na tragédia grega, se torna central para compreender o uso político do teatro pelas classes dominantes. Mas suas manifestações não se dão sempre da mesma forma, há variações na ideia de 5 catarse. Em última análise, sempre se trata de expulsar algo do indivíduo. No Teatro do Oprimido, alegoricamente, a enxergamos por uma lógica inversa: Nas formas convencionais de teatro, a ação dos atores (ou das personagens) é observada pelos espectadores. Em um espetáculo de Teatro do Oprimido, os espectadores não existem no simples “spectare = ver”; aqui, ser espectador significa ser participante, intervir; aqui, ser espectador quer dizer preparar-se para a ação, e preparar-se já é por si só uma ação. (...) A finalidade do Teatro do Oprimido não é a de criar o repouso, o equilíbrio, mas é a de criar o desequilíbrio que dá início à ação. Seu objetivo é DINAMIZAR. Essa DINAMIZAÇÃO e a ação que provém dela (exercida por um espect-ator em nome de todos) destroem todos os bloqueios que proibiam a realização dessa ação. Isso quer dizer que ela purifica os espect-atores, que ela produz uma catarse. A catarse dos bloqueios prejudiciais. (BOAL, 1992, p. 83) Tal dinamização que é referida pelo autor é movimento que torna o Teatro do Oprimido como espaço mobilizador de transformação da realidade. De forma a simplificar, Boal fundamenta dois princípios básicos e essenciais para a realização do Teatro do Oprimido: o espectador deve converter-se em espect-ator e assumir o papel de protagonista da ação dramática, e tal ação se configura em ensaio para a ação a ser efetivamente tomada na vida real. Aqui, por ação dramática compreendemos problemas sociais reais, vivenciados pelas pessoas oprimidas da sociedade. Mas antes, cabe uma definição para o conceito de oprimido tal como concebido pelo Teatro do Oprimido. Definição que também é dada por Boal: O teatro do oprimido não é um teatro de classe. Não é, por exemplo, o teatro proletário. Esse tem como temática os problemas de uma classe em sua totalidade: os problemas proletários. Mas no interior mesmo da classe proletária podem existir (e evidentemente existem) opressões. (...) Seja como for, é evidente que na classe operária podem existir (e existem) opressões de homens contra mulheres, de adultos contra jovens, etc. O teatro do oprimido será o teatro também desses oprimidos em particular, e não apenas dos proletários em geral. (...) Portanto, a melhor definição para o teatro do oprimido seria a de que se trata do teatro das classes oprimidas e de todos os oprimidos, mesmo no interior dessas classes. (BOAL, 1980, p. 25) Aqui, o pressuposto fundamental é que toda pessoa é artista. Isso implica pensar em um teatro que não seja apenas conscientizador, mas que ativamente instigue os seus sujeitos na transformação da realidade, que os impulsione à ação. Em suma, que os torne sujeitos sociais. 6 Os paradigmas expostos para a transformação do teatro, com os quais se depara o Teatro do Oprimido, também guardam similitudes com o preconizado pelo teatro épico brechtiano, do qual o mesmo carrega influências, estabelecendo-se entre ambos um diálogo crítico. A ideia de um espetáculo que termine em desequilíbrio é um ponto de convergência que insere o Teatro do Oprimido na tradição brechtiana. E, resumidamente, podemos nos referir a dois pontos vitais que unem Brecht e Boal no movimento de transformação do teatro: a preocupação acerca de com quem o teatro dialoga e a disponibilidade dos meios de produção artísticos e culturais nas mãos de oprimidas e oprimidos como pressuposto para a construção desse teatro. A discussão acerca da democratização dos meios de produção cultural, ganha uma dimensão importante, justamente por constituir condição primordial para criar um teatro que dialogue verdadeiramente com os agentes que o tomarão como ferramenta de transformação social. Walter Benjamin, remetendo ao teatro épico de Brecht, nos diz que: Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera de produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores e espectadores. (...) “Essa falta de clareza sobre sua situação’, diz Brecht, ‘que hoje predomina entre músicos, escritores e críticos, acarreta consequências graves, que não são suficientemente consideradas. Acreditando possuir um aparelho que na realidade os possui, eles defendem esse aparelho, sobre o qual não dispõem de qualquer controle e que não é mais, como supõem, um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor”. (BENJAMIN, 1987, pg. 132) Brecht assume a preocupação com a criação de um teatro que seja crítico e que induza o espectador à reflexão. Reflexão gerada pelo distanciamento crítico do espectador para com as personagens. Nesse sentido, é avesso à lógica aristotélica, emocionalmente manipuladora. E para que tal processo não se dê de forma alienada, é central a discussão da apropriação dos meios de criação artística. Boal converge com Brecht nesse aspecto. Ambos marxistas, pensam na expressão artística a partir do raciocínio que torna imprescindível pensar em uma forma de teatro crítico que o seja tanto em sua produção e forma quanto na relação de seus interlocutores. Mas Boal radicaliza a proposta brechtiana, salientando o fato 7 de ser o Teatro do Oprimido justamente a instância do encontro de artistas e público (no Teatro do Oprimido a dicotomia é inexistente). Ao teatro brechtiano, ainda falta superar o paradigma que imobiliza o espectador, sem o conduzir à ação. Brecht mantém em perspectiva um teatro que seja conscientizador, embora não supere, em um aspecto formal, o caráter imobilista do teatro tradicional; é aqui que se mantém catártico. Boal aponta em Brecht uma falta de percepção do caráter indissolúvel entre ethos e dianoia – ação e pensamento. Esse é o ponto principal que move sua crítica a Brecht. (BOAL, 1980) Mas o ponto vital de diálogo entre Boal e Brecht continua sendo a consciência do papel social da arte, enquanto potência de questionamento da realidade, a qual não basta apenas compreender e sim transformar. Boal sempre ressaltou em sua obra que o Teatro do Oprimido não é um sistema fruto de uma criação individual, mas antes é sistematização de diversas técnicas de teatro popular que, no seu conjunto, deram vida a outras técnicas específicas que compuseram o arsenal do Teatro do Oprimido, em um movimento sempre vivo e de transformação. A respeito do conjunto de técnicas que dão forma ao Teatro do Oprimido, nas palavras de Boal: Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas essas formas teatrais são certamente um ensaio da revolução. A verdade é que o espectador-ator pratica um ato real, mesmo que o faça na ficção de uma cena teatral. Enquanto ensaia jogar uma bomba no espaço cênico, está concretamente ensaiando como se joga uma bomba; quando tenta organizar uma greve, está concretamente organizando uma greve. Dentro dos seus termos fictícios, a experiência é concreta. (BOAL, 2005, p. 147) A dimensão da experiência concreta é expressa pelo espectador, que reclama o seu espaço em cena, tal como ocorre no Teatro-Fórum, que é a profanação da cena: o protagonista das ações não é mais a figura profissional do ator em seus locais consagrados, ao qual se delegava o poder de ação. Mas espectadores, que reclamando seu espaço em cena se afirmam como artistas. E o caráter pedagógico imanente do Teatro do Oprimido parte justamente de sua disposição para a ação. Seus sujeitos se reconhecem nas imagens que criam, em ação, o que conduz a um movimento de transformação da realidade. O espaço estético é tido como gerador de reflexão. A interpenetração do espaço da cena e do público é a geradora do espaço estético. Surge no momento de encontro entre ator e espectador. Ao encontro, como 8 discorre Boal, não é atribuído como circunstância puramente física, antes é intensamente subjetiva. O espaço estético é necessariamente o terreno da memória e da imaginação, instâncias indissociáveis e interdependentes. Suas projeções sobre o espaço físico se manifestam em qualidades definidas como oníricas e afetivas: Na dimensão afetiva o sujeito observa o espaço físico e sobre ele projeta suas memórias, sua sensibilidade, lembra fatos acontecidos ou desejados, ganhos e perdas, e é determinado por tudo que ele sabe e também por tudo que permanecerá obstinadamente inconsciente. Na dimensão onírica o sonhador não observa: penetra nas suas projeções, atravessa o espelho, tudo se funde e confunde, tudo é possível. (BOAL, 1990, p.36) O que se ressalta é principalmente o caráter gnosiológico desse espaço, surgido através dos seus sujeitos. Embora a separação promovida pelo espaço entre quem atua e quem vê se projete, ela pode se expressar nas manifestações de uma só pessoa nesse espaço, na ideia do espect-ator. Em cena, um acontecimento vivido, trazido da memória, nunca é uma lembrança solitária, pois o que ocorre é, mais precisamente, a concreção de uma ideia. Não se trata da lembrança de um ocorrido por si só, mas do ocorrido reacontecendo. Analogicamente, uma prática de improviso é sempre um processo de descoberta: descoberta de caminhos e soluções para o que é mostrado. Sob o prisma do Teatro do Oprimido, a realidade que é apresentada pela expressão artística é sempre dotada de uma intencionalidade, intenção suficientemente teatral. Por intermédio da reprodução dessa realidade (não necessariamente através de uma forma realista, enquanto estilo) aquilo que se encontra escondido, naturalizado no cotidiano, se revela enquanto componente das estruturas sociais. A tais estruturas: Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser usados pelos oprimidos como formas de rebeldia e ação, não passiva contemplação absorta. Não basta consumir cultura: é necessário produzi-la. Não basta gozar arte, é necessário ser artista! Não basta produzir ideias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e continuados. (BOAL, 2009, p. 19) As opressões vividas em sociedade se escondem sob uma aparência de naturalidade, enquanto compondo a ordem das coisas. O objetivo de pô-las em 9 cena, de forma consciente, em uma arte pedagógica e mobilizada para este fim, é dotar os seus sujeitos de um instrumental estético que lhes coloque nas mãos uma linguagem diversa de compressão do real, e que lhes possibilite intervir nele. Dada a perspectiva da dimensão criadora do espaço estético enquanto espaço que, simultaneamente, produz o conhecimento e possibilita a sua criação, cabe a reflexão acerca dos papéis exercidos pelos sujeitos que ocupam esse espaço e que nele “atuam” (aspas pelo sentido metafórico e literal). Qual seria o papel pedagógico do curinga, o facilitador do Teatro do Oprimido, nesse processo e como, a partir desse papel, refletimos acerca de uma prática pedagógica libertadora? Debatamos. 10 2. PERSPECTIVA DE UMA PRÁTICA ARTÍSTICA E PEDAGÓGICA: SOBRE A POSSE DA PALAVRA. Posta a discussão acerca do espaço estético enquanto dimensão produtora de conhecimento, concebamos duas instâncias: as categorias de Pensamento Sensível e Pensamento Simbólico. Tal como as relações intrínsecas entre a memória e a imaginação, são instâncias interdependentes, que estruturam nossa forma de conhecer a realidade. Temos que concordar: os sentidos têm sentido! Não são meras sensações que se apagam com o tempo: têm sentido e direções! Quero adotar que existe uma forma de pensar não-verbal – Pensamento Sensível -, articulada e resolutiva, que orienta o contínuo ato de conhecer e comanda a estruturação dinâmica do Conhecimento sensível. Quero afirmar que, para serem compreendidos, mesmo quando são expressos em palavras, os pensamentos dependem da forma como essas palavras são pronunciadas ou da sintaxe em que as frases são escritas – isto é, dependem do Pensamento Sensível. (BOAL, 2009, p. 27) Boal coloca em questão que não há a subordinação de uma forma de conhecimento sensível (estético, linguagem) a uma forma de conhecimento simbólico (noético, língua). A qualidade atribuída a essa forma de pensar - que gera de Pensamento Sensível a conhecimento sensível - é o terreno de uma linguagem sinalética (onde significados e significantes são inseparáveis). Logo demonstramos como ambas as linguagens são mutuamente constituídas. Tal ideia se coloca como um ponto gerador das concepções filosóficas que constituem o Teatro do Oprimido. O que se põe é, necessariamente, a criação de uma nova estética, distante de suas definições estanques, mas que constitui uma forma de arte pedagógica, que empodere seus sujeitos na expressão de sua linguagem artística. Pensar é tanto a organização do pensamento quanto a própria ação. A fala é ação. E teatro não é pura contemplação e sim práxis, concreção de ações. A posse da linguagem artística aqui se apresenta como condição para compreensão da realidade, pois é exercício de uma vocação humana, característica de quem conhecendo a realidade, interfere na mesma e a transforma. Dimensões simbólicas e sensíveis se complementam em importância para uma leitura do mundo. Por um lado, também compõem um instrumental ideológico pelo qual as ideias dominantes são difundidas e consolidam uma dominação, como 11 é patente nos domínios da educação e da arte. Tendo isso em conta, a preocupação com a formação de uma arte pedagógica e libertadora assim se faz central para o enfrentamento das concepções hegemônicas e para sua consequente superação. A castração estética vulnerabiliza a cidadania obrigando-a a obedecer mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e de todos os sargentos sem pensá-las, refutá-las, sequer entendê-las! (BOAL, 2009, p. 15) À carência dos instrumentais que possibilitam a livre expressão do conhecimento sensível, Augusto Boal atribui o nome de “analfabetismo estético”: uma profunda forma de alienação que priva os sujeitos do exercício de sua produção artística e cultural. Além de castrador de potencialidades, o analfabetismo estético também se constitui enquanto um subliminar método de dominação: pela posse do Som, da Palavra e da Imagem, as ideologias dominantes dão a leitura do real. (BOAL, 2009) A posse de tais canais de diálogo, o Som, a Palavra, e a Imagem, pelos sujeitos oprimidos em prol de sua própria libertação, é o que norteia a nova estética a ser construída pelo Teatro do Oprimido. Por nova estética, uma redefinição do conceito, sua suplementação quanto às outras formas de concepção de uma obra artística, não é o foco da questão. O âmago da proposta mesma encontra-se na multiplicação de artistas concebida a arte, a priori, enquanto vocação humana, característica de forma universal. Boal, ao se referir ao pensamento de Walter Benjamin no conceito de aura da obra de arte (BOAL, 2009), atenta às transformações nas formas de feitura e contemplação da obra de arte no decorrer da história, as quais possibilitaram a reprodução dessa aura, materializada pela multiplicação dos objetos e que deveria ser imanente à obra artística, trazendo outros paradigmas para a apreciação e o uso da mesma. A arte deixa seu caráter “ritualístico”, de forma a poder ser reproduzida em múltiplos objetos (o cinema como grande exemplo: já contém em sua forma mesma essa multiplicidade). Por essa nova estética, que chamamos de Estética do Oprimido, o que se propõe a construir é um movimento inverso: a aura amalgama-se em artistas além de suas criações, e na sua multiplicação. Em processos dialógicos, o movimento não é de reprodução, mas profundamente criativo. 12 E como força criadora, fundamental é a posse da palavra, dotada de caráter vital nesse movimento: o entendimento da palavra enquanto ato de poder. Novas narrativas necessitam ser criadas para criar horizontes de superação. Por que a palavra é um ato de poder, o que equivale afirmar que ela não é um entre os seus outros símbolos, mas o seu exercício. (...) O poder torna legítimo porque é pronunciado como tal e, como tal, pronuncia palavras que ordenam a vida. A primeira escrita existiu para contabilizar os bens dos senhores e tornar possível a extensão do poder. (BRANDÃO, 1981, p. 3) A palavra como ato de poder, ato criador. É ponto convergente entre o sensível e o simbólico. Sua realização é consumada no terreno do diálogo – vital na arte pedagógica do Teatro do Oprimido, como também na construção de uma educação popular. Palavra e corpo se encontram porque se necessitam para coexistir. O Pensamento Sensível necessita da extensão do simbólico, para dialogar e não isolar-se. Ao Pensamento Simbólico, é necessário o sentir, para não dissociar- se da vida e também fazer sentir: Os verbos são minhas mãos; pronomes, limites entre cada ser humano e o mundo; adjetivos são minha maneira de ser e fazer; advérbios, minha personalidade; conjunções, meus amigos e inimigos. Objeto é o objeto do desejo. (BOAL, 2009, p. 68) O diálogo se torna condição de existência para a palavra criadora. Sem o diálogo a palavra é esterilizada, toda linguagem pressupõe a existência de interlocutores. O território da palavra é concebido enquanto território de luta constante. Semântica é poder. A dialogicidade enquanto fundamento para uma educação enquanto prática de liberdade, como explana Paulo Freire (FREIRE, 2016), é também aqui uma condição para a criação artística transformadora e sua consequente intervenção na realidade concreta. Afinal, qual o veículo da palavra que não o diálogo? A horizontalidade de uma prática de educação popular pressupõe o poder do uso da palavra nas vozes e corpos de cada sujeito de sua construção: é construção coletiva de saber. Para Paulo Freire, a experiência educativa não é uma prática unilateral de transmissão de conhecimentos. É fundamentalmente movimento dinâmico, dialético. O conhecimento se produz no âmago dialógico educador/educando. 13 A consciência crítica, que se procura provocar nos atores desse processo, o caminhar de uma curiosidade epistemológica (FREIRE, 2016), direciona-se a um movimento profundamente criativo. Além de tudo, o ensino crítico demanda uma consciência do inacabamento. Processo em eterno movimento, pois caso contrário equivaleria a uma cristalização do saber, visões estanques de mundo que ignoram o horizonte do ser humano enquanto ser em constante formação. Responsabilidades são exigidas, pois se constituem na própria responsabilidade de se estar no mundo e de nele agir. Há uma correspondência profunda entre teoria e prática: É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram como inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. Não sou esperançoso, disse certa vez, por pura teimosia, mas por exigência ontológica. (FREIRE, 2016, p. 57) À postura tão fundamental que é a esperança soma-se a alegria relacionada ao ato de ensinar. A uma prática que se afirma como crítica subjaz a esperança de efetivamente concretizar as mudanças no horizonte do pensamento. Fugimos das concepções deterministas para encarar as circunstâncias históricas que fazem a realidade social ser como é. Contra o desespero age, como antídoto, a atitude de se perceber e de constituir-se como sujeito, não objeto de forças sociais implacáveis e perenes. Somemos isso à alegria de ensinar como um ato que visa uma totalidade. Ato ético e estético. Sob esse prisma, observemos como é tão pertinente aqui entrever esse novo teatro sob essa nova estética, enquanto teoria da práxis. Eu penso que é assim como os mágicos devem ser: primeiro fazem sua mágica, encantando a todos com sua arte; depois, nos ensinam seus truques. Ensinar é um segundo prazer estético! É assim que devem ser os artistas-criadores, mas eles devem também ensinar o público a criar, a fazer arte, para que possamos usar essa arte, que é de todos, em conjunto. (BOAL, 2004, p. 43) 14 Aqui chegamos a um ponto central: no estabelecimento de um pensamento que concebemos como crítico, o que o caracterizaria é justamente a noção de compreendermos o exercício da palavra enquanto práxis. Práxis enquanto palavra verdadeira, que transforma. E creio que aqui visualizamos um ponto vital de conexão da prática de uma educação dialógica, libertadora, com os fundamentos mesmos do Teatro do Oprimido: o empoderamento dos sujeitos, no exercício de sua palavra. O exercício libertador da palavra não é só importante para a prática artística tal como a enxergamos até aqui, mas é também a forma como os sujeitos se constituem como tal. E assim sendo, concebemos que nenhum sujeito se constrói sozinho, em isolamento, mas em uma prática dialógica, que por sua vez, é o canal pelos quais os sujeitos se põem em movimento em direção a um mundo que creem ser possível. A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo e modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. O diálogo é esse encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. (FREIRE, 1987, p.46) O exercício da palavra, como o enxergamos, se mostra como movimento profundamente criativo. E além de condição para expressão, é condição de humanização. Ao trabalhar as contraposições entre as práticas de uma educação bancária – antidialógica – e uma educação libertadora, Paulo Freire expõe a importância fundamental do diálogo na constituição dos sujeitos no processo educativo. (FREIRE, 1987) O autoritarismo inerente à prática que concebe os agentes do processo entre “aqueles que sabem” e “aqueles que não sabem” excluiria a possibilidade mesma do diálogo em consequência da estrutura verticalizante que a pressupõe. A ação antidialógica é ferramenta necessária para a manutenção do 15 poder das elites dominantes sobre os oprimidos, que interiorizam os pressupostos dessa estrutura já existente. A problematização do real passa pela construção de uma teoria que seja dialógica e libertadora, teoria que é práxis: palavra verdadeira. Só podendo existir sujeitos livres quando se exerce o diálogo pela prática horizontal, a abolição de uma dualidade se faz necessária no exercício de uma prática pedagógica libertadora. Ninguém pode educar ninguém, as pessoas educam- se de forma mútua, pela prática do diálogo. (FREIRE, 1987) Educador e educando são sujeitos no processo de libertação – de ambos. Problematizar as práticas de educação bancária, dessa forma, envolve compreender que as mesmas jamais poderiam ser ferramentas de libertação, já que são os métodos do opressor para manter a existência tal como está. O educador também se faz educando, como o educando também se faz educador. (FREIRE, 1987) Seguindo o raciocínio, como assim concebemos a construção teórica de uma prática educativa libertadora, a concepção vale também para a prática artística – que até aqui já entendemos como vocação humana imanente. De fato, assim também enxergamos o perigo que se forma com o exercício danoso da palavra antidialógica em todos os âmbitos da vida. A empatia – instrumento de convencimento e poder – pode ser benéfica quando o personagem com o qual nos deixamos empatizar, tanto no teatro como na vida cotidiana, produz ideias e emoções que ajudam nosso desenvolvimento intelectual e emotivo. Torna-se daninha quando imobiliza os espectadores inoculando-lhes ideias e emoções ordinárias e falsas, como a luz ofusca cangurus. Essa delegação de poderes que o espectador oferece ao personagem – que passa a agir, sentir e pensar em seu lugar, fazendo-o pensar, agir e sentir como ele – é uma perigosa renúncia à cidadania, porque o espectador, imobilizado, se torna vítima e não parceiro. (BOAL, 2009, p. 88) Não aleatoriamente, os infindáveis exemplos de produção cultural que se pode examinar difundidos massivamente pelos meios tecnológicos em poder das classes dominantes constituem-se enquanto uma importante estratégia de dominação: o que se percebe é, necessariamente, o monólogo que imobiliza pelo consumo acrítico. O exercício de uma palavra falsa, antidialógica. A arte, tanto quanto a educação, pode ser uma ferramenta de dominação como também uma ferramenta de libertação. Isto posto, são expostos os perigos e as potencialidades da palavra. 16 O método de alfabetização de matriz na procura da palavra geradora – método que Paulo Freire nos apresenta em Educação como prática de liberdade (1967) – é um exemplo patente da potencialidade do exercício da palavra como leitura e construção do mundo pelos próprios sujeitos oprimidos. A experiência de educação popular que se tornou célebre, ensejada na comunidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, cujo êxito foi provado pela alfabetização de trezentas pessoas em quarenta e cinco dias é um belo exemplo da apropriação da palavra transformadora. Problematizou-se o sistema tradicional de alfabetização, a chamada “linguagem de cartilha”, cuja metodologia didática pelo uso de palavras e expressões isoladas, em lógica na prática mecanicista deslocada da realidade dos alfabetizandos (o termo “analfabeto” é problematizado) não poderia instigar o exercício de um pensar verdadeiramente crítico. O cotidiano de cada pessoa, sua realidade de vida, colocada no centro do processo e desvelada pelo uso das palavras geradoras, facilmente identificadas porque relevantes na existência sensível, demonstra, por uma identificação simples, como o exercício pleno da palavra se confunde com o ganho do mundo. Enxergamos assim, de uma forma que se busca prática e coerente, a noção defendida por Paulo Freire da relação indissociável entre educação e conscientização. Pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores. Numa alfabetização em que o homem, porque não fosse seu paciente, seu objeto, desenvolvesse a impaciência, a vivacidade, característica dos estados de procura, de invenção e reivindicação. (FREIRE, 1967, p. 104) A discussão também se desenvolve no que tange ao projeto pós- alfabetizador, na descoberta dos chamados temas geradores. (FREIRE, 1987) A importância dos temas geradores na metodologia pedagógica confere-se tanto no seu conteúdo, considerado em si, quanto no próprio processo de investigação e descoberta. A questão que perpassa tal processo é que o mesmo não poderia ser algo puramente prescrito, mas sim algo cujas raízes repousassem num desafio, que representasse a própria tomada de posição de seus sujeitos no processo. Paulo Freire, discorrendo acerca dos temas geradores, sua definição e seu papel, os coloca como problemas de uma época ou de determinado contexto social. 17 Partem de uma percepção do ser humano enquanto ser histórico. A feitura de um projeto de educação libertador assim passaria por uma busca do universo temático do povo – que apresentaria seus temas geradores – para assim lidar com os desafios que implicam as tentativas de sua superação. A descoberta do tema, do problema, passa longe de uma postura de desesperança. Antes, é atitude conscientemente direcionada para a superação de circunstâncias históricas e sociais, materializadas pelas “situações-limites”, em um movimento constante de transformação. (FREIRE, 1987) A investigação dos temas passa por um processo de descoberta dos agentes que lhes dizem respeito: começam a ser identificados os que atuam para manter a situação de opressão e os que devem assumir a postura que levará à sua superação. Enquanto para os primeiros a manutenção de tal situação implicaria em manter os privilégios intocados, para os segundos implicaria no constante movimento em direção a um inédito viável, possibilidade de se atingir a vocação ontológica do Ser mais. (FREIRE, 1987) Em direção a essa vocação, o passo corajoso a ser tomado é a superação do medo da liberdade. Em síntese, as “situações-limites” implicam na existência daqueles a quem direta ou indiretamente “servem” e daquele a quem “negam” e “freiam”. No momento em que estes a percebem não mais como “uma fronteira entre o ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o mais ser”, se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção em que está implícito o inédito viável como algo definido, a cuja concretização se dirigirá, sua ação. A tendência então, dos primeiros, é vislumbrar no inédito viável, ainda como inédito viável, uma “situação-limite” ameaçadora que, por isto mesmo, precisa não concretizar-se. Daí que atuem no sentido de manterem a “situação-limite” que lhes é favorável. (...) Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das “situações-limites”, em que os homens se acham coisificados. (FREIRE, 1987 p. 56) Neste ponto, também se observa aqui, como um ponto importante, a necessidade vital do engajamento, para a construção de uma prática pedagógica coerentemente libertadora. Tomemos como exemplo as qualidades pedagógicas do Teatro-Fórum. Podemos conceber o Teatro-Fórum (ou teatro-foro) como a mais difundida entre as práticas do Teatro do Oprimido em todo o mundo. Seu verdadeiro 18 diferencial é o caráter agregador que rompe com a dicotomia atores/público, horizontalizando a prática teatral. O mesmo carrega em suas raízes a correspondência que estabelecemos entre o que se consideraria enquanto palavra verdadeira e uma práxis transformadora. Boal no conjunto de sua obra e partindo dos relatos de experiências - tanto com que construiu com grupos em determinados contextos quanto a partir de testemunhos de trabalhos alheios - sempre aponta em direção a uma constante adaptação às necessidades específicas de determinado contexto social e dos dramas vividos por seus sujeitos. Via de regra, um bom espetáculo de Teatro-Fórum é aquele que consegue traduzir os dramas, a principio isolados a um nível por vezes individual (que dão fundo à história) no grande drama coletivo, que é o problema que necessita ser sanado, em um viés estrutural. Isso se evidencia pela necessidade de multiplicação, para que cada pessoa se faça verdadeira protagonista nos processos de mudança. Explico melhor: o teatro do oprimido, em geral (e o teatro-foro, em particular), é o teatro na primeira pessoa do plural. Trata-se de permitir e facilitar aos oprimidos que falem por si mesmos, sem o artista intermediário – o oprimido é artista! Mas uma cena de teatro-foro deve, necessariamente, envolver todos os participantes, os quais devem, todos, sentir-se igualmente oprimidos pela mesma opressão. Por isso, é necessário um grau elevado de homogeneização da plateia. Os melhores resultados de um teatro-foro observam-se quando os espectadores-atores sofrem a mesma opressão apresentada no modelo e buscam juntos as melhores formas de eliminá-la. (BOAL, 1980, p. 128) A necessidade de multiplicação explicita-se pela urgência de resolução de um problema, que demanda ações práticas. Isso não significa que haja opressões que tenham que se sobrepor sobre outras enquanto objetos de uma sessão de Teatro- Fórum, já que até aqui buscamos estabelecer o Teatro do Oprimido enquanto o teatro de todas as classes oprimidas. Na verdade, antes implica que as resoluções a serem tomadas inserem-se em um processo de investigação e descoberta no calor do contexto e na urgência de cada sujeito. O pressuposto de um movimento das soluções representadas cenicamente, direcionadas para uma tomada de espaço na vida real implica, necessariamente, em um engajamento dos artistas que as constroem. Aqui, expõem-se os sujeitos sociais de cada contexto. 19 Talvez seja seguro afirmar, em uma observação atenta, a existência de uma correspondência possível entre a constituição do Teatro-Fórum, enquanto forma artística pedagógica, com a investigação dos temas geradores como metodologia pedagógica, proposta por Paulo Freire. Em cena, o que se coloca é sempre uma provocação para a ação a ser tomada na vida real, acerca da temática coletivamente aceita para ser trabalhada. O processo de descoberta da temática pode dar-se pela urgência da resolução do problema – um ensaio de uma ação futura, próxima ou em longo prazo – revelando o caráter necessariamente pedagógico da luta, esse sendo o processo de descoberta dos temas pertinentes a serem tratados no Teatro-Fórum ou processo pedagógico, temas coletivamente identificados como urgentes e que dizem respeito a todos, considerando que as temáticas nunca são estranhas ao contexto social em que os grupos trabalham (aqui implicando que a educadora ou educador, no contexto de investigação do universo temático, não pode incorporar na sua conduta a imposição de seus temas, de cima para baixo, aos grupos, o que ocorre de forma similar com a conduta do curinga, a facilitadora ou facilitador do Teatro do Oprimido, cuja prática iremos nos aproximar no capítulo seguinte). Os temas, que são desvelados pelo coletivo, geralmente não estão expostos de forma a serem imediatamente reconhecidos e resolvidos – o ideal, em verdade, é que não o sejam, tanto quanto o importante é também que não sejam enclausurados em um mistério indecifrável, inacessíveis. O fato de não serem reconhecidos de imediato é um elemento desafiador, que instiga o nascer de um pensar crítico. Tal também, idealmente, é o andamento do Fórum. Educar e fazer arte é provocar. O artista mostra o escondido, não o óbvio, e nos faz entender através dos sentidos – torna consciente o que estava em nós impregnado. No tempo, surpreende o instante; no espaço, o invisível. No teatro – a mais complexa de todas as artes porque a todas inclui com suas complexidades –, os artistas (cidadãos) devem fazer-nos ver o que temos diante do nariz e não vemos, entender o que é claro e nos aparece obscuro. Disse um camponês do MST: “O Teatro do Oprimido é bom porque nos ensina tudo que já sabíamos!” (BOAL, 2009, p. 57) O desafio proposto pelo exercício pedagógico libertador é ponto vital que move a investigação do universo temático do povo. Assim como a percepção das situações-limite deve ser um motor de esperança para sua superação e condição para um processo de humanização, o movimento mesmo do Teatro do Oprimido, em sua proposta estética libertadora e multiplicadora de artistas, compõe sentido 20 essencial para uma perspectiva totalizante desse processo: a arte como instrumento de libertação. Partindo disto: Ao se separarem do mundo, que objetivam ao separarem sua atividade de si mesmos, ao terem o ponto de decisão de sua atividade em si, em suas relações com o mundo e com os outros, os homens ultrapassam as “situações-limites”, que não devem ser tomadas como se fossem barreiras insuperáveis, mais além das quais nada existisse. No momento mesmo em que os homens as apreendem como freios, em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, se transformam em “percebidos destacados”, em sua “visão de fundo”. Revelam-se, assim, como realmente são: dimensões concretas e históricas de uma dada realidade. Dimensões desafiadoras dos homens, que incidem sobre elas através de ações que Vieira Pinto chama de “atos-limites” – aqueles que se dirigem à superação e à negação do dado, em lugar de implicarem na aceitação dócil e passiva. Esta é a razão pela qual não são as “situações-limites”, em si mesmas, geradoras de um clima de desesperança, mas a percepção que os homens tenham delas num dado momento histórico, como um freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar. No momento em que a percepção crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a empenhar-se na superação das “situações- limites”. Esta superação, que não existe fora das relações homens-mundo, somente pode verificar-se através da ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as “situações-limites”. Superadas estas, com a transformação da realidade, novas surgirão, provocando outros “atos- limites” dos homens. Desta forma, o próprio dos homens é estar, como consciência de si e do mundo, em relação de enfrentamento com sua realidade em que, historicamente, se dão as “situações-limites”. E este enfrentamento com a realidade para a superação dos obstáculos só pode ser feito historicamente, como historicamente se objetivam as “situações-limites”. (FREIRE, 1987, p. 53-54) A descodificação da realidade implica o exercício de um pensar crítico. O processo pedagógico do fórum implica em uma desnaturalização das circunstâncias e contextos sociais sobre os quais se debruça. Visão estrutural, não conjuntural. Um bom Teatro-Fórum é o que possibilita que seus sujeitos “sobrevoem” as dimensões concretas que desafiam, tendo em mente esta concepção do teatro enquanto práxis, que pressupõe os sujeitos em posse de sua palavra. A Estética do Oprimido é uma forma essencial de combater a Invasão dos Cérebros porque coloca o oprimido como protagonista do processo estético, não simples fruidor de arte. Não leva a cultura ao povo, mas oferece meios estéticos necessários para o desenvolvimento da sua própria cultura, com seus próprios meios e metas. Não apenas educa nos elementos essenciais do como se pode fazer, mas, pedagogicamente, estimula os participantes a buscarem seus caminhos. 21 No caso particular do teatro, a peça deve conter a ação dramática e sua clara crítica. Não realismo, mas realidade que busque alternativas. Não a vida como ela é, mas como não queremos que continue sendo. Todo espetáculo, em cena ou na vida real, é uma estrutura de poderes que devem ser revelados. A ascese, durante o fórum, é necessária à compreensão de cada fenômeno que se mostra em cena, pois devemos sempre chegar às leis sociais que regem esses fenômenos. (BOAL, 2009, p. 166) Temos assim, como objetivo fundamental do fórum, a investigação radical dos fenômenos tratados como temas em cena - que Boal define como ascese (BOAL, 2009) - de acordo com a importância social que lhes é dada pelos seus sujeitos. Buscamos o belo que se esconde em cada cidadão: mesmo que alguns não sejam capazes de criar um produto artístico, todos são capazes de desenvolver um processo estético. (BOAL, 2009, p. 169) E assim, é necessário pressupor, pelo exposto que, toda transformação radical da sociedade supõe uma profunda revolução cultural. (FREIRE, 1987) O que Paulo Freire expõe como a necessidade da síntese cultural na teoria da ação dialógica (FREIRE, 1987) é a posse da palavra pelos sujeitos oprimidos que combate a invasão cultural do opressor, que constantemente pelo bombardeamento ideológico busca internalizar os fundamentos da realidade tal como está nos sujeitos oprimidos. Paulo Freire define como ação cultural dialógica uma ação que conscientemente busca manter o movimento da história, pois seus fundamentos mesmos se distanciam de qualquer visão mistificada da realidade concreta. (FREIRE, 1987) É aqui com mais força que se demonstra a relação existente entre a prática do Teatro do Oprimido, em especial o Teatro-Fórum, e a investigação dos temas geradores, pois a própria investigação temática teria que supor a sua síntese correspondente, o seu engajamento, materializada na posse de uma palavra verdadeira entre seus sujeitos. O Teatro do Oprimido é o teatro das classes oprimidas, pelas classes oprimidas. Não pressupõe um consumo passivo de produtos artísticos, mas sim que cada sujeito oprimido encontre sua própria linguagem, seu próprio processo estético. Sua palavra, sua práxis. 22 3. O CURINGA E SEU PAPEL PEDAGÓGICO O movimento de verdadeira renovação do teatro brasileiro, protagonizado pelo Teatro de Arena de São Paulo nas décadas de 50 e 60, onde Boal trabalhou e deu as bases ao Sistema Coringa, caracterizou-se como uma tomada de postura desse grupo, de grande politização, no sentido de valorizar a dramaturgia nacional. A linha assumida pelo Teatro de Arena era, naquele contexto, uma contraposição àquela assumida pelo Teatro Brasileiro de Comédia – TBC, de repertório predominantemente internacional. O caminho seguido pelo Arena reflete- se também como uma crescente politização do teatro brasileiro, que vai procurar refletir sobre seu próprio contexto social. Nesta trajetória, que marca a busca de uma identidade estética pelo Arena, se delineia tanto a preferência por textos nacionais, muitos inclusive escritos pelos próprios integrantes da companhia (com grande destaque para a montagem Eles Não Usam Black-Tie, de autoria de Gianfrancesco Guarnieri e direção de José Renato, em 1958), quanto, posteriormente, pela nacionalização de textos tidos como clássicos, experiência marcada pela influência de Bertolt Brecht e com motivação em experimentos com um teatro mais “realista”, inspirado em Stanislavski. Situando em um contexto histórico mais amplo, diz Tristan Castro-Pozo: No começo da década de 1960, surgiram o Movimento de Cultura Popular (MCP) em Pernambuco e os Centros de Cultura Popular (CPCs) no Rio de Janeiro, impulsionados pelo trabalho do educador Paulo Freire. Seu engajamento real com as lutas das populações rurais promoveu uma discussão na classe teatral, sobretudo no Teatro de Arena, polemizando acerca das linhas de ação. Quando o debate sobre cultura popular atingiu o Teatro de Arena, em São Paulo, ocorreu uma fragmentação de grupos agindo numa práxis diferenciada. Alguns esforços conceituais apoiaram a consolidação de uma dramaturgia essencialmente nacionalista, no entanto, outros artistas optaram pelo caminho do agit-prop tentando multiplicar os grupos de ativistas. (CASTRO-POZO, 2011, p. 6) No que tange em específico ao nascimento do Sistema Curinga, a peça que sinaliza seu surgimento - enquanto método de interpretação - é Arena Conta Zumbi em 1965. Um musical que conta a saga de resistência dos quilombolas na época do Brasil colonial. Boal escreveu em 1967: 23 A montagem de Arena Conta Zumbi foi, talvez, o maior sucesso artístico e de público logrado pelo Arena até hoje. De público, por seu caráter polêmico, por sua proposta de rediscutir um importante episódio da história nacional – utilizando para isso uma ótica moderna – e por ter revalidado a luta negra como exemplo de outra que deve instaurar em nosso tempo. Artístico, por ter destruído algumas das convenções mais tradicionais e arraigadas do teatro, e que persistiam como mecânicas limitações estéticas da liberdade criadora. Zumbi culminou a fase de “destruição” do teatro, de todos os seus valores, regras, preceitos, receitas etc. Não podíamos aceitar as convenções praticadas, mas era ainda impossível apresentar um novo sistema de convenções. (BOAL, 2013, p. 174) Dando a contextualização histórica, os fundamentos principais da prática do curinga enquanto método de interpretação, apresentados pela montagem de Zumbi, são quatro: a desvinculação ator-personagem (desdobramento do distanciamento brechtiano); estrutura dramatúrgica que possibilite que todos os atores agrupem-se em torno de uma única perspectiva narrativa (a narração coletiva de uma história possuía a primazia sobre uma perspectiva individualizada dos personagens); ecletismo de gênero e estilo (o caos estético com o propósito de desentorpecer); a música como veículo simbólico. (BOAL, 2013) Tal foi o papel cumprido por Zumbi naquele contexto, dando as bases de uma horizontalização da prática teatral. Seguindo as palavras de Boal acerca: Zumbi preencheu sua função e representou o fim de uma etapa de investigação. Concluiu-se a “destruição” do teatro e propôs-se o início de novas formas. Coringa é o sistema que se pretende propor como forma permanente de se fazer teatro – dramaturgia e encenação. Reúne em si todas as pesquisas anteriores feitas pelo Arena e, nesse sentido, é súmula do já acontecido. E, ao reuni-las, também as coordena, e nesse sentido é o principal salto de todas as suas etapas. (BOAL, 2013, p. 179) Enquanto o contexto com a experiência desse teatro politizado encontrava-se permeado pela repressão que acompanhava a tomada do poder político no país pelos militares através do recente Golpe de 1964 e os trabalhos no Arena seguiam, as possibilidades da continuidade dessas experiências foram duramente censuradas e atacadas. Com a prisão de Boal, em 1971, e que culminou em seu exílio, as experiências conduzidas em outros países da América Latina com aqueles com que ele trabalhou se tornaram embrionárias do que viria a ser sistematizado enquanto o Teatro do Oprimido. Vieram como necessidades de mobilização em cada contexto específico. Como exemplo, no Peru deram-se as primeiras experimentações com o 24 Teatro-Imagem enquanto parte de programas de alfabetização (BOAL, 2013) e na Argentina a estratégia do Teatro-Invisível mostra-se como tática de proteção contra a repressão política e de percepção das opressões em um nível mais cotidiano. (BOAL, 1980) Consequentemente, o que viria a ser efetivamente conhecido como Sistema Curinga é a prática artística que confere ao Teatro do Oprimido seu caráter pedagógico e horizontalizante. Referido, entre outros nomes, como facilitador ou oficineiro, o curinga é o provocador do debate. Seu papel aproxima-se a do mediador que necessariamente deve pôr a nu a sua postura, assumindo a dúvida quando existente, auxiliando os sujeitos do Teatro do Oprimido (no qual o mesmo se insere) na tomada de sua expressão artística, na sua palavra e na resolução de seus problemas sob uma visão crítica. A horizontalidade de sua prática é uma condição para o seu exercício, seu papel expressa-se nessa concretude. O curinga efetua mediações entre a metodologia teatral do TO e as práticas de participação popular, e entre sua explicação das regras do jogo e a apropriação das mesmas pelos participantes. Explicitamente, no teatro- fórum e no TO tudo está sujeito à crítica e ao consenso; assim como assinala Boal, as próprias regras que o engendram podem ser transformadas através da mediação situacional entre os participantes da plateia e o tema da peça proposto pelo grupo. Como vimos, o curinga é encarregado de supervisionar o exercício democrático do fórum. Ele precisa preservar o espaço teatral e área de jogos e, simultaneamente, orientar o processo, de modo a permitir aos participantes formas de reconhecimento do outro e de descoberta de novas alternativas de solução. O curinga age liminarmente entre ser o recipiente (responsável pelo todo) e a rejeição à investidura de poder (delegando responsabilidades). A apropriação da palavra e a opinião pessoal são centrais na proposta do TO, o empoderamento dos participantes nasce no lugar simbólico da roda e extrapola-se na vida cotidiana. (CASTRO- POZO, 2011, p. 66) O curinga, acima de tudo, pratica o diálogo. Deve orientar-se por essa via que passe sempre por um questionamento de sua própria prática. Agindo para que os jogos, as dinâmicas, as montagens, transcorram no melhor de suas potencialidades deve-se praticar um equilíbrio que se efetive na ação coletiva. Tristan Castro-Pozo em As Redes dos Oprimidos (2011) discorre sobre a formação de curingas em diferentes contextos e grupos especializados para esse fim (a titulo de citação: Centro do Teatro do Oprimido – CTO, no Rio de Janeiro; 25 GTO – Santo André; Theater of the Oppressed Laboratory – Toplab, em Nova Iorque e o Headlines Theater, situado no Canadá) e nos oferece um panorama das diferentes práticas que caracterizam o curinga (CASTRO-POZO, 2011). Segundo Castro-Pozo, o conceito de curinga “supõe, por definição, um jogador versátil” (CASTRO-POZO, 2011, pg. 38), sua prática pode dar-se tanto no sentido de instigar os atores/jogadores a tomar o lugar no jogo, que se distancia da posição de aluno ouvinte como também materializar-se em alguém que acumula certo repertório de jogos e práticas e preocupa-se em conduzi-las. (CASTRO-POZO, 2011) Conduz mediações de conflitos e, quando há dúvida, assume sua postura na busca de resolução coletiva. A conduta artística e pedagógica do curinga é um desdobramento de sua vocação dialógica, parte da suposição que só ensina quem aprende. Aprendizado que situa-se no calor da experiência e da prática. Em uma sessão de Teatro-Fórum, a lucidez do Curinga deve ajudar a plateia, através de perguntas (maiêutica), a passar de uma compreensão conjuntural do problema a uma visão estrutural, tentando soluções mais abrangentes. Do que acontece uma vez ao que acontece sempre. (BOAL, 2009, p. 212) A prática do Teatro do Oprimido pressupõe o exercício de ações concretas e continuadas, este é o fundamento de seu caráter pedagógico. Aprendizado gerado pela experiência militante nas comunidades em que tem lugar, em cada contexto social. Funda-se na consequência e coerência entre teoria e prática. As práticas são justificadas pelo engajamento que suscitam. Conceber a própria luta como um processo pedagógico supõe a consciência do constante movimento da história, distanciando-se de qualquer fatalismo, concebendo o ser humano como ser em constante construção. Alternativas devem ser propostas pelos oprimidos porque do céu cai chuva, não soluções mágicas: no Recife algumas mulheres trazem consigo apitos e apitam quando alguma ameaça vai se concretizar. Outras respondem, denunciando o agressor. Solidariedade ativa, não puramente formal! Na Índia, mulheres vestidas com saris cor-de-rosa vão à casa do agressor tirar satisfações – vão muitas e vão armadas com paus para qualquer eventualidade... Assustam! Estas são ações concretas sociais continuadas, solidárias. Shakespeare dizia que o teatro é um espelho que nos mostra nossos vícios e virtudes. O Teatro do Oprimido quer ser um espelho mágico onde possamos, de forma organizada, politizada, transformar a nossa e todas as imagens de opressão que o espelho reflita. 26 A imagem é ficção, mas quem a transforma não é. Penetrando nesse espelho, o ato de transformar transforma aquele ou aquela que o pratica. Um poeta se faz poetando, um escritor escrevendo, um compositor compondo, um professor ensinando e aprendendo, um Curinga curingando – um cidadão se faz agindo, social e responsavelmente. O ato de transformar é transformador! (BOAL, 2009, p. 190) 3.1. Curingagem: experiências artísticas e pedagógicas. Segue aqui o relato de algumas oficinas de Teatro do Oprimido que pude ministrar enquanto me ocupava do presente estudo. Essas práticas puderam me proporcionar tanto uma espécie de trabalho de campo quanto foram motivações necessárias que me valeram antes e durante a realização do trabalho de pesquisa, para lhe dar sentido e coerência. É importante observar que minhas perspectivas de pesquisador e facilitador dessas oficinas se interpenetram, em uma dinâmica assumida de pesquisa participante. Creio que é possível que isso se dê, justamente, pela própria dinâmica pressuposta do Teatro do Oprimido, que compromete, provoca, uma tomada de posições de seus sujeitos. Não é dado lidar com a temática de forma impassível, sem calor. Na realidade, os relatos abrangem uma experiência bem modesta (embora com boa força de vontade, garanto), baseada na minha interpretação dos ocorridos. As oficinas ocorreram em contextos bem específicos (a maioria de forma não continuada, com períodos longos de tempo entre uma experiência e outra), em que se procurou demonstrar seu propósito a partir de onde tinham lugar, e o que os sujeitos que as construíam procuravam mobilizar – de um jeito ou de outro, acontecia! Pelos diálogos que iam sendo construídos, foram procuradas soluções para os problemas que iam sendo apresentados – nem sempre se conseguia uma solução. Às vezes, o tempo se mostrava escasso, ou os temas levantados se mostravam dificultosos no manejo. Ou talvez o mais provável seja a inexperiência do aspirante a curinga que aqui dá seu testemunho (ainda que facilmente compensada pela grande criatividade das pessoas participantes nestas oficinas). Escolhi três contextos específicos para os efeitos deste relato. Entre a diversidade de jogos e dinâmicas, os trabalhos preferidos de se construir nas 27 oficinas entre todos foram os de Teatro-Imagem e Teatro-Fórum. A escolha do Teatro-Imagem se justifica, pois tanto sua prática comumente é escolhida como forma de introdução às demais práticas do TO, como sua primazia de “aprender a enxergar, e não apenas ver” (BOAL, 1980) é carregada de sentido para a introdução à linguagem teatral de maneira mais geral e não delimitada. O Teatro-Fórum, enquanto prática mais difundida do Teatro do Oprimido a nível global carrega com toda a força o sentido necessariamente pedagógico do sistema, tanto quanto o seu caráter mobilizador de transformação da realidade. 3.1.1. Sobre uma prática de Teatro-Fórum durante a paralisação das aulas na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Em um contexto que precedeu a deliberação de uma greve na UNESP no ano de 2016, tive a oportunidade de ministrar uma oficina de Teatro do Oprimido, como parte das atividades de paralisação das aulas, deliberada em assembleia pelo corpo estudantil da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. A oficina se iniciou introduzindo ao TO nas suas origens, apresentando os fundamentos e os propósitos de suas práticas. Depois desta conversa se seguiu um aquecimento rápido para despertarmos os corpos, e logo em seguida iniciamos uma dinâmica de Teatro-Imagem: a sequência do espelho, exercício de empatia que possui como base o mimetismo: os atores-jogadores formam duas filas paralelas de frente uma para a outra, de um lado os reflexos e do outro os refletidos, que executam ações a serem imitadas pelos primeiros. Os papéis se misturam na sequência do jogo de forma que todos se fazem sujeitos, refletindo as imagens ideais, o que gostariam de ver, a partir da imagem do outro. Boal acerca das faculdades trabalhadas com a prática do Teatro- Imagem pondera: Estamos habituados a olhar imagens que não nos deixam ver outras imagens, as quais poderiam passar diferentes informações. O objetivo dos exercícios é o de nos ajudar a ver aquilo que olhamos. (BOAL, 1980, p. 34) Terminada a dinâmica nos predispusemos a discutir um problema a ser resolvido em fórum. Depois de um tempo de conversa, em que se levantaram desabafos pessoais de cada participante, foi levantado um problema ocorrido na 28 assembleia ocorrida no dia anterior: as mulheres que presidiam a mesa eram constantemente interrompidas em suas falas pelos homens, tanto os que estavam na mesa quanto os que tomavam o espaço de fala no plenário. Foi proposto que discutíssemos essa questão, com todo o machismo que a perpassava, o que foi acolhido pelo grupo. Estabelecemos a cena: a assembleia estudantil do dia anterior. Em um primeiro momento, se representava a cena tal como o acontecido originalmente: as mulheres faziam seus apontamentos e eram interrompidas pelos homens, que repetiam os mesmos apontamentos, porém tinham sua voz ouvida. A opressão e o silenciamento das falas das mulheres era evidenciada pelas vozes masculinas que se sobrepunham. Apresentávamos o modelo de opressão: a situação tal como se apresenta, à qual era necessário estabelecer o contraponto. Como forma de superar essa opressão era colocada a mesma situação, mas quando um homem interrompia uma das mulheres na mesa, as mulheres que representavam as participantes da assembleia – na mesa e no plenário - se manifestavam e não o permitiam, expulsando o autor do silenciamento da mesa. A cada interrupção essa atitude era proposta pelas mulheres no público. E como solução, por fim foi deliberado que os homens todos se retirassem da mesa e a mesma fosse ocupada apenas por mulheres. Mais tarde naquela semana, a mesa da assembleia que deliberou a greve dos estudantes foi composta, de fato, totalmente por mulheres. A discussão estava posta naquele contexto. Creio que o Fórum a levantou de forma pertinente. 3.1.2. Sobre as experiências teatrais com o projeto de extensão Aprendendo a Ensinar na Diversidade. Tive a oportunidade de realizar, durante o período de três meses no segundo semestre de 2017, um ciclo de oficinas teatrais como parte do projeto de extensão do Núcleo de Ensino da UNESP, Aprendendo a Ensinar na Diversidade. As oficinas ocorreram na escola E.E. Antônio de Oliveira Bueno Filho, na cidade de Araraquara, e foram direcionadas a duas turmas dos primeiros anos do ensino fundamental, com faixa etária de 10 a 11 anos. Desde antes do início da execução do projeto me vi desafiado com a perspectiva de ministrar oficinas de Teatro do Oprimido para crianças, já que até o 29 momento não havia passado por experiência semelhante, e sequer havia ouvido falar de contexto parecido (os contextos de que tinha conhecimento eram sempre de adolescentes ou pessoas adultas). O projeto possuía uma potencialidade latente para o Teatro do Oprimido. Fundamentalmente, a primazia de construção de um ensino voltado para a diversidade. Tal objetivo passa pela problematização das estruturas já dadas no sistema educacional. Colocar esses problemas em cena, naquele contexto, me pareceu uma boa forma de estabelecer um diálogo, algo que se distanciasse de uma descoberta solitária. De uma forma geral, a execução das oficinas acabou se dando de uma forma quase que totalmente diferente dos meus planejamentos iniciais. As dificuldades que enfrentei foram principalmente no sentido de fazer com que as crianças se interessassem pelas dinâmicas e pelos jogos. Talvez, a falta de interesse se desse por um estranhamento com as dinâmicas ou que as mesmas não pudessem ser dissociadas de uma identificação com o caráter disciplinador do ambiente escolar. Talvez fosse uma falta de “jogo de cintura” da minha parte ou as propostas não eram interessantes o bastante. Isto é difícil responder, mas o fato é que as crianças – quando se propunham a se envolver nas dinâmicas - quase sempre modificavam as regras do jogo. Isto em si, com certeza, não é algo negativo (além de ter proporcionado um grande aprendizado para mim), ainda mais na medida em que significa uma tomada de posição das mesmas como sujeitos no processo. Ainda que fosse um trabalho com objetivos definidos, as dinâmicas representavam um momento lúdico na disciplina rígida da rotina escolar. A questão era que se estimulasse o conhecimento de outras formas de expressão – mobilizar o corpo e a palavra tendo em vista o reconhecimento e o respeito do outro, com quem também se está jogando. Em determinado ponto, à medida que fui conhecendo aquelas crianças um pouco melhor, fui deixando de me preocupar em excesso com o que seria um ideal do andamento “correto” dos exercícios e me concentrei em proporcionar que as crianças, nas melhores condições que se apresentavam, pudessem se apropriar livremente da linguagem teatral. Como o tempo era escasso (uma média de uma oficina de 50 minutos por semana por cada turma) procurei trabalhar com o mais básico e assim levantar questionamentos. 30 Como os aquecimentos raramente eram produtivos, geralmente partíamos direto para as dinâmicas e refletíamos sobre as mesmas, quando o tempo ajudava. Um exercício marcante, sem dúvida, foi o que é chamado de “Quem sou eu? O que eu quero?” Boal descreve o exercício da seguinte maneira: Muito simples, mas terrivelmente difícil. Cada pessoa escreve em um pedaço de papel três definições sobre ela mesma, mas sem declinar o seu nome. Primeira definição: “Quem sou eu?” Um homem, um professor, um pai, um marido, um amigo, um brasileiro, um escritor, um diretor, um dramaturgo, um viajante, um político? Cada participante escolhe uma palavra e escreve no papel. Depois, responde à pergunta: “O que eu quero?” Ser feliz, viajar, ser rico, ganhar as eleições, nadar, fazer as pessoas felizes, interpretar, o quê? Em seguida, responde à terceira pergunta que o define: “O que é que impede meu desejo?” O diretor coletará todos os pedaços de papel e os analisará sistematicamente, revelando os conteúdos ao grupo sem identificar ninguém. (BOAL, 2004, p. 228) O exercício fluiu. Houve algumas identificações bem específicas e fortes (um dos alunos expôs nesse exercício um problema de alcoolismo na família). A maioria das respostas à questão “O que eu quero?” se centravam em objetos de consumo ou no exercício de profissões. O impedimento de realização dos desejos, na maioria das vezes se encontrava em questões econômicas. Creio que a dinâmica, a partir daí, pôde nos dar uma abertura para discutirmos questões de classe e consumismo, por exemplo. Mas além de tudo, o que creio ser o mais fundamental no exercício é o quanto as pessoas se dispõem a se expor. É uma abertura importante para o diálogo. Melhor fluíam os exercícios quanto mais nos distanciávamos de qualquer caracterização com a disciplina da escola, distanciamento geralmente acarretado por uma mudança de ambiente que não a sala de aula ou a não presença das professoras durante as dinâmicas, por exemplo. Apesar de ainda haver dificuldades de concentração, a predisposição para o envolvimento era maior. Afinal, os exercícios perderiam seu propósito se fossem caracterizados como uma obrigatoriedade a se cumprir, mais uma entre as tantas no ambiente escolar. Os momentos de maior envolvimento sem dúvida eram os jogos com mais margem para uma experiência livre: jogos de escuta que procuravam controlar a ansiedade, passar objetos uns para os outros procurando mobilizar ao mesmo tempo uma consciência do espaço, as dinâmicas básicas do Teatro-Imagem... 31 Procurei o tema que poderíamos trabalhar a partir do exercício relatado anteriormente: assumi que um tema pertinente seria o de família. Em uma dinâmica de Teatro-Imagem procurei estimular que as crianças desenvolvessem modelos de família, com as seguintes perguntas como base: “Como é sua família?”, “Como gostaria que fosse?”. A cada turma, pedi que se dividissem em dois grupos e esculpissem imagens que representavam esse tema. Embora as crianças geralmente expusessem, quando faziam a transição, pouca desarmonia (ou contraste) entre uma e outra imagem que apresentavam, o exercício foi uma boa experimentação para trabalhar os contrastes que eram apresentados entre elas no geral, Boal expõe sobre o tema: O tema da família é, aliás, uma constante na trajetória do Teatro do Oprimido, sendo talvez o mais discutido. Em todas as sociedades existe família. Qual? Em cada uma trata-se de uma família diferente, de acordo com a cultura, classe, país, regime, idade do escultor, etc. (BOAL, 2004, p. 240) Aqui entramos em outra questão com a qual me deparei, mostrando outra grade dificuldade no trabalho: os temas de fato, em quase todas as ocasiões, tinham que ser propostos por mim, ainda que se procurasse estimular as crianças a trazerem suas próprias questões havia pouca abertura. Talvez de certa forma achassem a proposta intimidadora... Nisso me deparei com uma dificuldade de manejo das oficinas que dizia respeito ao seu propósito em si: como incentivá-las a tomar a posição de sujeitos naquele contexto? Reconheço que ainda não sei como responder a essa questão. Mesmo quando alguma situação concreta de opressão se apresentava era muito difícil de ser trabalhada (questões de bullying e um caso de racismo com uma das alunas por parte dos colegas, por exemplo). Tanto pela disparidade de contextos de cada criança em particular para lidar coletivamente com a questão quanto pela pouca disposição da criança que era sujeito daquela situação de opressão em colocar em cena a sua questão. Ás vezes era mais frutífero discutir no âmbito das ideias a esse respeito. A mim cabia respeitar. Aliás, uma grande dificuldade era trabalhar a própria ideia ou conceito de opressão: embora fosse entendida sensivelmente, a transposição (ou elaboração) para a vida concreta por intermédio da cena era um grande desafio. 32 Quanto maior a liberdade do corpo para exercer seus movimentos desejados, maior era o envolvimento das crianças nas atividades. Uma fuga do ambiente disciplinador da escola. As dinâmicas apresentadas acerca desta experiência com o projeto do Núcleo de Ensino da UNESP dizem respeito às práticas em que as crianças mais se sentiram envolvidas. De fato, se levantaram mais questões do que se deram respostas aos anseios que urgiam ser trabalhados. Acredito que o estudo da prática do Teatro do Oprimido no âmbito da educação infantil é um tema ainda digno de maiores aprofundamentos. Na minha observação, os desafios que se apresentaram também dizem respeito às dificuldades com que se depara ao procurar trabalhar com teatro na escola pública, e de trabalhar a expressão artística de uma forma mais geral, em âmbitos estruturais e curriculares – quanto mais se pautando num ensino voltado para a diversidade, como pano de fundo. Conclusivamente, creio que este trabalho realizado durante três meses na E.E. Antônio de Oliveira Bueno Filho se mostrou provocador em um âmbito artístico e pedagógico. 3.1.3. Sobre a oficina realizada na XVIII Semana de Ciências Sociais na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Tive a oportunidade de realizar outra oficina como parte da programação da XVIII Semana de Ciências Sociais, na Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Iniciei a oficina com uma apresentação típica da história e fundamentos do TO, bem como do propósito das dinâmicas. Nesta oficina, as dinâmicas mais envolventes foram as que diziam respeito aos jogos e exercícios típicos da modalidade do Arco-Íris do Desejo: técnicas introspectivas para lidar com opressões em um nível mais internalizado. Desdobramentos de Teatro-Imagem. Depois de realizarmos a sequência do espelho, ocorreu o momento mais marcante da oficina. Em determinado momento, foi proposto que os participantes, em duplas, compartilhassem histórias de opressões entre si, e posteriormente contassem essas histórias para o grupo de uma maneira que o interlocutor de quem contou a história inicialmente, a repassasse como se o próprio a tivesse vivido. Os temas levantados giraram principalmente em torno de situações marcantes na infância e na juventude, sentimentos de inadequação e não pertencimento: não 33 aceitação dos colegas na escola, opressão da família quanto à escolha de profissão, ideais de masculinidade... Depois, foi pedido aos participantes, que ouviram suas próprias histórias nas palavras de outra pessoa, que compartilhassem as suas impressões, uma das participantes observou como o fato de que uma história solitária na memória é um acontecimento isolado. Mas quando é compartilhada, e ainda num processo de distanciamento, ela parece adquirir outro sentido, talvez um contorno mais inteligível. Ou uma forma diferente de se lidar com um problema. O compartilhamento foi potencializado quando depois foi pedido que se elaborassem imagens que representavam aquelas opressões, para que depois se partisse para uma imagem de transição: qual o ideal que se procura e como superar aquela condição. O retorno me pareceu positivo. Essas são impressões. Mas acredito que tenha sido uma dinâmica importante de sensibilização. A fala expõe os acontecimentos, os elabora e compartilha. E o corpo também conta histórias. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: REVERBERAÇÕES DO TEATRO DO OPRIMIDO. 34 O percurso feito por mim no estudo do Teatro do Oprimido enquanto método pedagógico passa por uma reflexão de minha própria prática nas oficinas que realizei, amparado pela bibliografia consultada para a elaboração da parte teórica. Penso que sem a prática, ainda que de forma livre e um tanto pontual, o presente estudo careceria de calor e vivacidade. Dimensões afetivas que só a experiência pode proporcionar. O Teatro do Oprimido desafia seus sujeitos a uma tomada de posição, ao fazer coletivo, ao confronto com os próprios preconceitos. Nos tira de uma zona (enganosa) de conforto. Sua prática, horizontal em essência, é um constante encorajamento ao diálogo, que podemos conceber como base vital para uma educação libertadora. O diálogo só é possível quando horizontal. O contrário, que se constitui de cima para baixo, é monólogo impositivo. A questão que se coloca é: como praticar o diálogo nas estruturas em que atuamos? Nas práticas que realizei me vi constantemente em processo de pensamento crítico, procurando estabelecer as vias de um diálogo que se efetivasse. O processo se mostrou infindável, provavelmente pela consciência do mesmo estar sempre em constante construção. O que constitui as potencialidades pedagógicas do Teatro do Oprimido é a correspondência profunda entre o entendimento do mundo e posse da palavra - que perpassa uma prática artística libertadora - pelos sujeitos que se desafiam para sua transformação. É o entendimento da palavra enquanto práxis, presente também nas concepções da Pedagogia do Oprimido e na educação popular de forma geral. A arte deve ser capaz de levantar questões acerca do entendimento do mundo e da realidade social, pois com a ausência do conhecimento sensível permanece a alienação, e ficamos vulneráveis às formas de dominação que a arte e a educação não dialógicas nos impõem. A Estética do Oprimido é a apropriação da arte como vocação humana. Creio que a provocação para ações concretas e continuadas é o que constitui o Teatro do Oprimido enquanto instrumento pedagógico em prol das classes oprimidas. A confluência de uma palavra verdadeira, que é práxis, e de uma teoria e ação dialógicas está presente nos pressupostos do TO, como também no ideal de uma pedagogia libertadora, que nos torne sujeitos. 35 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 36 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. BOAL, Augusto. Stop: ces’t magique, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. ______ . Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Cosac Naify, 2013. ______. Técnicas latino-americanas de teatro popular. São Paulo: Hucitec, 1980. ______. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. ______ . O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. _______. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond Ltda, 2009. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação Popular? São Paulo: Brasiliense, 1981. CASTRO-POZO, Tristan. As Redes dos Oprimidos. São Paulo: Perspectiva, 2011. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. ____________. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016. ____________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.