1 Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara UNESP Gustavo Capanema: A Construção das Relações entre a Intelligentsia Nacional e o Estado no Brasil (1934-1945) Breno Carlos da Silva Araraquara – SP 2010 2 BRENO CARLOS DA SILVA Gustavo Capanema: A Construção das Relações entre a Intelligentsia Nacional e o Estado no Brasil (1934-1945) Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” Orientador : Prof. Doutor MILTON LAHUERTA Dezembro/2010 3 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Milton Lahuerta Prof. Dr. Rogério Baptistini Mendes Prof. Dr. Carlos Henrique Gileno 4 À minha família que sempre esteve ao meu lado, fornecendo enorme apoio no caminhar de meus estudos. Em especial, aos meus pais, Carlos e Nita, pela força e inspiração que sempre me deram. E a camaradagem dos companheiros e amigos da República Orgasmograma. 5 INDICE INTRODUÇÃO ........................................................................................................9 CAPÍTULO I – ESTADO, INTELECTUAIS, MODERNIZAÇÃO 1- Capanema: O eixo de uma rede de relações entre o Estado e a intelligentsia nacional.................................................................................. 10 2- Gramsci e a formação do Bloco Histórico............................................... .18 3- Mannheim: A gênese e atuação da Intelligentsia......................................22 4- Os anos 1930 e a Modernização Brasileira ............................................. .28 5- Estado e Intelectuais no Brasil nos anos 1930 : cooptação ou a formação de um novo bloco histórico?......................................................................34 6- Ministério Capanema : lócus estratégico das disputas entre os projetos da intelligentsia nacional.............................................................................42 CAPÍTULO II – CAPANEMA E AS RELAÇÕES COM A INTELLIGENTSIA NACIONAL 1- Capanema , a Igreja e os Intelectuais Católicos.......................................49 2- Capanema e os Ideólogos do Autoritarismo ............................................60 3- Capanema e os Pioneiros da “Escola Nova”............................................ 70 4- Capanema e os Intelectuais-Artistas do Modernismo.............................85 CAPÍTULO III – O LEGADO DA GESTÃO CAPANEMA 1- Ministério Capanema : um Ministério da Cultura?...............................101 2- Metodologia empregada ...........................................................................110 A guisa de conclusão: O papel de Gustavo Capanema na construção da nação moderna brasileira......................................................................................................114 ANEXO : Correspondência Selecionada de Gustavo Capanema...............117 6 RESUMO Esta pesquisa objetiva elaborar uma interpretação sobre a trajetória do intelectual mineiro Gustavo Capanema com foco nas relações construídas entre a esfera estatal e a intelligentsia nacional no período compreendido entre 1934-1945 no Brasil. Nesse sentido, visa entender suas estratégias, singularidades, diretrizes, coerências e incoerências como interlocutor e articulador político nas relações entre a intelligentsia nacional e o Estado brasileiro para a elaboração e implantação de projetos e políticas culturais em âmbito nacional. O suporte teórico desta abordagem se pauta na sociologia dos intelectuais, em especial, nas proposições elaboradas por autores como Antônio Gramsci e Karl Mannheim e nas interpretações de autores como Simon Schwartzman, Sérgio Miceli, Milton Lahuerta, Luiz Werneck Vianna, Daniel Pécaut, Ângela de Castro Gomes, André Botelho, que trataram o tema no referido período histórico no Brasil . Dessa forma o papel de Gustavo Capanema, como intelectual e homem público, assegura diretrizes relevantes e pertinentes para compreendermos as relações institucionais da época com a intelligentsia nacional, tornando assim uma promissora abordagem sobre esta faceta do período histórico recortado, ou seja, demarcado pela construção da nação dirigida pelo Estado durante o governo constitucional e ditatorial de Getúlio Vargas no Brasil. 7 ABSTRACT This research intends to elaborate an interpretation of a particular approach on the trajectory of the Brazilian intellectual Gustavo Capanema in the relationship built between the state and the national intelligentsia in the period of 1934-1945 in Brazil. In order to understand his strategies, singularities, coherences and incoherences as an interlocutor and articulated politician of the national intelligentsia and the Brazilian Government for the elaboration and implementation of nationwide cultural projects and policies. The theoretical support of this approach is based on the sociology of intellectuals, especially on the debate elaborated by authors such as Simon Schwartzman, Sérgio Miceli, Milton Lahuerta, Luiz Werneck Vianna, Daniel Pécaut, Ângela de Castro Gomes, André Botelho who discussed the referred theme of Brazilian history. Thus, Gustavo Capanema’s role as an intellectual and public man ensures relevant directions to understand the institutional relationship between time and national intelligentsia, which makes this approach promising on the understanding of this historical period, marked by the construction of a nation guided by the state during the constitutional and dictatorial Government of Getúlio Vargas. 8 “Ele trabalha em seu ministério - no duplo sentido da palavra - de forma quase obsessiva, implementando políticas que sem dúvida são inovadoras e que até certo ponto desafiam outros interesses políticos existentes no aparelho do Estado. A questão federativa é um ponto importante nessa reflexão, pois em vários artigos podemos perceber a manutenção discreta da resistência das representações estaduais ao “unitarismo” do ministro. Além disso a percepção da necessidade de diálogo com os intelectuais de vários tipos , tendo em vista a formulação e a execução de planos competentes e de largo alcance, é outro exemplo do processo de negociação que um Ministro e seu ministério como o de Capanema devem promover. (...)É aquela velha piada da “velocidade” política para se afastar de um local perigoso: “nem tão depressa que pareça medo, nem tão devagar que pareça provocação.” Simon Schwartzman, “Tempos de Capanema”, 1984, pp.10 9 INTRODUÇÃO A proposta desta pesquisa se configura em uma abordagem sobre as relações entre o Estado brasileiro contextualizado no período de 1934-1945 e os intelectuais da época, em especial, a intelligentsia nacional que se preocupava com os temas e rumos da educação e cultura nacional, permeadas pelo intelectual e político mineiro Gustavo Capanema. O contexto histórico nacional elucidado pela Era Vargas (1930-1945), especificamente o constitucional de 1934-1937 e ditatorial de 1937 a 1945, demarcou-se no âmbito educacional-cultural por diversas ações e iniciativas estatais que se encontravam pautadas em novas perspectivas que circundavam e transitavam desde as esferas sociais até as da política, na qual esta relação cultura-política em particular, serve como suporte reflexivo desta pesquisa. O intelectual mineiro, Gustavo Capanema, exerceu inúmeros cargos de grande relevância na esfera estatal durante a sua vida pública, tanto em nível estadual quanto federal, dentre os quais se evidenciam: secretário do interior de Minas Gerais (1930- 1933), interventor interino em Minas Gerais (1933), ministro da Educação (1934-1945), deputado federal (1946-59) participando ativamente na Assembleia Constituinte (1946), além de outros mandatos na legislatura federal (1961-1965) pelo PSD (Partido Social- Democrático) e como deputado novamente (1966-1971) e senador (1971-1979) ambos pela ARENA (Aliança Renovadora Nacional). Entretanto a pesquisa debruçou-se no período no qual Capanema esteve à frente do ministério da Educação e Saúde (1934-1945), no qual o contexto político brasileiro foi marcado pelas diversas iniciativas por parte do Estado no que tange a projetos em âmbito nacional, em especial nas áreas de Educação e Cultura, nas quais a figura do ministro Gustavo Capanema denotou-se de forma relevante, seja como agente do Estado, homem-público e político-conciliador, ou como intelectual que exercia o papel de articulador político numa atmosfera que era demarcada pelos calorosos embates ideológicos entre os diversos grupos intelectuais e seus diversos projetos para a modernização brasileira, em especial a intelligentsia nacional. 10 CAPÍTULO I – ESTADO, INTELECTUAIS E MODERNIZAÇÃO 1- Capanema: O eixo de uma rede de relações envolvendo o Estado e a Intelligentsia Nacional As análises realizadas por alguns estudos sobre o papel de Gustavo Capanema no período de 1934-1945 quando esteve à frente do Ministério da Educação e Saúde no Brasil apontam que suas iniciativas e ações poderiam nos levar a pensá-la como um ideólogo da cultura: “(...) a resposta é obviamente complicada. De um lado é difícil identificar uma trajetória intelectual desse mineiro como pensador social, como “homens de ideias”. Ele publicou poucos ensaios, manifestos, livros ou textos com reflexões de tipo ideológicas. Diferenciou-se muito dos chamados ideólogos do regime como Almir de Andrade, Azevedo Amaral, Oliveira Viana ou seu antigo mentor Francisco Campos, que deixaram longa literatura. Outro complicador para se analisar Capanema como ideólogo é que suas proposições ora se aproximam do corporativismo católico, ora do liberalismo reformado. Relacionou-se, além disso, com personalidades de esquerda e da direita, mantendo um corpo de interlocutores bastante heterogêneos. É muito difícil associar Capanema a uma só vertente de pensamento”. 1 Diante desta constatação a abordagem realizada neste trabalho se pautará por interpretações e estudos sobre o referido período estruturando-se em conceitos pertinentes a sociologia dos intelectuais, as propostas de reforma política - cultural e a formação do bloco histórico do pensador italiano Antonio Gramsci (GRAMSCI, 1978), gênese, função e atuação da intelligentsia (MANNHEIN, 2004) e (MARTINS, 1987), cooptação (MICELI, 1979), e a formação de um bloco histórico de intelectuais preocupados com um dos grandes temas do Brasil contemporâneo: a construção da nação. (LAHUERTA, 1999) 1 WILLIANS, D. : “Gustavo Capanema : Ministro da Cultura” IN: GOMES, A . C. (org):“Capanema: o Ministro e seu Ministério”. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getulio Vargas, 2000. pp. 261. 11 Destarte nos termos gramscianos, a possibilidade de realização de alguma reforma política e, consequentemente, da sociedade, perpassá-la reforma cultural, no que tange às formas de capacitar ou moldar as mentalidades dos indivíduos da sociedade para realizar qualquer mudança, como também pode servir para fundamentar formas de controle e perpetuação de ambientes e hierarquizações sociais. Pautando-se nesse aparato conceitual, é possível tecer uma interpretação deste singular momento da história nacional no qual se destaca a atuação do ministro Capanema como articulador político. A singularidade do momento e o papel de Capanema ganham mais visibilidade pela aproximação nas relações entre o Estado Nacional e a intelligentsia nacional. Cabe mencionar que a composição desta intelligentsia nacional, com a qual Capanema interagia politicamente no referido período, era demarcada pela heterogeneidade no que tange às ideologias e práticas políticas, evidenciando-se os grupos de intelectuais católicos, nos quais pontifica Alceu Amoroso Lima, a intelectualidade autoritária com nítidas influências fascistas, tão bem expressa por Francisco Campos e Azevedo Amaral, os modernistas, nos quais elucidavam as figuras de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, além dos denominados “educadores profissionais” como Fernando Azevedo e Anísio Teixeira. A partir de tal premissa, cabe elucidar que o conceito de intelligentsia empregado relaciona-se a seguinte afirmação: “[...] não existe relação necessária entre a condição de intelectual e a de ator político. Em outras palavras, esta última qualidade é o atributo de certo tipo de intelectuais, cuja emergência, enquanto sujeito coletivo, parece ligada a certas condições sociais, políticas e culturais.” 2 Tais condições sociais e políticas encontravam-se latentes no período histórico entre 1934-1945, mas a atuação do ministro Capanema como interlocutor dos projetos da intelligentsia nacional e a esfera estatal permitiu sua potencialização. O referido grupo de intelectuais consistiria na intelligentsia, ou seja, grupos de intelectuais que se caracterizam, e se distinguem de seus pares, por certo número de atributos, entre os quais o principal refere-se à natureza particular de suas relações com a política, ou seja, “[...] grupos, mais restritos de intelectuais que se fazem notar por 2 MARTINS, L. : “A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a política no Brasil –1920-1940” IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, São Paulo, p 65-87, 1987.pp.65. 12 sua capacidade de fornecer uma visão compreensiva do mundo, por sua criatividade e/ou por suas atividades direta ou indiretamente políticas”. 3 A intelligentsia se evidencia, portanto, por possuir uma visão de mundo não atrelada ao “status quo”, ou seja, desejosa de transformar a sociedade e a cultura vigente através de ações políticas articuladas, reivindicando a “liderança moral da nação”, isto é, atuando como uma elite dirigente, como aparece no seguinte trecho: “[...] praticamente em toda à parte, os membros das intelligentsias contestatórias vêm das classes superiores ou de camadas próximas delas, ou são cooptados por elas. Ademais o traço marcante nos membros de uma intelligentsia que se “desligam” dos privilégios de seu meio para clamar pela justiça social e transformação da sociedade, é a existência de algo que aparece como uma espécie de imperativo ético, que reveste o “sentido da missão” que as intelligentsias geralmente se atribuem.” 4 O “sentido de missão” atribuído à intelligentsia, no contexto nacional abordado, enquadrava-se no projeto político varguista, uma vez que a construção da nação- moderna era permeada e executada pelo Estado, assim tal construção configurava-se como a grande inquietação da intelligentsia nacional na época abordada. O processo de construção da nação brasileira a partir da Revolução de 1930 foi caracterizado pela “modernização autoritária” varguista (VIANNA, 1997) através de um processo dirigido pelo Estado autoritário e burocrático em vertiginosa expansão. A intelligentsia nacional participou ativamente dessa discussão, na qual alguns de seus membros forneceram as justificativas ideológicas para a implantação do Estado – Novo, casos de Francisco Campos, o principal ideólogo do novo regime, e Azevedo Amaral. Inserido neste contexto como “homem de estado”, o intelectual Gustavo Capanema construiu uma teia de relações com os mais diversos grupos de intelectuais do período, nas quais eram demarcadas pela pluralidade ideológica de seus componentes e pelo caráter da “pessoalidade” na elaboração das mesmas. Capanema demonstrava uma postura política que combinava de forma hábil e sutil, negociação e independência política no trato de assuntos públicos e nas suas relações com os mais heterogêneos grupos de intelectuais, destacando a intelligentsia nacional. 3 Idem, ibid. pp.66 4 MARTINS. L, ibid. pp. 67. 13 A natureza desta pluralidade era oriunda da postura singular do intelectual Capanema que transitava, dialogava, negociava e barganhava interesses e oportunidades com os mais distintos grupos de intelectuais da época, através de seus poderes como “homem de estado” de um regime, que a partir de 1937, era efetivamente autoritário com uma forte centralização administrativa. As relações da intelligentsia nacional com o Estado autoritário varguista permeadas pelo ministro Capanema como elemento conciliador destas esferas, evidenciavam: “[...] a despeito de seu apoio ao regime autoritário esse episódio demonstra que Capanema entendia que cultura, especialmente patrocinada pelo Estado, deveria ser um espaço de pluralismo, onde o debate e a multiplicidade de opiniões incentivassem o meio artístico, que precisava ser esclarecido e dinâmico. Veem-se aí a tensões existentes no pensamento do ministro, que preferia o pluralismo e a livre expressão nas artes, mas que em política acreditava na utilidade de uma direção estatal forte e centralizada” 5 Assim a gestão Capanema no ministério da Educação e Saúde (1934-1945) foi marcada pelo empenho na construção de uma rede de instituições federais voltadas para o seu projeto de elaboração da cultura nacional através da esfera estatal e suas iniciativas no campo educacional, ou seja, uma política cultural que deveria ser implantada em âmbito nacional por meio de um fortalecimento dos laços entre a cultura e as instituições federais. A partir da implantação do Estado-Novo em 1937 verifica-se uma tendência centralizadora da administração cultural através de inúmeros decretos e poderes controlados pela União, portanto, evidencia-se que a cultura nacional tornava-se um negócio oficial, administrado por um Estado autoritário em expansão. Capanema assumiu a responsabilidade da intervenção neste novo processo de administração cultural a partir de sua nomeação para comandar o ministério da Educação e Saúde Pública em 1934. Dessa forma, os órgãos estatais e áreas sociais primordiais para o projeto varguista de “modernização autoritária” não se enquadravam, especificamente nas áreas da Educação e Cultura, dado que revelavam certa autonomia administrativa na gestão Capanema neste setor, em virtude da confiança pessoal depositada pelo presidente em seu ministro (GOMES, 2000). Contudo, a “delicada” liberdade institucional e 5 WILLIANS. D. ibid. pp. 265 14 administrativa que o ministério Capanema possuía não colocava em xeque a sua relevância ideológica para o regime de Vargas e para seu projeto de modernização nacional. Entretanto tal autonomia foi bem explorada pelo ministro uma vez que não se ateve a questões e embates ideológicos, tão recorrentes à época, para elaborar sua teia de relações junto a vários grupos de intelectuais e suas inerentes distinções ideológicas, norteando seus passos e ações políticas em nome de um projeto maior: a formação da cultura nacional a partir do Estado: “(...) A gestão Capanema erigiu uma espécie de território livre, infenso às salvaguardas ideológicas do regime, valendo enquanto paradigma de um círculo de intelectuais subsidiados para a produção de uma cultura nacional.” 6 Portanto o grupo de intelectuais supracitados que compunham a intelligentsia nacional estabeleceu e propuseram projetos, ideias e ações na gestão Capanema que visavam à construção nacional através desta “reforma elitista” dirigida pelo Estado. Dessa forma muitos intelectuais e artistas prestaram diversos tipos de colaboração à política cultural do regime de Vargas empreendida por Capanema, prestando múltiplas formas de assessoria em assuntos de sua competência e interesse, como no caso dos artistas modernistas, que foram inseridos nos serviços e obras públicas devido as suas relações com a elite burocrática do regime de Vargas, destacando o papel do ministro Capanema: “(...) os escritores participantes do movimento modernista em São Paulo foram beneficiados pelo mecenato burguês exercido diretamente por famílias abastadas e cultas, ao passo, que os intelectuais cooptados para o serviço público acabavam se filiando às “panelas” comandadas pelos dirigentes da elite burocrática.” 7 Cabe salientar que o ministro Capanema denotava certo apreço pelo Modernismo, apesar do regime estado-novista não possuir uma arte oficial, tal movimento tornou-se um “estilo semi-oficial” de seu Ministério, razão pela qual se verificou a sobrevivência dos modernistas durante o Estado-Novo, apesar de ser um movimento de vanguarda artística e filosófica. Tal relação pode ser analisada com nuanças de proteção e financiamento: “[...] é difícil imaginar qual teria sido a trajetória do modernismo no Brasil se Capanema não houvesse atuado 6 MICELI, S. ibid.pp.161. 7 Idem. ibid. pp.16. 15 como mecenas, conferindo recursos políticos e financeiros e a legitimidade fundamentais para que os modernistas pudessem consolidar sua expressividade artística. No que tange à formação de um acervo de arte modernista a ser legado ao público, Capanema era Mecenas “par excellence”".8 Ou seja, as relações entre Capanema e os artistas modernistas eram demarcadas pelas afinidades que denotavam posturas e ações que mesclavam proteção e financiamento público das obras destes artistas, como na “obra-mestra” das referidas proposições: a construção do edifício-sede do ministério da Educação e Saúde inaugurado em 1945 e projetado por uma equipe comandada pelo arquiteto modernista Lucio Costa. O edifício deveria demonstrar, com sua monumentalidade arquitetônica, a própria razão de ser de um ministério inaugurado para “educar e curar o Brasil”, livrando-o de seus próprios males e propiciando-lhe um futuro promissor e moderno como projeto nacional. Destaca-se que tal obra representava um espelho do ministro Capanema, como homem público e privado, com suas qualidades e defeitos. Neste contexto nacional abordado na pesquisa evidenciava-se uma expansão dos aparelhos burocráticos do Estado através da criação de inúmeros conselhos, órgãos e ministérios vinculados diretamente a Vargas, em especial o Ministério da Educação e Saúde, no qual abarcava o maior número de funcionários civis. Assim, sendo o detentor do maior contingente de cargos de comissão em 1939, elucidava que tal distribuição constituía uma pista segura para desvendar os espaços de inserção para os intelectuais. Tal inserção ou “cooptação” dos intelectuais ocorria para que estes exercessem funções e cargos de “altos vencimentos”, espaços privilegiados do serviço público, entrosados com a estrutura patrimonialista de poder. Porém a única maneira de diferenciar os membros desta elite intelectual e burocrática consistia em privilegiar o perfil de seus investimentos na atividade intelectual em detrimento do conteúdo de suas obras tal como aparece reificada na história das ideias. Os intelectuais convocados para o trabalho de assessoria no interior de núcleos executivos, incluindo-se aí a maioria dos “cargos de confiança” (chefes e auxiliares de gabinete) tornaram-se “homens de confiança”, ou seja, o acesso repousava quase que inteiramente, nas provas de amizade e, por conseguinte, na preservação dos anéis de interesses de que eram os mais legítimos porta-vozes e os principais beneficiários, como 8 WILLIANS. D. ibid. pp. 266. 16 aparece no caso de Carlos Drummond de Andrade que exercia o cargo de chefe de gabinete de Capanema. Portanto tais relações envolvendo a intelligentsia nacional e o Estado são apontadas : “[...] perante a sua filiação ao regime autoritário que remunerava seus serviços, buscaram minimizar os favores da cooptação se lhes contrapondo uma produção intelectual fundada em álibis nacionalistas. Pelo que diziam o fato de serem servidores do Estado lhes concedia melhores condições para feitura de obras que tomassem o pulso da nação e cuja solidez se embebia dos anseios de expressão da coletividade e não das demandas feitas por qualquer grupo dirigente.” 9 Cabe salientar uma constatação que no referido período histórico à correspondência entre os intelectuais representava o espaço mais oportuno e palpável da sociabilidade entre os grupos intelectuais, uma espécie de “lócus político” de suas respectivas relações, portanto a correspondência de Capanema, tanto pessoal como oficial, representou um “lugar especial” para a construção de sua identidade de homem- público, sobretudo no que concerne ao diálogo com um grupo estratégico, os intelectuais, fundamental para o exercício das suas funções naquela pasta e para o reconhecimento de uma imagem que era, ao mesmo tempo, a de um político e de um intelectual: “[...] Capanema conseguiu produzir entre os intelectuais, mas não apenas entre eles, a imagem de um espaço distinto do restante do aparelho de Estado, este sim mais identificado com a opressão física e simbólica de um regime autoritário. O território de Capanema era (...) arejado em sua heterogeneidade e ousadia de ideias, era como o edifício que se inaugurava em 1945: surpreendentemente inovador no ambiente que o abrigava”. 10 Capanema possuía uma concepção ativa no que tange as atribuições e funções da Educação, a qual estaria a serviço da nação, sendo que fosse controlada e executada através do Estado. Nesse sentido, para se efetivar o projeto de “modernização conservadora”, seria necessário uma educação que :“[...] longe de ser neutra, deve 9 MICELI.S. ibid. pp.159. 10 GOMES, A. C.: “O ministro e sua correspondência : Projeto e Sociabilidade Intelectual”. In: GOMES, A.C .(org): “Capanema: o Ministro e seu Ministério”. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getulio Vargas, 2000. pp.14. 17 tomar partido, ou melhor, deve adotar uma filosofia e seguir uma tábua de valores, deve reger-se pelo sistema das diretrizes morais, políticas e econômicas, que formam a base ideológica da nação, e que, estão sob a guarda, o controle ou a defesa Estado” 11 Os ideais que orientavam o projeto varguista se articulavam entre as prioridades de formação de uma nova nação e de um novo homem relacionadas à necessidade de consolidar a unidade nacional e a partir da implantação do Estado-Novo centralizava-se a administração educacional-cultural através de inúmeros decretos e poderes controlados pela União, portanto demonstra que neste momento a cultura nacional tornava-se um negócio oficial, administrado por um Estado autoritário em expansão. Assim, Capanema assumiu pessoalmente a responsabilidade por sua intervenção neste novo processo de administração cultural desencadeado a partir do Estado, sendo este o eixo central das abordagens que serão realizadas a seguir. Ou seja, pretende-se fazer uma interpretação a cerca das razões e dos objetivos que nortearam as ações realizadas por Capanema junto aos grupos constituintes da intelligentsia nacional no interior do processo de construção da moderna nação brasileira. 11 HORTA, J.S.B. : “A I Conferência Nacional de Educação ou como monologar sobre educação na presença de educadores” In: GOMES, A . C. (org): “Capanema: o Ministro e seu Ministério”. Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getulio Vargas, 2000. pp.149. 18 2 - Gramsci : Os Intelectuais e a formação do Bloco Histórico Esta pesquisa utiliza-se de interpretações de conceitos elaborados pelo pensador Antônio Gramsci em sua vasta obra, tais como intelectuais, sua gênese e funções, a formação de um bloco histórico e as possíveis formas de realização de uma reforma político-cultural. Dessa forma torna-se imprescindível uma abordagem explicativa de tais conceitos elaborados por Gramsci no que tange a uma elucidação de como, os mesmos, foram articulados na pesquisa como elementos constituintes do referencial teórico empregado neste trabalho. Segundo o estudioso da obra gramsciana o francês Hugues Portelli, Gramsci afirma que colocar a problemática dos intelectuais é necessariamente colocar a questão do bloco histórico. Assim, Gramsci quando aborda o bloco histórico insiste no caráter orgânico do vínculo que une a estrutura e superestrutura, onde só caberia considerar as superestruturas historicamente orgânicas, isto é, necessárias a certa estrutura. É por esse caráter orgânico que se define qualquer intelectual no seio de determinado bloco histórico, isto é, Gramsci distingue diferentes categorias de intelectuais, mas todos têm em comum o vínculo mais ou menos estreito que os liga a uma determinada classe. O caráter orgânico desse vínculo entre estrutura e superestrutura reflete-se exatamente nas camadas de intelectuais cuja função é exercer esse vínculo orgânico: os intelectuais formam uma camada social diferenciada, ligada à estrutura e encarregada de elaborar e gerir a superestrutura que dará a essa classe homogeneidade e direção do bloco histórico. Essa camada social diferenciada é, para Gramsci, a dos “funcionários da superestrutura”, ou seja, os intelectuais. Portanto o caráter orgânico aparece na solidariedade estreita que vincula esses funcionários às classes que representam e, em primeiro lugar, à classe fundamental no plano econômico. Tal abordagem deve ser complementada por uma interpretação mais dinâmica no que tange as suas articulações, como a que é elucidada pela concepção de um sistema social que realiza a sua integração: 19 “Um sistema social só é integrado quando se edifica um sistema hegemônico, dirigido por uma classe fundamental que confia a gestão aos intelectuais: realiza- se aí um bloco histórico. O estudo desse conceito não pode, pois, ser isolado da hegemonia do bloco intelectual. Só esta concepção do bloco histórico permite captar em sua realidade social, a unidade orgânica de estrutura e superestrutura”. 12 Portanto, é no estudo do bloco histórico que Gramsci analisa como ocorre a desagregação da hegemonia da classe dirigente, possibilitando a edificação de um novo sistema hegemônico capitaneado pelos intelectuais, isto é, o surgimento de um novo bloco histórico. Dessa forma, cabe elucidar que as superestruturas do bloco histórico formam um conjunto complexo, em cujo seio Gramsci distingue duas esferas essenciais: a da sociedade política, que agrupa o aparelho do Estado e a da sociedade civil, isto é, a maior parte da superestrutura. Tal distinção tornar-se relevante para clarificar os campos de atuação dos intelectuais no seio do bloco histórico em relação a estas esferas que o compõe. No que tange a concepção gramsciana de sociedade política devemos destacar os poucos relatos de estudos mais sistemáticos do autor sobre o tema nos “Cadernos do Cárcere”, uma vez que a “tradição marxista clássica” dirigiu-se mais para uma análise do aparelho de Estado do que para a direção ideológica, cultural, da sociedade. Todavia, foi o próprio Gramsci, dentre os marxistas, que mais se dedicou a esta análise que opõe a sociedade política à sociedade civil. A distinção entre a sociedade civil e a política não é, na verdade, organicamente completa, já que a classe dominante utiliza e combina uma e outra, no exercício de sua hegemonia. Nestas relações que Gramsci estabelece entre sociedade civil-sociedade política, o pensador italiano nota os sinais de uma “possível” estatização da sociedade civil, uma vez que “essa estatização revela-se, igualmente, na absorção progressiva de cultura e educação, até então confiados a organismo privados – entre os quais a Igreja – em proveito de serviços públicos intelectuais”. 13 O caso mais emblemático é o da educação, onde por diversas razões Gramsci postula a necessidade de um controle da mesma pelo Estado a fim de incrementar o 12 PORTELLI, H.: “Gramsci e o bloco histórico”. Tradução: Angelina Peralva, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. pp. 15. 13 GRAMSCI, A: “Os Intelectuais e a Organização da Cultura”. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978. pp.124. 20 nível técnico-cultural da população e responder, assim, às exigências do desenvolvimento das forças produtivas demarcado pelo conflito entre os intelectuais tradicionais (particularmente os da Igreja), vestígios do bloco histórico, e os intelectuais da classe dominante, além da necessidade de unificar a ideologia difundida pelas organizações da sociedade civil. Cabe destacar que tal relação torna-se preciosa para a abordagem do objeto nesta pesquisa no que tange a atuação de Capanema como ministro de Estado, mais precisamente da Educação no Brasil, e suas iniciativas realizadas para administrar e controlar o ensino brasileiro no âmbito nacional a partir da esfera estatal, uma vez, que até aquele momento a educação se encontrava sob a tutela da Igreja e de várias instituições diretamente ligadas a ela. Portanto na análise gramsciana evidencia-se que os sinais da estatização desses serviços não mudam seu caráter, pois “esses elementos devem ser estudados como vínculos entre governantes e governados, como fator de hegemonia”. 14 Em face disso a unidade do Estado decorre de sua gestão por um grupo social que assegura a homogeneidade do bloco histórico: os intelectuais. Dessa forma, tal relação, Estado- intelectuais, é enunciada por Gramsci de forma simbiótica, pois assim, permite estabelecer reflexões e análise pertinentes sobre estas categorias e suas amplitudes como a construção da hegemonia de um bloco histórico, uma vez que tal grupo participa ativamente da elaboração da legitimidade social para as iniciativas oriundas do âmbito estatal. Portanto tal relação leva a avaliação de que a estrutura do Estado depende das características da atividade dos intelectuais, entendidos como “agentes” da classe dominante, para o exercício da direção política e cultural do bloco histórico, ou seja, a hegemonia. Deve-se destacar como se traduz concretamente o vínculo orgânico desta relação na obra gramsciana, sendo este assegurado pela camada social encarregada de gerir a superestrutura do bloco histórico, ou seja, os intelectuais: “Cada grupo social, surgido num terreno originário de uma função essencial do mundo da produção econômica, cria, ao mesmo tempo que a si próprio, uma 14 GRAMSCI, A: “Os Intelectuais e a Organização da Cultura”. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978. pp.124. 21 ou várias camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência de sua própria função , não somente no plano econômico , mas também no plano social e político.” 15 Assim o estudo da relação estrutura-superestrutura é essencial na análise de um período histórico determinado, já que permite delimitar o bloco histórico, na medida em que os intelectuais são os intermediários necessários entre os dois momentos do bloco histórico. 16 Essa articulação no campo do bloco histórico permite, pois distinguir metodologicamente duas esferas complexas: a estrutura socioeconômica e a superestrutura ideológica e política, cujo vínculo orgânico é assegurado por uma camada social diferenciada, os intelectuais, sendo relevante o papel dessa camada na análise dinâmica do bloco histórico, particularmente, no exercício da hegemonia. Diante disso, a hegemonia consiste não somente no grupo essencial que cria seus próprios intelectuais, mas também na absorção das outras camadas aliadas de intelectuais, que sendo subordinadas necessitam, também, da ruptura com os laços que as ligam ao bloco ideológico da classe dirigente. Enfim, a estratégia que deve ser adotada pelas classes que aspiram à formação de um novo bloco histórico e seus intelectuais, perpassa pela vinculação ao bloco histórico vigente visando à tomada do controle da sociedade civil e sociedade política, isto é, o Estado, para que assim possam construir um novo sistema hegemônico, ou seja, um novo bloco histórico. 15 PORTELLI, ibidem. pp.56. 16 “O aspecto essencial da noção de bloco histórico não reside tanto na distinção entre estrutura e superestrutura – Gramsci limitou-se a retomar a análise marxista-clássica – mas na natureza orgânica de suas relações: só devem ser consideradas as superestruturas historicamente necessárias à estrutura , isto é , que a tornam homogênea , que a organizam .Quanto à estrutura , ela não é imediatamente operante , mas constitui o instrumento da superestrutura . A análise da relação estrutura-superestrutura conduz praticamente à necessidade de não considerar essa relação como mecânica , mas ao contrário, de distinguir seu caráter orgânico.”In: PORTELLI, ibidem pp. 70. 22 3 - Mannheim: A gênese e atuação da Intelligentsia Este trabalho visa elaborar interpretações sobre a atuação da intelligentsia nacional no Brasil no contexto de construção da nação nas décadas de 1930-1940, ou seja, a construção do Brasil Moderno. Portanto diante de tal perspectiva, torna-se imprescindível realizar uma abordagem da obra do pensador alemão Karl Mannheim a partir de conceitos trabalhados pelo autor no que tange a gênese, atuação e papéis atribuídos à intelligentsia. Segundo Karl Mannheim em sua obra “Sociologia da Cultura” (2004) a sociedade moderna caracteriza-se por uma crescente autoconsciência, além de uma nova capacidade de determinar a natureza concreta dessa consciência, pois, vivemos num tempo de existência social consciente. Diante de tal afirmação, Mannheim postula que nem sempre a consciência social coincide com a ascendência dos grupos que constituem a sociedade, uma vez que a reação consciente a mudança social é um fenômeno moderno. Um trecho da obra intitulada “O Pensamento Conservador” (1981) do próprio Mannheim elucida tal concepção da autoconsciência relacionando-a com sua elaboração na sociedade moderna: “O desenvolvimento e a difusão generalizada do conservadorismo, diferenciado do mero tradicionalismo, é devido em última analise ao caráter dinâmico do mundo moderno; à base dessa dinâmica está na diferenciação social; ao fato dessa diferenciação social tender a conduzir o intelecto humano e forçá-lo a desenvolver segundo as suas próprias linhas, e finalmente, ao fato de que os objetivos básicos dos diferentes grupos sociais não só cristalizam ideias em movimentos de pensamento, mas também criam diferentes “Weltanschauungn” (visão de mundo) antagônicas e diferentes estilos de pensamento antagônico”. 17 17 MANNHEIM, K.: “O Pensamento Conservador”, In: MARTINS, J. S.: “Introdução crítica à sociologia rural”, São Paulo , Hucitec , 1981.pp.110. 23 Assim para o sociólogo alemão em questão, dois aspectos tornam possível a concepção dessa autoconsciência social. O primeiro se concebe a partir da sociedade contemporânea, uma vez que ela desenvolveu uma grande necessidade de controles para substituir o poder coercitivo enquanto garantia primordial de subordinação. 18 Desse modo, Mannheim ressalta que esta autoconsciência social torna-se mais ativa e fértil nas sociedades contemporâneas devido ao intenso processo de racionalização que produziu inúmeros conflitos e embates em relação à estrutura tradicional na qual estas sociedades estavam assentadas anteriormente. Enquanto o outro elemento configura-se pelo fato de que a sociedade contemporânea assumiu uma grande parcela do controle educacional e disciplinar, também pautados na racionalização, que antes era exercido pelos grupos primários e organizações comunitárias, como a Igreja Católica: “O segundo fator que favorece a consciência de grupo é a moderna prática de educar uma pessoa numa atmosfera socialmente neutra, cuja inexistência no tipo tradicional de educação inibia o surgimento de uma orientação grupal nova e independente.” 19 Dessa forma, Mannheim assinala que o surgimento da intelligentsia marca a última fase do crescimento da consciência social na modernidade, uma vez que, este grupo social foi o último a adotar o ponto de vista sociológico, pois sua posição na divisão social do trabalho não lhe propiciava acesso direto a nenhum segmento vital e ativo da sociedade, dificultando uma concepção de mundo que lhe proporcionasse esta síntese da autoconsciência social. Porém, diante de tais premissas cabe ressaltar que a definição de intelligentsia, segundo Mannheim, não é de modo algum atrelada necessariamente a uma classe como aparece na obra gramsciana, uma vez que, segundo o autor alemão, ela não pode formar um partido, sendo incapaz de realizar ações articuladas nesse sentido. Tais tentativas estariam fadadas ao fracasso, pois a ação política depende basicamente de interesses 18 “O efeito imediato desse novo estado de coisas é uma racionalidade crescente, primeiro no comportamento econômico, depois em situações derivadas e finalmente na conceituação dos próprios interesses. Nessas situações o homem aprende a orientar-se segundo seus próprios pontos de vista e abrir mão de ideologias tradicionais não pertinentes. Esse é o primeiro passo para a autoconsciência social. De inicio desenvolve-se individualmente assumindo um caráter coletivo quando indivíduos em posição análoga descobrem seus dominadores comuns e chegam à definição comum de seus papéis. As ideologias de grupos assim criadas pautam- se no desprezo os sentimentos tradicionais ligados ao sangue, laços regionais ou honra de casta”. In: MANNHEIM, K.: “Sociologia da Cultura”,tradução: Roberto Gambini, São Paulo: Perspectiva,2004.pp.76. 19 Idem, ibid.pp.76. 24 comuns, atributos necessários de que carece a intelligentsia mais do que qualquer outro grupo. 20 Sobre esta definição mannheimeana da intelligentsia e seu vínculo com as classes sociais, cabe destacar a passagem que tal grupo encontra-se “entre e não acima das classes” como algumas abordagens postulam e nas quais Mannheim as refuta de forma contundente, pois afirma que os intelectuais não constituem um estrato acima das classes sociais. Desse modo Mannheim denota os possíveis erros de interpretação que concebem seus pressupostos conceituais a cerca da intelligentsia, a partir de análises e visões que a colocam como um estrato acima das classes ou que possua revelações próprias. Diante de tal problemática para definir o conceito empregado de intelligentsia o pensador alemão estabelece interpretações e elucidações envolvendo a sua abordagem sobre o tema e as análises de aparato marxista. Refutando alguns pressupostos marxistas, Mannheim vai enunciando os atributos de seu conceito de intelligentsia: “O marxismo concebe classe tendo uma natureza macro-humana, e o individuo como mero instrumento de um Leviatã coletivo. Na visão marxista, a classe parece ser tão independente das percepções e reações do individuo como eram os universais da Idade Média. Uma vez conceituadas desse modo, as classes podem facilmente transformar-se em compartimentos verbais, e se diz que o individuo pertence a esta ou aquela classe. Apesar da doutrina não ser exposta desse modo, tal conclusão é inelutável para os que pensam em termos de classe ou não-classe.” 21 Dessa forma a sociologia marxista concebe as manifestações intelectuais apenas no contexto mais amplo dos grandes conflitos de classe, só se interessando pelos intelectuais enquanto “funcionários” ou “satélites” da mesma. Sem dúvida, na opinião do próprio Mannheim, os intelectuais são e, frequentemente, têm sido meros provedores de ideologias para certas classes. 20 “(...) é um agregado situado entre e não acima das classes. O membro individual da intelligentsia pode ter como frequentemente ocorre, uma orientação particular de classe, e em conflitos reais ele pode alinhar-se com um ou outro partido político. Mas ainda, suas posições podem revelar uma clara posição de classe. Mas além e acima dessas afiliações, ele é motivado pelo fato de que seu treinamento o equipou para encarar os problemas do momento a partir de várias perspectivas e não apenas de uma, com faz a maioria dos participantes de controvérsias.”.20 In: MANNHEIM, ibid. pp.81. 21 Idem.ibid.pp.85. 25 Porém, esta afirmação se embasa pelo fato do caráter mediatizado inerente aos intelectuais ser relegado a um plano secundário, uma vez que, os intelectuais exercem um papel de elos no processo de ideação e da dinâmica social. Cabe mencionar que a atuação da intelligentsia nesse sentido não depende somente de suas posições de classes, mas das relações com outros grupos de intelectuais. Tal aspecto é apenas um dentre uma variedade de funções ideacionais e ao menos que se considerem todas, o estudo do intelectual não terá maior interesse, pois: “Dessa perspectiva, não se consegue apreender um fenômeno tão evasivo e ambivalente como a intelligentsia, declarando irrelevantes as nuances distintas que delineiam e passando a identificá-la com alguma classe ou a considerá-la a reboque dessas ou aquela classe”. 22 Nesse sentido, cabe elucidar que, para Mannheim, o principal atributo comum dos intelectuais é seu contato, em graus diferenciados e diversos, com a cultura. Esta relação torna-se um suporte essencial para esclarecer como a intelligentsia realiza sua gênese e desenvolve suas ações na sociedade contemporânea: “O intelectual moderno que sucedeu ao escolástico não pretende reconciliar ou ignorar as visões potencias na ordem das coisas ao seu redor, mas procura identificar as tensões e participar das polaridades de sua sociedade. A mentalidade transformadora i do homem instruído, e a perspectiva fragmentária do intelectual contemporâneo não são a culminação do ceticismo crescente de uma fé em declínio ou a prova da incapacidade de criar uma Weltanschauung integrada, como pesarosamente sustentam alguns autores”. 23 Não obstante, o intelectual moderno possui uma disposição dinâmica e encontram-se perenemente preparado para rever suas opiniões e começar de novo, de forma particular, se comparado aos grupos intelectuais anteriores, pois ele tem “pouco atrás de si e tudo à sua frente”. Assim, para Mannheim, a formação da intelligentsia ocorre diante de um contexto caracterizado por transformações na dinâmica social pautadas em conflitos constituídos por grupos em processos de ascendência ou descendência, nos quais emerge a possibilidade para a constituição de ligações ou vínculos em relação às camadas de cima ou de baixo de tal processo adotando seus valores e, propiciando um 22 Idem.ibidem.pp.85. 23 Id. ibid. pp.92. 26 acesso a dois campos até então separados, que viabiliza a concepção de uma intelligentsia autêntica. 24 Todavia não é possível entender, realmente, um estilo de pensamento a não ser que possamos entender os grupos sociais que são os portadores dessa mudança. Essa relação entre um estilo de pensamento e seu portador social não é uma relação simples, contudo, pode ser demarcada de forma mais precisa a partir da compreensão das ações da intelligentsia. Diante destas novas oportunidades sociais que se apresentam para uma intelligentsia em gestação, a mesma vivencia uma situação na qual um estrato dominante se revela incapaz de desempenhar as funções de lideranças emergentes, abrindo espaço para a ascendência, desenvolvimento e consolidação de um novo grupo intelectual, que passará a exercer um papel de “mediador” das esferas da sociedade, não se restringindo a mera posição de classes, isto é, a elaboração de uma genuína intelligentsia: “Na ausência de condições para a cristalização de uma oposição articulada, o ressentimento torna-se dissimulado e sua expressão confinada ao individuo ou seu grupo primário imediato. Essa animosidade submersa resulta fútil e socialmente improdutiva. Entretanto , quando as circunstâncias permitem uma saída para a expressão coletiva do descontentamento , este se torna um estímulo construtivo e cria um clima propício á crítica social de que necessita, a longo prazo, uma sociedade dinâmica. Esta é a situação que faz progredir a autoconsciência e favorece o surgimento de uma intelligentsia.” 25 A emergência de uma intelligentsia, portanto, depende destas condições de transformações sociais pertinentes a uma determinada época para que, dessa maneira, se possa construir uma atmosfera na qual viabilize o florescimento desta autoconsciência, isto é, a formação de uma “visão de mundo síntese”, em termos mannheimeanos, a 24 “(...) a história do pensamento, desse ponto de vista, não é uma mera história das ideias , mas uma análise de diferentes estilos de pensamento enquanto crescem e se desenvolvem , fundem-se e desaparecem; e a chave para a compreensão das mudanças nas ideias deve ser encontrada nas circunstâncias sociais em mudança, principalmente no destino dos grupos ou classes sociais que são os “portadores” desses estilos de pensamento”.In: MANNHEIM, K.: “O Pensamento Conservador”, In: MARTINS, J. S.: “Introdução crítica à sociologia rural”, São Paulo , Hucitec , 1981.pp.78. 25 MANNHEIM,K.: Sociologia da cultura”,tradução: Roberto Gambini,São Paulo: Perspectiva, 2004.pp.116. 27 Weltanschauung. Ou seja, um dos principais atributos da intelligentsia é elaborar para a sociedade na qual seus membros atuam ativamente uma concepção de mundo “síntese” diante das particularidades, embates, consensos e inerentes controvérsias de uma realidade social. Tal concepção elaborada pelos membros da intelligentsia resultaria da capacidade destes intelectuais que a compõe de captar e sintetizar as concepções que se encontram dispersas e, muitas vezes, conflitantes no seio da sociedade. Tal postura seria imprescindível para uma formação e atuação da intelligentsia, uma vez que, na sociologia do conhecimento proposta e desenvolvida por Mannheim não se coloca em campos distintos a ação política das ideais, pois as ideias se concebem como instrumentos de ação indo ao encontro da relevância e do papel da intelligentsia neste sentido. 28 4- Os Anos 1930 e a Modernização Brasileira O tema da modernização brasileira, ou seja, a construção do Brasil Moderno a partir da estruturação da unificação nacional e o desenvolvimento da ordem capitalista na década de 1930 são tratados em extensa literatura como pertencendo a um caso nítido, porém específico, do processo denominado de “capitalismo tardio” ou “retardatário” 26 . No mesmo diapasão, vamos encontrar um conjunto de interpretações que defendem esse caminho a partir de conceitos como “via prussiana” e “revolução passiva”. Este último conceito também definido como uma “revolução sem revolução”, foi elaborado por Antonio Gramsci e tem sido empregado por autores, como Luiz Werneck Vianna, para definir o caso brasileiro. Tais categorias analíticas sobre a implantação da modernização capitalista no Brasil permitem uma elucidação dos aspectos singulares que demarcam este processo e clarificam o referido período em que se realizou na história brasileira, assim tornando-se imprescindível discorrer sobre suas particularidades e atores no que tange a contextualização histórica do objeto deste trabalho. O processo de modernização brasileira se enquadra segundo Luiz Werneck Vianna (1997) como sendo o lugar “por excelência” da “revolução passiva”, entendida essa como um processo implantado e desenvolvido de forma autoritária pela esfera estatal a partir da década de 1930, desencadeado pelo movimento político que realizou a Revolução de 1930. A modernização brasileira entendida como um caso de “revolução passiva” se norteia , entre outras abordagens, em obras de autores que se debruçaram longamente sobre a temática da construção do Brasil Moderno, tais como o Luiz Werneck Vianna e Marco Aurélio Nogueira que destacam, dentre outros fatores relevantes para a compreensão de tal momento, o papel exercido pelo Estado na construção nacional da ordem capitalista. O conceito de “revolução passiva” é empregado para tipificar os casos de modernização capitalista em países, como a Itália e o Brasil, que vivenciaram tal processo sem grandes rupturas revolucionárias ou transformações capitaneadas por uma 26 MELLO, J. M. C. “O Capitalismo Tardio: contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira”, São Paulo, Brasiliense,1986. 29 classe burguesa atuante e madura, que situada na esfera da sociedade civil pudesse liderar a implantação da ordem capitalista, tomando o controle do poder político, ou seja, o aparelho estatal. Tal categoria analítica oriunda da obra de Gramsci foi utilizada por muitos autores como recurso interpretativo para classificar as modernizações que seguiram “vias não clássicas”, como foi elucidado pelo próprio Gramsci para estudar o caso italiano ou, anteriormente, por Lênin para definir o processo alemão denominado “via prussiana”, isto é, para definir casos em que o papel exercido pelo Estado se configurou como eixo central do processo de modernização, além de ter sido o principal agente do desenvolvimento capitalista. Estes casos configuraram exemplos de revoluções burguesas pautadas na definição gramsciana de “revolução sem revolução”, como denota a elucidação de Maria Alice Rezende de Carvalho sobre a natureza do processo de modernização brasileira: “a natureza de nossa revolução burguesa, autocrática e alongada no tempo, em que o novo não cancela a antiga ordem social, sendo ao contrário, tributário de elites políticas reformadoras que deflagram um programa de transformações sob a cláusula restritiva do “conservar-mudando”, isto é, sob a condição que tais transformações venham a confirmar e atualizar o seu domínio.” 27 Esta categoria endossa um recurso interpretativo que se pauta nas análises dos casos retardatários de desenvolvimento capitalista, nos quais a implantação da ordem capitalista (industrial-burguesa) não se configurou pelo triunfo político da burguesia e muito menos por um processo de destruição revolucionária das estruturas atrasadas do Antigo Regime, caso emblemático das revoluções burguesas denominadas “clássicas”, destacadas pelo modelo francês desencadeado pelo processo revolucionário de 1789. No caso brasileiro, como enfatizam autores como Florestan Fernandes 28 e mais pontualmente o próprio Luiz Werneck Vianna, não ocorreu o triunfo político da burguesia durante a década de 1930, período que demarca a nossa modernização, como também não se verificou uma demolição das estruturas “atrasadas” de natureza feudal ou que pudessem ser enquadradas como exemplos de relações de poder inerentes ao Antigo Regime, uma vez que tais aspectos não se encontravam presentes na realidade brasileira que precedera o período da nossa modernização. 27 CARVALHO, M. A. R. , In : VIANNA, L. W. : “Revolução Passiva : Americanismo e Iberismo” , Rio de Janeiro, 7Revan, prefácio,1997. 28 FERNANDES, F. “A Revolução Burguesa no Brasil”, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975. 30 Portanto, a modernização brasileira se enquadraria como um processo de “revolução sem revolução” desencadeado e dirigido por um Estado corporativo erigido a partir da Revolução de 1930, repleto de ambiguidades e contradições na composição de suas forças políticas e nas expectativas que nutria quanto ao futuro do país e cuja natureza seria definida pelo par ruptura-continuidade. 29 Assim, a Revolução de 1930 no Brasil apesar de interpretada como uma mera readequação das oligarquias no âmbito do poder federal, a mesma prescinde de uma análise que a entenda como decorrente dos efeitos da crise econômica mundial, uma vez que a crise do capitalismo internacional no final da década de 1920 impulsionou tal mudança no âmbito do poder federal brasileiro, pois as oligarquias estaduais - tradicional, em especial a cafeeira, ligadas ao setor agroexportador brasileiro, esfera econômica mais afetada pelos efeitos da crise mundial, cedeu lugar a outras oligarquias regionais não atreladas diretamente ao setor exportador. Porém, tal processo desencadeou transformações significativas na realidade política e econômica brasileira como elucida Marco Aurélio Nogueira “aos poucos foi se configurando a imagem de uma nova forma de Estado. Embalado pela dinâmica da crise, o movimento revolucionário vitorioso desencadeia uma onda de entusiasmo modernizante e de renovação, fazendo com que a sociedade conheça uma fase de experimentação, instabilidade e efervescência.” 30 Dessa forma, tal processo transformador foi marcado pelo papel de “comandante” desempenhado pelo Estado brasileiro, sendo alavancado pela atuação estatal no período da década de 1930, em especial na época de vigência do governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945). A função exercida pelo Estado brasileiro em nossa modernização capitalista categorizada como um caso de “revolução passiva” é fundamental, pois “O preço do aparecimento do “novo” sempre foi à perda da sua radicalidade através de alguma acomodação do velho. [...]. Mas não chegará ao cerne da questão quem se esquecer de voltar os olhos para o Estado enquanto lugar 29 [ou seja, um processo de revolução passiva diferentemente de uma revolução popular contém dois momentos antagônicos e simultâneos, o da “restauração” (já que é uma reação à possibilidade efetiva e radical transformação “de baixo para cima”) e o de “renovação” (na medida em que muitas demandas populares são assimiladas e postas em prática pelas velhas camadas dominantes)]. COUTINHO, C. N. “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, IN: Presença, n°.8, Rio de Janeiro, Editora Caetés, Agosto 1986, pp.141-162. 30 NOGUEIRA, M. A. : “As Possibilidades da Política : Ideias para reforma democrática do Estado” , São Paulo, Paz e Terra, 1998.pp. 26. 31 dessa dialética. Pois no corpo do aparelho estatal brasileiro materializaram-se todos os traços e impasses do nosso movimento de modernização capitalista.” 31 Logo, cabe salientar que no período posterior a Revolução de 1930 ocorreu uma verdadeira inversão da lógica que vigorava no período de domínio das oligarquias na primeira fase republicana (1889-1930), no que diz respeito à valorização dos interesses locais, particulares e elementos regionais, marcada por um paulatino processo de centralização e unificação dos mecanismos estatais que estabeleceram um novo padrão estrutural de políticas e ações governamentais almejando a construção da nação a partir da intensificação do processo de modernização enfatizada pelo papel do Estado, com destaque para o período do Estado Novo. Segundo Vianna, tal processo se intensificaria no Estado Novo a partir da outorga da Constituição de 1937, que se justificava como um necessário ajustamento do país ao “espírito do tempo”, reivindicando uma identidade entre Estado e nação, atributo impensável para os liberais. Esta preocupação em constituir a nação brasileira de fato, isto é, a partir de uma integração nacional, preencheu os temas de várias camadas da intelligentsia brasileira à época, onde as raízes dessa temática se remontavam aos intelectuais do final do século XIX, como Tobias Barreto que afirmava “o que havia de organizado era o Estado, não a nação”. 32 Portanto a nova forma de Estado erigida no período pós-1930, buscava sobrepor-se a todos os interesses regionais e particulares, subordinando-os à vontade geral, à vontade da nação da qual seria a efetiva materialização. Contudo, seria com o Estado Novo de Getúlio Vargas que se configuraria o poder público como o lugar de operação de uma intelligentsia disposta a adequar o país ao “espírito do tempo”, por excelência, organizando as instituições que deveriam fazer avançar o moderno, o racional-legal, o desenvolvimento da infraestrutura material em oposição ao arbítrio que a sociedade brasileira era acometida nos tempos de dominação dos grupos e indivíduos particularistas, emblematizado no período de controle político das oligarquias regionais durante a Primeira República (1889-1930), constatação salientada na interpretação de Oliveira Vianna 33 em relação à época. 31 NOGUEIRA, M. A. ibidem. 32 Idem, ibidem. pp.23. 33 Ver, VIANNA, O. “Instituições Política Brasileiras”, Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987. 32 Neste processo de “revolução passiva” vivenciado no Brasil, emerge o papel tutelar do Estado, onde a vigência do Estado-Novo varguista representou, de forma particular, a politização da produção cultural com destaque para as dimensões dos projetos e ações da intelectualidade nacional no período que visavam participar ativamente da construção da nação, como afirma Milton Lahuerta “(...) o Estado-Novo politizou a produção cultural como jamais ocorrera na história do país. Esses elementos combinados trouxeram a cena uma identidade intelectual que se define na conjunção de uma trilogia (nação – povo - moderno são intercambiáveis) que se desdobra num verdadeiro culto ao Estado como agente e meio de se realizar e dar existência a esses absolutos.” 34 Dessa forma, a centralidade que o Estado no Brasil assumiu na realização da modernização nacional nos anos 1930 suscitava a relevância da atuação da intelligentsia nacional neste processo como atores imprescindíveis, pois, enfatizando a dimensão estatal como arauto da modernidade e clamando para si a liderança da marcha modernizadora, acabou por atribuir aos intelectuais uma função vital na construção da nova ordem nacional. Cabe lembrar que este contexto histórico brasileiro conceitualizado como um típico caso de “revolução passiva” evidenciava de forma proeminente a relação Estado- intelectuais onde a mesma poderia ser enquadrada conforme Gramsci numa situação em que “então a classe portadora das novas ideias é a dos intelectuais e a concepção de Estado muda de aspecto. O Estado é concebido como uma coisa em si, como um absoluto racional” 35 . Ou seja, configuraria um ambiente no qual a modernização seria comandada pelo aparelho estatal onde a atuação dos intelectuais seria incontestável e inerente a ela, como é reiterado por Luiz Werneck Vianna: “A revolução passiva seria o contexto do protagonismo político-social dos intelectuais”. 36 Assim o Estado-Novo abriu canais para que os grupos intelectuais se inserissem na esfera estatal, como sendo uma forma de participação ativa da elaboração da modernização brasileira pautada na preocupação de se realizar a integração nacional no campo político-cultural. Esta unidade nacional tão almejada na época seria concebida a partir da criação de instituições, via poder estatal, adaptadas a realidade brasileira que permitissem elevar o povo brasileiro a uma condição política civilizada. 34 LAHUERTA, M.“Elitismo, Autonomia , Populismo: Os Intelectuais na Transição dos Anos 40” Dissertação (Mestrado em Ciência Política), UNICAMP, 1992, pp.26. 35 Apud VIANNA, pp.82,1997. 36 Ibidem, pp.83. 33 No âmbito das relações política e cultura na modernização brasileira, emergia o papel fundamental dos intelectuais como agentes indispensáveis para tal processo, como afirma Pécaut:“Organizar a nação, esta é a tarefa urgente, uma tarefa que cabe às elites. Dela os intelectuais tem ainda mais motivos para participar na medida em que constitui um fato indissoluvelmente cultural e político: forjar um povo também é traçar uma cultura capaz de assegurar a sua unidade”. 37 Esta relação Estado-intelectuais durante o Estado-Novo é interpretada por alguns autores como Sergio Miceli, como sendo demarcada por um processo de “cooptação” 38 . Contudo, tratava-se da constituição de um novo bloco de poder no âmbito estatal que buscava consenso entre os grupos que compunham a intelligentsia nacional em nome de uma causa maior, a construção da nação moderna brasileira, onde os intelectuais realizariam funções imprescindíveis na fusão entre a modernidade e o projeto nacional. 39 Portanto, torna-se pertinente a interpretação sobre a natureza da construção desta relação que envolvia a esfera estatal e a intelectualidade brasileira durante os anos 1930- 1940, uma vez que almejando a elaboração de um novo campo educacional-cultural foi nitidamente marcada pelos embates políticos circundados pelos intelectuais que, de certa forma, disputavam a hegemonia neste processo matizado pelos temas da constituição da nação por meio da politização da cultura onde, segundo Lahuerta, era atribuída a intelectualidade uma missão de conscientizar. Destarte, o ministério da Educação e Saúde controlado por Gustavo Capanema no período entre 1934-1945 configurava-se como um espaço de peculiar e relevante mediação entre o Estado brasileiro e os grupos que compunham a intelligentsia nacional, sendo estes portadores da preocupação de participar como atores da construção da nação moderna brasileira. 37 PÉCAUT, D. : “Os intelectuais e a política no Brasil : entre o povo e nação”. São Paulo , Editora Ática , 1990.pp.15. 38 Sobre esta abordagem ver, MICELI, S. “Os Intelectuais e a Classe Dirigente no Brasil (1920-1945)”. São Paulo, Editora DIFEL, 1979. 39 LAHUERTA, M., op.cit., pp. 6. 34 5- Estado e Intelectuais no Brasil nos anos 1930-1940: cooptação ou a formação de um novo bloco histórico? Um ponto de destaque na literatura que aborda as relações estabelecidas entre os intelectuais e as esferas de poder é o tema da “cooptação” 40 , configurada esta como um artifício utilizado pelos membros pertencentes aos círculos de poder do aparelho estatal para atrair os intelectuais, subordinando-os aos seus interesses. Contudo, tais leituras relegam a um plano secundário os recursos que os intelectuais dispunham a época abordada, que por muitas vezes, acabam por levar as autoridades governamentais a se aproximarem de tais membros solicitando “cooperação” para a realização de projetos maiores, como no caso específico do presente trabalho a construção da nação moderna brasileira. De imediato podemos mencionar que a referida questão, as relações intelectuais- política-Estado, foi tratada em extensa literatura, porém não podemos afirmar que haja um consenso sobre a natureza de tal relação, uma vez que importantes autores elaboraram interpretações pertinentes, porém díspares a cerca do tema. Portanto problematizar tal questão a partir de algumas destas relevantes abordagens é fundamental para o embasamento teórico deste trabalho ao abordar as relações entre os intelectuais e o Estado no Brasil nos anos 1930-1940. Assim podemos afirmar que tais abordagens são extremamente polêmicas ao tratar tal relação, como afirma Noberto Bobbio, ao mencionar que se o intelectual “se o homem de cultura participa da luta política com tanta intensidade que acaba por se colocar a serviço desta ou aquela ideologia, diz-se que ele trai sua missão de clérigo (...). Mas se, de outro parte o homem de cultura, põe-se acima do combate [al di sopro della mischia] para não trair e se “desinteressar das paixões da cidade” , diz-se que faz obra estéril , inútil , professoral.” 41 A primeira afirmação do pensador italiano se embasa na análise realizada anteriormente na obra “A Traição dos Clérigos” de Julien Benda 42 que problematizou as relações entre política, arte e cultura, elaborando um ponto central em sua 40 Ver MICELI, S. : “Os Intelectuais e a Classe Dirigente no Brasil (1920-1945)”. São Paulo, Editora DIFEL, 1979. 41 BOBBIO, N.:“Os Intelectuais e o Poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea”, tradução: Marco Aurélio Nogueira, São Paulo, Editora UNESP, 1997.pp.21-22. 42 BENDA, J.: “The Treason of the Intellectuals”,translate by Richard Aldington, primeira publicação em 1928. 35 interpretação: o intelectual deve se isentar de compromissos e engajamentos políticos, permanecendo fiel ao pensamento “universal” e “independente” que é o grande arauto. Tal leitura se pauta na análise sobre as consequentes implicações éticas e morais de uma aproximação demasiada entre pensamento e política, pois para Benda tal vinculação se configuraria como uma espécie de traição dos intelectuais em relação a sua posição na sociedade, isto é, uma imprescindível autonomia de pensamento para tratar das grandes questões que tomam a realidade. Dessa forma como afirma André Botelho no texto “Poder Ideológico e Estado Nação” 43 , as relações entre os intelectuais com a política em geral e o Estado no Brasil são extremamente polêmicas, pois resvalam nesta problemática apontada por Benda, contudo outros autores abordaram o tema de forma distinta, portanto cabe neste caso discorrer sobre tais abordagens realizando uma interpretação mais concisa sobre tal questão. Assim para este fim supracitado, as relações entre os intelectuais modernistas e o Estado no Brasil nos permite pensá-las como paradigmáticas em relação à problemática levantada, dessa forma as trataremos como o mote de tais reflexões sobre a referida questão. Segundo Botelho: “as relações entre os intelectuais modernistas nos anos 1920 com a política e, sobretudo, o sentido das suas relações com o Estado após a Revolução de 1930 e durante o período que lhe segue, o chamado Estado-Novo (1937-1945) constituem objeto de controvérsias que parecem mesmo longe de qualquer consenso no âmbito das ciências sociais”. 44 Para o autor duas questões emanam como sendo polarizadoras para a reflexão acima proposta e, portanto, as mesmas norteiam o debate: a primeira diz respeito ao “ethos” de missão cultivada por intelectuais de diferentes orientações ideológicas, como se fossem portadores especiais dos interesses gerais da sociedade e seus mediadores junto ao Estado. Enquanto a segunda refere-se às afinidades entre o empenho dos modernistas na renovação cultural brasileira e o lugar estratégico que a própria ideia de “cultura nacional” passava a assumir no projeto centralizador do Estado autoritário e corporativo que então se implantava. 43 BOTELHO, A.: “Poder Ideológico e Estado Nação”. In: “O Brasil e os dias: Estado-Nação, Modernismo e Rotina Intelectual”. Bauru, EDUSC, 2005. pp.43-77. 44 BOTELHO, A., ibidem. pp. 44. 36 Destarte surge destas inquietações a grande questão para o mote deste trabalho: se houve ou não “cooptação” dos intelectuais por parte do Estado varguista no referido período histórico no Brasil. As controvérsias em torno da questão podem ser evocadas de duas maneiras, segundo os referenciais teóricos que abordaram tal problemática: “cooptação” ou engajamento político. A primeira desenvolvida por Sérgio Miceli 45 postula que houve uma indelével “cooptação” dos intelectuais por parte do governo varguista, pois elabora uma abordagem que confere um sentido que é exatamente a crítica à prolixa representação da missão dos intelectuais brasileiros. Centrando sua abordagem nas relações entre origens sociais e posições nas estruturas de poder no âmbito do Estado, Miceli questiona fortemente a tese de desvinculação social dos intelectuais demonstrando a lógica das regras e das estratégias cotidianas de inserção e de viabilização das carreiras dentro dos marcos institucionais dominantes na sociedade brasileira do período:“[...] os escritores participantes do movimento modernista em São Paulo foram beneficiados pelo mecenato burguês exercido diretamente por famílias abastadas e cultas, ao passo, que os intelectuais cooptados para o serviço público acabavam se filiando às “panelas” comandadas pelos dirigentes da elite burocrática.” 46 Todavia, o contexto nacional abordado na pesquisa evidenciava uma expansão dos aparelhos burocráticos do Estado através da criação de inúmeros conselhos, órgãos e ministérios vinculados diretamente a Vargas, em especial o Ministério da Educação e Saúde, no qual abarcava o maior número de funcionários civis. Assim, sendo o detentor do maior contingente de cargos de comissão em 1939, elucidava que tal distribuição constituía uma pista segura para desvendar os espaços de inserção para os intelectuais. Tal inserção ou “cooptação” dos intelectuais ocorria para que estes exercessem funções e cargos de “altos vencimentos”, espaços privilegiados do serviço público, entrosados com a estrutura patrimonialista de poder. Os intelectuais convocados para o trabalho de assessoria no interior de núcleos executivos, incluindo-se aí a maioria dos “cargos de confiança” (chefes e auxiliares de gabinete) tornaram-se “homens de confiança”, ou seja, o acesso repousava quase que inteiramente, nas provas de amizade e, por conseguinte, na preservação dos anéis de 45 MICELI, S. : “Os Intelectuais e a Classe Dirigente no Brasil (1920-1945)”. São Paulo, Editora DIFEL, 1979. 46 Idem,Ibidem,pp.16. 37 interesses de que eram os mais legítimos porta-vozes e os principais beneficiários, como aparece no caso de Carlos Drummond de Andrade que exercia o cargo de chefe de gabinete de Capanema. Assim a natureza de tais relações envolvendo a intelligentsia nacional e o Estado brasileiro no período eram apontadas por Miceli: “[...] perante a sua filiação ao regime autoritário que remunerava seus serviços, buscaram minimizar os favores da cooptação se lhes contrapondo uma produção intelectual fundada em álibis nacionalistas. Pelo que diziam o fato de serem servidores do Estado lhes concedia melhores condições para feitura de obras que tomassem o pulso da nação e cuja solidez se embebia dos anseios de expressão da coletividade e não das demandas feitas por qualquer grupo dirigente.” 47 Já o brasilianista Daniel Pécaut 48 considerou ambígua a “noção de interesses” presentes nos trabalhos de Miceli como explicativa das estratégias dos intelectuais dos intelectuais dos anos 1930-1940 em suas recorrentes relações como o Estado, uma vez que enxergava nas relações dos intelectuais com o Estado não a promoção dos seus interesses próprios, mas a expressão da sua “conversão” à ação política, recuperando para tanto o modo pelo qual esses atores sociais interpretaram suas próprias vicissitudes nos termos de “missão” de que se sentiam investidos. Assim para Pécaut 49 , os intelectuais se investiam de uma urgente participação no processo de modernização que transcorria na realidade brasileira a época, isto é, muitos intelectuais colocavam-se perante a sociedade, em posição homóloga ao Estado, constatando que a recíproca era verdadeira, pois, o Estado, apresentava-se como responsável pela identidade cultural brasileira, desejava realizar a unidade orgânica da nação e recorria aos intelectuais para alcançá-la . 47 MICELI,S. ibid.pp.159. 48 PÉCAUT, D. : “Os intelectuais e a política no Brasil : entre o povo e nação”. São Paulo, Editora Ática 1990. 49 “(...) no espaço de uma década uma nova geração de intelectuais não só descobriu e tornou pública a sua vocação nacional, mas ainda divisou o lugar que, naquele momento, poderia ocupar dentro da nação. Nesses escritos sobre o presente e o futuro do Brasil encontra-se, de fato, a questão permanente dos próprios intelectuais, sua posição e sua função. Neles reaparecem sem cessar termos “intelectuais”, “intelectualidade”, “inteligência” ou intelligentsia. Aliás, a mesma palavra “inteligência” em português nem sempre se distingue de intelligentsia, mas está fora de dúvida que os que a utilizam consideram-se pertencentes a uma categoria social específica e que esta categoria é antes de tudo, uma elite dirigente”. PÉCAUT, D.,Ibidem, pp.29. 38 Já a segunda controvérsia em torno da “cooptação” ou não dos intelectuais modernistas dos anos 1920 pelo Estado Novo pode se evocada por autores como Luciano Martins, Milton Lahuerta e André Botelho. Luciano Martins 50 elucida que as referidas relações devem atentar para o processo social mais amplo no qual aqueles atores sociais se inseriam, para entender tanto as motivações e dilemas da sua pretensão de se tornarem protagonistas da história quanto as suas relações ambivalentes com o Estado. Nesse sentido, sugere que embora já se esboçasse um “processo de constituição de uma sociedade civil”, no período ao privilegiar não a formulação de uma “teoria da sociedade”, mas a busca da sua própria “identidade social”, a “intelligentsia” brasileira em gênese nos anos 1920 permaneceu de modo ambíguo na articulação entre aquele processo e o processo de expansão do papel do Estado, todavia, a ponte que ela procura, entre a modernidade e a modernização,“a conduz ao Estado”. E segundo Martins, ao final, a interrupção do processo de formação de uma sociedade civil,“tornada clara pela implantação do Estado Novo e pelas estruturas neo-corporativistas que ele se esforça por instituir” criou o próprio “isolamento” da intelligentsia sem lhe permitir , contundo , converter esse isolamento em “autonomia” face ao Estado. Já para Milton Lahuerta, embora considerasse que os sentidos políticos assumidos pela combinação entre o empenho da renovação cultural e da reorganização social e política fossem variáveis, sugeria por sua vez, que a própria “exigência da renovação”, que nos anos 1920 se traduzira por uma genérica demanda de unificação nacional, que se combinaria com uma não menos genérica expectativa de modernização acabaria sendo paulatinamente canalizada para o Estado, até se explicitar como cultura política estado-novista na forma de um corporativismo bifronte, isto é, “em parte estatista - ao trazer para o interior do Estado os conflitos próprios da sociedade civil – em parte privatista – ao tornar determinados espaços de divisão do Estado objeto de acirrada disputa dos interesses privados.” 51 Por isso, considera que a relação entre os intelectuais-Estado não se deu exatamente em termos de “cooptação” como sugere Miceli, pois entende que a Revolução de 1930 teria inaugurado um processo de “revolução passiva” ou de 50 MARTINS, L. : “A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a política no Brasil –1920-1940” In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, São Paulo, p 65-87, 1987. 51 LAHUERTA,M.: “Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização”,In: DE LORENZO, H.C.& COSTA, W.P. (org): “A década de 1920 e as origens do Brasil moderno”, São Paulo, Fundação Editora UNESP, 1997.pp.105. 39 “revolução-restauração” 52 , no âmbito do qual a “exigência de renovação da sociedade” tornava-se sinônimo de aparelhamento e centralização do Estado.” 53 Trata-se, portanto, segundo Lahuerta, de um processo de “constituição de um novo bloco de poder com uma simultânea perspectiva autoritária e modernizadora, que busca consenso entre a intelectualidade chamando-a para participar do processo realizando a fusão da modernidade e projeto nacional”. 54 Isto é, para Lahuerta consistia na formação de um novo bloco histórico, segundo os termos gramscianos, que protagonizaria o comando da modernização brasileira a partir do aparelho estatal, onde a atuação dos membros da intelligentsia nacional, e seus inerentes e diversos grupos, nesse processo eram fundamentais para constituir a vinculação da política e cultura como artifício imprescindível para a materialização do projeto varguista em curso do qual faziam parte, ou seja, a construção da moderna nação brasileira. Diante deste conjunto de análise sobre a controversa relação envolvendo intelectuais-Estado no Brasil André Botelho propõe uma perspectiva teórica nova em relação a essas duas problemáticas apresentadas: a construção do Estado-Nação. Tal abordagem não de trata de confundir Estado e política ou mesmo de confinar a política à estrutura institucional do Estado-Nação, segundo Botelho, trata-se, antes, de enfatizar o inter-relacionamento entre as instituições políticas e aos valores culturais que define, no plano sociológico mais amplo, o referido processo histórico. Assim, procurou fortalecer o reconhecimento de que a cultura política relaciona- se de modo complexo, e também contingente, na sociedade moderna, com a própria simbiose histórica entre Estado e Nação. Seu argumento teórico fundamental consistia em afirmar o sentido sociológico da participação dos intelectuais no processo de construção do moderno Estado-Nação, constatado pela afirmação da “cultura” como base da adequação entre a “solidariedade social” e “autoridade pública” em que se baseia permanentemente aquele processo histórico. Botelho parte da clássica formulação de Max Weber sobre o moderno Estado- Nação, enquanto processo histórico de articulação da “Nação” – como forma de solidariedade pertencente à esfera dos valores – ao poder do “Estado”, nesse caso, da 52 VIANNA, L. W. : “A Revolução Passiva: Iberismo e Americanismo no Brasil”. Rio de Janeiro, Revan, 1997. 53 LAHUERTA, M: Ibidem, pp.104. 54 Idem, ibidem,pp.106. 40 ligação dos indivíduos como membros de uma “comunidade política” estabelecida através de um conjunto de crenças e práticas compartilhadas que formariam a cultura pública daquela comunidade política. O monopólio do uso legítimo da força física em um dado território, enquanto característica distintiva de um Estado, só obteria a aceitação de seus cidadãos quando eles se sentiam ligados um propósito comum, como a nação. E associado a isso, Botelho lembra que o próprio termo da “legitimidade” introduzido por Max Weber para “qualificar o monopólio sobre os meios de violência”, traz à tona os “aspectos que pertencem ao âmbito da nação”, já que a legitimidade envolve obediência motivada que se traduz em aceitação e compromisso. Isto quer dizer que, como “autoridade” e “solidariedade” comportam relações bastante variáveis historicamente de sociedade a sociedade, mas ainda não recorrentes no que diz respeito à legitimação envolvida no exercício da autoridade pública e suas complexas relações com a estrutura social, deve-se assinalar no processo de construção do Estado-Nação. Segundo Botelho, Weber enfatiza o papel desempenhado pela cultura para o cumprimento da necessária “reconciliação ideológica entre a dominação burocrática e solidariedade social”. Isso pode ser entendido, nas palavras do próprio Weber, como um “grupo de homens que em virtude de sua peculariedade, tem acesso especial a certas realizações consideradas como valores culturais e que, portanto usurpa à liderança de uma comunidade cultural, os intelectuais constituem os portadores sociais e os difusores por excelência da ideia de “nação”, assim como os burocratas o são a ideia de Estado”. 55 O tema do exercício do “poder ideológico” por parte dos intelectuais nos processos de construção nacional evidencia-se, contudo, de modo particularmente dramático nos países que seguiram “vias não clássicas” para a modernidade ou casos de “revolução passiva”, cujo eixo institucional e político é justamente o Estado-Nação, como foi o caso brasileiro. Assim, como constata Bendix 56 , os intelectuais e ideias impõem-se de modo especialmente significativo no caso das sociedades “seguidoras” condenadas a buscar redimir seu “atraso” em relação às sociedades avançadas na estrutura moderna: 55 WEBER, M. : A ciência como vocação. In: Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p. 154-83. 56 BENDIX, R. : Construção nacional e cidadania. São Paulo: EDUSP, 1996. 41 “É tão típico de países atrasados (...) a intelligentsia desenvolver uma intensa busca de uma saída do atraso de seu país e nela se engajar”, quanto uma “parte típica dessa busca consiste no trabalho ambivalente de preservar ou fortalecer o caráter indígena da cultura nativa e tentar ao mesmo tempo preencher a lacuna criada pelo desenvolvimento avançado “da sociedade ou das sociedades de referência”. 57 Portanto os intelectuais não permanecem como testemunhas estranhas do desenvolvimento levado adiante pelos outros, eles tendem a se transformarem em líderes do impulso para a modernização e construção nacional. Neste caso fica evidente a intrínseca e inexorável relevância da sociologia política para pensar as relações entre os intelectuais e o Estado no interior do processo de modernização, ou seja, da construção das nações modernas. Assim diante de todas as abordagens interpretativas que se debruçaram sobre o tema polêmico das relações entre os intelectuais e o Estado no Brasil nas décadas de 1930-1940, as que questionaram o conceito de “cooptação” foram mais embasadas para o entendimento do objeto deste trabalho, pois postularam a existência de um contexto político e cultural que pleiteava e permitia uma ativa participação dos grupos intelectuais no processo de construção da moderna nação brasileira perpetrado pelo aparelho estatal do governo varguista. Dessa forma enfatizou-se a esfera ministerial comandada por Gustavo Capanema no interior de tal processo, uma vez que sua pasta ministerial materializou-se como o espaço de inserção e atuação de vários grupos da intelligentsia nacional que se interessava em contribuir ativamente, em suas respectivas áreas de atuação, na formação da moderna nação brasileira por meio das iniciativas, medidas e projetos que emanavam do poder decisório do ministério Capanema. Portanto as disputas por cargos e execução de projetos no campo educacional e cultural por meio de instituições e iniciativas no Brasil à época, que transcorreram no interior da gestão ministerial de Capanema configuraram-se como lutas dos grupos da intelligentsia nacional por hegemonia junto ao Estado, ou seja, disputas que se dirigiam para a formação de um novo bloco histórico no âmbito do aparelho estatal, onde protagonizariam as transformações substancias da sociedade brasileira em nome da modernização nacional. 57 BENDIX,R.: ibidem.,pp.53. 42 6- O Ministério Capanema : Lócus estratégico das disputas entre os membros da intelligentsia nacional Em 3 de outubro de 1945 ocorreu a inauguração do edifício que passaria a ser a sede do Ministério da Educação e Saúde comandado por Gustavo Capanema, e que deveria representar por sua monumentalidade arquitetônica , a própria razão de ser de um ministério criado para “educar e curar” o Brasil, livrando-o de seus grandes males e propiciando-lhe um futuro promissor e moderno. Segundo Lucio Costa que comandou a equipe de arquitetos que projetou a obra, ela seria uma espécie de espelho do ministro como homem público e privado, simbolizando suas qualidades e defeitos. Reiterando tal abordagem sobre a relevância de Capanema e suas iniciativas naquele momento particular da história brasileira a pesquisadora Ângela de Castro Gomes elucidou o seu papel, atribuindo-lhe uma “centralidade indiscutível para a compreensão do mundo intelectual brasileiro dos anos 1930-1940.”: “Constatação trivial e há muito realizada pela literatura especializada no período e no tema. Contudo, a despeito do reconhecimento compartilhado no que diz respeito ao impacto produzido pelo ministério e pelo ministro, nesse “pequeno mundo intelectual”, são ainda poucos os trabalhos que propõe investigar as razões e formas que tornaram possível a construção de um “lugar” tão especial no campo do poder do pós-1930. Ou seja, que procurem investigar como a política cultural gerenciada por Capanema conseguiu produzir entre os intelectuais, mas não apenas entre eles, a imagem de um espaço distinto do restante do aparelho de Estado, este sim muito mais identificado com a opressão física e simbólica de um regime autoritário. O território de Capanema, segundo seus contemporâneos e também muitos de seus analistas, era arejado em sua heterogeneidade e ousadia de ideias. Era como o edifício que se inaugurava em 1945: surpreendentemente inovador no ambiente que o abrigava.” 58 Neste artigo, Ângela de Castro Gomes procurou examinar a correspondência privada do ministro Gustavo Capanema, entendendo-a como um “lugar de 58 GOMES, A.C., “O ministro e sua correspondência : projeto político e intelectual”, pp.14 , IN: GOMES, A.C. (org), ”Capanema: o ministro e seu ministério”, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000. 43 sociabilidade” para a intelectualidade brasileira dos anos 1930-1940. O objetivo segundo a autora era analisar as relações tecidas entre Capanema e os diversos grupos intelectuais, procurando investigar um processo de construção identitária que abarcasse o próprio ministro Capanema, o papel de um ministério “revolucionário” e o lugar da comunidade intelectual diante de ambos. Nesse sentido a hipótese levantada por Ângela de Castro Gomes consistia na ideia de que na escrita privada dos intelectuais haveria indícios para se pensar tais relações, iluminando-se a atuação do ministro como homem público e pessoa privada, como político e intelectual. A correspondência de Capanema seria, portanto, um meio privilegiado para se entender como foi possível articular um “lócus” político tão importante para um regime ditatorial como o Estado Novo, com um número tão significativo de intelectuais que, ainda que efetivamente cobrissem espectros ideológicos muito diferenciados e até antagônicos, acabaram atuando sob à orientação política dominante. Cabe notar que estas correspondências pessoais de Capanema encontram-se no “Arquivo Gustavo Capanema” do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro. Tal arquivo possui, quantativamente, mais de 200.000 documentos que abrangem o período que vai de 1914 a 1982, cobrem boa parte da vida de Capanema. O próprio ministro “doou” tais elementos que compõem o acervo sobre sua vida. Comparativamente, 90% dos 114 dos outros arquivos recolhidos e datados pelo CPDOC-HCB/FGV-RJ possuem menos de 10 mil documentos, segundo a pesquisadora Priscila Fraiz 59 , uma das responsáveis pela organização do “Arquivo Gustavo Capanema”. Uma pertinente observação sobre a elaboração e coleta dos documentos do referido arquivo, consiste que tradicionalmente os arquivos pessoais costumam chegar à instituição desprovidos de qualquer arranjo ou ordem. No caso do arquivo de Capanema tal constatação não se verificou devido a duas razões: o próprio Capanema elaborou uma sistemática na organização de seus documentos além de conter informações, dele mesmo, de como foi realizado tal arranjo. Nesse sentido é possível definir o arquivo Capanema como um “autêntico projeto autobiográfico”, que acabou por tomar lugar de um texto desejado, contudo 59 FRAIZ, P. “Arquivos Pessoais e projetos autobiográficos : o arquivo de Gustavo Capanema” , IN: GOMES, A.C.(org), “Capanema: o ministro e seu ministério”, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000. 44 jamais realizado por seu titular, devido à concentração de tantos documentos, incluindo alguns sobre sua própria lógica de acumulação. A relação entre Capanema e os intelectuais do período por meio das correspondências encontradas no arquivo Capanema foi analisada por Ângela de Castro Gomes cujo intuito era construir uma amostra da qual se pudesse extrair resultados qualitativos no que refere à questão da sociabilidade intelectual. Neste trabalho destacam-se dados relevantes para a pesquisa aqui realizada: alguns dos mais “assíduos” correspondentes de Capanema integram os membros da intelligentsia nacional que possuíam como preocupação comum questão educacional no Brasil: Alceu Amoroso Lima (149 cartas), Manuel B. Lourenço Filho (27 cartas), Mario de Andrade (23) e Fernando de Azevedo (15) A análise desse conjunto de dados deve partir de uma reflexão inicial sobre o tipo de correspondência que está sendo examinada. Todos os remetentes são letrados e homens (não há nenhuma mulher) cujo reconhecimento social e intelectual estava em marcha ou era fato consumado à época. Suas cartas são corretas linguisticamente e também “materialmente”: letra, ordenamento, etc. O interessante no caso, é que se está examinando uma forma de escrita executada por intelectuais, mas que se faz “fora” do circuito profissional-formal. Essas cartas, embora pudessem ser escritas por pessoas que então ocupavam cargos públicos e tocar em assuntos de “trabalho”, estavam inseridas num circuito privado, alternativo à correspondência oficial, dirigindo-se à Capanema tanto como ministro como pessoa. Essa característica é que torna peculiar a investigação do tipo de interação que se estabeleceriam entre remetentes e destinatário, levando a uma observação cuidadosa dos conteúdos das cartas e também de sua retórica. Isso porque interessa particularmente saber quais os assuntos tratados, considerando-se a posição política e hierárquica de Capanema face àqueles que se dirigem “pessoalmente” a ele e cujo status sociocultural é elevado. A maioria das cartas, numericamente, que compõem a correspondência de Capanema com os intelectuais no período tratam de pedidos e assuntos profissionais, segundo Ângela de Castro Gomes, apesar da existência de assuntos pessoais, os assuntos políticos são mais presentes e relevantes. Dessa forma, pode-se dizer que os intelectuais não se voltaram para análises da conjuntura política da época nem de políticas públicas que envolvessem outros titulares ministeriais. Suas cartas tratavam de questões específicas e remetiam a suas relações 45 diretas com Capanema, denotando a montagem de uma rede de sociabilidade cujo eixo primordial era o ministro Gustavo Capanema. No que tange a parte das correspondências que abarca os assuntos pessoais, cabe salientar a presença de felicitações de datas comemorativas como Natal, Ano Novo e aniversário do próprio ministro, assim como algumas cartas que indicam relações íntimas e afetivas, em especial as trocadas com Alceu Amoroso Lima, amigo de longa data, antes mesmo de ocupar a pasta ministerial. A rede dos intelectuais da correspondência de Capanema atua de forma clientelística, como seria óbvio supor, mas não pedindo diretamente para si, o que talvez seja mais confortável, considerando-se o tipo de remetente analisado. Interessante, entretanto, é poder verificar, dadas as características do arquivo, como o ministro atuava diante dessas demandas examinando apenas as cartas por ele expedidas a esses 19 intelectuais, isso graças aos registros realizados por seu secretário particular, Archrises Gonçalves Santos. Os pedidos de nomeação e transferência são os mais frequentes, havendo preferência pelos postos de inspetor de ensino (secundário, comercial), professor na Universidade do Brasil e, em menor escala, vários outros. Um dado relevante das décadas de 1930-1940 é a montagem do sistema de educação e saúde públicas no Brasil, havendo assim numerosos cargos a serem preenchidos, onde cabe salientar que é deste momento a lei de acumulações que visava impedir que um funcionário público ocupasse mais de um cargo, o que gerou turbulências e abriu muitas vagas para nomeações. Assim a correspondência 60 de Capanema evidencia um caso bem visível da dupla face da ideia de “cooptação”, sobretudo, quando se leva em conta os convites para ocupar certos cargos no ministério. Isto é, quando a posição em questão era estratégica para a condução das políticas públicas que se desejava adotar, exigindo nomes que não só fossem capazes de implantá-las com eficiência, mas que também garantissem sua legitimidade ante um circuito social mais alargado. Destarte a correspondência travada com Lourenço Filho, importante nome do movimento da Escola-Nova talvez seja o melhor de todos os exemplos para clarificar as relações dúbias que tangenciavam o tema da “cooptação” em torno da figura de Capanema. Nela se nota que Capanema