J Bras Pneumol. 2005;31(Supl 1):S1-S3 Vasculites pulmonares: novas visões de uma velha conhecida S 1 Vasculites pulmonares: novas visões de uma velha conhecida* Pulmonary forms of vasculitis: new perspectives on an old acquaintance THAIS THOMAZ QUELUZ1, HUGO HYUNG BOK YOO2 A vasculite necrosante foi descrita em 1866 e seu espectro é muito amplo, uma vez que acomete vasos arteriais e venosos de todos os calibres e de vários órgãos, apresenta diversos tipos de infiltrados inflamatórios, tem um significante número de manifestações clínicas e pode ter ou não fatores desen- cadeantes identificáveis. A sempre controversa classificação das vasculites mudou radicalmente com a descoberta dos anticorpos anticitoplasma de neutrófilos em 1982, contem- plando atualmente a doença de Goodpasture, as vasculites associadas aos anticorpos anticitoplasma de neutrófilos, as vasculites por imunocomplexos e outros tipos de vasculites. As evidências de que os anticorpos anticitoplasma de neutró- filos estão envolvidos na patogênese destas lesões trouxeram avanços consideráveis para o seu diagnóstico e tratamento. Granulomatose de Wegener, doença de Churg-Strauss e poliangeíte microscópica, todas vasculites associadas aos anticorpos anticitoplasma de neutrófilos, são as vasculites sistêmicas que mais acometem os pulmões. Suas manifestações clínicas comuns são tosse, hemorragia alveolar difusa ou asma de difícil controle. Na arterite de Takayasu, na doença de Behçet, na púrpura de Henoch-Schönlein e nas vasculites associadas às doenças do colágeno o acometimento pulmonar é mais raro. Em todos os casos há evidências de serem proces- sos de origem imunológica e com base neste princípio são propostas as abordagens terapêuticas. Em 1866, Kussmaul e Maier descreveram em uma paciente com poliarterite nodosa as lesões de vasculite necrosante.(1) Trata-se de um processo clinico-patológico caracterizado por inflamação e necrose dos vasos sanguíneos que pode ser a manifestação principal e/ou primária de diversas doenças ou um componente relativamente menos importante de outros processos primários.(2) Desde sua descrição, as vasculites vêm desa- fiando os autores por seus complexos aspectos fisiopatológicos, clínicos e laboratoriais. Ao longo do tempo, foi-se consolidando a concepção de que o espectro das vasculites é muito amplo, uma vez que acomete vasos arteriais e venosos de todos os calibres e de vários órgãos, apresenta diversos tipos de infiltrados inflamatórios, tem um signifi- INTRODUÇÃO Necrotizing vasculitis was first described in 1866. The condition encompasses a wide spectrum of symptoms, affecting arterial blood vessels of various calibers and in various organs. In addition, it is associated with many types of inflammatory infiltrate, and presents a significant number of clinical manifestations. The causative factor or factors may or may not be identifiable. The eternally controversial classification of the various forms of vasculitis changed radically after the discovery of antineutrophil cytoplasmic antibodies in 1982, and current classifications include Goodpasture's syndrome, forms of vasculitis related to antineutrophil cytoplasmic antibodies, forms caused by immune complexes and other forms. The evidence that antineutrophil cytoplasmic antibodies are involved in the pathogenesis of such conditions led to considerable advances in the diagnosis and treatment of vasculitis. Wegener's granulomatosis, Churg-Strauss syndrome and microscopic polyangiitis, all forms of vasculitis that have been associated with antineutrophil cytoplasmic antibodies, are the systemic forms that most affect the lungs. The most common presentation of such forms is characterized by cough, diffuse alveolar hemorrhage or difficult-to-control asthma. In Takayasu's arteritis, Behçet's disease and Henoch- Schönlein purpura, as well as in forms of vasculitis related to collagen diseases, pulmonary involvement is less common. In all forms of vasculitis, there is evidence that immune system processes are involved. It is based on this knowledge that new therapeutic approaches are proposed. Descritores: Vasculites/classificação; Vasculites/diagnóstico; Vasculites/imunologia; Vasculites/quimioterapia; Anticorpos anticitoplasma de neutrófilos/imunologia; Granulomatose de Wegener/diagnóstico; Granulomatose de Wegener/ quimioterapia Keywords: Vasculitis/classification; Vasculitis/diagnosis; Vasculitis/immunology; Vasculitis/drug therapy; Antibodies, antineutrophil cytoplasmic/immunology; Wegener´s granulomatosis/diagnosis; Wegener´s granulomatosis/drug therapy * Trabalho realizado na Universidade Estadual Paulista “Julio Mesquita Filho” - UNESP, Botucatu- SP - Brasil. 1. Professora Titular de Pneumologia Universidade Estadual Paulista “Julio Mesquita Filho” - UNESP, Botucatu- SP - Brasil. 2. Professor Assitente Doutor Universidade Estadual Paulista “Julio Mesquita Filho” - UNESP, Botucatu- SP - Brasil. Capítulo 1 Resumo Abstract S 2 Queluz TT, Yoo HHB J Bras Pneumol. 2005; 31(Supl 1):S1-S3 cante número de manifestações clínicas e pode ter ou não fatores desencadeantes identificáveis.(1-2) A classificação das vasculites mudou acentuada- mente durante os seus quase 150 anos de história.(3-5) Em especial, a descoberta dos anticorpos anticito- plasma de neutrófilos (ANCA),(2,4,6-7) nos anos 80, renovou o interesse não apenas pelo assunto como também pela imunopatogênese dessas doenças. O ANCA, além de ser um marcador de algumas das vasculites necrosantes sistêmicas, o que permite melhor distinção entre elas, está certamente envol- vido na patogênese dessas lesões. Assim, a classifi- cação atual das vasculites sistêmicas primárias con- templa o grupo das vasculites ANCA-associadas conforme mostrado no Quadro 1. A doença de Goodpasture é a hemorragia alveolar difusa e a glomerulonefrite rapidamente progressiva mediadas por anticorpos antimembrana basal. A lesão pulmonar pode apresentar ou não capilarite; ANCA, cujo papel patogênico não está ainda definido nesta doença, está presente em 30% a 40% dos casos.(8-10) As vasculites ANCA-associadas são doenças complexas, nas quais a interação entre um evento inflamatório inicial e uma resposta imunopatológica altamente específica com produção de ANCA dirigido contra epitopos previamente seqüestrados de enzimas dos grânulos primários dos neutrófilos resulta em extenso dano tissular.(4,7) ANCA produz lesão via interações com neutrófilos ativados e cé- lulas endoteliais. Entretanto, falta ainda o entendi- mento completo da fisiopatologia das vasculites, pois deve haver uma via de lesão que não envolva o ANCA para explicar os casos de ausência deste anticorpo, assim como é necessária melhor compre- ensão do papel dos eosinófilos na doença de Churg- Strauss. Além disso, a presença de ANCA não está necessariamente associada à existência de vascu- lite, situação em que o ANCA é considerado como um epifenômeno, fruto da ativação policlonal de anticorpos.(2,4,11-12) O pulmão, devido à extensa rede vascular, à acentuada quantidade de células imunocompetentes e à possibilidade de agressão pelas vias inalatória e circulatória, é um órgão alvo das vasculites.(1-2) Segundo Colby,(13) as vasculites sistêmicas que mais freqüentemente acometem os pulmões são a granulomatose de Wegener, descrita em 1931, a doença de Churg-Strauss, descrita em 1950, e a poliangeíte microscópica, todas pertencentes ao grupo das vasculites ANCA-associadas. Obviamente, cada uma delas tem manifestações clínicas e laboratoriais, evolução e prognóstico peculiares, embora às vezes haja superposição de sinais e sintomas de vasculites diversas.(1-4) O comprome- timento pulmonar na granulomatose de Wegener e na poliangeíte microscópica manifesta-se predomi- nantemente por tosse e hemorragia alveolar difusa, enquanto que na doença de Churg-Strauss a principal manifestação clínica é a asma de difícil controle.(2,14-15) A hemorragia alveolar difusa é também a mani- festação mais comum das vasculites de pequenos vasos pulmonares, um grupo de vasculites caracte- rizadas por processo inflamatório destrutivo das arteríolas, vênulas e capilares localizados dentro do interstício pulmonar.(16) Este fenômeno pode ocorrer nas vasculites sistêmicas, nas doenças do tecido conectivo ou em outras doenças sistêmicas associadas com a produção de autoanticorpos, como por exemplo, doença de Goodpasture, miastenia gravis, síndrome antifosfolípide, etc.(14-16) Também pode ser uma manifestação isolada de comprometimento pulmonar, situação na qual é denominada capilarite pulmonar isolada pauci-imune(16). O acometimento pulmonar em outras vasculites sistêmicas como arterite de Takayasu, doença de Behçet, púrpura de Henoch-Schönlein e vasculites associadas às doenças do colágeno, é mais raro.(13) Doença de Goodpasture Vasculites ANCA-relacionadas Granulomatose de Wegener Doença de Churg-Strauss Poliangeíte microscópica Capilarite pulmonar e glomerular Capilarite pulmonar isolada Poliarterite nodosa Vasculites por imunocomplexos Associadas às doenças do tecido conectivo Púrpura de Henoch-Schönlein Crioglobulinemia Outras vasculites Arterite de Takayasu Arterite de células gigantes Granulomatose necrosante sarcóide Vasculite de pequenos vasos Síndrome de superposição de poliangeítes ANCA: anticorpos anticitoplasma de neutrófilos Quadro 1 - Classificação das vasculites sistêmicas primárias(2-5) J Bras Pneumol. 2005;31(Supl 1):S1-S3 Vasculites pulmonares: novas visões de uma velha conhecida S 3 Em todos os casos há evidências de serem processos de origem imunológica e com base neste princípio são propostas as abordagens terapêuticas. Basicamente, são utilizados ciclos prolongados de imunossupressão com corticóide e ciclofosfamida, que freqüentemente causam sérias complicações nestes pacientes.(17-18) Devido a isto, alternativas menos tóxicas de imunossupressão - azatioprina ao invés de ciclofosfamida para manter os pacientes após a remissão - ou mesmo outros fármacos – mofetil micofenilato, levamisol, fator de necrose tumoral, têm sido testados.(18-19) Enfim, as vasculites continuam a desafiar os especialistas, principalmente no diagnóstico e no tratamento. As diversas nuances clínicas e a toxici- dade do tratamento ainda requerem excepcional conhecimento e experiência. Os estudos multicên- tricos realizados atualmente nos Estados Unidos da América e na Europa e os resultados das pes- quisas básicas aplicados na clínica devem trazer significantes avanços para a compreensão e ma- nuseio dessas doenças. 1 . Fauci AS, Haynes BF, Katz P. The spectrum of vasculitis: clinical, pathologic, immunologic, and therapeutic considerations. Ann Inter Med. 1978;89(5 Part 1):660-76. 2. Queluz THAT, Freire BFA. Vasculites pulmonares. In: Cukier A, Nakatani J, Morrone N, editores. Atualização e reciclagem: pneumologia. São Paulo: Atheneu; 1998. v.2. p.328-35. 3. Jennette JC, Falk RJ, Andrassy K, Bacon PA, Churg J, Gross WL, et al. Nomenclature of systemic vasculitides. Proposal of an international consensus conference. Arthritis Rheum. 1994;37(2):187-92. 4. Seo P, Stone JH. The antineutrophil cytoplasmic antibody- associated vasculitides. Am J Med. 2004;17(1):39-50. 5. Falk RJ, Jennette JC. Thoughts about the classification of small vassel vasculitis. J Nephrol. 2004;17(Suppl 8):S3-9. 6. Freire B, Franco M, Queluz T. Anticorpos anticitoplasma de neutrófilos: significado e métodos de detecção. Rev Bras Reumatol. 1992;32(3):183-8. 7. Kallenberg CGM. Anti-neutrophil cytoplasmic antibodies: a clue to the diagnosis and pathophysiology of necrotizing vasculitides? J Pneumol. 1996;22(2):87-92. 8. Queluz TH, Pawlowski I, Brunda MJ, Brentjens JR, Vladutiu AO, Andres G. Pathogenesis of an experimental model of Goodpasture's hemorrhagic pneumonitis. J Clin Invest. 1990;85(5):1507-15. 9. Castro Silva MH, Queluz THT. Síndrome de Goodpasture: conceitos atuais sobre a doença mediada por anticorpos antimembrana basal e as vasculites necrosantes sistêmicas. Medicina (Ribeirão Preto). 1991;24(2):94-104. 10 . Queluz THT. Doença de Goodpasture: hemorragia pulmonar e glomerulonefrite mediadas por anticorpos antimembrana basal. J Pneumol. 1991; 17:85-9. 11 . Freire BF, Ferraz AA, Nakayama E, Ura S, Queluz TT. Anti-neutrophil cytoplasmic antibodies (ANCA) in the clinical forms of leprosy. Int J Leprosy Other Mycobat Dis. 1998;66(4):475-82. 12. Freire BA, Paula ID, Paula F, Kallenberg CG, Limburg PC, Queluz TT. Absence of cross-reactivity to myeloperoxidase of anti-thyroid microsomal antibodies in patients with autoimmune thyroid diseases. Am J Med Sci. 2001;321(12):109-12. 13 . Colby T. Symposium: Non-neoplastic lung disease. Histopathology. 2002;41 (Suppl 2):424-58. 14. Queluz TT, Yoo HHB. Hemorragia alveolar difusa. In: Terra Filho M, Fernandes ALG, Stirbulov R, editores. Atualização em Pneumologia. São Paulo: Vivali; 2001. v.4 p.1-8. 15 . Griffith M, Brett S. The pulmonary physician in critical care. Illustrative case 3: pulmonary vasculitis. Thorax. 2003;58(6):543-6. 16 . Schwarz MI, Brown KK. Small vessel vasculitis of the lung. Thorax. 2000; 55(6):502-10. 17 . Freire BFA, Queluz TT. Tratamento e prognóstico das vasculites pulmonares. In: Faresin SM, Stelmach R, Cruz de Oliveira VM, Stirbulov R, editores. Atualização e reciclagem: pneumologia. Rio de Janeiro: Revinter; 2003. v.5. p.251-5. 18 . Jayne D. Update on the European Vasculitis Study Group trials. Curr Opin Rheumatol. 2001;13(1):48-55. 19 . Kallenberg CG, Tervaert JW. New treatments of ANCA- associated vasculitis. Sarcoid Vasc Diffuse Lung Dis. 2000;17(2):125-9. REFERÊNCIAS