Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 43 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Proposta construtivista em questão: análise da experiência brasileira no ensino da leitura e da escrita Josana Ferreira Bassi DE MOURA1 Adrián Óscar DONGO-MONTOYA2 Resumo Tantos anos depois da adoção da teoria construtivista pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, persiste o insucesso dos alunos na aprendizagem da leitura e da escrita. Este artigo apresenta resultados provenientes de investigação, realizada para procurar compreender as prováveis razões do insucesso dos alunos em leitura e escrita e sua relação com a proposta construtivista de Emília Ferreiro. Foram feitas entrevistas e sessões de observação de sala de aula, com 20 professores do Ensino Fundamental I, de seis escolas municipais da cidade de Ourinhos, com melhor ou pior desempenho na Prova Brasil 2005. O objetivo foi conhecer e analisar a concepção teórica subjacente às práticas, e as próprias práticas adotadas para o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita. Descobriu-se que não é possível atribuir-se o fracasso à adoção dos pressupostos construtivistas, visto que a maioria dos professores possui uma concepção não construtivista de ensino e de aprendizagem e não se apoia, de fato, nas pesquisas de Ferreiro. Palavras-chave: Construtivismo. Ensino/aprendizagem de leitura/escrita. Alfabetização. Cotidiano escolar. The constructivist proposal to reading/writing in question: analysis of Brazilian experience. Abstract Years after the constructivism theory was adopted by “Parameters for National Syllabuses”, the results have pointed to a worse performance in teaching and learning with regards to reading and writing. This article presents the conclusions proceeding from investigation about the probable reasons for the student’s lack of success in reading and writing, and its relation to Emília Ferreiro’s constructivism proposals. Interviews were made as well as sit in class observation were done, with twenty teachers at six Fundamental Level 1 schools in Ourinhos, SP State, in schools that had been awarded the best and the worst performance rating in the Prova Brasil-2005, with this objective: to know and analyze the teacher’s conceptions under their practices and their practices in the classes. The conclusion is: it is not possible to attribute the 1 Mestre em Educação, Orientadora de Disciplina da UNESP/UNIVESP em Ourinhos, Pesquisadora do GEPEGE Grupo de Estudos e Pesquisa em Epistemologia Genética, de Marília. E-mail: josana_moura@uol.com.br. 2 Professor Titular da FFC - UNESP - Campus de Marília, Coordenador do GEPEGE – Grupo de Estudos e Pesquisa em Epistemologia Genética, de Marília. E-mail: dongomontoyaa@pop.com.br. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 44 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 students’ lack of success in reading and writing; these studies showed that many teachers, most of them, have a non-constructivist concept of teaching and learning, it means that they do not apply Ferreiro’s researches. Keywords: Constructivism. Teaching/learning in reading/writing. Literacy. School routines. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 45 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 1. Introdução Apesar de inúmeros debates, incansáveis polêmicas, pesquisas recorrentes sobre o tema, passam os anos, mudam os governos e as recomendações do MEC, mas a constatação é a mesma: alunos alfabetizados, isto é, supostamente já no domínio tanto da base alfabética quanto das práticas sociais de leitura e escrita, continuam apresentando resultados insatisfatórios em provas oficiais como as do ENEM, SAEB e Prova Brasil. Nos últimos tempos, por causa desses resultados, assistimos a manifestações de alguns setores da sociedade que afirmam que a proposta construtivista de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita teria fracassado na experiência brasileira. Entendemos que eles não pretendem questionar os fatores que determinaram esses resultados, mas a validade da teoria em questão e justificar, assim, o retorno a velhos métodos de caráter diretivo e reprodutivista. Em razão disso, colocamos as seguintes questões: Será que os resultados das pesquisas de Emília Ferreiro, base dos PCNs para uma proposta de revisão das práticas de ensino e de aprendizagem de leitura e escrita, foram a causa do insucesso detectado pelas provas oficiais, particularmente em relação ao “analfabetismo funcional”, apontado como um grande desafio atual? Será que a referida pesquisa e a própria teoria subjacente, isto é, a epistemologia genética piagetiana, são inadequadas para constituir e propor novas práticas de leitura e escrita? Ou será que os educadores não conseguiram apropriar-se da teoria e da proposta construtivista, pois, na verdade, não conseguiram cambiar suas concepções de base, apoiadas em epistemologias de senso comum3? 3 Entenda-se “epistemologia de senso comum” como ausência de reflexão epistemológica por parte do professor. Uma concepção de que o conhecimento se afirma como experiência de vida, como vivência, adequação ou identificação. Segundo esse entendimento, o sujeito que conhece é determinado e passivo. (BECKER, 2005, p. 37-8.) Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 46 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Emília Ferreiro (1999, 2001a, 2001b, 2001c) demonstrou ser possível extrair da teoria de Piaget mecanismos gerais eficazes para contemplar objetos culturais como leitura e escrita, assim como levar em conta relações sociais em condições de contribuir para a aquisição criativa dos conhecimentos socialmente constituídos. Para essa autora, as descobertas de Piaget sobre o modo como os sujeitos aprendem estão em confronto com as concepções que servem de base ao sistema tradicional de ensino, apoiadas em epistemologias de senso comum. Segundo a teoria de Piaget (1970, 1972, 1973, 1973?, 1990), o conhecimento se aprende não como simples associação e reprodução sob efeito de estímulos exteriores, mas por ações que envolvem construções e reconstruções sistêmicas dos dados do meio exterior e dos mecanismos da ação do sujeito. Portanto, de acordo com a teoria de Piaget, Ferreiro (1999) defende que aprender a ler e a escrever não seria uma questão de métodos de ensino nem de maturidade apenas, mas um processo ativo do sujeito na interpretação e produção dos caracteres escritos, segundo uma ordem construtiva original. Apoiando-se nas descobertas de Chomsky, Ferreiro confirma que em lugar de exercer uma simples imitação e de estar à mercê do reforço adulto, a criança busca ativamente compreender a natureza da linguagem escrita por meio de hipóteses, antecipações, busca de regularidades e explicações. Mas, paradoxalmente ao esforço teórico e prático dessa autora, que se propõe a colocar a criança como verdadeiro sujeito que constrói sua capacidade cognitiva, diante dos resultados negativos revelados pelas avaliações oficiais sobre as competências de leitura e escrita das crianças e dos Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 47 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 jovens, se atribui à sua proposta e pesquisa a causa do insucesso escolar das crianças. Fernando Capovilla, autor de Alfabetização: Método fônico, afirmou, em entrevista à Folha de S. Paulo, que o fracasso crescente, documentado bianualmente pelo SAEB, é o resultado da aposta cega que o governo fez, ao adotar a teoria construtivista como base para as orientações dos PCNs4. Assim como os resultados das avaliações oficiais exigem uma explicação, a pergunta imediata a responder é: quais são, então, as verdadeiras razões desse insucesso? A sociedade responsabiliza a escola como instituição despreparada para as atuais exigências sociais. Tal despreparo é igualmente atribuído às universidades. A formação de professores não tem dado conta de transformar estes em pesquisadores. A universidade parece aplicar suas energias em posturas mais reprodutivistas (BECKER, 2005). Pressionado, o governo alega que a qualidade dos serviços educacionais oferecidos pela rede pública ficou comprometida pelo avanço no acesso à escolaridade. Poderíamos, então, retornar à discussão de que é irremediável o déficit cognitivo de crianças de meios desfavorecidos? (DONGO-MONTOYA, 1996) Poderíamos retomar a polêmica que reduz toda a discussão à questão dos métodos de ensino. Poderíamos ignorar a revolução conceitual de Ferreiro e fazer de conta que desconhecemos como as crianças aprendem? Qual seria, de fato, a causa da persistência desse desempenho crítico ou insuficiente de um contingente tão grande da nossa população? Nossa hipótese investigativa apoiou-se na convicção de que os esforços de inovação na escola somente poderiam ter bons resultados quando o 4 Faz-se referência aqui à “querela dos métodos”, célebre polêmica da década de 70, encerrada na década de 80, que debatia qual seria o melhor método: sintético, analítico ou misto. Até então, acreditava-se que alfabetizar era uma questão de métodos. A partir daí, a discussão deslocou-se do “como se ensina” para o “como se aprende”. Trazer à pauta a discussão sobre a eficácia do método fônico ressuscita a “querela”. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 48 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 educador conseguisse incorporar e se valer de uma teoria científica que levasse em conta a atividade do sujeito do conhecimento para fundamentar sua prática transformadora. Tal práxis poderia contribuir para o desenvolvimento humano, na medida em que se engajasse na superação do senso comum, que tem colocado, secularmente, a criança como agente passivo na reprodução de conteúdos. Assim, contrariamente à crença imediata de que o insucesso dos alunos em leitura e escrita estaria obedecendo às teorias construtivistas, o que na verdade estaria ocorrendo é a permanência e o enraizamento da concepção educativa tradicional, centrada na transmissão de conteúdos. Ou seja, os alicerces conceituais e éticos da escola tradicional continuariam intocáveis na teoria e na prática dos professores. A escola continuaria sendo a mesma de sempre, apenas exibindo, segundo a moda, um verniz desta ou daquela teoria. Não haveria, de fato, um trabalho criterioso de formação e acompanhamento de professores para a inovação. Os resultados das avaliações necessitariam, portanto, de revisão e análise antes de se atribuir tal crise a esta ou aquela teoria. Esta pesquisa voltou-se, então, para os seguintes objetivos: conhecer as bases conceituais nas quais se apoiam as práticas dos professores no ensino da leitura e da escrita e se eles, efetivamente, se fundamentam numa teoria construtivista. Assim, foi necessário verificar se, de fato, os educadores que participaram do projeto educativo inspirado nos Parâmetros Curriculares Nacionais assimilaram as pesquisas e propostas pedagógicas de Emília Ferreiro. Os instrumentos de coleta de dados foram a entrevista e a observação, submetidos à análise de conteúdo, mediante o estabelecimento de categorias. Os dados coletados, sempre que possível, foram submetidos à quantificação. No que se refere aos sujeitos da pesquisa, foram selecionados, aleatoriamente, 20 professores, da cidade de Ourinhos-SP, com experiência de ensino na proposta construtivista. Esses professores pertenciam a duas Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 49 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 categorias de escolas, diferenciadas de acordo com os resultados da Prova Brasil 2005, em Ourinhos: escolas com melhor e pior desempenho nessa avaliação. 2. A teoria de Piaget e as descobertas de Ferreiro Com base na Psicologia Genética de Piaget e na Linguística de Saussure e Chomsky, Ferreiro e Teberosky (1999) buscam compreender como as crianças desenvolvem seus conhecimentos sobre a língua escrita. Para a criança, o problema fundamental, segundo elas, seria compreender o que a escrita representa e como funciona esse sistema de representação. Tratar-se-ia de compreender a escrita como um sistema de representação5 e não como um código, de entender o desenvolvimento da criança como a compreensão progressiva da natureza do sistema alfabético de escrita. Os resultados dessa iniciativa apontam que a criança, ao iniciar o seu conhecimento sobre a escrita, segue passos ordenados, desenvolve esquemas conceituais específicos, num processo construtivo em que leva em conta parte da informação dada e introduz algo pessoal. Essa evolução não poderia ser caracterizada como um processo puramente maturacional, pois resultaria da interação que ocorre entre o sujeito cognoscente e o objeto do conhecimento: por meio de ações de integração ou assimilação, o sujeito transformaria a informação dada para poder incorporá-la aos seus esquemas e conceitos prévios. Quando há resistência do objeto ou do conteúdo a ser compreendido (o que pode ou não provocar conflito cognitivo), o sujeito precisará transformar seus esquemas prévios para incorporar a novidade. 5 “O termo representação refere-se a duas entidades psicológicas diferentes e complementares: por uma parte, refere-se à representação imagética ou imagem mental e por outra, à representação conceptual. A primeira permite a evocação dos objetos, ações e situações particulares ausentes, isto é, a representação figurativa das realidades vividas. A segunda, confunde-se com o pensamento representativo, isto é, com toda a inteligência que não se apóia simplesmente nas percepções e movimentos (inteligência sensório-motora) e sim num sistema de conceitos ou esquemas mentais (operações ou pré-operações).” MONTOYA, A. O. D. “Representações e construção do conhecimento”. In: Schème – Revista eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas – vol. I nº 1 – jan/jun, 2008, disponível em http://www.marilia.unesp.br/schème, acesso em 18/12/2009. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 50 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Criticando o enfoque que privilegia os métodos de ensino, as autoras afirmam que conhecer os processos de aprendizagem é indispensável para estabelecer as estratégias mais adequadas para promover a aprendizagem. A discussão sobre os métodos seria inútil em si mesma, porque os métodos tanto podem favorecer como bloquear a aprendizagem, se não se tem em mente os processos que levam ao conhecimento. A confusão entre métodos de ensino e processos cognitivos levaria a crer que a aprendizagem se dá graças aos métodos de ensino e não ao esforço de elaboração do sujeito que aprende. Invocando os conhecimentos linguísticos sobre a natureza representativa da língua escrita, Emília Ferreiro defende que a escrita é um sistema de representação e não um código que apresenta correspondência biunívoca termo a termo e relações pré-determinadas entre seus elementos, pois esse sistema é resultado de uma construção consciente e histórica da humanidade. No processo de aquisição da língua escrita, a criança percorreria dificuldades semelhantes às da construção histórica desse sistema representativo. Partindo dos pressupostos de Saussure, a autora vê a língua escrita como um sistema de representação, cujo elemento central é o signo, formado de elementos indissociáveis: significante e significado. Separar esses elementos, como faz o ensino tradicional, apoiado em métodos de ensino, seria destruir o signo linguístico. Na visão da autora, o ponto de partida para a alfabetização seriam as concepções da criança sobre a escrita, as quais revelariam um saber diferente do saber escolarmente reconhecido e, vistas nos seus aspectos construtivos, revelariam que a criança compõe, progressivamente, a escrita, até chegar à forma como convencionalmente a conhecemos. os dados externos na escrita (final de frase obscuro). Ferreiro pesquisou não só a gênese da escrita, mas também a da leitura, vendo-as como atividades complementares. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 51 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Concordou com os psicolinguistas Goodman (1993 e 1987) e Smith (1991 e 1999), e também com Foucambert (1994 e 1997), quanto às estratégias de leitura. Falando sobre as implicações pedagógicas dos resultados obtidos em suas pesquisas, as autoras afirmam: Entre as propostas metodológicas e as concepções infantis há uma distância que pode medir-se em termos do que a escola ensina e do que a criança aprende. O que a escola pretende ensinar nem sempre coincide com o que a criança consegue aprender. [...] O que a criança aprende – nossos dados assim o demonstram – é função do modo em que vai se apropriando do objeto, através de uma lenta construção de critérios que lhe permitem compreendê-lo. Os critérios da criança somente coincidem com os do professor no ponto terminal do processo. (FERREIRO e TEBEROSKY, 1999, p. 291) Dados de outras pesquisas de Ferreiro (2001c) mostram que, mesmo recebendo instrução escolar, as crianças seguem a mesma progressão que outras apresentam antes de iniciar a escola. Observar-se-ia uma nítida distinção entre o que é ensinado e o que a criança aprende. Isso se daria em relação a qualquer metodologia. As crianças desconsiderariam as instruções dos adultos enquanto estão elaborando suas hipóteses. Os adultos, por sua vez, desconheceriam as crianças, quando julgam a priori o que é fácil ou difícil para elas. A construção do conhecimento seria muito mais do que colecionar informações; seria inserir as informações num sistema de significações, seria transformá-las em conhecimentos por meio de inferências, antecipações, confrontações e reformulações. A aprendizagem da leitura e da escrita envolveria um processo construtivo, ou reconstrutivo, que não pode ser diretamente observado nem controlado de fora. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 52 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 3. Os resultados da pesquisa Para conhecer as concepções dos professores sobre ensino e aprendizagem em leitura ou escrita, utilizamos dois instrumentos de coleta de dados: a entrevista e a observação. Os dados da pesquisa foram obtidos, como já dissemos, junto a 20 educadores do ensino fundamental que participavam do projeto educativo construtivista, visto que seguiam as orientações dos PCNs e frequentavam, em caráter obrigatório, os módulos de formação continuada do PROFA – Curso de Formação de Alfabetizadores – Letra e Vida. 3.1 A compreensão dos professores sobre “construtivismo” 3.1.1 A compreensão sobre o “construtivismo” de um modo geral Para compreender qual seria o entendimento que os professores6 têm do “construtivismo” perguntamos: O que seria a construção dos conhecimentos na escola? A grande maioria dos professores (85%) declara que a construção do conhecimento se faz por justaposição ou acúmulo de saberes, graças à ação do professor e à transmissão pela linguagem do professor. O trabalho fundamental de construção, feito pelo sujeito que aprende em interação com o conhecimento, raramente é lembrado. -... é o professor passar os conhecimentos para o aluno... ele ser o mediador... transmitir os conhecimentos... (P L2) -O conhecimento se faz por meio de uma construção... cada novo conhecimento é um tijolinho a mais que vai estruturando, misturando com novos conhecimentos... um tijolo junto com outro tijolo... e cada novo conhecimento vai estruturando cada vez mais o cérebro para que ele receba novos e novos conhecimentos... (P H4) -É a questão de você [professor] construir em cima do que já existe... A criança tem um conhecimento prévio e você [professor] vai através disso fazendo construções... você [professor] vai construindo saberes em cima de outros saberes... Uma criança sozinha não aprende nada, mas se ela tiver com uma criança um pouco mais velha, ela vai assimilando, ela passa a adquirir conhecimento interagindo com o meio... (P U4) 6 Para nomear os professores, mantendo sua identidade em sigilo, os professores aparecem identificados por letras, seguidas de números que identificam a série em que trabalhavam. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 53 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 -O aluno tem que construir sobre algo que o professor vai lançar para ele... (P E1)7 O que se percebe é que o “papel mediador” do professor se reduz a transferir os saberes e desse modo retirar do sujeito a sua função de criador e recriador de conhecimentos. A concepção que o professor tem do papel passivo do sujeito que aprende revela-se ao extremo de se afirmar que para aprender o novo é preciso eliminar os conhecimentos prévios e não recriá- los a partir daí. -É aquilo... partir da realidade dela para destruir o que ela já sabe para construir a partir daí... passo a passo... degrau por degrau... ela vai indo... e você vai dando subsídios. (P F2) Apaga-se a ideia de continuidade presente no conceito de construção, de reelaboração, para instaurar a ruptura entre as estruturas do presente e do passado. Tudo de forma controlada pelo professor que vai dando subsídios num “passo a passo” progressivo. Apenas 15% dos professores revelaram-se a caminho da compreensão do que seja a construção do conhecimento na escola, como se vê na resposta abaixo: -É fazer uma elaboração de um assunto, de um tema e não jogar fora o que já existe, porque já existe um conhecimento, mas fazer cada um a sua própria elaboração, refletir, avançar naquilo... Quando você fala em construir você não está querendo começar tudo de novo... ... você está querendo construir para aquela pessoa aquele conhecimento... trazer para aquela pessoa o conhecimento... trazendo junto com a fala o conhecimento... (P J3) 7 As reticências presentes nas falas dos professores representam pausas, interrupções do raciocínio ou mesmo a suspensão do seu pensamento. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 54 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Diante da pergunta: O que as crianças precisam fazer para construir seus conhecimentos? as respostas dos professores não foram muito diferentes das anteriores. Desse modo, mais uma vez, muitos dos professores entrevistados dão destaque às ações instrutivas do professor (45%). -Bom, é claro que o professor é mediador de tudo isso... O professor tem que dar meios para que ela consiga descobrir seus conhecimentos... porque ninguém vem assim do nada e aprende... é claro que o professor é o mediador que vai passando esses conhecimentos pra ela... A criança tem que aprender... ela tem que ir trabalhando... tem que ir ouvindo... tem que ir assimilando o que o professor fala... e o professor vai percebendo o quanto ele está aprendendo... se ele está aprendendo... (O conhecimento é incorporado de fora para dentro, pela via dos sentidos.) (P F2) Elas precisam construir seu próprio conhecimento, ouvindo o professor e assimilando o conteúdo dado aos conhecimentos que elas já têm. (A construção pela via dos sentidos de um conteúdo dado, de fora para dentro) (P S2) Como se vê, as crianças aparecem como elementos passivos, guiados sempre pela “fala” do professor; sem ela, na opinião de muitos dos entrevistados, os alunos teriam que partir do nada. Além disso, o papel mediador do professor significa, para um grande número de sujeitos pesquisados, outorgar conteúdos e controlar o processo de aprendizagem, como se pode perceber na análise de suas respostas. Algumas respostas (15%) destacam que a criança tem que ter “interesse”, “vontade” e “prestar atenção”, como condições prévias e exteriores ao próprio processo de aprendizagem. -Eu acho que cabe a elas ter mais interesse... porque com esse negócio de que escola não repete... então eu acho que isso deixou a criança meio sem-vergonha, sabe... Eu acho que tinha que ter, sim, todo ano repetência, porque é uma maneira do professor cobrar do aluno. (P L2) -A primeira coisa é ter vontade... algumas crianças passam por um turbilhão de coisas emocionais... Tem crianças que têm muita vontade de estudar... tem uma estrutura totalmente organizada de casa... Agora essas crianças que chegam em casa... um me contou que o pai Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 55 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 vendeu o cortador de unhas pra comprar pinga... Como é que é a volta dele pra casa? Como é que ele é estimulado? (P I1) Outras respostas (40%), porém, destacam a participação do aluno no seu processo de aprendizagem, em função de desafios colocados pelo professor e interações sociais. Porém, o papel ativo do sujeito da aprendizagem, na elaboração e reelaboração do conhecimento, nem sempre é evidente nas respostas dos entrevistados. -Elas precisam passar por desafios para que possam construir a aprendizagem delas. (P S2) -Elas precisam interagir junto com a gente... a criança precisa pensar, falar, elaborar, discutir... sair do individual e expor-se para a sala... num plano individual com um texto... eu, meu texto, minhas questões... Eu sempre tenho que ter um excelente problema pra resolver, se eu não tiver, eu não construo nada... O aluno tem que aprender que é ele quem busca, é ele que sai daquele lugar em que ele está...(P J3) 3.1.2 A compreensão do que seja uma aula construtivista de leitura e escrita Quisemos saber, então, Como o professor trabalha leitura/escrita numa aula construtivista?. 40% dos professores se remeteram à necessidade de levar em consideração atividades e interesses das crianças. Alguns desses sujeitos defendem que certos pressupostos construtivistas devem guiar o trabalho desenvolvido pelo professor, qualquer que seja a atividade escolhida: -Com qualquer texto ou livro você pode trabalhar de uma maneira construtivista... não dando tudo pronto... desafiando e deixando que ele te traga a resposta... alimentando a discussão no grupo... levando- os a agir para encontrar boas respostas...a discutir, argumentar, corrigir... com questionamentos possíveis de serem respondidos... Um trabalho que leve o aluno a refletir... (P J3) -Despertando o interesse para ler/escrever, obrigando-as a pensar sobre como escrever a partir dos conhecimentos que elas já têm... Permitindo que elas confrontem o escrito delas com os dos colegas... sem precisar falar ‘o seu está errado, vai apagar’ ...(P B2) Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 56 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Os outros 60% ou advertem que “não há professores construtivistas” ou citam um rol de atividades, chamadas por eles de “construtivistas”, como se fossem parte de um método de ensino. É o que se vê, por exemplo, nas seguintes repostas: -Eu não sou construtivista... às vezes eu procuro mesclar... Também não sou tradicional... Usamos apostila e isso não é construtivista... (P M3) -Mas não existem professores construtivistas, existem atividades construtivistas... (P G3) -...acho que ninguém faz um construtivismo puro ou porque não sabe fazer ou porque não tem conhecimento do que seja realmente. -Junto com o método fônico eu dou o alfabeto móvel pras crianças irem pensando nas hipóteses.... (P S2) -Tem várias atividades que nos ajudam nisso... a escrita de uma canção conhecida, a leitura de uma música... (P Q4) -Eu gosto muito de cruzadinha porque ele vai ter que pensar quantas letras ele vai colocar ali... eu falo: Leia, como é tal som? Então ele vai tomar consciência que ele errou... (P A1) 3.1.3 Conhecimento sobre as pesquisas de Ferreiro Como já destacamos, ao nos referirmos às pesquisas de Emília Ferreiro, a descoberta fundamental desta autora foi mostrar a evolução das concepções ou interpretações das crianças sobre o modo como se organiza a língua escrita e que essa organização representa, conceitualmente, o modo como se produz a fala. Para a pergunta: O que a pesquisa de Ferreiro revelou sobre a aquisição da escrita?, 75% das respostas, ou apenas mencionam as fases ou hipóteses da criança no processo de construção da escrita, ou se mostram indefinidas quanto a essa compreensão, ou, ainda, alegam desconhecimento sobre o assunto. É importante dizer que as respostas em termos de fases do desenvolvimento da escrita – assim como das fases da inteligência descobertas por Piaget – não indicam, necessariamente, a compreensão da psicogênese da Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 57 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 língua escrita como processo de construção de sistemas conceituais de interpretação sobre a língua oral, como ocorre com os sujeitos do grupo seguinte. Exemplos de respostas em relação às fases da psicogênese da escrita: -O principal foi ela determinar as fases da escrita porque dá uma base pra gente trabalhar... (P I1) -As fases... o processo da escrita... (P M3) -Que a aquisição da escrita se dá por meio de fases... (P C3) O fundamental são as fases... (P A1) Ao citarem as fases, alguns se mostram indefinidos quanto à compreensão de como esse processo se dá: -De início, as crianças não sabem que o que a gente escreve é o que a gente fala... No começo da 1ª série a gente tem que mostrar isso pra elas... (P I1) -Tudo que a criança fala ela pode passar pro papel e ela tem que saber disso desde o início... desde que chega na escola.... (P F2) Outros ainda revelam desconhecimento sobre as referidas pesquisas: -Olha, não se fala em E. Ferreiro mais, então eu nem me lembro mais... Lembro um pouco da construção do conhecimento... mas, não... eu não me lembro... (P Q4) -A novidade que ela trouxe foi entender como a criança chega a aprender a ler/escrever... Mas eu não sei explicar... (P S2) Por outro lado, num grupo, representando 25% das respostas, reunimos as que anunciam a importância da compreensão de o que a escrita representa: sistema de representação conceitual da língua falada. -Que a criança passa por diversas fases para chegar à aquisição da escrita... É um processo em que ela avança por meio de conflitos... Quando ela percebe que pode escrever aquilo que ela fala, em vez de Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 58 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 jogar letras, ela começa a atribuir sons às letras e não é qualquer letra que serve para escrever... Ela está alfabetizada quando percebeu que a escrita representa os sons da fala... (P B2) -... a criança tem que perceber que há ligação da escrita com a fala... que ela escreve o que ela fala... Elas começam o processo de aquisição sem atribuir sons às letras... apenas com letras que ela sabe que são usadas para escrever... em geral, do próprio nome... depois, ela atribui uma letra para cada sílaba, ainda sem valor sonoro... depois, começa a buscar outras letras, que não as do seu próprio nome, para representar um som... e vai avançando até chegar a ser alfabética, embora com falhas ortográficas... Ela já domina o conhecimento de que a escrita representa os sons da fala... (P K4) Com o propósito de investigar o conhecimento que os professores têm, de fato, sobre as pesquisas de Ferreiro, indagou-se sobre “O que a pesquisa de Ferreiro revelou especificamente sobre a leitura?” Do conjunto das respostas, 5% delas, ou seja, apenas uma, demonstra algum conhecimento do que E. Ferreiro tratou em suas pesquisas ao se referir à leitura: -Ela trabalha numa linha de valorizar as estratégias que um bom leitor usa para ler... Então, ela não fala apenas em decodificação, ela fala na leitura além disso... Na leitura que ele decodifica, mas também na que ele seleciona, confirma, antecipa... Esse leitor precisa de muitas estratégias a mais para conseguir ler... não é só decodificar... Ler não é um ato mecânico só... envolve o mecânico, mas passa pelo conceitual, por refletir, por outras coisas... Em sala de aula, é preciso trabalhar para a criança aprender a usar estratégias de leitura e avançar... (P J3) O restante dos professores (95%) afirma (ou demonstra) desconhecer o que a pesquisa revela sobre leitura e relata o que costuma fazer em relação a ela em suas aulas, insistindo sempre em apresentar listas de atividades costumeiras. Como se Ferreiro tivesse prescrito atividades a serem realizadas. Sobre leitura... Ai, eu não estou me lembrando... (P K4) -Pequenos textos, músicas, parlendas, cartazes, textos de referência... A criança consegue fazer associação do que viu com a escrita...(P E1) -... é de trabalhar a leitura com fichas... chamar os alunos todos os dias para fazer uma leitura significativa... eu não sei sobre isso... não me lembro... (P M3) Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 59 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 -A primeira coisa é a classificação deles numa atividade diagnóstica para saber que atividade eu vou dar... parlenda, músicas, coisas -fáceis pra eles... Acho que é isso, não é?.. (P A1) Quando se perguntou sobre se “É possível retirar das pesquisas de Ferreiro, aspectos relativos à produção de textos?”, tivemos novamente a mesma ocorrência. Apenas um professor (5%) declarou que o foco dessas pesquisas não era esse. -Ela não tratou disso... ela tratou de alfabetização, mas você pode entender que você pode fazer certas coisas pra que a criança faça uma boa produção... Mas eu acho que é a gente que tem que fazer... O que fazer depois do período de alfabetização? Por que essa criança não se tornou uma produtora de textos? (P J3) Outras respostas (15%) mostram-se pouco seguras, mas no caminho... -Sobre a produção de texto mesmo... não me lembro... mas acho que é só sobre aquisição de escrita mesmo... (P B2) As demais (80%) não compreenderam os objetivos das referidas pesquisas. - Produção de textos... ai, meu Deus... deixa ver... Eu acho que tudo o que a criança faz tem que ser aproveitado... eu não sei se isso é na E. Ferreiro porque a gente lê tanta coisa... Mas eu gosto de fazer a reescrita, focalizando o erro da criança... ortografia... estruturação... eu acho que a criança aprende muito com o que ela faz... Agora, na E. Ferreiro eu não sei... (P L2) -Pra falar sobre isso eu tinha que estar dominando o que foi dito nas pesquisas dela... Eu não posso dizer por que não domino esse conhecimento... (P I1) -Creio que seja o trabalho de correção coletivo, individual ou em grupos... a correção com o retroprojetor de um aspecto de cada vez dos textos produzidos pelas crianças... (P H4) Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 60 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Obtivemos, assim, respostas que revelam desconhecimento sobre o que essas pesquisas apresentaram e o que caberia a ser feito para traduzi-la numa práxis coerente. Os professores parecem não se dar conta de que E. Ferreiro, em suas pesquisas, quis demonstrar que a criança, para alcançar uma organização conceitual da escrita alfabética, precisa construir e reconstruir sistemas de interpretação a partir de tomadas de consciência e não de simples reproduções de modelos. Ela não prescreveu atividades ou procedimentos específicos a serem empregados em sala de aula, como acontece com os métodos de ensino. Isso não quer dizer que suas pesquisas deixassem de inspirar estratégias que possibilitassem a aprendizagem da língua escrita enquanto construções e reconstruções de conhecimentos. Finalmente, os professores foram questionados sobre se “Levam em conta as pesquisas de Ferreiro no trabalho com leitura e escrita em sala de aula?”, se “Acham isso importante?” ou se “Consideram questionável?”. Do total das respostas, 25% declararam apoiar-se nas referidas pesquisas. -Sim, sem dúvida. Especialmente em relação às fases de aquisição da escrita para poder pensar a minha prática em relação ao desenvolvimento dos meus alunos. Mas eu não tenho domínio suficiente para comentar... (P I1) -Eu adoro... em séries iniciais, procuro propor situações que deixem as crianças inquietas nas fases para que avancem... Agora, ela escreveu pensando num foco... Então, há questões que o material dela não responde... da mesma maneira como Piaget sobre a afetividade, por exemplo... Mas isso não vem tirar o mérito dela... Eu utilizo não como método, mas como pano de fundo para a minha prática... (P J3) Os outros 75% dizem fazê-lo, mas com ressalvas. Entre as ressalvas feitas às pesquisas de Ferreiro, por esses professores, encontramos mais evidências de incompreensão, incoerência e desconhecimento. Podemos Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 61 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 entender que, de fato, não se apoiam em E. Ferreiro. Alguns se abstiveram de comentar as pesquisas afirmando conhecê-las apenas superficialmente. -Eu descartaria isso das hipóteses, de achar tudo muito lindo e aceitar como correto, mesmo nas séries iniciais... Não precisa falar ‘tá errado’, mas tem que corrigir... (P M3) -Eu tenho usado a teoria dela, mas também o Capovilla que é tradicional e montou uma cartilha... Por que a E. Ferreiro tem sido muito criticada e não tem uma cartilha da E. Ferreiro pra gente se basear... Mas não se pode ignorar o que ela mostrou em suas pesquisas... (P F2) -Eu me apoio nela, sim... às vezes... A gente na verdade recorre à coordenação, à direção da escola quando encontra alguma dificuldade... E às vezes à memória... Como era na minha época? Como a professora fazia? Eu acho que na 1ª e 2ª séries o método fônico é muito bem trabalhado... Na 3ª e 4ª séries, eu concordo em trabalhar o construtivismo, mas aí as crianças já estão alfabetizadas... Há muita insatisfação com a alfabetização, tanto que a própria rede oferece outros cursos mais tradicionais... E então? Para tudo e começa outro? Essa bagunça prejudica muito as crianças, você não acha? (P Q4) 3.1.4 Concepções e conhecimentos dos professores, segundo os tipos de escola Tendo selecionado escolas com diferentes desempenhos na Prova Brasil 2005, isto é, escolas com melhor e pior desempenho, quisemos saber de que forma os conhecimentos dos professores pesquisados, sobre os pressupostos piagetianos e as descobertas de Ferreiro, estariam relacionados ao desempenho da escola na referida prova. Noutras palavras, se nas escolas com melhor desempenho nessa avaliação, os professores possuíam conhecimentos adequados da teoria “construtivista” e da pesquisa de Emília Ferreiro sobre a leitura e escrita e, do mesmo modo, nas escolas com menor sucesso. Correlacionamos, então, o conhecimento dos professores sobre o construtivismo e o desempenho das escolas na avaliação oficial. Pudemos constatar que, entre os nove professores pesquisados, das três escolas selecionadas com pior desempenho, a ocorrência de concepções mais tradicionais e reprodutivistas, assim como o desconhecimento da pesquisa de Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 62 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Emília Ferreiro, é maior (cerca de 77%). O Professor L2 seria um exemplo claro disso. Por outro lado, a nossa investigação revela que os professores mais próximos das concepções construtivistas encontravam-se nas três escolas com melhor desempenho. Dos onze professores pesquisados nestas escolas, cerca de 70% deles demonstram melhor compreensão das pesquisas de Emília Ferreiro. O Professor J3 seria um exemplo típico dessa ocorrência. Temos, então, que nas escolas com pior desempenho, a porcentagem de professores que revela conhecimento das pesquisas de Ferreiro e do “construtivismo”piagetiano é de cerca de 23%, enquanto que nas escolas melhor classificadas é de cerca de 70%. Na medida em que os colégios com bom desempenho correspondem a escolas situadas em setores da cidade, economicamente mais favorecidos, esses resultados estariam mostrando que, talvez, professores mais bem preparados escolham escolas com melhores condições de trabalho. Em nosso Estado, como se sabe, os professores das escolas bem classificadas nas avaliações oficiais recebem gratificações salariais. É possível que, por razões como esta, muitos deles sejam levados a escolher escolas com condições mais favoráveis. São estratégias de sobrevivência, afinal. O que estaria fazendo a diferença na apropriação que esses professores fizeram desse conhecimento? Apesar de que J3 esteja entre os poucos que cursaram uma universidade pública, há outros, de faculdades particulares, com razoável conhecimento teórico e prático. Muitos deles falam do seu real engajamento nos cursos de formação continuada e do seu compromisso com o progresso dos alunos, citando, em contrapartida, colegas que comparecem aos cursos apenas porque são obrigados e que estão no magistério apenas à espera de coisa melhor. Há também os que criticam os cursos de formação continuada e também os professores-formadores, sugerindo que não existe muito controle sobre a qualidade desses cursos ou que eles não têm muita utilidade para o trabalho em sala de aula. Se parece certo que há Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 63 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 problemas na formação desses professores, podemos também dizer que essa talvez não seja a única evidência. Voltando à questão das escolas mais bem avaliadas, as condições de trabalho mais favoráveis dessas escolas não seriam, necessariamente, o único fator a levar o mérito pelo seu melhor desempenho . Seria necessário levar em conta também e, sobretudo, a superação, pelos professores, da concepção secular de aprendizagem centrada apenas na transmissão de códigos e conteúdos. 3.2 Sessões de observação Com o propósito de verificar, na prática dos professores, indícios das suas concepções de ensino e de aprendizagem e se essa prática efetivamente traduzia o que mostraram os discursos sobre esses conhecimentos nos sujeitos pesquisados, realizamos sessões de observação nas salas de aula. A observação da prática dos professores abordados foi realizada antes das entrevistas, sem aviso prévio e em datas distanciadas para evitar que as aulas fossem “preparadas” para a visita do pesquisador. As sessões de observação nos permitiram perceber: 3.2.1 Sobre a organização e o uso do espaço da sala de aula: - as carteiras agrupadas sugerem um trabalho cooperativo que não ocorre; o acesso a materiais é pouco diversificado, controlado por uma gestão não compartilhada; os desenhos dos alunos, expostos nas paredes, são copiados e o restante do material exposto é construído pelo professor. A atitude do professor privilegia um trabalho individual e isolado da criança, voltado para a cópia e não para elaboração, e não promove a iniciativa das crianças para realizar trabalhos em equipe nem para trocar pontos de vista. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 64 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 3.2.2 Sobre a gestão da sala de aula: - os horários são compartimentados em disciplinas, numa rotina inflexível sem espaço para questões extraordinárias; as atividades são escolarizadas e descontextualizadas, pouco significativas, apenas exercícios para aprender a ler ou escrever; as atividades de leitura são rotineiras, sem um “para quê”, feitas, em geral, pelo professor; há muita produção de texto livre e sem revisão, uma espécie de “quebra-galho”. Um trabalho burocrático mesmo quando se propunham novos temas e conteúdos. Diante de perguntas rotineiras as crianças respondiam de forma mecânica. Práticas de leitura e escrita: - os níveis de leitura e escrita são usados para a classificação, sem levar a intervenções; evitam-se as trocas e os conflitos; insiste-se na correspondência som-letra, no uso do método fônico, na memorização do alfabeto, quase sempre em palavras e frases e não em textos, na utilização de textos como pretexto para ensinar a ler ou escrever; há poucas demonstrações de “para que serve a escrita” em diferentes gêneros textuais. Quase não há diálogo entre os alunos e o professor e nem entre os próprios alunos; as crianças fazem poucas perguntas e, em geral, solicitam a ajuda apenas do professor. Revelam pouca autonomia, deixando de utilizar outros recursos além do professor. Relações interpessoais: - As ações dos professores são diferenciadas se compararmos as escolas mais favorecidas com as menos favorecidas; elas são muito mais burocráticas nas escolas menos favorecidas; a interação verbal entre todos é marcada, nas escolas de periferia, pelo desinteresse, pela indiferença, e por agressões. O “clima”, em ambos os espaços escolares, também é diferenciado, o Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 65 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 entusiasmo do professor não é o mesmo, e, consequentemente, o envolvimento dos alunos não acontece: os professores das escolas com pior desempenho, não enxergam os alunos que têm à sua frente e não oferecem as ajudas de que eles estão necessitando. Como supúnhamos inicialmente, há notáveis dissonâncias entre o discurso e a prática dos professores. A impressão de que o discurso dos professores é marcado por um “jargão” sem muito sentido, se tornou uma certeza diante da observação de uma prática que adota carteiras agrupadas como “modismo”, fases da escrita como rótulos classificatórios, perguntas mecânicas e rotineiras como prática, atitudes discriminatórias no relacionamento. Relacionando as práticas desses professores e o grau de compreensão do construtivismo e das pesquisas de Ferreiro às escolas em que trabalham, verificamos que os mais próximos do construtivismo encontram-se nas escolas com melhor desempenho no ranking da Prova Brasil 2005. Este resultado, afinal, estaria refutando o argumento dos críticos de que o insucesso dos alunos em leitura e escrita dever-se-ia à adoção dos princípios construtivistas, especialmente na versão de E. Ferreiro. Do mesmo modo como ocorreu em relação às entrevistas pudemos constatar, também na análise feita a partir das observações da prática em sala de aula, que nas escolas com pior desempenho há uma prática que nega a atividade da criança na construção do seu conhecimento. Embora existam carteiras agrupadas, não se estimula um trabalho cooperativo, isto é, a troca de pontos de vista; os alunos são classificados em fases, mas sem serem alvo de intervenções que possibilitem a tomada de consciência das suas produções rumo a maiores integrações e diferenciações operatórias e conceituais. Ao Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 66 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 contrário, o que se observa é o predomínio de perguntas mecânicas, ausência de diálogo, falta de autonomia e de gestão compartilhada etc. 4. Conclusão Os fatos analisados por esta pesquisa nos levam à dura conclusão de que a maioria dos professores que participaram do “programa construtivista” de ensino da leitura e escrita, em geral, não compreenderam as bases teóricas sobre as quais deveriam se apoiar em tal programa. Pelo contrário, os julgamentos feitos pelos professores pesquisados, sobre o processo pedagógico, continuam fundando suas raízes na concepção diretiva e reprodutivista da escola tradicional: a atividade da criança apenas se reduz a associar códigos progressivamente planejados e transmitidos em sala de aula. Mesmo nas escolas que tiveram melhores resultados na prova Brasil 2005, a maioria dos professores não conhece suficientemente as descobertas científicas da pesquisa de Emília Ferreiro e as bases teóricas das propostas construtivistas de ensino e de aprendizagem da língua escrita. O estudo das práticas realizadas por esses professores nos conduz a corroborar tal concepção: as atividades de leitura e de escrita em sala de aula, longe de colocar a criança como construtora dos seus saberes e competências, a colocam como mero agente passivo da aprendizagem associativa. É raro o educador que consegue ter uma iniciativa diferente ou mesmo tomar consciência das contradições que vive no seu cotidiano. Diante desses dados, acreditamos que não existem bases seguras para afirmar que o construtivismo e as pesquisas de Emília Ferreiro são responsáveis pelo insucesso da aprendizagem da leitura e da escrita na escola fundamental. Pelo contrário, os dados levantados nesta pesquisa nos permitem afirmar que a melhor compreensão dos professores sobre a construção dos Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 67 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 conhecimentos e sobre a psicogênese da língua escrita lhes possibilita obter mais sucesso na aprendizagem dos seus alunos. Os professores, diante de dificuldades do processo ensino- aprendizagem, recorrem imediatamente às práticas consideradas por eles mesmos como tradicionais e conservadoras. O mesmo se dá em relação aos gestores da educação no país, visto que nos últimos tempos, se discute a possibilidade de substituir as propostas do construtivismo por pedagogias diretivas ou reprodutivistas. Isso mostra, como ocorre no discurso e na prática dos professores e nas ações dos administradores e do poder público, que há ausência de convicção de que as práticas devam ser apoiadas em teorias inovadoras e em estudos cientificamente comprovados que coloquem a criança como agente real na construção do seus conhecimentos. A formação deficiente dos professores não conseguiu abalar as tradicionais convicções empiristas, aprioristas ou inatistas tão profundamente enraizadas neles. Convictos de que o conhecimento se faz no sujeito por meio de transmissão e instrução, eles desconsideram os trabalhosos processos construtivos, desenvolvidos pelas crianças no cotidiano escolar, para se fixar apenas na busca de “métodos” prescritos por “especialistas”. Abdicam do direito e do dever de exercer, eles mesmos, a reflexão e a prática na criação de uma pedagogia capaz de superar a concepção secular de ensino e de aprendizagem reprodutivista. Volume 4 Número 1 – Jan-Jul/2012 68 www.marilia.unesp.br/scheme ISSN: 1984-1655 Referências BECKER, Fernando. A epistemologia do professor: o cotidiano da escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. DONGO-MONTOYA, A.O. Piaget e a criança favelada: Epistemologia Genética, diagnóstico e soluções. Petrópolis, Vozes, 1996. DONGO-MONTOYA, A.O. “Representações e construção do conhecimento” In: Schème – Revista eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas – vol. 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Recebido em: 23/11/2011 Aceite em: 09/04/2012