UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE MEDICINA CAMPUS DE BOTUCATU Pablo Andrés Kurlander Perrone FATORES ASSOCIADOS À RECIDIVA E ABANDONO DO TRATAMENTO DE DEPENDENTES QUÍMICOS: um estudo longitudinal em duas Comunidades Terapêuticas Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva. Orientadora: Profª Drª Florence Kerr-Corrêa Botucatu-SP 2019 Pablo Andrés Kurlander Perrone FATORES ASSOCIADOS À RECIDIVA E ABANDONO DO TRATAMENTO DE DEPENDENTES QUÍMICOS: um estudo longitudinal em duas Comunidades Terapêuticas Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva. Orientadora: Profª Dra. Florence Kerr-Corrêa Botucatu-SP 2019 As drogas não matam, as drogas não são o problema. Pessoas com problemas usam drogas para tentar suportá-los e, muitas vezes, morrem na tentativa de viver. APRESENTAÇÃO PESSOAL Uma das tarefas a mim atribuída pela banca depois da defesa final, foi a de redigir esta apresentação pessoal, acredito que no intuito de evidenciar o enorme “conflito de interesse” que permeia este meu trabalho, já que sou um convicto, fervoroso e confesso apaixonado pela Comunidade Terapêutica. Porém, devo confessar também sou muito mais apaixonado pela Comunidade Terapêutica do que pelas Comunidades Terapêuticas, já que, como se verá neste trabalho, estas últimas nem sempre são o que deveriam (ou poderiam) ser. Sou uruguaio, Psicólogo, 42 anos, pai de três filhos (Paula, 18 anos; Gabriel, 5 anos; Isabela, 3 anos), esposo de Bebel, filho de Carlos (In memoriam) e Cristina, irmão de Natalia e Marcelo, neto, tio, sobrinho, genro, cunhado... Sou dependente químico, em recuperação há 24 anos graças a uma Comunidade Terapêutica, na qual descobri que podia ser aquilo que eu sempre tinha tentado, mas nunca tinha conseguido: eu mesmo. Um mês depois de completar 18 anos, ainda em Uruguai, a polícia foi me buscar em casa por causa do tráfico de drogas, fui detido e preso, mesmo sem estar em posse de nenhuma quantidade de droga nesse momento. Mais tarde, na delegacia central, me informaram que tinham uma grande quantidade de declarações de pessoas que teriam comprado drogas comigo. Eu vendia para meus conhecidos apenas para sustentar meu uso, mas isto não serviu de defesa nesse momento. Resumindo esta história, meus pais contrataram um advogado amigo deles, que por sua vez delegou o caso para uma de suas sócias. Inês assumiu meu caso e, com isto, os sinais da vida começaram a se manifestar. O filho dela, também dependente químico, se encontrava nesse momento há alguns meses numa “Fazenda”1 no Rio Grande do Sul. Ela imediatamente se identificou com a minha história e três meses depois eu pude sair da cadeia para ir para a mesma Comunidade Terapêutica em que se encontrava o filho dela, a Fazenda do Senhor Jesus de Viamão, RS, a primeira “Fazenda” do RS, fundada pelo Padre Haroldo, figura icônica do mundo das Comunidades Terapêuticas, que ainda aparecerá neste trabalho. Nesta Fazenda pude me desenvolver como ser humano, amadurecer como homem, recuperar o vínculo com a minha família e com o meu Poder Superior, que durante todo o processo até agora foi adquirindo uma grande variedade de formas: uma imagem punitiva e 1 No RS é comum chamar as Comunidades Terapêuticas de Fazendas, por causa da tradicional rede de Comunidades Terapêuticas chamada “Fazenda do Senhor Jesus”. repulsiva, uma figueira numa mata, um objeto de adoração cega, uma força cósmica inefável, uma energia vital inigualável, um lugar de paz. Depois disto, nunca mais me desliguei da Comunidade Terapêutica. Fui para Santos, SP, para estagiar num local que em nada se assemelhava com o que hoje compreendo como Comunidade Terapêutica, um lugar no qual aprendi o que jamais deveria fazer quando pudesse assumir a coordenação de um trabalho destes. Em Santos passei as maiores provações da minha vida até esse momento, foi uma época extremamente difícil, longe de casa, da família, sem nenhum tipo de acolhida nem espaço, no meio de pessoas estranhas, absolutamente sozinho, sabendo que poderia retornar para casa quando desejasse, mas com a absoluta certeza de que esse era o lugar exato em que deveria permanecer até que o sinal aparecesse. Fiquei um ano nessas condições, e o sinal apareceu. Graças a um sonho (sim, um sonho foi o sinal) fui parar numa Comunidade Terapêutica minúscula, numa cidade também minúscula no interior do Estado de SP chamada Itaporanga. A Comunidade Terapêutica era minúscula tanto em espaço físico como em estrutura humana, absolutamente diferente das outras duas que tinha conhecido. Quando cheguei contava apenas com oito residentes, e estes estavam sozinhos, sem equipe de trabalho, há uns dois meses aproximadamente. Além do nome ser o mesmo do sonho, o que mais me atraiu do lugar foi a quantidade de coisas que tinham para ser feitas, e a possibilidade de ser, finalmente, realmente útil. Permaneci nesse lugar por 13 anos, muito a contragosto da minha família, que sempre desejou que voltasse para casa. Nesse ínterim casei e nasceu minha primeira filha (Paula), a Comunidade Terapêutica cresceu e se tornou referência em toda a região. Ajudei a fundar talvez umas 10 ou 15 outras Comunidades Terapêuticas, e quando finalmente abriu o curso de Psicologia numa cidade próxima (100km de distância), pude iniciar os estudos que tanto tinha desejado. Apesar da clara e temprana vocação para a Psicologia, sempre fui bom com os números, e enquanto viajava 200km diários calculei que esta viagem significava uma volta ao mundo completa por ano, o que, definitivamente, era bastante simbólico para mim. No meio do curso separei e meses depois conheci a minha atual esposa, e mudei para a cidade em que estudava, na qual fundei a Comunidade Terapêutica que é cenário neste estudo2. Já com uma experiência muito maior, pude estrutura o trabalho de forma mais minuciosa e técnica, e em pouco tempo esta nova Comunidade Terapêutica cresceu e também se tornou referência regional. 2 Comunidade Terapêutica Nova Jornada, Avaré, SP. Há muitos anos já tinha conhecido a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas – FEBRACT, e tinha abrigado desde então o desejo de me aproximar deste grupo de pessoas comprometidas com a ética e a técnica. Esta nova Comunidade Terapêutica passou pelo processo de filiação à FEBRACT, e depois de um tempo eu estava contribuindo com o trabalho desta Federação, primeiro em nível estadual e depois em nível nacional. Hoje sou Gestor Geral da FEBRACT, atuo na Junta Diretiva da Federação Latino- Americana de Comunidades Terapêuticas – FLACT e na Federação Mundial de Comunidades Terapêuticas – WFTC. Sou militante da causa da Comunidade Terapêutica, porém também sou um grande crítico das Comunidades Terapêuticas, principalmente daquelas que dizem ser, mas não são. Aquelas que não possuem critérios técnicos nem éticos. Aquelas que não têm como principal missão, real e verdadeira, cuidar o melhor possível do ser humano que precisa de ajuda. Aquelas que não sabem, ou não querem saber, o que é de fato uma verdadeira Comunidade Terapêutica. Também me considero um cientista em formação e, por isto, tento com todas as forças compreender da maneira menos enviesada possível o universo que me cerca, principalmente este universo da dependência química e das Comunidades Terapêuticas. Por este motivo busquei sair apenas do empirismo e ir para a pesquisa, o que ocupou a minha monografia de conclusão de curso (TCC), meu mestrado e agora meu doutorado. Neste processo pude compreender melhor todas as experiências vividas nestes anos todos em Comunidade Terapêutica, e pude também separar aquilo que foi benéfico daquilo que foi nocivo, buscando um método que minimize os efeitos colaterais ou danosos dos processos institucionais, busca esta que está na origem e na essência das verdadeiras Comunidades Terapêuticas. Enfim, aqui está a minha confissão de “conflito de interesses”, de indivíduo apaixonado pela Comunidade Terapêutica. Porém um apaixonado crítico, disposto a quebrar os tabus e cortar na própria carne para encontrar a verdadeira riqueza da Comunidade Terapêutica, muito além das “Comunidades Terapêuticas”. AGRADECIMENTOS O primeiro agradecimento vai para o misterioso fluxo da vida, que me propiciou conhecer de tão perto a Comunidade Terapêutica, na qual pude me encontrar como ser humano e também encontrar a minha vocação profissional e existencial. Agradeço a todos os dependentes químicos e familiares que atravessaram a minha vida, deixando um pouco de si e permitindo que eu deixe um pouco de mim, nesse movimento ininterrupto de crescer e aprender com a experiência e com o outro. Agradeço a toda a equipe da Comunidade Terapêutica Nova Jornada, que confiou em mim como timoneiro dessa embarcação em permanente construção, grupo incrível de profissionais e amigos que me acompanharam a atravessar em segurança os mares hostis da caridade. Agradeço a toda a equipe da FEBRACT, meus amigos, na pessoa de Beto Sdoia, atual Presidente (esperemos que por muitos anos ainda), que confiou a mim, um estrangeiro nessa terra, parte do precioso legado de ciência e fé construído por quase três décadas pelo querido Padre Haroldo Rahm e pelo Professor Saulo Montserrat. Agradeço a todas as pessoas envolvidas no trabalho das verdadeiras Comunidades Terapêuticas do Brasil, que me permitiram contribuir de alguma forma na elevação da qualidade dos trabalhos por eles realizados, o que reafirma e reacende diariamente a minha paixão e vocação por este trabalho. Agradeço às equipes da FLACT, da WFTC e do PROYECTO HOMBRE, por me permitir conhecer realidades além fronteiras, e com isto quebrar os paradigmas domésticos que limitam a criatividade e mínguam a audácia. Agradeço a possibilidade de ter podido contar pessoalmente, neste trabalho, com a contribuição de três grandes referências internacionais do universo das Comunidades Terapêuticas: em primeiro lugar o Dr. George De Leon, maior autoridade mundial na temática das Comunidades Terapêuticas, com quem pude trocar e-mails e discutir pessoalmente sobre esta pesquisa, durante a sua participação na XVI Conferência Latino-Americana de Comunidades Terapêuticas, organizada pela FEBRACT e realizada em Campinas, SP em dezembro de 2017; em segundo lugar Tom Brown, ex diretor do INL (Bureau of International Narcotics and Law Enforcement Affairs), organismo do Departamento de Estado dos Estados Unidos, com o qual também pude trocar e-mails e discutir pessoalmente sobre esta pesquisa, durante a sua visita ao Padre Haroldo e ao Conselho Deliberativo da FEBRACT em Campinas, SP, em fevereiro de 2018; em terceiro lugar o Dr. Wouter Vanderplasschen, professor da Ghent University de Bélgica, pupilo do famoso Dr. Eric Broekaert, pioneiro das Comunidades Terapêuticas da Europa, com o qual também pude trocar e-mails e discutir pessoalmente sobre esta pesquisa durante a 62ª Commission on Narcotic Drugs – CND da UNODC em Viena, Áustria, em março deste ano. Agradeço a todos os grupos e pessoas contrárias às Comunidades Terapêuticas no Brasil, que me ajudaram, indireta e involuntariamente, a encontrar aquilo que temos de melhor para poder nos defender com propriedade, assim como também contribuíram com a nossa incessante busca de melhora na qualidade, na legalidade e na ética do trabalho das Comunidades Terapêuticas do Brasil. Agradeço a minha família uruguaia, que ininterruptamente ao longo destes 24 anos apostou na minha capacidade de fazer diferente, me estimulando sempre a navegar em águas mais profundas e testar os meus limites, além de termos podido, mesmo com a distância e o tempo, manter o vínculo amoroso como se houvéssemos nos visto ontem mesmo. Agradeço a minha filha Paula, espírito sagaz e inquieto, alma nobre e mente privilegiada, que me acompanhou em grande parte desta travessia, me desafiando sempre a ser um pai melhor e uma pessoa coerente. Finalmente, agradeço a minha esposa Bebel, por quem me apaixonei desde o primeiro olhar, que mesmo compreendendo e tolerando as minhas ausências, se permitiu não aceitar meios amores, me impelindo a equilibrar a minha paixão pela causa com a minha humanidade de pai e esposo. RESUMO Sendo a não adesão um dos maiores problemas relacionados com o tratamento da dependência química, a presente pesquisa, realizada com dois grupos de dependentes químicos em tratamento em duas Comunidades Terapêuticas (CTs) - uma masculina e outra feminina -, visa identificar os fatores que podem se associar ao maior tempo de permanência, ao abandono do tratamento e à qualidade de vida pós saída. Para isto foi realizado um estudo longitudinal nesses dois grupos. Como variáveis explanatórias foram consideradas as condições sociodemográficas, gravidade da dependência, condições de saúde física e mental, assim como os escores de instrumentos validados, no início e durante o tempo de permanência na CT, até o desfecho, sendo estes: inventário Beck para depressão, inventário de ansiedade, Escala de apoio social, avaliação de fissura de cocaína/crack, assim como a avaliação dos comportamentos, percepções e crenças dos dependentes em relação ao seu processo. O desfecho foi avaliado a partir do tempo de permanência, em dias, tomado como variável contínua, e como variáveis categóricas o abandono e a conclusão do tratamento, assim como o abandono precoce e o não precoce. Foi ainda avaliado o resultado pós tratamento através de um questionário de seguimento externo aplicado trimestralmente por 12 meses. Os resultados foram analisados pelo teste de qui-quadrado e pela regressão logística multivariada, buscando compreender, principalmente, quais fatores poderiam estar associados ao abandono do tratamento, com ênfase no abandono precoce – estabelecido como até 90 dias de permanência – assim como com a manutenção da qualidade de vida pós saída. Em relação ao abandono do tratamento, as variáveis que apresentaram associação estatística foram: maior tempo de consumo, estar trabalhando antes do ingresso na CT, estar amasiado/casado, maior escore de SDS cocaína, escore Moderado no CCQ-B e autorrelato de ansiedade. Na avaliação de saída a própria percepção de melhora, principalmente em relação à questões laborais e religiosas, foram as mais presentes no discurso de quem abandonou. No seguimento pós saída foram contatados 56,2% dos homens e 62,4% das mulheres e 70,0% das famílias dos homens e 67,1% das famílias das mulheres, sendo a mãe o familiar mais frequentemente contatado, e os que tiveram alta terapêutica tiveram maior taxa de contato em relação ao abandono precoce. Aqueles que se mantiveram em abstinência por 12 meses tiveram maior taxa de indicadores de qualidade de vida, e aqueles que tiveram alta terapêutica apresentaram 2,5 vezes mais chance de indicadores de qualidade de vida elevados, assim como também apresentaram maior chance em cada um dos seis indicadores de qualidade de vida presentes no questionário. Maior escolaridade, sexo feminino e estar utilizando medicação psicoativa no início do tratamento foram variáveis que também se associaram a maiores indicadores de qualidade de vida elevados 12 meses pós saída. Finalmente foi evidenciado que a conclusão do programa terapêutico e a manutenção da abstinência foram os principais fatores associados com a presença de indicadores de qualidade de vida elevados 12 meses pós saída. Palavras chaves: Comunidade Terapêutica, dependência química, tratamento, abandono do tratamento, qualidade de vida. ABSTRACT Adherence to treatment is a major problem in the treatment of substance use disorders. Therefore, the aim of this study was to investigate the different factors that could be related to a longer stay in treatment, dropout rates and quality of life after treatment. It was conducted in two Therapeutic Communities (TCs), one for males and one for females. Explanatory variables were: sociodemographic characteristics, mental and physical health state, severity of dependence, depression, anxiety, social support, cocaine craving as well as behaviors during treatment, perceptions and beliefs of patients about the treatment. Outcome was measured as time in treatment (in days - continuous variable), and completion of treatment or drop-out (early or late - categorical variables). After discharge, patients were evaluated four times at three months intervals, along one year. Outcome variables were analyzed by the chi-square test and by multivariate logistic regression, aiming at identifying which variables were associated to dropout, particularly early drop-out, and to quality of life after treatment. Variable significantly associated to drop-out were: longer period of drug use, being employed before admission to the TC, being married or living with a partner, higher severity of cocaine and self- reported anxiety. The reasons more frequently reported for dropping-out was perception of well being, particularly in relation to work and religious issues. At the after treatment follow-up 56.2% of men and 62.4% of women, 70.0% of families of men and 67.1% of families of women were contacted; mother was the main family member contacted, and those who concluded treatment had higher tax of contact than early dropouts. Abstinents for 12 months scored higher scores in quality of life indicators, and those who completed treatment had 2,5 more chance of scoring high in quality of life indicators. Higher education, female gender and using psychoactive medication at the beginning of the treatment were associated with higher indicators of quality of life 12 months after treatment. In brief, completions of treatment and abstinence maintenance were the main factors related to higher indicators of quality of life 12 months after treatment. Keywords: Therapeutic Community, addiction, treatment, adherence, dropout, quality of life. LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Distribuição das variáveis sociodemográficas na amostra, separadas por tipo de alta e tipo de abandono .......................................................................................... 81 Tabela 2 - Distribuição da amostra por características relacionadas ao desenvolvimento da dependência química, separadas por tipo de alta e tipo de abandono ................... 85 Tabela 3 - Distribuição da amostra por gênero, faixa etária e tempo de uso de SPAs ............ 86 Tabela 4 - Distribuição da amostra por gênero, faixa etária e quantidade de tratamentos anteriores................................................................................................................ 87 Tabela 5 - Distribuição da amostra por características relacionadas a questões legais, separadas por tipo de alta e tipo de abandono ....................................................... 88 Tabela 6 - Distribuição da amostra por agravos atribuídos à dependência química, separada por tipo de alta e tipo de abandono ........................................................................ 90 Tabela 7 - Resultados das escalas SADD (Short Alcohol Dependence Data) e SDS (Severity Dependence Scale) (maconha e cocaína), separados por tipo de alta e tipo de abandono ................................................................................................................ 92 Tabela 8 - Comparação dos resultados da escala CCQ-B (Cocaine Craving Questionnaire Brief) entre a aplicação inicial e a final ................................................................. 93 Tabela 9 - Resultados da escala CCQ-B (Cocaine Craving Questionnaire Brief) por período, separados por tipo de alta e tipo de abandono ....................................................... 95 Tabela 10 - Comparação dos resultados da escala Beck depressão entre a aplicação inicial e a final ........................................................................................................................ 98 Tabela 11 - Resultados da escala Beck depressão, por período, separados por tipo de alta e tipo de abandono .................................................................................................. 100 Tabela 12 - Comparação dos resultados da escala IDATE (Inventário de Ansiedade Traço- Estado) entre a aplicação inicial e a final ............................................................ 102 Tabela 13 - Resultados da escala IDATE (Inventário de Ansiedade Traço-Estado) Traço, por período, separados por tipo de alta e tipo de abandono ....................................... 104 Tabela 14 - Resultados da escala IDATE (Inventário de Ansiedade Traço-Estado) Estado, por período, separados por tipo de alta e tipo de abandono ....................................... 107 Tabela 15 - Comparação dos resultados da Escala de Apoio Social entre a aplicação inicial e a final ................................................................................................................... 109 Tabela 16 - Resultados da Escala de Apoio Social, por aplicação, separados por tipo de alta e tipo de abandono .................................................................................................. 110 Tabela 17 - Distribuição das respostas do ACSP (Avaliação de Comportamentos, Sensações e Percepções) para as questões 1 a 12, agrupadas em duas categorias, de acordo com a variável observada, separadas por gênero ......................................................... 112 Tabela 18 - Distribuição das respostas do ACSP (Avaliação de Comportamentos, Sensações e Percepções) para a questão 13, separadas por gênero ......................................... 113 Tabela 19 - Distribuição das respostas do QARA (Questionário de Avaliação das Razões para o Abandono), agrupadas em duas categorias, de acordo com a variável observada, separadas por gênero............................................................................................ 114 Tabela 20 - Respostas do QARA (Questionário de Avaliação das Razões para o Abandono) por gênero ............................................................................................................ 115 Tabela 21 - Modelo final de regressão logística multivariada para variáveis associadas ao abandono e abandono precoce do tratamento ...................................................... 117 Tabela 22 - Taxa total de resposta do QAEX (Questionário de Avaliação Externa) por gênero ............................................................................................................................. 119 Tabela 23 - Taxa de contato pós saída por sexo e tipo de saída ............................................ 119 Tabela 24 - Taxa de resposta do QAEX (Questionário de Avaliação Externa) pelos ex acolhidos, por período e gênero ........................................................................... 120 Tabela 25 - Taxa de resposta do QAEX (Questionário de Avaliação Externa) pelos familiares, por período e gênero .......................................................................... 121 Tabela 26 - Familiar contatado no QAEX (Questionário de Avaliação Externa), por gênero ............................................................................................................................. 121 Tabela 27 - Desvio padrão comparando as respostas do QAEX (Questionário de Avaliação Externa) dos ex acolhidos e dos familiares, por agrupamento de respostas e período de aplicação ............................................................................................ 122 Tabela 28 - Resultados da aplicação do QAEX (Questionário de Avaliação Externa) durante 12 meses, agrupando as questões de qualidade de vida, comparados por alta terapêutica e abandono precoce ........................................................................... 123 Tabela 29 - Resultados da aplicação do QAEX (Questionário de Avaliação Externa) durante 12 meses, separando as questões de qualidade de vida, comparados por alta terapêutica e abandono precoce ........................................................................... 127 Tabela 30 - Relação entre frequência de consumo de SPAs e indicadores elevados de qualidade de vida ................................................................................................. 130 Tabela 31 - Modelo final de regressão logística multivariada para variáveis associadas ao desfecho bom (QAEX 1-6) (Questionário de Avaliação Externa) pós saída. ..... 131 Tabela 32 - Modelo 1 - Associação entre características sociodemográficas, saúde, dependência química, etc. e QAEX (Questionário de Avaliação Externa) bom geral (1-6) ............................................................................................................ 133 Tabela 33 - Modelo 1.1 Associação entre características sociodemográficas, saúde, dependência química, etc. e questão 1 do QAEX (Questionário de Avaliação Externa)................................................................................................................ 134 Tabela 34 - Modelo 1.2 Associação entre características sociodemográficas, saúde, dependência química, etc. e questão 2 do QAEX (Questionário de Avaliação Externa)................................................................................................................ 135 Tabela 35 - Modelo 1.3 Associação entre características sociodemográficas, saúde, dependência química, etc. e questão 3 do QAEX (Questionário de Avaliação Externa)................................................................................................................ 136 Tabela 36 - Modelo 1.4 Associação entre características sociodemográficas, saúde, dependência química, etc. e questão 4 do QAEX (Questionário de Avaliação Externa)................................................................................................................ 137 Tabela 37 - Modelo 1.5 Associação entre características sociodemográficas, saúde, dependência química, etc. e questão 5 do QAEX (Questionário de Avaliação Externa)................................................................................................................ 138 Tabela 38 - Modelo 1.6 Associação entre características sociodemográficas, saúde, dependência química, etc. e questão 6 do QAEX (Questionário de Avaliação Externa)................................................................................................................ 139 Tabela 39 - Associação entre o tipo de saída (abandono/conclusão) com o desfecho bom após 12 meses (QAEX 1-6) (Questionário de Avaliação Externa) .............................. 140 Tabela 40 - Associação entre o tipo de abandono (precoce/não precoce) com o desfecho bom após 12 meses (QAEX 1-6) (Questionário de Avaliação Externa) ..................... 141 Tabela 41 - Associação entre o tipo de consumo no 3º mês pós saída (pouco frequente, muito frequente) com o desfecho bom após 12 meses (QAEX 1-6) (Questionário de Avaliação Externa) .............................................................................................. 142 Tabela 42 - Associação entre o tipo de consumo no 12º mês pós saída (pouco frequente, muito frequente) com o desfecho bom após 12 meses (QAEX 1-6) (Questionário de Avaliação Externa).......................................................................................... 143 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Comparação entre 2006 e 2012 do uso regular e uso em BPE de álcool .............. 27 Quadro 2 - Comparação do aumento do consumo de álcool entre homens e mulheres nos EUA e Brasil .......................................................................................................... 27 Quadro 3 - Comparação do aumento do consumo de outras SPAs entre homens e mulheres nos EUA e Brasil ................................................................................................... 27 Quadro 4 - Linha do tempo da aplicação dos instrumentos de avaliação ............................... 64 Quadro 5 - Modelos para a análise multivariada..................................................................... 75 Quadro 6 - Fatores de risco e de proteção para abandono e abandono precoce de acordo com o modelo final de regressão logística multivariada ............................................. 118 Quadro 7 - Projeto Terapêutico da CTNJ por Fases ............................................................. 185 Quadro 8 - Atividades desenvolvidas na CTNJ, por tipo de atividade ................................. 186 Quadro 9 - Equipe da CTNJ .................................................................................................. 189 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Participação das CTs em Conselhos de Políticas Públicas – Brasil (em %) ......... 46 Gráfico 2 - Recursos externos acessados pelas CTs ................................................................ 47 Gráfico 3 - Principais entidades associativas de CTs no Brasil............................................... 48 Gráfico 4 - Finalização por tipo de alta e tipo de abandono .................................................... 78 Gráfico 5 - Respostas do QARA (Questionário de Avaliação das Razões para o Abandono) por gênero ............................................................................................................ 116 Gráfico 6 - Finalização na CTNJ por tipo de alta de 2014 a 2017 ........................................ 145 LISTA DE SIGLAS AA – Alcoólicos Anônimos ABP – Associação Brasileira de Psiquiatria AE – Amor-Exigente ATCA – Australasian Therapeutic Communities Association BDI – Inventário de Beck para Depressão (Beck Depression Inventory) CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas CFM – Conselho Federal de Medicina CICAD – Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas CONEM – Conferência Nacional de Ética Médica CT – Comunidade Terapêutica CTNJ – Comunidade Terapêutica Nova Jornada DALY – Disability-Adjusted Life Year DeCS – Descritores em Ciências da Saúde EUA – Estados Unidos da América EMCDDA – European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction FEBRACT – Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas FLACT – Federación Latinoamericana de Comunidades Terapéuticas FIOCRUZ – Fundação Osvaldo Cruz IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICICT - Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde IDATE – Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Stait-Trait Anxiety Inventory) INPAD – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas LENAD – Levantamento Nacional de Álcool e Drogas MS – Ministério da Saúde NA – Narcóticos Anônimos NCPIC – National Cannabis Prevention and Information Centre NESARC – National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions NIDA – National Institute on Drug Abuse OEA – Organização dos Estados Americanos OMS – Organização Mundial da Saúde SENAD – Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas SICAD – Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências UNIAD – Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo UNODC - United Nations Office on Drugs and Crime WFTC – World Federation of Therapeutic Communities DEFINIÇÕES Considerando a utilização neste estudo de termos que podem adotar um significado diferenciado na linguagem peculiar das Comunidades Terapêuticas, fez-se necessário incluir esta seção de Definições para ajudar o leitor e melhor compreender o sentido atribuído a alguns destes termos ao longo do texto.  Abandono precoce: interrupção do processo terapêutico antes dos 90 dias de permanência.  Acolhido: se refere à pessoa que se encontra em tratamento na CT.  Acolhimento: se refere tanto ao momento de ingresso na CT quanto ao processo terapêutico como um todo.  Assembleia comunitária: atividade em que a equipe, juntamente com o grupo de acolhidos, avalia a CT como um todo, desde o próprio grupo, a equipe, as atividades internas e externas, os regulamentos, e tudo o que diz respeito à vida na CT.  Dependência química: transtorno multifatorial decorrente do uso problemático de substâncias psicoativas, que afeta muitas das áreas da vida do indivíduo.  Desfecho bom: alta prevalência de indicadores de qualidade de vida elevados, neste estudo foram avaliados no Questionário de Avaliação Externa – QAEX, nas questões 1 a 6.  Eficácia: capacidade de uma intervenção produzir um efeito determinado. Neste caso, capacidade do processo terapêutico da CT produzir um desfecho bom.  Internação: termo utilizado em muitos países para definir tanto o ingresso num determinado local de tratamento quanto para o tratamento como um todo. No Brasil, nas CTs este ato e processo se denomina “acolhimento”.  Qualidade de vida: de acordo com a Organização Mundial da Saúde (WHOQOL, 1995), qualidade de vida é “a percepção do indivíduo de sua inserção na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”. Neste estudo o termo se refere, justamente, a variáveis relacionadas com a inserção social e produtiva do indivíduo, sendo estas: participação em grupos de apoio, grupos religiosos, grupos de estudo, trabalho remunerado, relacionamento com a família de origem e constituída.  Recuperação: processo de modificação do repertório comportamental durante o processo terapêutico, que pode levar o indivíduo a manter a abstinência e melhorar a sua qualidade de vida.  Tratamento: neste estudo se utiliza o termo “tratamento” como sinônimo de “acolhimento”, no sentido de processo de recuperação em CT, mas também pode ser usado para se referir a outras formas de intervenções terapêuticas em outros tipos de equipamento. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 24 a) Diferenças epidemiológicas entre homens e mulheres na dependência química ........ 26 b) Justificativa ................................................................................................................. 28 1. COMUNIDADES TERAPÊUTICAS ............................................................................... 29 1.1 Caracterização ........................................................................................................... 29 1.2 Histórico das Comunidades Terapêuticas ................................................................. 30 1.2.1 As origens: a Comunidade Terapêutica psiquiátrica ..................................... 30 1.2.2 Um novo foco: a Comunidade Terapêutica para dependentes químicos ....... 33 1.2.3 A realidade local: Comunidades Terapêuticas no Brasil ............................... 37 1.3 A legislação das Comunidades Terapêuticas no Brasil............................................. 39 1.4 Os estudos de perfil das Comunidades Terapêuticas do Brasil................................. 41 1.5 O abandono do tratamento na Comunidade Terapêutica .......................................... 49 1.6 A eficácia das Comunidades Terapêuticas ................................................................ 54 2. OBJETIVOS ....................................................................................................................... 56 2.1 Objetivo Geral ........................................................................................................... 56 2.2 Objetivos Específicos ................................................................................................ 56 3. HIPÓTESES ....................................................................................................................... 57 4. METODO ............................................................................................................................ 58 4.1 Descrição do desenho do estudo ............................................................................... 58 4.2 Amostra ..................................................................................................................... 58 4.3 Cenário 59 4.3.1 Caracterização e critérios de admissão ......................................................... 60 4.3.2 Critérios de permanência ............................................................................... 62 4.4 Instrumentos .............................................................................................................. 64 4.4.1 Questionário de dados gerais, sociodemográficos e de saúde (Anexo G) ..... 64 4.4.2 Inventário de Beck para Depressão (Beck Depression Inventory - BDI) – (Anexo H) ........................................................................................................ 65 4.4.3 Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Stait-Trait Anxiety Inventory - IDATE) – (Anexos I e J) ................................................................................. 67 4.4.4 SADD (Short Alcohol Dependence Data) – (Anexo K) .................................. 68 4.4.5 Escala SDS (Severity Dependence Scale) – Maconha e Cocaína (Anexo L).. 68 4.4.6 Escala de apoio social (Social supported scale) (Anexo M) .......................... 69 4.4.7 Questionário de avaliação da fissura de cocaína (Cocaine Craving Questionnaire Brief – CCQ-B), versão brasileira adaptada para o crack (Anexo N) ........................................................................................................ 70 4.4.8 Questionário de avaliação das razões para o abandono (QARA) – (Anexo O) ........................................................................................................................ 71 4.4.9 Questionário de Avaliação de comportamentos, sensações e percepções (ACSP) – (Anexo P) ........................................................................................ 73 4.4.10 Questionário de avaliação externa (QAEX) (Anexo P) ................................ 74 4.5 Análise estatística ...................................................................................................... 75 4.6 Considerações éticas ................................................................................................. 76 5. RESULTADOS ................................................................................................................... 78 5.1 Análise de composição da amostra ........................................................................... 78 5.2 Análise de perfil sociodemográfico .......................................................................... 79 5.3 Análise do perfil do consumo ................................................................................... 82 5.4 Análise dos instrumentos de avaliação de gravidade da dependência ...................... 92 5.5 Análise dos instrumentos de avaliação de estado afetivo e social ............................ 97 5.6 Análise dos fatores associados ao abandono ........................................................... 111 5.7 Análise dos resultados pós saída ............................................................................. 119 5.8 Análise multivariada dos resultados pós saída ........................................................ 130 5.8.1 Modelo 1 ....................................................................................................... 132 5.8.2 Modelo 2 ....................................................................................................... 140 5.8.3 Modelo 3 ....................................................................................................... 141 5.8.4 Modelo 4 ....................................................................................................... 142 6. DISCUSSÃO ..................................................................................................................... 144 6.1 Desfecho bom e gênero ........................................................................................... 144 6.2 Desfecho bom e religiosidade ................................................................................. 147 6.3 Desfecho bom e Grupos de apoio ........................................................................... 148 6.4 Desfecho bom e alta terapêutica ............................................................................. 149 6.5 Desfecho bom e abstinência .................................................................................... 153 7. LIMITAÇÕES DO ESTUDO .......................................................................................... 157 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 158 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 160 ANEXOS ............................................................................................................................... 178 Anexo A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ........................................... 179 Anexo B – Autorização da CTNJ para uso de dados do banco de dados ..................... 181 Anexo C – Termo de Adesão ........................................................................................ 182 Anexo D – Termo de compromisso .............................................................................. 183 Anexo E – Termo de autorização de uso de imagens ................................................... 184 Anexo F – Características do programa da CTNJ ......................................................... 185 Anexo G – Questionário de dados gerais, sociodemográficos e de saúde .................... 191 Anexo H – Inventário de Beck para Depressão (Beck Depression Inventory - BDI) ... 195 Anexo I – Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Stalt-Trait Anxiety Inventory – IDATE) – IDATE-E ................................................................................... 198 Anexo J – Inventário de Ansiedade Traço-Estado (Stalt-Trait Anxiety Inventory – IDATE) – IDATE-T ................................................................................... 199 Anexo K – SADD (Short Alcohol Dependence Data) .................................................. 200 Anexo L – Escala SDS (Severity Dependence Scale) – Maconha e Cocaína ............... 202 Anexo M – Escala de Apoio Social (Social supported scale) ...................................... 203 Anexo N – Questionário de avaliação da fissura de cocaína (Cocaine Craving Questionnaire Brief – CCQ-B), versão brasileira adaptada para o crack .. 204 Anexo O – Questionário de avaliação das razões para o abandono (QARA) ............... 205 Anexo P – Questionário de avaliação de comportamentos, sensações e percepções (ACSP) ....................................................................................................... 206 Anexo Q – Questionário de avaliação externa (QAEX) ............................................... 207 24 INTRODUÇÃO O uso nocivo de álcool e drogas vêm se tornando, nas últimas décadas, um problema endémico de saúde pública no Brasil e no mundo, problema para o qual parece não existir estratégias capazes de diminuir efetivamente sua incidência e seus agravos, não somente no que diz respeito à saúde do usuário, mas também, e principalmente, a todo o contexto familiar, social, político, econômico e legal que permeia o assunto. De acordo com o último Relatório Mundial sobre Drogas da United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) aproximadamente 250 milhões de pessoas no mundo, ou uma de cada 20 pessoas com idade entre 15 e 64 anos, usam drogas ilícitas. Destas, cerca de 29,5 milhões (quase 12%) usam drogas de forma problemática e apresentam transtornos relacionados ao consumo de drogas, incluindo a dependência, havendo uma incidência anual de aproximadamente 190.000 mortes prematuras devido ao uso de drogas no mundo (UNODC, 2017). Este mesmo relatório aponta que o custo econômico social decorrente do uso de drogas ilícitas é de aproximadamente 1,7% do Produto Mundial Bruto3. De acordo com o último relatório sobre álcool e saúde da Organização Mundial da Saúde – OMS (WHO, 2018) o consumo nocivo de álcool provocou 3 milhões de mortes (5,3% de todas as mortes) e foi o primeiro fator relacionado com o DALY (disability-adjusted life year), indicador internacional que significa “expectativa de vida corrigida pela incapacidade” ou “expectativa de vida saudável”, e indica o número de anos que um indivíduo pode esperar viver de forma saudável, sem limitações ou incapacidades. O uso nocivo de álcool foi também a 7ª causa de anos de vida perdidos, dados que evidenciam como o álcool tem se tornado o maior problema de saúde pública mundial, problemática de muito maior gravidade do que o consumo de todas as substâncias ilícitas juntas. Em âmbito nacional, segundo pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas – INPAD junto com a Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Brasil é o maior mercado mundial de cocaína/crack, correspondendo a 20% do consumo mundial da substância. A pesquisa ainda mostra que quase 3 milhões de pessoas no Brasil são usuários de cocaína/crack (LARANJEIRA, 2014). 3 O Produto Mundial Bruto (PMB) é a totalidade do Produto Nacional Bruto de todos os países do mundo. De acordo com o Banco Mundial, em 2016, o PMB atingiu cerca de US$ 76 trilhões. Desta forma, o custo econômico social decorrente do uso de drogas ilícitas (1,7%) foi de US$ 1,3 trilhões. 25 Em sua etiologia, o uso nocivo de substâncias já foi compreendido de diversas formas durante a história, desde uma perversão de caráter até um problema meramente biológico, sabendo-se hoje que é um problema multifatorial, que precisa ser abordado numa multiplicidade de linhas de cuidado, articuladas e complementares (RIBEIRO; LARANJEIRA, 2016; RIBEIRO, 2012a; MARQUES, 2001), dentre as quais podem ser destacados os serviços de regime residencial, com promoção de ambientes livres de álcool e drogas ilícitas, assim como os serviços de regime ambulatorial, com critérios de adesão de menor exigência, que não consideram a abstinência como critério de ingresso e permanência, que se norteiam pelas estratégias de redução de danos (NIDA, 2018; BRASIL, 2001). No que diz respeito ao tratamento da dependência química, o National Institute of Drug Abuse (NIDA), um dos principais institutos de pesquisa sobre drogas do mundo, afirma que não há uma única forma de tratamento que seja apropriada para todas as pessoas e que, para ser efetivo, o tratamento deve contemplar todas as necessidades e peculiaridades do indivíduo, sejam estas médicas, psicológicas, sociais, profissionais ou legais (NIDA, 2018). De acordo com isto, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em texto aprovado na reunião da Assembleia Geral de 23 de março de 2018, afirmou que é fundamental que o problema mundial das drogas receba um olhar integrado entre diferentes áreas do conhecimento, como saúde, segurança pública, assistência social, justiça, entre outros, que devem realizar intervenções com responsabilidade compartilhada (UN, 2018). Isto evidencia a necessidade de construir estratégias eficazes de cuidado para os dependentes químicos, considerando a necessidade de incluir todas as formas possíveis de atendimento, muito além de ideologias e partidarismos. Segundo o NIDA (2018), o tratamento, para ser eficaz, deve estar disponível, ou seja, ser de fácil acesso, já que a motivação para o mesmo tem uma duração curta no dependente químico. A pesquisa do UNODC (2017) mostra que apenas 1 em cada 6 dependentes químicos que precisam de tratamento no mundo conseguem acessar um programa, sendo que na América Latina esta proporção é de 1 para cada 11 pessoas. Também mostra que estes programas estão mais disponíveis nas grandes áreas urbanas, em detrimentos das regiões rurais ou interioranas. Estes dados levantam duas questões de ordem: primeiro, a necessidade de maiores investimentos por parte do governo na criação e desenvolvimento de serviços de atendimento a dependentes químicos em todas as modalidades possíveis; segundo, a necessidade de utilizar exaustivamente todos os recursos já existentes, já que a condição endêmica do problema não permite que sejam executadas apenas medidas de médio e longo prazo. 26 Neste cenário, a política de saúde mental brasileira modifica a estratégia adotada nas duas décadas anteriores, e passa a promover a diversificação da oferta de tratamento para a dependência química, incluindo entre as estratégias de cuidado as Comunidades Terapêuticas, equipamento que existe no Brasil há meio século, e que segundo levantamento da SENAD em 2014, atende praticamente 80% da demanda de cuidado em regime residencial. a) Diferenças epidemiológicas entre homens e mulheres na dependência química Embora a história da dependência química feminina no continente americano tenha uma história de mais de 150 anos (KANDALL, 2010), tem se observado na última década um aumento significativo no padrão de consumo das mulheres, tanto de álcool como de outras drogas, o que fez com que se precisasse repensar a forma de tratar a dependência química nesta população específica. Dados internacionais como os da National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions – NESARC (DAWSON et al, 2014), dos EUA, os do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências – SICAD, de Portugal (SICAD, 2017), evidenciam que o número de mulheres usuárias de SPAs tem aumentado significativamente. Também os dados da UNODC (2017) mostram que, embora as mulheres comecem a usar SPAs mais tardiamente, uma vez que iniciam aumentam o padrão de consumo mais rapidamente que os homens, assim como desenvolvem problemas decorrentes deste consumo também com maior rapidez. Dados nacionais como o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas – II LENAD (LARANJEIRA, 2014) realizado pela UNIAD/UNIFESP, o VI Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública e Privada de Ensino nas 27 Capitais Brasileiras (CARLINI et al., 2010), realizado pelo CEBRID/UNIFESP junto à SENAD, a Pesquisa nacional sobre o uso de crack (BASTOS; BERTONI, 2014) realizada pela ICICT/FIOCRUZ, a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar, promovido em 2015 pelo Ministério da Saúde – MS e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (IBGE, 2016), assim como os dados internacionais do recém divulgado Informe sobre o consumo de drogas nas Américas, elaborado pela Organização dos Estados Americanos – OEA e a Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas – CICAD (OEA. CICAD, 2019), demonstram que houve um aumento significativo no padrão de consumo de SPAs, principalmente entre as mulheres, inclusive em idade escolar. 27 Segundo o II LENAD (LARANJEIRA, 2014) o aumento do uso de álcool entre 2006 e 2012 foi maior entre as mulheres, no que diz respeito ao uso regular (1 vez por semana ou mais) e ao uso em BPE (Beber Pesado Episódico – 4/5 doses em 2h), como mostra o Quadro abaixo. Quadro 1 - Comparação entre 2006 e 2012 do uso regular e uso em BPE de álcool 2006 2012 Aumento no período Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Uso Regular 27% 54% 38% 63% 41% 17% Uso BPE 36% 51% 49% 66% 36% 29% Fonte: II LENAD (2014) Compilando e comparando os dados fornecidos pela NESARC (DAWSON et al, 2014), II LENAD (LARANJEIRA, 2014), o VI Levantamento Nacional (CARLINI et al., 2010) e a Pesquisa nacional sobre o uso de crack (BASTOS; BERTONI, 2014), pode-se observar como o crescente aumento no consumo de SPAs no Brasil e nos EUA tem atingido principalmente as mulheres na última década. Os Quadros abaixo evidenciam como a razão de usuários entre homens e mulheres tem diminuído neste período, principalmente para o álcool. Quadro 2 - Comparação do aumento do consumo de álcool entre homens e mulheres nos EUA e Brasil FONTE ANO BASE HOMENS MULHERES RAZÃO (H:M) DIMINUIÇÃO NESARC 2002 17,4% 8,0% 2,2:1 22% 2013 17,6% 10,4% 1,7:1 CARLINI et al. 2002 17,1% 5,7% 3,0:1 6% 2007 19,5% 6,9% 2,8:1 LENAD 2006 13,6% 3,4% 4,0:1 27% 2012 10,5% 3,6% 2,9:1 Fontes: DAWSON et al, 2014; CARLINI et al., 2010; LARANJEIRA, 2014 Quadro 3 - Comparação do aumento do consumo de outras SPAs entre homens e mulheres nos EUA e Brasil FONTE ANO BASE HOMENS MULHERES RAZÃO (H:M) DIMINUIÇÃO NESARC 2002 3,3% 2,0% 1,65:1 0,1% 2013 4,9% 3,0% 1,63:1 CARLINI et al. 2002 1,6% 0,3% 5,3:1 10% 2007 2,4% 0,5% 4,8:1 BASTOS; BERTONI 2013 78,7%* 21,3%* 3,7:1 - Fontes: DAWSON et al, 2014; CARLINI et al., 2010; BASTOS; BERTONI, 2014 * Taxa referente ao total de usuários. 28 b) Justificativa A dificuldade encontrada pelo dependente químico em permanecer e completar o tratamento constitui uma problemática específica, diferenciada e contida na questão maior, que é a recuperação da dependência química. Por este motivo faz-se necessário identificar os principais fatores que se associam ao abandono do tratamento, principalmente de forma precoce, assim como à recidiva, a fim de poder, no futuro, oferecer alternativas suficientemente capazes de diminuir os índices de abandono precoce do tratamento, principalmente no âmbito das CTs, objeto deste estudo. Embora não conste no Descritores em Ciências da Saúde o termo “fator associado”, encontra-se um sinônimo deste: “fator de risco” (DECS, 2015, grifo nosso), que é descrito como um “aspecto do comportamento individual ou do estilo de vida, exposição ambiental ou características hereditárias ou congênitas que, segundo evidência epidemiológica, está sabidamente associado a uma condição relacionada com a saúde considerada importante de ser prevenida”. Por isto, ao referir-se este estudo aos fatores associados para o abandono precoce e recidiva, não busca estabelecer necessariamente uma relação de causa e efeito, mas sim de probabilidade de desfecho (abandono, abandono precoce e recidiva) de acordo com características específicas. Todas as variáveis contidas na definição acima estão previstas neste estudo, de acordo com a seguinte relação: - comportamento individual ou estilo de vida - características relacionadas à saúde, à dependência e outras comorbidades; - comportamento durante o tratamento (conclusão, abandono, abandono precoce); - exposição ambiental ou características hereditárias - características relacionadas à saúde física e mental; - dados sociodemográficos. A condição relacionada com a saúde as ser confirmada como importante de ser prevenida, neste estudo seria o abandono precoce seguido de recidiva. 29 1. COMUNIDADES TERAPÊUTICAS 1.1 Caracterização A Comunidade Terapêutica (CT) é um serviço residencial transitório, de atendimento a dependentes químicos, de caráter exclusivamente voluntário, que oferece um ambiente protegido, técnica e eticamente orientado, cujo objetivo – muito mais ambicioso do que apenas a manutenção da abstinência – é a melhora geral na qualidade de vida, assim como a reinserção social do indivíduo (NIDA, 2015; VANDERPLASSCHEN; VANDEVELDE; BROEKAERT, 2014; DE LEON, 2008; DE LEON, 1994). De Leon (1994) diferencia a CT de outras modalidades de atendimento por duas questões fundamentais: primeiro, porque oferece uma abordagem terapêutica guiada na perspectiva da recuperação da dependência química através do desenvolvimento de um novo estilo de vida; segundo, porque o principal agente terapêutico dentro da CT é a Comunidade por si mesma, ou seja, o ambiente social, a convivência entre os pares que, uma vez sendo modelos de sucesso na recuperação pessoal, servem de guias no processo dos outros4. Assim, a CT é tanto o contexto em que ocorre a mudança quanto o método que facilita a mesma. 4 Obviamente, ainda de acordo com De Leon (2008), o papel de agente dos membros do grupo mais experientes não exclui de nenhuma forma o papel fundamental da equipe técnica, que orienta tecnicamente todas as ações desenvolvidas dentro da CT. 30 1.2 Histórico das Comunidades Terapêuticas 1.2.1 As origens: a Comunidade Terapêutica psiquiátrica Eles são chamados de terapeutas e terapeutides... porque professam uma arte da medicina mais excelente que aquela de uso geral nas cidades; porque aquela somente cura corpos, mas a outra cura almas que estejam sob o domínio de terríveis e quase incuráveis enfermidades, cujos prazeres e apetites, temores e tristezas, devassidões e loucura, e atos injustos e todo o resto de inumerável multidão de outras paixões e vícios, que tem infligido sobre eles (PHITO JUDAEUS apud GOTI, 1990, p. 19. grifo nosso)5. Segundo De Leon (2008), a ideia de comunidade como ambiente terapêutico sempre esteve presente ao longo da história da humanidade, fato que se evidencia em muitos dos relatos antigos, desde os protótipos de comunidades ascéticas, como os essênios de Qumran (Mar Morto), com regras de convivência muito semelhantes às das primevas CTs6, até os posteriores grupos de autoajuda espalhados por toda a Europa e América do Norte através do movimento humanista, baseado nas ideias de teóricos como Abraham Maslow, Carl Rogers e Rollo May. Isto significa que há muito tempo a humanidade, ou pelo menos uma parcela desta, considera a vida democrática da comunidade como um ambiente potencializador das estruturas saudáveis do indivíduo, em detrimento das instituições asilares tradicionais, que se tornam improdutivas e patologizantes. Neste intuito, muitas tentativas surgiram simultaneamente ao longo da história moderna, principalmente desde o início do século XX, quando ideias revolucionárias começaram a invadir o cenário segregatório da psiquiatria convencional. Já na década 1940, na França, Paul Balvet e Françoise Tosquelles, psiquiatras com ideais comunitários cristãos, dirigiram o hospital psiquiátrico Saint Alban, utilizando um regime peculiar de relações e trocas com a comunidade. Como os camponeses que se deslocavam para outras regiões deveriam passar inevitavelmente por dentro do hospital com seus animais, Balvet e Tosquelles iniciaram trabalhos artesanais dentro do ambiente hospitalar, e assim os pacientes esperavam os peregrinos e lhes vendiam suas artes fabricadas nas oficinas. Desta forma, através do seu trabalho, recuperavam parte de sua dignidade e autoestima, assim como eram potencializadas e fomentadas as regiões saudáveis do seu psiquismo (COUTINHO, 2007; RUIZ et al., 2013). 5 Este manuscrito data de aproximadamente 25 AC – 45 DC. 6 Goti (1990) comenta, a este respeito, os Manuscritos do Mar Morto, onde aparece um rolo chamado de “A Regra da Comunidade”, e outro “O Manual de Disciplina”, nos quais se descrevem os problemas e sofrimentos pelos quais os integrantes destas comunidades passavam antes de ingressar às mesmas, assim como as sanções e critérios de admissão e expulsão, muito semelhantes aos de algumas CTs. 31 Já na segunda metade do século XX, num ambiente mundial de pós-Guerra, como afirmam Amarante (1995) e Jorge (1997), Maxwell Jones – Psiquiatra sul-africano radicado no Reino Unido – inicia o movimento definitivo de reforma da psiquiatria, criando o modelo de CT psiquiátrica, sendo denominado de “terceira revolução em psiquiatria”7. Maxwell Jones relata em entrevista (BARRACLOUGH, 1984) que atuou no Hospital Psiquiátrico Maudsley, em Londres, Inglaterra, desde 1938. Durante a guerra este Hospital foi dividido em duas unidades, sendo uma destas na escola pública Mill Hill, também em Londres, que tinha sido evacuada por causa da guerra. Nesta escola/hospital Jones passou a atender 100 leitos de pacientes vindos da guerra com todo tipo de problema. Porém logo percebeu que todos estes apresentavam sintomas muito semelhantes, e assim resolve tratá-los em grupo, usando técnicas do Psicodrama, de Jacob Levy Moreno (1978). Após realizar uma profunda avaliação dos casos atendidos, Jones detecta nestes pacientes sintomas psicossomáticos ligados principalmente ao estresse vivenciado durante a guerra, e logo compreende que seria muito importante dividir este achado com os próprios pacientes e com a sua equipe. É importante considerar que este tipo de atitude por parte de um psiquiatra para com seus pacientes era algo verdadeiramente inovador, já que estes jamais participaram tão ativamente no processo de cura. Os pacientes chegavam ao hospital com uma série de limitações que os impediam de socializar, de participar da vida familiar e, principalmente, de trabalhar, o que produzia grande preocupação no governo inglês nesse momento, principalmente devido ao grande contingente de homens que se encontravam incapacitados para a vida produtiva de uma sociedade em ascensão. Como o trabalho de Jones se mostrava aparentemente eficaz, o Ministério do Trabalho inglês resolveu realizar um estudo de seguimento com estes pacientes, no qual se constatou que 86% dos pacientes voltaram ao trabalho depois de 6 meses, o que, sem dúvidas, era um ótimo resultado. Em 1947 Jones chamou este método, no qual ele trabalharia durante o resto de sua vida, de Comunidade Terapêutica, termo este que teria sido cunhado em 1946 pelo Psiquiatra sul-africano, radicado na Inglaterra, Thomas Main, em seu artigo “The hospital as a therapeutic instituition” para descrever o Northfield Army Hospital, no qual trabalhou com neuroses de veteranos de guerra (SILVA FILHO, 2015; DESVIAT, 2015). Após o fim da guerra, de 1947 a 1959, Maxwell Jones trabalhou de forma semelhante com grupos de população em vulnerabilidade social, no Hospital Belmont, depois chamado 7 Segundo Blatner (1988) as revoluções em psiquiatria seriam: Primeira revolução psiquiátrica: Pinel e o Tratamento Moral. Segunda revolução psiquiátrica: Freud e a influência da psicanálise sobre a psiquiatria. Terceira revolução psiquiátrica: Psicofármacos e o esvaziamento dos macro-hospitais 32 Hospital Henderson. Devido à visibilidade deste trabalho Jones foi convidado para lecionar nos EUA, na Universidade de Stanford, Califórnia, e depois também no Hospital Estadual de Oregon. Ele acabou ficando nos EUA por 4 anos, tendo que voltar para Inglaterra devido a que suas ideias progressistas em relação ao tratamento psiquiátrico teriam levantado suspeitas de que fosse comunista (BARRACLOUGH, 1984). Maxwell Jones visava uma maior interação do paciente no seu próprio processo, fazendo-se este assim partícipe das suas pequenas conquistas cotidianas. Ele afirma que “de maneira recíproca, a total dependência e passividade [...] precisa ser mudada a fim de permitir- lhe uma participação mais ativa em sua própria cura e na dos outros” (JONES, 1972, p. 43). Na entrevista acima citada (BARRACLOUGH, 1984) Jones dizia que “hoje em dia os hospitais psiquiátricos são lugares tristes, com equipes frustradas e pacientes relativamente negligenciados”. Sobre as atividades no Hospital Henderson, Jones afirma que o que se buscava era criar um ambiente que contribuísse com o amadurecimento e desenvolvimento social, que tivesse uma atmosfera familiar, sem portas trancadas, sem drogas, chamando as pessoas (equipe e pacientes) sempre pelo primeiro nome, numa estrutura social democrática. Ele afirmava que esta forma de participação ativa e recíproca favoreceria uma maneira diferenciada de aprendizagem, que ele denominou de “aprendizagem ao vivo”, um tipo de aprendizagem “peculiarmente imediata e pessoal por parte dos que estão envolvidos nela” (JONES, 1972, p. 111). Por situação de aprendizagem ao vivo entende-se a utilização de uma difícil situação interpessoal para fins de treinamento ou tratamento. O importante é que a situação seja usada enquanto as emoções ainda estão vivas, e não de uma maneira retrospectiva que caracteriza em geral a supervisão de estagiários ou dos que estão sendo treinados em entrevistas psiquiátricas de tipo bipessoal (JONES, 1972, p. 168). Juntamente com Jones, muito relevante foi a antipsiquiatria de Franco Basaglia (1960), movimento que denunciava os valores tradicionais da psiquiatria, que tratava o louco como um ser alienado, à parte da sociedade, afirmando que “a psiquiatria sempre colocou o homem entre parênteses e se preocupou com a doença” (AMARANTE, 1995, p. 49). A antipsiquiatria procura romper, no âmbito teórico, com o modelo assistencial vigente, buscando destituir, definitivamente, o valor do saber médico da explicação, compreensão e tratamento das doenças mentais. Surge, assim, um novo projeto de comunidade terapêutica e um “lugar” onde o saber psiquiátrico possa ser reinterrogado numa perspectiva diferente daquela médica (AMARANTE, 1995, p. 46). Desta forma, tanto Basaglia quanto Jones propunham uma psiquiatria humanizadora, democrática, onde o doente mental tivesse a possibilidade de desenvolver-se como ser humano, 33 e não apenas perceber-se (de uma forma ou de outra) segregado do ambiente social que não mais o comportava. Segundo Desviat (2015), o que Basaglia se propôs a fazer no Hospital Psiquiátrico de Gorizia, do qual era Diretor, foi transforma-lo numa CT no modelo de Maxwell Jones. Inicialmente buscou melhorar as condições de hotelaria do espaço, assim como os cuidados oferecidos, mas logo percebeu que a interação com a rede externa se constituía como uma necessidade básica neste processo. Assim, incorporou ao tratamento hospitalar uma rede territorial de atendimento, da qual faziam parte serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas, entre outros. A designação de CT se referiria a um lugar organizado como comunidade no qual se espera que todos contribuam para as metas comuns na criação de uma organização social dotada de propriedades de cura. 1.2.2 Um novo foco: a Comunidade Terapêutica para dependentes químicos Uma vez estabelecido o processo de reforma psiquiátrica, e as pioneiras CTs psiquiátricas tendo sido iniciadas no ambiente setorial da saúde mental, o terreno estava fértil para o surgimento de novas modalidades desta mesma prática. Por outro lado, diversos grupos já vinham constituindo-se como organizações de trabalho em prol da recuperação do alcoolismo e da dependência química, como afirmam De Leon (2008) e Goti (1990). Segundo estes autores, o primeiro destes grupos a ser registrado foi uma organização religiosa da Inglaterra fundada em 1860, chamada Oxford, cujo objetivo era o “renascimento espiritual da humanidade”, buscando um estilo de vida mais fiel aos ideais cristãos, e acomodando de modo amplo todas as formas de sofrimento humano. No início do século XX, com as suas atividades em alta, os dirigentes do grupo constataram que aproximadamente 25% dos seus participantes eram alcoolistas em abstinência, o que acabou dirigindo naturalmente o seu foco de atenção para esta problemática específica. Alguns integrantes deste Grupo Oxford influenciaram a formação de outro grupo, depois difundido em nível mundial: os Alcoólicos Anônimos (AA). Em 1935 dois alcoólicos em busca de recuperação – Bill Wilson, corretor de Nova York, e Dr. Bob Smith, médico cirurgião de Akron – se conheceram na casa deste último, quando o primeiro tentava se contatar 34 com outro alcoólico em recuperação, a fim de evitar uma recaída, como mostra o filme My name is Bill W. – O valor da vida (2006). O filme ainda mostra um dos amigos de Bill, chamado Ebby Tatcher, que tenta uma e outra vez ajudá-lo a parar com a bebida, principalmente depois de ter encontrado a “iluminação” num grupo religioso, que seria, segundo De Leon (2008), o Grupo de Oxford. Assim, através deste alcoólico em recuperação, assim como de outros integrantes do grupo, os fundadores dos AA tiveram os primeiros contatos com os princípios espirituais deste grupo. Também segundo De Leon (2008), quem teria providenciado o encontro entre Bill e Bob, na cena acima descrita, teria sido Henrietta Sieberling, uma associada ao grupo Oxford, em Akron8. Em 1953, a iniciativa dos AA dá origem a uma nova abordagem destes mesmos princípios, quando é criada uma nova associação chamada Narcóticos Anônimos (NA), baseada nos mesmos 12 Passos, adaptados agora para a dependência não somente do álcool, mas também para outras drogas, como é exposto no site oficial da organização (NA, 2018). Ainda segundo De Leon (2008) e Goti (1990), em 1958, Charles Dederich, alcoólico em recuperação e membro dos AA, uniu suas experiências pessoais com as experiências do grupo, e iniciou um grupo semanal de “associação livre” em seu apartamento junto com outros membros da irmandade, o que acabou resultando em perceptíveis mudanças de comportamento nos participantes. Estas reuniões foram consideradas pelos seus membros como uma nova modalidade de terapia, e em pouco tempo resolveram constituir este grupo como uma comunidade residencial, até que em agosto de 1959, em Santa Mônica, Califórnia, EUA, foi fundada oficialmente Synanon9, o primeiro protótipo de modelo residencial comunitário para a recuperação da dependência química da história. A mais notável mudança promovida por este grupo foi a passagem do ambiente não- residencial das reuniões regulares para a convivência integral no modelo de CT. Obviamente, as questões relativas ao ambiente residencial do novo programa de tratamento exigiram mudanças radicais quanto à estrutura organizacional, regras, metas, filosofia e orientação ideológica e, principalmente, o perfil dos atendidos pelo programa. Outra peculiaridade deste grupo foi o atendimento a dependentes químicos, e não somente a alcoólicos, já que os grupos anteriores (Oxford e AA) atendiam unicamente público 8 O mesmo autor afirma que os futuros 12 Passos de AA seriam fruto justamente do contato dos fundadores do AA com os 6 princípios espirituais de Oxford, juntamente com as experiências que tiveram durante os primeiros passos da sua própria recuperação. 9 Segundo De Leon (2008), o nome Synanon teria sido uma adaptação das engrolações de um novo membro ainda intoxicado que, ao tentar ser admitido num dos grupos semanais, teria pronunciado dessa forma a palavra seminar (seminário). 35 com esse tipo de dependência. Como, de acordo com De Leon (2008), o perfil do dependente químico é diferente do perfil do alcoólico, isto também exigiu uma mudança na postura e metodologia do grupo, o que significou também um marco evolutivo na conceituação do que é, e a quem trata, uma CT10. Synanon também introduz uma série de atividades culturais na vida da comunidade, como, por exemplo, pintura, música e dança, como nova modalidade terapêutica, o que representa, sem dúvidas, uma inovação na forma de tratar os dependentes químicos. “Propositalmente, os residentes eram mantidos ocupados com estas novas atividades, para que não tivessem tempo para a velha vida de drogas e crimes. A distância da outra vida era um ingrediente importante. Synanon não exigia nenhuma mudança rápida” (SHAFFER, 1995, tradução nossa). Estas mudanças também significaram modificações nos elementos básicos e essenciais do que tinha sido o grupo num começo, e isto provocou sérias controvérsias na direção do mesmo. Goti critica severamente o movimento de Synanon ao afirmar que “Synanon foi mudando progressivamente ou, para sermos mais exatos, foi incapaz de adaptar-se ao progresso. Evolucionou até se transformar atualmente11 a Comunidade num culto, que está muito distanciado dos seus valores iniciais” (GOTI, 1990, p. 21, tradução nossa). Ribeiro (2003) concorda com estas críticas afirmando que, a partir dos anos 70, Dederich começou a transformar Synanon em religião, centralizada na obediência total à sua figura, promovendo vasectomias e trocas de casais entre os seus seguidores, além de maus tratos e atentados contra aqueles que ousavam questionar os seus princípios. Lamentavelmente esta é uma realidade passível de acontecer com todos os grupos que experimentam um crescimento rápido, e uma crescente valorização por parte da sociedade, cujos líderes podem ter muitas dificuldades em delegar funções, limitar as suas atribuições, e ver sua imagem, antes hegemônica, dissolver-se no meio de um todo muito maior. Independentemente destas questões, De Leon (2008) e Goti (1990) indicam que o primeiro modelo autodenominado como CT foi o Daytop Village, fundado em Nova York, em 1963, por David Deitch, dissidente de Synanon, junto ao Monsenhor William O’Brien. O principal diferencial desta nova abordagem foi a inclusão de uma equipe multidisciplinar, o 10 Apesar de ter sido o modelo e o marco inicial das contemporâneas CTs, explica De Leon (2003, p. 27), Synanon nunca se autodenominou como CT, mas tomava a si mesma como uma comunidade alternativa de ensino de vida. 11 Note-se que o texto é de 1990. Na atualidade, segundo Ribeiro (2003), parte dos seus preceitos ainda seriam utilizados como métodos de prevenção em escolas, dentro dos EUA. 36 que, apesar das grandes resistências por parte dos participantes das primeiras gerações de CTs, se tornou parte integrante do modelo principal do que se entende atualmente como CT. Já o próprio David Deitch afirma que a primeira CT da história foi a Ocean Park Ambulatory Therapeutic Community, fundada em 1961 em Rio Piedras, Porto Rico, pelo psiquiatra porto-riquenho Efrén Ramirez (ADDICTION, 1999; RAMIREZ, 2010). De acordo com David Deitch (ADDICTION, 1999), Efrén Ramirez teria sido treinado pelo próprio Maxwell Jones, e assimilado dele o conceito e a expressão “Comunidade Terapêutica”, utilizado depois em sua própria CT em Porto Rico. Deitch afirma que Daytop não teria sido uma CT de fato se não fosse pela influência de Ramirez, que tinha sido convocado pelo Prefeito da cidade de Nova York, John Lindsay, para dirigir os programas de tratamento da dependência química, e de quem Deitch teria sido assessor. Até esse momento a expressão utilizada para Daytop, em Connecticut, era “comunidade humanizadora”, termo que teria sido abandonado por Deitch devido ao fato de que o Dr. Ramirez acreditava que o termo “Comunidade Terapêutica” teria muito mais peso no âmbito da saúde mental. Para além da história especificamente, e retomando a questão da necessidade da presença de profissionais nas equipes das CTs, ainda existem resistências em muitas equipes de membros não técnicos (monitores, conselheiros, coordenadores), que manifestam notório desacordo com a participação de Médicos, Psiquiatras, Psicólogos, Assistentes Sociais, Terapeutas Ocupacionais, entre outros, invalidando o trabalho destes pelo fato de não possuírem experiência de vida pregressa em relação à dependência química e à recuperação dentro de CT. Por outro lado, em várias CTs também se encontra resistência em relação à equipe técnica por parte dos grupos religiosos que as lideram, sustentando o discurso de que a religião/espiritualidade seria o método de trabalho da CT, portanto não haveria necessidade de uma equipe técnica consistente, que atue em todas as frentes de trabalho da CT. Quanto a isto De Leon afirma que “o que as CTs têm questionado ou rejeitado não são novas informações, mas formulações abstratas, vistas muitas vezes pelos profissionais das CTs como irrelevantes para a vida real dentro e fora dessas comunidades” (DE LEON, 2008, p. 8). Após Daytop Village as iniciativas dirigidas à recuperação da dependência química em regime de CT aumentaram vertiginosamente pelo mundo todo, proporcionalmente ao aumento do problema da dependência química. Programas terapêuticos na Europa e nas Américas floresceram, expandindo este ideal, e adaptando-o a cada realidade. Talvez o mais significativo destes programas, segundo Goñi (2005) e Goti (1990), provenientes diretamente de Daytop Village, surgiu na Itália em 1969, denominado como Projeto Uomo, que tomou muitos dos seus princípios, adaptando-os posteriormente à realidade 37 europeia, espalhando-se depois por vários países da Europa, como no caso do Proyecto Hombre da Espanha. 1.2.3 A realidade local: Comunidades Terapêuticas no Brasil Depois de um longo e complexo caminho, finalmente as CTs chegam ao Brasil. Segundo Fracasso (2008) em 1968, na cidade de Goiânia, nasce a primeira iniciativa brasileira, o Movimento Jovens Livres, fundado pelo casal Pastor Paulo Brasil e Pastora Ana Maria Avelar de Carvalho Brasil. A segunda iniciativa brasileira teria sido o Desafio Jovem (Teen Challenge) Brasil (DESAFIO JOVEM, 2018) a fundação da primeira casa de Goiânia teria acontecido em 1977, tendo como primeiro presidente o Pr. Bernardo Johnson, cinco anos depois do lendário Pr. David Wilkerson12 ter vindo ao Brasil pela primeira vez em 1972, a convite daquele. Já em 28 de maio de 1978 foi fundada uma entidade filantrópica chamada Associação Promocional Oração e Trabalho (APOT), hoje designada “Instituto Padre Haroldo”, que no mesmo ano iniciou os trabalhos na “Fazenda do Senhor Jesus” para homens adultos, que seria o primeiro serviço no Brasil com características específicas de Comunidade Terapêutica, uma vez que o Padre Haroldo trouxe e implantou na “Fazenda” o modelo de Daytop, que depois foi amplamente disseminado pelo Brasil (IPH, 2018; FRACASSO, 2008) Em 16 de outubro de 1990 o Padre Haroldo funda também a FEBRACT – Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, com o objetivo fortalecer, organizar, capacitar e assessorar as Comunidades Terapêuticas em todo o território Nacional. Além de atuar em parceria junto ao poder público na elaboração e execução de políticas públicas no que se refere à Dependência Química. A FEBRACT, portanto, foi criada objetivando contribuir nas ações referentes a prevenção, tratamento, recuperação, reinserção social e construção de políticas públicas sobre drogas (FEBRACT, 2018). Em 21 de janeiro de 1995 é aprovado, em Assembleia Geral da FEBRACT, o primeiro Código de Ética das CTs do Brasil, aprovado também pela Federação Mundial das Comunidades Terapêuticas em 24 de abril do mesmo ano. 12 O Pr. David Wilkerson é autor do livro “A cruz e o punhal”, já traduzido para o português. Ele se notabilizara por ter sido preso no Fórum de Nova York, quando tentava defender sete jovens que haviam matado um adolescente numa cadeira de rodas, estando todos eles sob o domínio das drogas. O fato percorreu o mundo e o seu livro tornou-se best-seller, traduzido em várias línguas (DESAFIO JOVEM, 2018). 38 Um dos principais parceiros das CTs, ao longo dos últimos mais de 30 anos, na acolhida, orientação e apoio aos familiares dos dependentes químicos, tem sido o Amor Exigente – AE, um programa de auto e mútua ajuda criado na década de 70 nos EUA (hard love ou though love) pelo casal Phyllis e Davis York, pais de três filhas envolvidas com drogas, que desenvolve preceitos para a organização da família, praticados por meio de 12 Princípios básicos, trazido ao Brasil pelo já citado Padre Haroldo, atual Presidente Honorário da Federação Brasileira de Amor-Exigente (FEBRAE). Em 2009, com a criação do Novo Estatuto, o nome da Federação mudou para FEAE – Federação de Amor-Exigente, acolhendo assim os grupos que nasceram fora do país e ampliando as fronteiras para a atuação do movimento. Atualmente a sede da FEAE é em Campinas, SP. (AE, 2018). Em pesquisa realizada em 2004 pelo Ministério da Saúde, sobre o perfil das CTs no Brasil, como mostra Duarte (2010), foram identificadas 339 CTs que faziam acolhimento integral para dependentes químicos. Destacou-se que 55% encontravam-se na região Sudeste, cerca de 30% no Sul e as demais regiões do país concentravam apenas 15% das instituições deste tipo. A grande maioria das comunidades (73%) foi implantada a partir da década de 1990 e atendiam, principalmente, homens (77%). De acordo com o “Mapeamento das instituições governamentais e não-governamentais de atenção às questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no Brasil” (BRASIL, 2007) realizado pelo Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID), 55% das instituições que ofereciam atendimento para dependentes químicos no Brasil se autodenominavam CTs, e 80% dos atendimentos para dependentes químicos no Brasil seriam realizados dentro destas CTs. Segundo divulgado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD, no levantamento realizado juntamente com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2014), em 2014 existiam quase 1900 CTs no Brasil. Destas, cerca de trezentas estavam sendo financiadas pelo Governo Federal, no âmbito do programa “Crack: é possível vencer”. A maior parte destas CTs encontrava-se nas regiões Sudeste (41,77%) e Sul (25,57%) do país. A região Norte era a que tinha menor percentual de CTs (7,37%). A comparação destes dados evidencia a proliferação de locais que se autodenominavam CTs no país neste período, fato este que já provocava grande preocupação em todas as áreas adjacentes às políticas sobre drogas, principalmente considerando a quantidade de locais irregulares e sem as mínimas condições estruturais e técnicas que surgiam diariamente. Esta realidade exigia uma maior organização do estado em relação à legislação e regulamentação destes locais que se autodenominavam CTs. 39 1.3 A legislação das Comunidades Terapêuticas no Brasil A insistência e colaboração da FEBRACT, auxiliou a proposta das CTs no Brasil ser discutida pelo Ministério da Saúde em sua “Política para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas”. Regulamentada inicialmente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em sua RDC 101/2001, deu forma e conteúdo oficial a um movimento de repercussão mundial que oferecia um modelo diferenciado de tratamento para o flagelo do momento. Dez anos depois, com a participação ativa da FEBRACT, esta resolução foi alterada e substituída pela RDC 29/2011, legislação que ainda se mostra deficitária em vários aspectos no que diz respeito à funcionalidade da regulamentação do serviço. Em 2015, com a participação da FEBRACT, CONFENACT13, e outros órgãos que compuseram o Grupo de Trabalho14 instituído pelo Ministro de Estado da Justiça15, foi elaborada e publicada no Diário Oficial da União16 a Resolução do CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) 01/2015, denominada de Marco Regulatório das Comunidades Terapêuticas, que regulamentava o funcionamento, os propósitos e as diretrizes das CTs do Brasil. Apesar da relevância deste avanço, pouco mais de um ano depois esta Resolução foi suspendida temporariamente, a pedido do Ministério Público Federal (MPF)17, ficando então as CTs novamente sem uma regulamentação específica, a despeito das inúmeras tentativas realizadas pelos movimentos organizados de CTs do Brasil para criar uma legislação que legitime e delineie este serviço. Embora o argumento legal que foi interposto pelo Ministério Público Federal para legitimar o pedido de suspensão da Resolução foi a incompetência do CONAD para regulamentar as CTs – por terem sido consideradas como serviços de saúde, mesmo quando a própria Resolução afirmava que as CTs não eram estabelecimentos de saúde 13 CONFENACT – Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas, foi fundada no dia 18 de agosto de 2012 pelas principais lideranças nacionais das Comunidades Terapêuticas: FEBRACT, FENNOCT (Federação Norte-nordeste de Comunidades Terapêuticas), CRUZ AZUL NO BRASIL, FETEB (Federação de Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil) e a Fazenda Esperança, com o objetivo de fortalecer a modalidade de tratamento de CT, para a construção de políticas públicas que insiram de forma efetiva a mesma na rede de atendimento de pessoas dependentes de drogas e seus familiares. Atualmente também compõe esta Confederação a FNCTC (Federação Nacional de Comunidades Terapêuticas Católicas), que é um braço da Pastoral da Sobriedade (CONFENACT, 2018). 14 Estes órgãos foram: SENAD, Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Conselhos Estaduais de Políticas sobre Drogas, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal de Serviço Social. 15 Instituído pela Portaria nº 14, de 25 de abril de 2014, publicada no Diário Oficial da União em 29 de abril de 2014 (fls. 131/132 – Volume I). 16 Nº 165, de 28 de agosto de 2015, Seção 1, fls. 51-52. 17 Publicado em Diário Oficial da União, Nº 169, de 1º de setembro de 2016, fl. 35. 40 –, o verdadeiro motivo desta suspensão foi o embate ideológico proveniente de grupos como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Movimento de Luta Antimanicomial e outros, que teimam em afirmar que as CTs replicam o modelo manicomial combatido por eles e, portanto, negam a sua existência como estratégia e recurso válido de enfrentamento ao aumento da dependência química no Brasil. Porém, após um grande esforço conjunto da FEBRACT e CONFENACT, este Marco Regulatório voltou a vigorar após a Audiência Pública realizada no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, no dia 20 de março de 2018, na qual a Desembargadora Federal Consuelo Yoshida retirou a suspensão interposta pelo MPF18. A audiência contou com a presença de representantes da FEBRACT, CONFENACT, Fazenda da Esperança, MPF, Advocacia Geral da União (AGU), Consultoria Jurídica (CONJUR) do Ministério da Justiça (MJ), Ministério da Saúde (MS), Procuradoria Regional da União (PRU) 3, CFP, CFESS e CNDH. Esta revogação da suspensão se embasou no entendimento de que as CTs não são estabelecimentos de saúde, considerando outras resoluções recentes, como a Portaria Interministerial nº 2, de 21/12/201719, a Resolução SEDS-SP 8, de 4 de maio de 201720, assim como também a Resolução nº 1, de 9 de março de 201821, que define as diretrizes para o realinhamento e fortalecimento da PNAD - Política Nacional sobre Drogas e valida o papel das CTs como estratégia de atendimento a dependentes químicos. O Conselho Federal de Medicina – CFM também se manifestou neste sentido em 2015, quando emitiu o Parecer CFM 09/2015, no qual aborda tanto o histórico quanto o método e legislação das CTs no Brasil. É interessante a clareza com que descreve algo que no cotidiano passa despercebido: a CT não é um lugar, uma instituição, a CT é um método, uma estratégia, que se aplica num lugar protegido. Também faz a diferenciação de CTs médicas e não médicas, de acordo com a natureza e complexidade de suas práticas (CFM, 2015). 18 Agravo de Instrumento Nº 0016133-39.2016.4.03.0000/SP. 19 Editada pelos Ministros da Justiça e Segurança Pública, da Saúde, do Desenvolvimento Social e do Trabalho, para atuar no desenvolvimento de programas e ações voltados à prevenção, à formação, à pesquisa, ao cuidado e à reinserção social de pessoas com transtornos decorrentes do uso nocivo ou dependência de substâncias psicoativas. 20 Dispõe sobre as instruções complementares para o serviço de Acolhimento Social na modalidade Comunidade Terapêutica de Interesse Social, específico da Política Sobre Drogas, no âmbito do Programa Estadual de Políticas sobre Drogas, Programa Recomeço: uma vida sem drogas, do Estado de São Paulo, que constitui um exemplo de atuação integrada de várias Secretarias Estaduais relativas a Políticas sobre Drogas: Saúde, Educação, Desenvolvimento Social, Segurança, Justiça e da Defesa da Cidadania. Cabe ressaltar que a FEBRACT realiza o gerenciamento operacional e financeiro das ações deste Programa no que diz respeito ao serviço de Acolhimento Social na modalidade Comunidade Terapêutica de Interesse Social. 21 Publicado em Diário Oficial da União, Nº 49, de 13 de março de 2018, fls. 128-129. 41 Ou seja, na atualidade as verdadeiras CTs se encontram regulamentadas e amparadas legalmente, devendo ser fiscalizadas e avaliadas sistematicamente pelos órgãos competentes de cada região ou município, principalmente aquelas que hoje se encontram conveniadas com o Governo Federal, assim como com os Governos Estaduais e Municipais. 1.4 Os estudos de perfil das Comunidades Terapêuticas do Brasil Diversos estudos tendenciosos e mal desenhados foram feitos ao longo da última década sobre as CTs do Brasil22, denunciando uma infinidade de práticas desumanas, irregularidades e abusos em grande parte das instituições, sendo que muitas destas práticas descaracterizam absolutamente o serviço das CTs, como a internação involuntária, grades e celas fortes, por exemplo. Em 2011 o CFP publicou o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos (CFP, 2011), referente aos locais de internação para usuários de drogas, no qual inspecionou apenas 68 instituições (4,0%) dentre as mais de 1800 CTs atuantes, segundo o Censo das Comunidades Terapêuticas no Brasil. Se supõe que para que estes dados pudessem ter validade estatística deveriam ter sido inspecionadas pelo menos 314 locais – dentre os 1800 cadastrados –, ou seja, foi selecionada uma amostra 5 vezes menor que a mínima necessária. Além disso, grande parte destes 68 locais não se enquadrava nos critérios mínimos para poder ser denominada de CT, e apenas 4 das 68 eram filiadas à FEBRACT. Este relatório denunciava uma infinidade de práticas desumanas, irregularidades e abusos, sendo que muitas destas práticas descaracterizam absolutamente o serviço das CT, como a internação involuntária, grades e celas fortes, por exemplo, o que é mais característico de clínicas involuntárias clandestinas. Em maio de 2016, o CRP-SP (Conselho Regional de Psicologia, São Paulo) publicou o “Relatório de inspeção de comunidades terapêuticas para usuárias(os) de drogas no estado de São Paulo – Mapeamento das violações de direitos humanos” (CRP-SP, 2016), documento semelhante ao acima mencionado, mais uma vez elaborado de forma não científica e enviesada. Neste Relatório o CRP-SP publicou os resultados de três inspeções, realizadas nos anos de 2013, 2014 e 2015. Nestas inspeções foram visitadas 43 instituições (18 em 2013, 17 em 22 Principalmente pelo Conselho Federal de Psicologia, assim como pelos seus Conselhos Regionais. 42 2014 e 8 em 2015). Inicialmente pode-se afirmar que o número de locais visitados por ano é estatisticamente insignificante, considerando que o Estado de SP contava, na época, com 425 CTs, segundo o Censo das Comunidades Terapêuticas no Brasil, tendo o maior contingente de CTs do país, e a amostra mínima para que tivesse validade científica seria de 203. Contando os 43 locais inspecionados, esta amostra, assim como a do Relatório de 2013, é 5 vezes menor à mínima necessária, e isto se fossem considerados os 43 locais como verdadeiras CTs, o que, assim como no relatório anterior, não foi possível, já que os locais divergiam absolutamente das características essenciais das verdadeiras CTs. Porém, as inconsistências desse relatório não se resumiram somente a isto. Destes 43 locais, apenas 14 (32,5%) continham o termo “Comunidade Terapêutica” em seu nome, e 16 (37,2%) continham o termo “Clínica”, o que já denota que, em sua caracterização nominal, quase 40% da amostra esteve composta por locais que claramente não se autodenominaram como CTs. Em relação às denúncias realizadas, em 24 locais (55,8%) as mesmas estiveram relacionadas a internações involuntárias, celas fortes e grades, outra prática absolutamente contrária aos princípios das CTs. Isto não significa que os locais restantes fossem efetivamente CTs, mas apenas que as denúncias não estavam relacionadas a estas situações. A grande maioria dos locais (26; 60,5%) eram instituições particulares, sendo que várias continham termos como ME e LTDA em seus nomes, característica totalmente incomum na denominação das CTs, que se caracterizam maiormente por serem ONGs, muitas delas Entidades Filantrópicas, o que, inclusive, consta no Art. 2ª da Resolução CONAD 01/2015 como critério básico para que o serviço possa ser considerado uma CT: As entidades que realizam o acolhimento de pessoas com problemas associados ao uso nocivo ou dependência de substância psicoativa, caracterizadas como comunidades terapêuticas, são pessoas jurídicas, sem fins lucrativos [...] (RES. CONAD 01/2015). Apenas 6 (14,0%) locais descreveram o atendimento como sendo gratuito, e apenas um dos locais (2,3%) era uma CT conveniada com algum programa do Governo Federal, sendo pelo Programa Recomeço, do Governo do Estado de São Paulo. Na época este Programa contava com 52 CTs conveniadas, ou seja, a inspeção do CRP-SP deixou de visitar todas as outras CTs participantes. Ao mesmo tempo, nenhum dos locais possuía convênio com a SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas), sendo que na época havia mais de 300 contratos da SENAD com CTs no país, grande parte destes no Estado de SP. 43 Além disso, um dos locais visitados já tinha sido interditado pelo município, o que denota mais claramente a tendenciosidade da amostra selecionada. Cabe considerar que a pesquisa realizada no ano de 2015 foi a mais pobre na amostra, nos resultados e na apresentação de dados das inspeções. A divulgação deste Relatório foi suspendida por determinação judicial pouco depois da sua divulgação, justamente por terem sido detectados erros graves em sua construção e na divulgação de fatos inverídicos e difamatórios. Em junho de 2018 foi publicado o Relatório Nacional de Comunidades Terapêuticas, por iniciativa do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) Ministério Público Federal (MPF) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Este Relatório foi fruto de visitas ostensivas realizadas nos dias 16, 17 e 18 de outubro de 2017 em apenas 28 locais de somente 12 dos 26 Estados da União mais o DF. Considerando as quase 2000 CTs atuantes, segundo o Censo das Comunidades Terapêuticas no Brasil (SENAD - Ministério da Justiça), a amostra representa aproximadamente 1,5% do total. Porém, mais uma vez, a grande maioria dos locais apresentou características divergentes do modelo básico de CT, como internações involuntárias, contenção, celas fortes, etc. Inclusive, no próprio relatório (pág. 66) está explicitado que somente 10 locais “afirmaram receber apenas internações voluntárias”, o que automaticamente excluiria da amostra de CTs os outros 18 locais. Desta forma a amostra de supostas CTs se restringe a apenas 10 locais, o que significa 0,5% do total de CTs cadastradas junto à SENAD, sem dúvidas uma amostra insignificante para poder generalizar qualquer resultado que o relatório possa ter evidenciado. Este relatório foi divulgado estrategicamente no dia 18 de junho de 2018, um dia antes da segunda Audiência Pública no TRF-3 citada anteriormente, que tinha como foco a revalidação da Resolução CONAD 01/2015 – Marco Regulatório das CTs. Como este Relatório não teve a repercussão esperada dentro do Brasil, devido justamente ao enviesamento do seu delineamento, no dia 02 de outubro de 2018 os responsáveis pelo mesmo se reuniram com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em Colorado, Texas, USA, no intuito de levar as denúncias inferidas pelo Relatório para o âmbito internacional. Segundo consta no site do CFP “a expectativa é que a reunião gere desdobramentos práticos em nível internacional e sirva de subsídio para a visita que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pretende fazer ao Brasil em dezembro” (CFP, 2018). 44 Além dos relatórios citados, foi realizada uma verdadeira pesquisa científica sobre o perfil das CTs do Brasil, a pedido da SENAD, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), juntamente com pesquisadores de diversas universidades (Unicamp, UFRN, UFRGS, UFSCAR). Este estudo, chamado de “Nota Técnica: Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras” (IPEA, 2017), foi realizado de forma neutra e com amostra estatisticamente representativa, como deve ser uma pesquisa científica de fato, o que garante que os dados coletados e, consequentemente, os resultados obtidos, retratem mais fielmente a realidade das CTs no Brasil, reconhecendo seus méritos sem deixar de fazer as críticas necessárias. A partir desta