ELISA RODRIGUES VILLANUEVA CURRÍCULO DE ENSINO A formação profissional do Assistente Social na UCDB/MS ELISA RODRIGUES VILLANUEVA CURRÍCULO DE ENSINO A formação Profissional do Assistente Social na UCDB/MS Tese apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca / SP, em convênio com a Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande / MS, para a obtenção do título de Doutor em Serviço Social. Área de concentração: Serviço Social: Trabalho e Sociedade. Orientadora: Profª Drª Noêmia Pereira Neves. CAMPO GRANDE / MS DEZEMBRO DE 2001 Villanueva, Elisa Rodrigues. V718c Currículo de ensino: A formação profissional do assistente social na UCDB/ MS / Elisa Rodrigues Villanueva. Franca, 2001. 138p. Tese (Doutorado). Faculdade de História, Direito e Serviço Social Campus de Franca, Universidade Estadual “Julio de Mesquita”. 1. Currículo 2. Formação profissional 3. Trajetória histórica I. Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita”. II. Título. ELISA RODRIGUES VILLANUEVA CURRÍCULO DE ENSINO A formação profissional do Assistente Social na UCDB/MS COMISSÃO JULGADORA TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR Presidente e Orientador: Dra. Noêmia Pereira Neves 2º Examinador: Dra. Eliete Cibele Cipriano Vaz 3º Examinador: Dra. Martha Maria dos Santos 4º Examinador: Dr. Mário José Filho 5º Examinador: Dra. Lilia Christina de Oliveira Martins Franca, SP, 12 de março de 2002 DADOS CURRICULARES ELISA RODRIGUES VILLANUEVA NASCIMENTO: 27 de Outubro de 1937 – Rio de Janeiro/RJ FILIAÇÃO: Filinto da Costa Rodrigues e Aracy da Silveira FORMAÇÃO: 1961/1964 Bacharel em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social da Universidade do Brasil Rio de Janeiro – RJ 1996/1998 Título de Mestre em Educação pelo Curso de Pós- Graduação em Educação, em nível de Mestrado, na Universidade Católica Dom Bosco – UCDB Campo Grande – MS Dissertação: Título: “O assistente social um transformador – aspectos da ação pedagógica que influem na praxis do assistente social” Banca: Prof. Dr. Sebastião Jorge Chammé (orientador) Profª .Dra. Sueli A . Mello Profª .Dra. Odaria Battini Defesa: 28 / 05 / 1998 1980/1982 Especialista em Fundamentos e Metodologia do Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ DOCÊNCIA 1986/2001 Professora de: Serviço Social de Grupo Metodologia do Serviço Social História do Serviço Social Fundamentos históricos, teóricos e metodológicos do Serviço Social Orientação de TCC 1992/1995 Chefe de Departamento do Curso de Serviço Social da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB Campo Grande – MS Ao meu marido Ferdy Villanueva Flores Que por 35 anos me apoiou, incentivou, estimulou em todas as caminhadas da vida e cuja memória não permitiu que este trabalho, iniciado juntos, fosse interrompido. AGRADECIMENTOS À Profª Dra. Noêmia Pereira Neves, minha orientadora, que com paciência e dedicação ajudou-me a elaborar este trabalho superando as angústias da maior de todas as perdas. À Profª Dra. Mariluce Bittar, coordenadora local do curso, pelas inúmeras contribuições, pela disponibilidade para colaborar e, especialmente, pelo ombro amigo para chorar. Aos professores, João Sandes, Raimunda Luzia de Brito, Maria José Rodrigues da Cruz e Iraci Vilela Pereira, pioneiros na formação do assistente social de Mato Grosso do Sul e que muito contribuíram, para que eu pudesse resgatar a história da formação do assistente social no estado. Aos acadêmicos de Serviço Social da UCDB, que nos últimos 16 anos vêem, incansavelmente, contribuindo para que eu conheça melhor a profissão em suas mais sutis peculiaridades. “Não é pelo intelecto, mas pelo afeto que transita a centelha que faz de um professor um grande professor.” Maria Cecília P. da Silva (1994) SUMÁRIO Resumo........................................................................................................... 8 INTRODUÇÃO............................................................................................. 9 CAPÍTULO I : Currículo de Ensino 1.1 - Trajetória histórica ........................................................................... 16 1.1.1 - Componentes político-ideológicos.................................................... 19 1.1.2 - Componentes psico-pedagógicos...................................................... 23 1.2 - Os currículos de ensino do Curso de Serviço Social ........................ 26 1.2.1 - Histórico............................................................................................ 26 1.2.2 - Características e significações........................................................... 35 CAPÍTULO II : Os currículos de ensino do Curso de Serviço Social da Universidade Católica Dom Bosco 2.1 - O processo de implantação do curso................................................. 42 2.2 - Os currículos de ensino de 1972 a 2000............................................ 52 CAPÍTULO III: Análise do currículo do curso de Serviço Social da UCDB - A pesquisa 3.1 - Cenário e construção da pesquisa...................................................... 57 3.2 - A análise............................................................................................ 71 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................... 83 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................... 91 Anexos............................................................................................................ 102 Abstract......................................................................................................... 138 VILLANUEVA, E.R. Currículo de ensino: A formação profissional do assistente social na UCDB/MS. Campo Grande, 2001. 138p. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Católica Dom Bosco / Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Campus de Franca RESUMO O presente estudo trata do currículo de ensino do curso de Serviço Social da UCDB, visto como uma variável a ser considerada na formação profissional do assistente social, analisando-o, não só quanto a proposta pedagógica nele inserida, mas, e principalmente, quanto a forma como essa proposta foi entendida pelos professores que a elaboraram. Baseia-se na corrente dialética helleriana, através da qual analisa o pressuposto de que é a intencionalidade e o compromisso da ação docente que direcionam o ensino e a aprendizagem. Tem, ainda, a intenção de resgatar a história da criação da Faculdade de Serviço Social de Campo Grande – Mato Grosso do Sul. Palavras-chave: Currículo; formação profissional; trajetória histórica. INTRODUÇÃO Ao estudarmos os aspectos da ação pedagógica, desenvolvida por docentes do Curso de Serviço Social da Universidade Católica Dom Bosco, que influenciavam a pratica profissional do assistente social, nossa dissertação de mestrado-1998, deparamo-nos com atitudes de certos professores que contradiziam suas propostas pedagógicas sem que, sequer, percebessem a contradição a que se expunham, vítimas, que eram, da violência simbólica conforme Bourdieu e Passeron apresentam em seu livro “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”(1975) ou, do “uso alienado da obviedade” defendido por Suely Mello em sua tese de doutoramento (1997). Estes aspectos ficaram claros nas relações observadas quando, na busca do desenvolvimento da consciência crítica, nem todos os professores deram conta de perceber a sociedade e sua própria ação pedagógica de forma crítica, ou seja, buscando desvelá-la para melhor compreendê-la. Alguns demonstraram ter seu posicionamento ideológico baseado nas teorias comteanas, buscando a harmonia social através da passividade e aceitação acrítica das normas sociais, sem atentar que essa aceitação legitima a violência institucional. As teorias comteanas, também chamadas de teorias positivistas, são as defendidas pelo filósofo francês Auguste Comte, nascido em 1798 na França (Montpellier), que consideram 10 que a verdadeira natureza da filosofia positiva vem do desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas fases de atividade. Assim, cada uma de nossas concepções, ou seja, cada ramo do nosso conhecimento passa por três estágios históricos diferentes: estágio teológico ou fictício, estágio metafísico ou abstrato e estágio científico ou positivo. Estágios esses que são sucessivos e se excluem mutuamente. O primeiro, teológico, é o ponto de partida da inteligência humana, apresenta os fenômenos como produzidos pela ação direta de forças sobrenaturais (Deus), cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo. O segundo estágio, o metafísico, diferencia-se do primeiro pela substituição dos agentes sobrenaturais por forças abstratas capazes de criar por elas próprias todos os fenômenos observados, e no terceiro, científico ou positivo, o espírito humano deixa de buscar explicações para as causas íntimas dos fenômenos, preocupando-se unicamente em descobrir as leis que regem os fenômenos da natureza consideradas, estas sim, como invariáveis, positivas. “... o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessível e vazia de sentido para nós a 11 investigação das chamadas causas, sejam primeiras, sejam finais.” (Comte,1988: 7 - grifo do autor). Assim, chamamos de postura comteana as posturas observadas no estudo por nós realizado, tais como: “O professor deve manter uma postura, não fumar. Todo professor tem a obrigação de dar uma boa aula e todo aluno tem a obrigação de assisti-la, a isso eu chamo de dever de estado.” “Alguns conteúdos precisam ser revistos porque não correspondem à realidade, mas como é um todo e a universidade tem que caminhar por aí, vai depender muito do aluno saber se direcionar e ver no campo de estágio com o supervisor de campo dele.” Essas colocações demonstram uma aceitação acrítica da realidade pela tomada dos fatos sociais como leis naturais, invariáveis cujas causas não merecem qualquer atenção. Também, a concepção de ação transformadora no agir do assistente social não alcançou unanimidade conceitual. Isto é, embora a totalidade dos professores entrevistados explicitasse o propósito de trabalhar na linha da transformação, as formas por eles encontradas para 12 alcançar esse objetivo mostrou divergências entre si e com o próprio objetivo proposto (de transformação), denotando que mais do que intenção é necessário ação. Ação coerente com os propósitos, se eles pretendem contribuir para que a sociedade se torne mais justa, mude o esquema de concentração de renda ou, se consideramos que a situação vigente merece apoio para que seja mantido o “status quo”. Essa decisão exige uma auto- reflexão e conhecimento das categorias que fundamentam cada um desses propósitos, tais como: consciência crítica, participação ou consciência ingênua e ajustamento. Na pesquisa realizada, enquanto um professor considerava que: “O assistente social tem poder transformador teórico e prático, pois através de sua intervenção é possível criticar a realidade.” Outro dizia : “As vezes somos funcionários de uma empresa, mas só vemos o empresário no elevador e não temos oportunidade de propor qualquer mudança.” Essas colocações mostraram que a busca da transformação nem sempre é entendida como desenvolvimento de consciência crítica, participação de todos mas, às vezes, é entendida como simples mudança de plano de ação. 13 Considerando o que disse o professor Miguel Fernandez Perez em conferência realizada para os professores da UCDB na Semana Pedagógica realizada em fevereiro de 1994 -“Explicamos o que sabemos, ensinamos o que somos”1 concluímos, (em nossa dissertação de mestrado), que a formação dada ao acadêmico de Serviço Social, no Curso de Serviço Social da UCDB (MS), muito embora pretenda ser uma formação crítica, política e transformadora, reflete, a insegurança, a passividade e a aceitação acrítica das normas sociais, que a ação pedagógica de alguns docentes ainda, inadvertidamente, estimula. Essa constatação, entretanto, reflete apenas uma variável na formação profissional do assistente social, pois sabemos que a aprendizagem está sujeita a interferências das mais variadas consciente ou inconscientemente assumidas. Assim, sentimos a necessidade de pesquisarmos outra possível variável na formação profissional do assistente social e, optamos pela análise do currículo de ensino aplicado no Curso de Serviço Social da Universidade Católica Dom Bosco / Campo Grande - MS, no período de 1985 a 2000, ou seja, o período em que vigiu o currículo aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 1982 (parecer nº 412/82), frente ao corpo docente do curso. Acreditamos que o currículo de ensino de um curso é a formalização de um projeto de produção de cultura através da educação que, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, deve ser 1 Perez,, M. F. – Prof.Dr. Universidade de Madri – Conferência na UCDB, 1994 14 “inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”(art.2º da LDB). Como liberdade, apesar de ser uma aspiração natural, não se manifesta espontaneamente e o ideal da solidariedade humana implica na compreensão que tem o educador da realidade, inúmeras podem ser as interferências que a formação profissional pode sofrer dependendo da proposta política, ideológica, psicológica e pedagógica do currículo e da compreensão que tem o educador dessa proposta Assim, no primeiro capítulo abordamos a conceituação geral de currículo, os componentes políticos, ideológicos e psicopedagógicos que o fundamentam e a sua especificidade junto ao Curso de Serviço Social. No segundo capítulo retratamos o processo de instalação do curso de Serviço Social da FUCMT/ UCDB e a implantação dos currículos de ensino de 1972 a 2000. Para tanto, procedemos a uma pesquisa junto a seis professores que vivenciaram esse período, através de entrevistas semi-estruturadas, registradas em anexo com a denominação consecutiva de “Depoimento 1” (D-1) a “Depoimento 6” (D-6), uma vez que foram poucos os registros por nós encontrados, na Faculdade, a esse respeito. No terceiro capítulo abordamos a pesquisa realizada e a análise do alcance pedagógico do currículo da FUCMT/UCDB no período de 1985 a 2000 à luz da teoria dialética, conforme entendida por Agnes Heller, 15 integrante da Escola de Budapeste. Através dessa análise tecemos as considerações finais. 16 CAPÍTULO I CURRÍCULO DE ENSINO 1.1 – Trajetória Histórica Segundo Chadwick e Rojas (1980 ) inúmeras são as definições dadas hoje ao termo Currículo, podendo haver tantas definições quantos são os projetos e os autores. “Eisner e Valance (1974), em ‘Concepções Conflitivas de Currículo’, reuniram diversos enfoques dados ao termo currí- culo, organizando-os em cinco grandes grupos: Currículo como processo de desenvolvimento de processos cognitivos; Currículo como tecnologia; Currículo como auto-realização (huma- nismo); Currículo para relevân- cia e transformação social; Cur- rículo como racionalismo aca- dêmico”. (Chadwick e Rojas, 1980: 103) Entretanto, para falarmos de currículo sentimos a necessidade de realizar uma análise de sua trajetória histórica, com vistas a compreender as distintas interpretações, as contradições e as transformações por ele sofridas ao longo dos tempos. Não desejamos pensar o passado com os critérios do presente, como sugere, sabiamente, Saviani (1994:38), o que sem dúvidas nos daria uma falsa visão de estabilidade com a qual não concordamos. É 17 preciso, portanto, que ao analisarmos a história do currículo o façamos a partir da compreensão da evolução do termo, bem como dos contextos de seu emprego e de suas múltiplas implicações na vasta rede de relações inerentes à atividade educacional a que ele se refere. Assim, segundo Saviani (1994:39), o termo currículo na educação surgiu no final do século XVI com o calvinismo, quando o primeiro registro dele apareceu nas escriturações da Universidade de Leiden (Holanda), com o significado de um atestado de graduação, ortogado a um mestre da Universidade de Glasgow (Escócia) em 1663. Vivia-se o contexto da reforma protestante e o termo trazia claros propósitos de formar predicadores protestantes integrados ao movimento pela reforma da agenda educativa medieval, visando a “propagação de novos pressupostos sobre a eficiência da escolarização, em particular, e a eficiência da sociedade em geral”(Ibidem:40). O termo significava “movimento progressivo ou carreira”, para indicar uma entidade educativa que denotava uma totalidade estrutural e uma integridade seqüencial, constituindo-se num todo unitário que devia, não apenas ser seguido mas também acabado. Ainda, segundo Saviani (Ibidem:40) as referências ao termo currículo eram do tipo “- ...havendo contemplado o currículo de seus estudos ...” o que dá a idéia de um curso onde há uma seqüência interna e uma coerência estrutural. 18 Percebe-se, ainda, que a idéia de currículo vem acompanhada da idéia de método, que nesta concepção equivalia a um conjunto de procedimentos padronizados, destinados a ensinar fácil e claramente qualquer matéria. Assim currículo significava um misto de ordenação, metodização, regularidade e centralidade inerente ao preceito calvinista de disciplina, tornando-se um plano rígido das áreas de estudo de cada professor e das normas de conduta do aluno. Sendo o nome dado ao certificado de conclusão do curso, com a avaliação dos resultados de cada estudante. Daí a expressão “- Ele tem um bom currículo.” Com o tempo as escolas passam a se abrir a setores mais amplos da sociedade e o termo currículo evolui da idéia inicial de registro da vida estudantil, para indicar o conjunto dos “novos traços ordenados e seqüenciais da escola do século XVI”. Na mesma época o termo “classe” passa a ser usado na reforma pedagógica que aumenta a vigilância dos alunos, começa a elaboração de conteúdos e métodos pedagógicos, que representam o ensino e a aprendizagem com exames e controle externo. Vindo do latim no contexto já descrito, o termo currículo ganha uma multiplicidade de usos no vocabulário pedagógico. Entretanto, o estudo do currículo não se restringe ao levantamento da evolução do termo nem de seus diferentes empregos. Ele compreende a análise de questões mais complexas, que vão desde os processos de sua elaboração até a interpretação, aplicação e avaliação que 19 lhe é dada, o que pretendemos desenvolver ao longo deste trabalho, em relação ao currículo do curso de Serviço Social da Universidade Católica Dom Bosco / MS, na busca de compreender o tipo de formação que ele pode propiciar. 1.1.1 – Componentes Político-ideológicos Partimos do princípio que uma boa educação segue princípios de justiça, mas observamos que esse aspecto, normalmente, só é abordado no que se refere às questões de acesso à educação que, em nossa realidade, deixa muito a desejar. São grandes as dificuldades no acesso à educação por grupos discriminados como pobres, mulheres e minorias étnicas. Entretanto, quando falamos em justiça em educação, pensamos, tanto na prática quanto na teoria, no elemento central da justiça nas discussões contemporâneas que é a questão da distribuição de renda. O modelo distributivo de justiça começou a ser criticado pela filosofia, que apontou os limites e a forma pela qual ele serviu para conter as demandas sociais. Chamamos de justiça distributiva a distribuição justa de um bem social. No caso, o bem social é a educação oferecida pelos sistemas de 20 educação de massa. Entretanto, a educação é um processo social que atua através de relações sociais nas quais a quantidade não pode ser separada da qualidade. O conhecimento é social e criado em instituições sociais, por grupos particulares de pessoas, ele é distribuído através de canais socialmente criados, adotados e utilizados em contextos sociais particulares. Entretanto, isso nem sempre é considerado em relação ao currículo escolar. O conhecimento científico apresenta-se sob a forma de paradigmas, disciplinas, teorias, programas de pesquisa através de processo altamente organizado. Uma vez produzido, o conhecimento tem que circular. Esse é um outro processo social que envolve a discriminação. A produção dos currículos escolares é apenas uma parte dessa circulação e seleção e, como tal, é passível de sofrer interferências que comprometam a justa distribuição do conhecimento. Segundo Connell : “O conhecimento que é levado para os currículos escolares é, pois, socialmente moldado desde o início. Nossas idéias naturais sobre o que constituem habilidades básicas, quais são as áreas centrais do conhecimento, quais são as fronteiras no mapa do conhecimento são todas produtos de uma complexa política moldada pela 21 distribuição mais ampla do poder social.” (1995:17) O mesmo autor relata que muitas escolas fazem distinção entre a aprendizagem acadêmica, definida como caminho para as profissões superiores e a aprendizagem destinada a grupos que farão o trabalho de rotina, ou trabalharão com as mãos, indústria, comércio, que não precisa de uma aprendizagem real, tendo, então, um currículo de segunda classe. Da mesma forma, Antonio Joaquim Severino considera que a educação, como ação pedagógica, é a imposição de um grupo social a outros grupos ou classes sociais. Essa imposição é feita através do que Bourdieu chama de “inculcação” de princípios e valores considerados válidos pela classe dominante. Rubens Alves aborda esse assunto de forma criativa e sutil ao comparar a história de Pinóquio que ele diz ser uma “malandragem psicanalítica com convicção pedagógica”, com a educação. Diz Alves, que a famosa história após levar a criança a se identificar com um boneco de pau, afirma que é necessário ir à escola para se virar gente. Caso contrário o destino é virar burro, com rabo, orelhas, zurros e tudo que pertence à burrice. Entretanto, diz ele, isso não passa de um ato desonesto pois, “...seria necessário dizer com clareza aquilo que aqui (na história) ficou simplesmente mal dito, contando sobre o destino invertido daqueles que eram de 22 carne e osso ao entrar na escola e só receberam diplomas depois de se transformarem em bone- cos de pau”(Alves, 1993: 9). Apesar de razoavelmente discutida, essa situação nunca é assumida claramente e busca-se camuflá-la sob o nome de ideologia pedagógica. Deve-se a Paulo Freire e ao Encontro do CELAM em Medellín (Colômbia) a incorporação de novas contribuições ao desenvolvimento da educação na América Latina. Medellín com seus “documentos” e Paulo Freire com a sua “pedagogia para a libertação”. Os “documentos de Medellín” marcam o aparecimento da Teologia da Libertação, que, mais que uma teologia, é uma nova forma de analisar a mensagem bíblica, a partir da realidade latino-americana de dominação e opressão do povo. Paulo Freire chama a atenção para a necessidade de ultrapassar o caráter instrumental, pragmático da participação e impulsionar a consciência crítica e a mobilização social. A importância que Freire dá aos aspectos ideológicos e à conscientização chamaram a atenção para a inutilidade das políticas assistencialistas e desenvolvimentistas, provocando uma maior radicalização nas relações de poder. A relação de poder existente entre pessoas, grupos e classes sociais é retratada pela educação quando ela reproduz conteúdos culturais, 23 impondo-os aos sujeitos das classes dominadas que, por sua predisposição em aceitar a legitimidade da ação cultural dominante, submetem-se ao imposto, criando o “habitus”. Da mesma forma, esse tipo de ideologia pedagógica objetiva camuflar as reais relações de violência material e de violência simbólica, tão bem abordada por Bourdieu e Passeron no livro “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”(1975) Além do aspecto político-ideológico da questão curricular, não podemos desprezar a contribuição da psicologia, através das teorias de J.Piaget (Teoria Genética), a teoria de Vygostsky (Teoria sociocultural), teoria da aprendizagem significativa de Ausubel e Coll, uma vez que as informações que a análise psicológica proporciona são úteis para selecionar objetivos e conteúdos, para estabelecer seqüências de aprendizagem que favoreçam ao máximo a assimilação dos conteúdos e a conquista dos objetivos. 1.1.2 – Componentes Psico-pedagógicos Sem dúvidas a finalidade última da educação é promover o desenvolvimento dos seres humanos. O problema está em definir e explicar 24 em que consiste este desenvolvimento e, principalmente, em estabelecer o tipo de ação educacional mais adequada para promovê-lo. Entretanto podemos elencar algumas contribuições de análise psicológica já comprovadas por Piaget, Coll e outros que precisam ser consideradas. O desenvolvimento pessoal do aluno está fortemente condicionado ao nível de desenvolvimento operatório ou sua aptidão cognitiva geral. Assim, a cada estágio de desenvolvimento corresponde uma forma de organização mental, uma estrutura intelectual, que se traduz em possibilidades de raciocínio e de aprendizagem. Portanto, segundo Coll: “O currículo escolar deve levar em conta estas possibilidades não só no que concerne à seleção dos objetivos e dos conteúdos, mas também na maneira de planificar as atividades de aprendizagem, de forma que se ajustem ao funcionamento próprio da organização mental do aluno”(Coll, 1994:125) Além de levar em conta o grau de desenvolvimento pessoal do acadêmico, seu nível de aptidão cognitiva, Ausubel chama a atenção para a importância do “conhecimento prévio”, ao qual o acadêmico já está condicionado ao iniciar sua participação nas experiências educacionais. “...o aluno que inicia uma nova aprendizagem escolar o faz 25 sempre a partir dos conceitos, concepções, representações e conhecimentos que construiu no decurso de suas experiências prévias, utilizando-os como instrumento de leitura e de in- terpretação que condicionam em um alto grau o resultado da nova aprendizagem.” (Coll, 1994:125) Na concepção construtivista de intervenção pedagógica, a ação educacional deve incidir sobre a atividade mental construtiva, criando condições favoráveis para os esquemas do conhecimento serem os mais corretos e ricos possíveis e se orientem na direção marcada pelas interações que presidem a educação. A individualização do ensino deve ajustar a qualidade e a quantidade da ajuda pedagógica ao processo de construção do conhecimento. Os métodos de ensino não são bons ou maus, adequados ou inadequados em termos absolutos e sim em função do ajustamento às necessidades dos alunos. As propostas curriculares não devem prescrever um método de ensino determinado, devem proporcionar critérios gerais de ajuste da ajuda pedagógica e explicitá-los mediante propostas concretas de atividades de ensino sob determinados pressupostos. As significâncias lógicas e psicológicas do conteúdo programático não são suficientes para que o 26 ensino seja significativo, é necessário que o aluno tenha uma atitude favorável para aprender. A atitude favorável para a aprendizagem significativa está diretamente relacionada a intencionalidade do aluno em relacionar o novo conteúdo de aprendizagem com os conhecimentos já adquiridos. Quando a intencionalidade é baixa, o aluno limitar-se-á a memorizar o aprendido de forma mecânica e repetitiva, quando a intencionalidade é alta, o aluno estabelecerá múltiplas e variadas relações entre o novo e o anteriormente adquirido. A motivação para aprender significativamente dependerá da capacidade do professor em despertar e incrementar essa motivação. É na psicologia que se fundamenta a teoria da aprendizagem significativa e é a psicologia que oferece os instrumentos de estímulo à motivação. O professor é o mediador entre a estrutura psicológica e a estrutura lógica. Jean Piaget, psicólogo e psiquiatra francês, criador do Centro Internacional de Epistemologia Genética em Genebra (1956), dedicou-se ao estudo do desenvolvimento do conhecimento, isto é, o estudo das construções progressivas das estruturas mentais, que vão do período sensório-motor (até 2 anos), passando pelos períodos pré-operacional (2 aos 7 anos) e operacional concreto (7 aos 11 anos), até o operacional formal (11 aos 15 anos). Assim, a aprendizagem só tem sentido na medida em que coincide com o processo de desenvolvimento do conhecimento, com o 27 movimento das estruturas da consciência. É o chamado método estrutural genético que relaciona o saber com a história. “Reconhecer a dimensão histó- rica do conhecimento e do cur- rículo de Serviço Social implica a tarefa de coordenar fatores de variação e de invariância. De- terminados aspectos da reali- dade perduram na história en- quanto outros são nega- dos,exatamente em função das superações dialéticas.” (Sá,1995:55) 1.2 – Currículos de Ensino nos Cursos de Serviço Social 1.2.1 – Histórico O Serviço Social teve início no Brasil em 1936 com a criação da primeira escola em São Paulo, pelo Centro de Estudos e Ação Social – CEAS. “O CEAS foi Considerado como o vestíbulo da profissionaliza- ção do Serviço Social no Brasil – e aqui também, como no caso chileno, o trabalho de organiza- ção e preparação dos leigos se apóia numa base social femi- nina de origem burguesa res- paldada por assistentes sociais belgas, que ofereceram a sua experiência para possibilitar a fundação da primeira escola 28 católica de Serviço So- cial”(Castro,1993:98). O CEAS, junto com a UCISS – União Católica Internacional de Serviço Social dá ao Serviço Social brasileiro uma base orgânica continental marcando a presença da Igreja Católica na busca de solução para a questão social agravada, na época, pela nascente economia urbana. O cenário histórico apresentava, de um lado o capital representado pelos proprietários fundiários, industriais e comerciantes e, por outro lado os trabalhadores assalariados que vendem sua força de trabalho como uma mercadoria que deveria prover suas necessidades básicas. Outro grupo é dos indivíduos que não conseguiam se integrar ao modo de produção vigente e, por isso, formavam o que Marx chamou de “exército de reserva”. “... no setor do capital, elaborou-se o saber do Serviço Social. Seus porta-vozes formam os sujeitos da fala deste novo ramo das Ciências Sociais aplicadas.”(Neves,1990:21) Os governos autoritários que antecederam a criação do Serviço Social viam na rebeldia do povo uma crise de autoridade, para a qual necessitavam de ajuda para contê-la. “Nesse sentido, a ideologia da democracia liberal brasileira é transmitida por duas forças propagandistas: o catolicismo e o positivismo. Ambos serviam à ordem”(Neves,1990:26). 29 Assim, as Escolas de Serviço Social prosperaram por todo o país. Após a criação, em 1936, do Curso de Serviço Social do Centro de Estudos e Ação Social de São Paulo, em 1937 surgiram, no Rio de Janeiro, o Curso de Serviço Social do Instituto Social do Rio de Janeiro e em 1938 o Curso de Serviço Social do Serviço de Obras Sociais – SOS. O SOS era uma instituição de assistência social criada pela superintendente geral do Serviço de Enfermeiras de Saúde Pública – Edith Fraenkel – e que realizou o trabalho social com enfermeiras até o surgimento da profissão Serviço Social. “Às enfermeiras da Saúde Pública cabe o nobre mister de levar aos lares pobres nos bairros humildes da cidade, aos morros, às habitações coletivas e às favelas que enfeiam e envergonham a nossa capital – ensinamentos de higiene e de profilaxia indispensáveis à conservação da saúde. Este serviço é feito por meio de visitas domiciliares das enfermeiras do Corpo de Enfermeiras do D.N.S.P. E estas enfermeiras, na sua dolorosa peregrinação diária pelos lares pobres, deparam freqüentemente com quadros desoladores, com espetáculos pungentes: - famílias miseráveis, maltrapilhas de tudo privadas, vivendo em 30 promiscuidade,....” Pinheiro,1985:195)2 Segundo dados colhidos no arquivo de ABESS (hoje ABEPSS), por Janete Martins de Sá (1995:65): Em 1940 foi criado o Instituto de Serviço Social de São Paulo e a Escola de Serviço Social de Pernambuco; Em 1943 a Escola de Serviço Social do Rio de Janeiro (hoje PUC/RJ) Em 1944 a Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth no Rio de Janeiro, as escolas de Serviço Social da Paraíba e da Bahia; Em 1945 as escolas de Porto Alegre (RGS), Natal (RGN) e Niterói (RJ); Em 1946 a escola de Minas Gerais; Em 1950 a escola de Campinas (SP); Em 1951 a escola de João Pessoa (PB); Em 1954 a escola maranhense de Serviço Social e a escola de Sergipe; Em 1955 já estavam em funcionamento 21 escolas de Serviço Social em 17 estados da União. “Com exceção da Escola Ana Neri, da Universidade do 2 Republicação de obra da autora de 1939 31 Brasil, e da Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth, vinculada à prefeitura, as demais foram criadas ou mantidas por organismos da Igreja Católica, como o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social; o GAS – Grupo de Ação Social; a JUC – Juventude Universitária Católica; a ASC – Ação Social Católica” (Sá,1995:66). Entretanto, mesmo as escolas do governo tinham uma direção católica, como a Escola Ana Néri da Universidade do Brasil que tinha, na década de 60, Dom Helder Câmara como orientador espiritual de seus alunos. Até 1946, ano de criação da Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social – ABESS (hoje ABEPSS), a Escola de São Paulo e o Instituto Social do Rio de Janeiro prestavam assessoria às demais instituições de ensino. Assessoria essa que perpassava pelo perfil do profissional baseado no ideal pedagógico cristão, conforme era trabalhado na Europa e nos Estados Unidos, onde nossos primeiros profissionais se graduaram. Segundo nos relata Maria Esolina Pinheiro, pioneira do Serviço Social no Brasil, professora dos primeiros cursos criados e fundadora da primeira escola oficial de Serviço Social brasileira – a Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth, criada em 1944 pela 32 Prefeitura do Distrito Federal (hoje UERJ) em 1938, ainda era bastante precário o ensino de Serviço Social. “Entre nós não existem nem programas, nem escolas oficiais, para formação de assistentes sociais. Em regra o Serviço Social, aqui, tem sido ensinado e aprendido com a prática, nas obras de assistência quer oficiais, quer privadas. Essa situação não pode, entretanto, perdurar. O Conselho Nacional de Serviço Social de certo cogitará do preparo técnico do pessoal necessário para esses serviços.”(Pinheiro,1985:149)3 Assim, com base em dados fornecidos por Pinheiro em publicação de 1939, possuíamos na época os seguintes estabelecimentos particulares de ensino de Serviço Social: Escola de Serviço Social de São Paulo Criada em 1936, a Escola de Serviço Social de São Paulo tem suas origens ligadas ao complexo quadro político que caracterizava o país na época. A acumulação capitalista centrava-se no amadurecimento do mercado de trabalho, na consolidação do pólo industrial e na vinculação da economia ao mercado mundial Em São Paulo a situação era mais grave porque, além, das disputas entre os tenentistas e os setores políticos mais tradicionais e o 3 Republicação do livro “Serviço Social – infância e juventude desvalidas”.Rio de Janeiro, 1939 33 medo da infiltração comunista, ainda havia o distanciamento do governo central, que marginalizava a burguesia paulista. Assim, a criação da primeira Escola de Serviço Social do Brasil veio abrir a possibilidade da mulher paulista participar do processo político que se deslanchava em seu próprio estado, dando inicio à longa caminhada do Serviço Social no solo brasileiro, caminhada essa iniciada sob o signo da aliança com a burguesia. A primeira Escola exigia como condições de admissão: a) Ter 18 anos completos e menos de 40; b) Comprovar ter feito estudos de curso secundário, pelo menos; c) Apresentar: referência de três pessoas idôneas e atestado de sanidade; d) Os candidatos são considerados alunos regulares da Escola somente depois de haverem freqüentado o Curso Preparatório e prestado exame sobre matéria dada. Duração do Curso: O curso tinha a duração de três anos, apesar de só em 1953 ter sido assim regulamentado. Nos dois primeiros anos o curso alternava os trabalhos teóricos e práticos. O terceiro ano era exclusivamente destinado aos estágios de especialização. O curso básico era composto das seguintes disciplinas: Sociologia Anatomia e Fisiologia Economia Política e Social Higiene Legislação Social Estatística Psicologia Histórico, organização e desenvolvimento do Serviço Social 34 A formação prática incluía: Primeiros cuidados de enfermagem Técnica de organização administrativa Círculos de Estudos Visitas Sociais Inquéritos Estágio nas diferentes organizações sociais As Escolas de Serviço Social do Rio de Janeiro No Rio de Janeiro, quase que concomitantemente, surgiram em 1937 o Instituto de Educação Familiar e Social, formado por duas escolas: uma de Educação Familiar e uma de Serviço Social e, em 1938 a Escola Técnica de Serviço Social fundada, pelo SOS – Serviço de Obras Sociais, como curso intensivo de Serviço Social, contou com a colaboração das duas primeiras assistentes sociais brasileiras, Albertina Ferreira Ramos e Maria Kiel que, influenciadas por Àdelé de Louneau, professora belga que veio ao Brasil dar um curso intensivo de formação social para moças, organizado pelas cônegas de Santo Agostinho, viajaram para a Bélgica onde fizeram o curso de Serviço Social na Escola Católica de Serviço Social de Bruxelas. Segundo Pinheiro, co-diretora técnica da Escola, o curso oferecia as seguintes disciplinas: 35 Noções de Anatomia e Fisiologia Noções de Bacteriologia Noções de Patologia interna e externa Noções de Psicologia e Psicopatologia Neurologia Puericultura e Noções de Nutrição Problemas das doenças infecto-contagiosas Flagelos Sociais Higiene individual, mental, social, profissional e coletiva Habitações coletivas, a criança abandonada, o menor delinqüente e seu aspecto legal e social Sociologia Legislação Social Noções de Direito Constitucional, Administrativo, Civil e Penal Serviço Social Em 1953 o Curso de Serviço Social foi regulamentado pela Lei 1889/53 como curso de nível superior, com duração mínima de três anos. O primeiro currículo oficial ficou assim constituído: 1º ano: Sociologia e Economia Social Direito e Legislação Social Higiene e Medicina Social Psicologia e Higiene Mental Ética Geral e Profissional 2º ano: Introdução e Fundamentos do Serviço Social Métodos do Serviço Social Serviço Social de Casos, Serviço Social de Grupo e Organização de Comunidade Serviço Social em suas especializações: Família, Menores, Trabalho e Médico 3º ano: Pesquisa Social O currículo oficial deixou de contemplar algumas disciplinas propostas na III Convenção Nacional da ABESS realizada em 36 1953. Entretanto, em se tratando de currículo mínimo, coube a cada Escola adequá-lo a sua realidade. 1.2.2 - Características e significações Pautadas na Doutrina Social da Igreja essas primeiras Escolas seguiam os mesmos princípios do CEAS – a busca da restauração da ordem social, tanto institucional como dos costumes, além da educação integral na formação do assistente social. “Atribui-se à educação integral o papel de estabelecer ordem nas idéias, de subordinar as ciências especulativas à Ética e esta à Teologia. Sua base correspondia aos princípios eternos e imutáveis da lei natural e da revelação, ou seja, à filosofia aristotélico-tomista, que, uma vez sistematizada e assumida conscientemente, seria a única capaz de regenerar a nacionalidade brasileira do individualismo liberal e do comunismo ateu.”(Sá,1995:71) Tem início uma profissão caracterizada pela observância de requisitos apontados pelos pensadores católicos da época como: “formação intelectual e boa vontade; 37 capacidade pessoal de julgar (crítica metódica e rigorosa dos fatos e das idéias); faculdade de dominar os problemas mais complicados e delicados; espírito científico (possibilidade de criar ciência e não apenas receber); perfeição moral e espiritual; capacidade de conciliar a alta ciência universitária e a revelação de Cristo (ciência e fé); ser, entre os demais, os melhores e mais competentes estudantes universitários e diplomados – porque católicos; ter espírito missionário; fazer da carreira uma vocação, não apenas uma profissão; ter dever para com Deus, para com o próximo e para consigo mesmo; ter deveres para com a pátria, no sentido de modelar as novas gerações brasileiras (Amoroso Lima, 1943); fazer prevalecer a formação do homem sobre a do profissional (Salim,1947); ter a capacidade de formar a personalidade espiritual do homem e do cidadão (Capanema,1942).”(Sá, 1995:70) A partir de 1953, ao longo do tempo, essas características foram sofrendo gradativas mudanças sem, entretanto, perder a influência da Igreja, exercida de novas formas. Caracterizando-se, a partir de 1961 por uma teologia progressista, desenvolvimentista, ligada à Teologia da Libertação. 38 É o período chamado de desenvolvimentista que vai de 1961 a 1968. Apesar do forte apelo econômico dado ao período por força, principalmente, norte-americana, os assistentes sociais mantêm a visão humanista cristã. “ A perspectiva de desenvolvimento, entretanto, é entendida pelos assistentes sociais como dotada de forte conotação humanista cristã, envolvendo as idéias de justiça social, caridade e de harmonia entre os fatores econômicos e sociais.” (Vieira et al:103) O desenvolvimento sócio-econômico aparece impresso na realidade, entretanto, não para ser assumido pelo indivíduo isoladamente, mas pela coletividade, o que requer um conjunto de conhecimentos que permita explicar racionalmente a sociedade em seus aspectos econômicos, sociais e políticos. Assim, as ciências e as disciplinas que mais se destacam são a sociologia funcionalista norte-americana, a política social, o planejamento, a pesquisa, a estatística e a psicologia social. E, são elas que passam a ser incorporadas ao currículo do Serviço Social. 39 Para o assistente social a realidade social continua a ser apreendida de forma mecanicista, positiva, através da atitude científica, isto é, “neutra, fria e descomprometida”. Momentos importantes marcam esse período rico em mudanças sócio-políticas e, portanto, rico para o Serviço Social. Em 1961 o II Congresso Brasileiro de Serviço Social, que tem por tema “Desenvolvimento Nacional para o Bem Estar Social”, estimula o profissional a trabalhar um processo de desenvolvimento que inclua a participação da população na solução de seus problemas. “Serviço Social passa a ser uma instituição social necessária, na medida em que domina o método de lidar com o povo e que tem uma contribuição a dar a outras profissões, seja pelo manejo de técnicas, seja pela experiência acumulada.”(Vieira et al:103) Volta a surgir a preocupação com a formação do assistente social, não só no que se refere à ampliação de conhecimentos e técnicas, mas também na interação com outros profissionais. Há a necessidade de maior clareza de limites de atuação, para não investir em área alheia, mas enriquecer a ação com o maior aproveitamento de cada área. Em 1964, a brusca mudança de governo com o golpe militar, mexe com o Serviço Social que desenvolvia seu trabalho com 40 movimentos operários, com educação de base da Igreja Católica, o que inicialmente, foi confundido com comunismo e sofre uma retração. Mais tarde, a idéia de participação popular expande a demanda pelo trabalho com comunidades trazido pelos Estados Unidos e os assistentes sociais novamente são convocados. “Era veiculada para a população a ideologia da integração nacional e, para isso, os assistentes sociais deram uma grande contribuição”.(Vieira et al: 115) Em 1965, o movimento chamado de “Geração 65” questiona a influência estrangeira, especialmente, a norte-americana, na formação do assistente social e propõe romper com as práticas até então desenvolvidas. “Da tomada de consciência da necessidade desta ruptura irá emergir, no final da década de sessenta, todo um repensar da profissão e do exercício profissional no continente latino-americano, tornando-se imperioso buscar um novo caminho.”(Vieira et al: 121) Podemos considerar como primeira manifestação grupal de crítica ao Serviço Social, até então desenvolvido, o Encontro Regional de Escolas de Serviço Social do Nordeste, realizado em janeiro de 1964, quando profissionais e docentes, face o subdesenvolvimento instalado no Nordeste, questionam a ação profissional baseada em metodologia criada 41 nos Estados Unidos, para responder aos problemas concretos da sociedade norte-americana e não aos nossos. É a chamada Reconceituação do Serviço Social, contexto de críticas aos métodos tradicionais de Serviço Social e à ideologia que os embasa. Tratou-se de um amplo questionamento proposto pelas Ciências Sociais, não devendo ser entendido como acontecimento exclusivo do Serviço Social. Questionava-se nos métodos tradicionais a visão isolada e fragmentada, a preocupação tecnicista e a pretensa neutralidade profissional. Em contrapartida propunha-se uma visão de totalidade, o objetivo indo além do nível de intervenção e participação político- ideológica. Segundo Iamamoto (2000), nos anos 80 a formação profissional e o trabalho de Serviço Social se solidificaram, possibilitando, hoje, dar um salto qualitativo na análise sobre a profissão. “A relação do debate atual com esse longo trajeto é uma relação de continuidade e de ruptura. É uma relação de continuidade, no sentido de manter as con- quistas já obtidas, preser- vando-as; mas é, também, uma relação de ruptura, em função das alterações históricas de monta que se verificam no pre- sente, da necessidade de supe- 42 ração de impasses profissionais vividos e condensados em re- clamos da categoria profissio- nal.”(Iamamoto,2000: 51) 43 CAPÍTULO II Os Currículos de Ensino do Curso de Serviço Social da Universidade Católica Dom Bosco 2.1 – O Processo de Implantação do Curso Entramos em contato com a Faculdade de Serviço Social da, hoje, Universidade Católica Dom Bosco em fevereiro de 1986, quando aí iniciamos nossa carreira docente, ministrando aulas na disciplina Serviço Social de Grupo para a turma do 5º semestre. Na época a faculdade já tinha catorze anos de existência e, com as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, Direito, Ciências Econômicas, Ciências Contábeis e Administração compunha a FUCMT – Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso. Nascera, portanto, antes da divisão do estado e, a partir de 11 de outubro de 1979, com a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, tornou-se a única faculdade de Serviço Social do estado, como o é até hoje. Pouco ou nenhum documento existe relatando a gênese da Faculdade de Serviço Social e, por esse motivo, lançamos mão de anotações feitas por pessoas que participaram dos primeiros encontros realizados para esse fim (ata grafada em folha solta), entrevistas com professores da época e consulta aos livros de atas existentes. São eles: Livro de Atas de reuniões da Congregação 44 Termo de abertura: 01 de agosto de 1972 1ª ata de reunião : 23 de junho de 1972 Última ata : 18 de fevereiro de 1991 Obs. Não há termo de encerramento Livro de Atas de reuniões do Conselho Departamental Termo de abertura: 01 de agosto de 1972 1ª ata de reunião : 09 de outubro de 1973 Última ata: : 15 de outubro de 1993 Obs.: Não há termo de encerramento Livro de Atas de reuniões do Departamento de Processos e Técnicas Termo de abertura: 17 de fevereiro de 1977 1ª ata de reunião : 06 de dezembro de 1977 Última ata : 17 de agosto de 1982 Obs.: Não há termo de encerramento Livro de atas de reuniões do Departamento de Processos e Técnicas Termo de abertura: 02 de abril de 1984 1ª ata de reunião : 02 de abril de 1984 Última ata : 10 de março de 1989 Obs.: Não há termo de encerramento Livro de Atas de reuniões do Departamento de Fundamento Teóricos do S. Social Termo de abertura: 17 de março de 1984 1ª ata de reunião : 17 de março de 1984 Última ata : 16 de setembro de 1987 Termo de Encerramento: 24 de maio de 1988 (comunicando o extravio do livro por oito meses). Livro de Atas de reuniões do Departamento de Fundamento Teóricos do S. Social Termo de abertura: 20 de maio de 1988 1ª ata de reunião : 19 de fevereiro de 1988 Última ata : 26 de novembro de 1991 Obs.: Não há termo de encerramento. Podemos dizer que os primeiros passos dados no sentido de ser criada uma Faculdade de Serviço Social em Campo Grande / MS 45 remontam do dia 19 de outubro de 1964 quando um grupo de trabalho, composto por funcionários e membros da Missão Salesiana de Mato Grosso, que já mantinha em Campo Grande, sul do estado de Mato Grosso, as faculdades de Pedagogia, Direito e Letras, reuniu-se com a finalidade de criar uma Faculdade de Serviço Social, que viria ampliar o número das Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso, a FUCMT. O referido grupo era composto por um presidente, indicado pela Missão Salesiana, Padre Felix Zavataro; um secretário, Cleomenes Nunes da Cunha, Oliva Enciso, auxiliar superintendente do SESI local e Salva Haff, assistente social do Departamento Social do SESI do Rio de Janeiro, além de Dom Antonio Barbosa mui digno bispo diocesano de Campo Grande. Na busca de contribuições para elaboração e encaminhamento de um projeto ao Conselho Federal de Educação, na mesma dada, foram enviados ofícios à Câmara dos Deputados em Cuiabá /MT (capital do estado), ao governador do estado Fernando Correia da Costa, ao governador do então estado da Guanabara, Carlos Lacerda, Nelson Pita, diretor da Divisão de Intercâmbio de Assistência Técnica do Departamento Nacional do SESI e Sandra Cavalcanti, superintendente do SESI no estado da Guanabara. O projeto foi elaborado e, em 1970, foi encaminhado ao Conselho Federal de Educação com uma solicitação de autorização para o imediato funcionamento da faculdade. 46 Assim, em 31 de julho de 1972 o Ministério de Educação autorizou o funcionamento da Faculdade de Serviço Social – FASSO4, das Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso – FUCMT, tendo como professores fundadores: Denise Nagamini João Sandes Raimunda Luzia de Brito. Como professores colaboradores: Arlete de Barros Ignês de Assis Rose Maria L. R. Sarzedo. “Eu trabalhava na Universidade Federal, que na época era esta- dual e fui surpreendido pelo pa- dre Scampini no corredor da Universidade, que vinha acom- panhado por duas senhoras do Rio, Maria Amália e Maria Aidyl, convidando para uma re- união à noite no Hotel Campo Grande. ... O padre José Scampini explicou que as professoras estavam fazendo um estudo para saber se a cidade comportava uma Escola de Serviço Social.”(D-1) “Para a criação de um curso superior era necessário três profissionais da área e o padre Scampini fez um levantamento e Campo Grande tinha exata- mente três profissionais que era eu, João Sandes e a Denise. Eu 4 Parecer 437/72 e decreto nº 70905 47 mais antiga, depois João Sandes e por último Denise, que se formou em Niterói na Universi- dade Federal Fluminense. Ai eu fui convidada para apresentar currículo e histórico escolar e toda a documentação, para que fosse criado o Curso de Serviço Social. Eu apresentei, mas antes eu fiz a colocação para o padre Scampini de toda uma situação política que eu estava sofrendo naquele momento. Respon- dendo inquérito policial militar por causa da liderança estudantil em Goiânia e ele disse que isso não tinha a menor importância. Então eu apresentei o meu currículo e foi um dos currículos apresentados para a criação da Faculdade de Serviço Social de Campo Grande.”(D-2) Em 08 de fevereiro de 1974 o Ministério de Educação nomeou uma comissão composta pelas professoras Maria Amália Soares Aroso e Maria Aidyl de Figueiredo, ambas professoras da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Brasil (hoje UFRJ), para elaborarem o estudo referente ao reconhecimento da já criada Faculdade, reconhecimento esse que ocorreu em 10 de outubro de 1975 pelo parecer nº 4024/75. De acordo com o parecer do Conselho Federal de Educação, foi, então, aprovado o seguinte corpo docente para atender o novo curso: 48 Padre Ângelo Adolfo Sanchez y Sanchez Carlos Del Torchio Ir. Circe José Morbeck Denise Nagamine Denise Tibau de Vasconcelos Dias Felix Balaniuc Padre Felix Zavataro Inês Sanchez A . de Assis Padre Inocêncio Lutzuy Ir. Irmã Zorzi João Sandes Padre José Scampini Luiz Edmundo de Faro Freire Luiz Gonzaga Machado Maria Antonieta M. de Mesquita Raimunda Luzia de Brito Sonia Grubits G. de Oliveira Sylvio Correcilla Sobrinho Padre Walter Bocchi Esses professores, entretanto, começaram a atuar gradativamente conforme a sua disciplina aparecesse no currículo e, alguns, nunca chegaram a exercer a docência no Serviço Social, como o padre Ângelo Adolfo Sanchez y Sanchez, Carlos Del Torchio, Denise Nagamine (uma das fundadoras), Denise T. de Vasconcelos Dias e a irmã Irma Zorzi que foram substituídos por professores chamados assistentes. “ A Denise fez direito e passou a trabalhar só na área de direito.”(D-2) “ A Inês mora no Rio, a última notícia que tive dela ela estava doente, Arlete mora em Brasília e freqüentemente está no exterior.”(D-1) 49 O curso de Serviço Social foi criado como curso noturno e seus professores eram, e continuam sendo, professores horistas, isto é, professores que recebem por cada hora/aula dada, contratados a cada semestre. Não existindo, de fato, a figura do professor titular prevista no Regimento Unificado da FUCMT. Ao longo dos anos a Faculdade de Serviço Social teve os seguintes diretores: Padre José Scampini 1972 a 1976 Padre Waldir Boghossian 1977 a 1979 Padre Ervino Martinuz 1980 e 1981 Padre Augusto Issas Kian 1982 e 1983 Padre Antonio Secundino de Castro 1984 (até junho) Padre Guilhermo Morales Vilazquez 1984 a 1986 Padre Afonso de Castro 1987 e 1988 Padre Geraldo Grendene 1989 a 1991 Inicialmente o diretor contou com a colaboração de uma Vice-diretora. Reivindicação do corpo docente, especialmente dos professores assistentes sociais, uma vez que o Diretor, por força do regulamento da mantenedora, tinha que ser um padre, não necessariamente com formação na área. 50 A primeira Vice-diretora foi a professora Mary Dayse Kinzo Martins que ocupou o cargo de 1973 a 1976, quando o cargo foi extinto.. Em dezembro de 1977, baseada no artigo 117 do Regimento Unificado da FUCMT, foi feita eleição para elaboração da lista tríplice da qual o Diretor escolheria uma chefe de Departamento. Foi mais votada a professora Eliza Marques Inouye, que, a partir de 1978 passou a responder pelos Departamentos de Fundamentos Teóricos e Processos e Técnicas do Serviço Social. Em agosto de 1979 a professora Maria José R. da Cruz assume a coordenação de estágio, até então coordenada pela professora Maria Emília Sulzer com a colaboração da professora Iraci Vilela Pereira e, Ivete Ângela Lemes, assume a coordenação administrativa da Faculdade. Em 1982 a professora Maria Emília Ramalho Sulzer tem maioria de votos para ocupar a chefia dos Departamentos e substitui, no cargo, a professora Eliza Marques Inouye. Em 1985 a professora Maria Emília Ramalho Sulzer deixa a Faculdade para ingressar na carreira política e, por imposição do corpo discente, descontente pelo fracasso de um evento cultural programado e que não pode ser executado por falta de uma coordenação técnica no curso, foi criado o cargo de Vice-diretora, para o qual foi indicada, pelos colegas, a professora Maria José R. da Cruz. A Vice-diretoria funcionou de 1986 a 1991. 51 A partir de dezembro de 1991 muda a estrutura da FUCMT, como processo de transição da FUCMT em UCDB – Universidade Católica Dom Bosco. Extinguem-se os cargos de Diretor, Vice-diretor e chefes de Departamento e cria-se o cargo de chefe de Departamento com a remuneração de 20 h/a semanais, para exercer a mesma função do Diretor, Vice-diretor e chefes de Departamento. Com mandato de dois anos. A escolha do chefe de Departamento, como nos casos anteriores, foi feita pelo Reitor através de lista triplica elaborada por votação do corpo docente. Marcada a primeira eleição para 03 de dezembro de 1991 foi eleita a professora Elisa Rodrigues Villanueva. Ficando o quadro da seguinte forma: Elisa Rodrigues Villanueva 1992 a 1995 Maria Aparecida de A . Ribeiro 1996 a 1999 Regina Stela A . de Almeida 2000 e 2001 Sendo, o Serviço Social um curso noturno atende, preferencialmente, a alunos trabalhadores. Alunos que vão assistir às aulas após um dia de trabalho o que levou o curso a colocar o estudante- trabalhador como centro de seus projetos e de sua missão institucional. Estimulando o estudo do tema e pesquisando a respeito. 52 “A busca do curso noturno re- presenta uma aspiração de massa, de fugir à condição so- cial, de ascender na hierarquia social, que geralmente acaba em fracasso, porque não há vínculo entre o trabalho e a escola, entre a necessidade de mudar a natureza e a organização do trabalho e o que a escola ensina. Isso porque a escola separa cultura e produção, ciência e técnica, tra- balho manual e trabalho inte- lectual.”(Castanho,1989:89) Almeida (1998), em seu estudo sobre a construção da identidade do jovem trabalhador e suas relações com a escolaridade, observa que o jovem trabalhador vive enredado em uma teia que o impede de pensar, de planejar, de descobrir-se e descobrir o mundo, vítima de estratégias de dominação, uma vez que “quanto menor for sua consciência de si e do mundo, maior será sua submissão”. Daí a ingenuidade de crer que a escolarização, por si só, é um instrumento de ascensão social, mesmo sem qualquer relação com o saber. “...mais do que a consciência de si, dá-se a consciência de si no mundo e na ânsia pela intera- ção, passo imediato e inevitável, há que se conhecer melhor o mundo, há que se conhecer melhor a si. Nesta situação a escolarização torna-se signifi- cativa ( e, certamente, foi por isso que ouvimos um dia: ‘A consciência política me fez vol- 53 tar a estudar’, uma vez que a consciência política traz con- sigo a exigência de um conhe- cimento maior do mundo, de um conhecimento maior de si. E a escolarização, deixando de ser mecanismo de ascensão social, passa a ser veículo de saber, o saber necessário para transfor- mar-se e para transformar o seu espaço no mundo.”(Almeida, 1998:108) 2.2 – Os Currículos de Ensino de 1972 a 2000 Desde sua criação, o Curso de Serviço Social da FUCMT/UCDB teve, dois currículos: O currículo aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 1970, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Parecer nº 342). Com o qual a Faculdade de Serviço Social de Campo Grande / MS iniciou sua trajetória de graduação de assistentes sociais no sul do Mato Grosso. E que, ao que tudo indica, não foi elaborado pelos profissionais da casa, mas trazido pelas professoras que estiveram no estado para estudar a possibilidade de criação da Faculdade. “... ...eu suponho, porque eu também não sei bem essa parte, que o primeiro currículo veio do Rio de Janeiro. Deve ter sido a professora Maria Amália que o trouxe.”(D-1) 54 Esse primeiro currículo vigiu por 12 anos e, apesar de aprovado em 1970, isto é, pós-reconceituação do Serviço Social, ainda dava à prática profissional uma visão fragmentada através dos métodos de caso, grupo e comunidade. 55 SERVIÇO SOCIAL QUADRO CURRICULAR INICIAL 1972 SEMESTRE I Cultura Teológica................ Direito I............................. Economia I........................ Hig. e Méd. Social I............. Psicologia I........................ Sociologia I........................ Teoria do S. S. I................. Educação Física I................ CR 02 02 03 02 04 03 04 02 SEMESTRE II Cultura Filosófica I................ Direito II............................. Economia II......................... Hig. e Méd. Social II............. Psicologia II......................... Sociologia II........................ Teoria do S. S. II.................. Educação Física II................. CR 02 02 03 02 04 03 04 02 SEMESTRE III Cultura Teológica II............. Economia III...................... Estatística I........................ Legislação Social I.............. Pesquisa Social I................. Psicologia III...................... Sociologia III...................... Teoria do S. Social III.......... Educação Física III.............. CR 02 02 02 02 03 03 03 03 02 SEMESTRE IV Cultura Filosófica II.............. Estatística II........................ Legislação Social II............... Pesquisa Social II................. Psicologia IV........................ Sociologia IV....................... Teoria do S. Social IV............ Educação Física IV................ CR 02 03 03 03 03 03 03 02 SEMESTRE V Administração I................... Comunicações I................... Estágio Superv. I................. Ética I................................ Política Social I.................... Seminário de Estágio I......... S. Social de Casos I............. S. Social de Comunidade I.... S. Social de Grupo I............. Educação Física V................ CR 02 04 04 02 04 02 02 02 02 02 SEMESTRE VI Administração II................... Comunicações II.................. Estágio Superv. II................ Ética II............................... Política Social II................... Seminário de Estágio II......... S. Social de Casos II............. S. Social de Comunidade II.... S. Social de Grupo II............ Educação Física VI................ CR 02 03 08 02 03 04 02 02 02 02 SEMESTRE VII Estágio Supervisionado III.... Est. Probl. Brasileiros I......... Ética Profissional................. Planejamento e Projetos....... Seminário de Estágio III....... S. Social de Casos III........... S. Social de Comunidade III.. S. Social de Grupo III.......... CR 08 02 02 04 06 02 02 02 SEMESTRE VIII Cultura Filosófica II.............. Estágio Superv. IV (TCC)....... Est. Probl. Brasileiros II......... Seminário de Estágio IV........ S. Social de Casos IV............ S. Social de Comunidade IV... S. Social de Grupo IV............ CR 02 08 02 06 02 02 02 56 O segundo currículo foi aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 1982 (Parecer nº 412 / 82), começou a ser implantado na FUCMT/UCDB em 1985 e que esteve em vigência até o ano 2000. A mudança de currículo exigiu empenho e dedicação do corpo docente do curso, em especial dos professores assistentes sociais. Era a primeira vez que esse corpo docente se dedicava a tarefa de elaborar um currículo, uma vez que o primeiro veio de fora já pronto. Apesar de consideráveis mudanças no aspecto teórico- metodológico, a preocupação preponderante dos docentes foi com a distribuição de disciplinas, a carga horária destinadas a cada uma delas, em especial a carga horária do estágio (mantida acima da exigência mínima). Essas preocupações, fundamentais para o bom andamento do curso, exigiram dedicação redobrada do corpo docente que não contava com horário (professores horistas) nem com pagamento de horas-extra para desenvolver o trabalho. Assim, o estudo sobre a mudança teórico- metodológica não pode ser feito em grupo, tornando-se privilégio dos professores que iriam se dedicar à ministrar a disciplina. O que levou alguns professores, os que não estavam diretamente ligados à disciplina, a manter a concepção tripartite sem atentar para a fundamental diferença expressa, especialmente, na visão de totalidade dada à prática, que passa a colocar o objetivo da ação além do nível de intervenção. Reforçando assim os 57 objetivos profissionais, como desenvolvimento de consciência crítica, estímulo a participação, desenvolvimento da sociabilidade entre outros. Assim, o chamado “novo currículo” demorou para ser absorvido. “Acho que foi um currículo que, na verdade foi modificado no sentido mais de uma exigência que tinha, porque houve a mu- dança de currículo no Brasil todo, mas eu não consegui per- ceber uma diferença daqueles alunos que foram formados an- tes de 1985 com os que foram formados depois de 1985. ......cumpriu uma exigência legal e continuou funcionando da mesma forma do currículo anterior, apenas com a diferença na questão da disciplina de teoria e metodologia do Serviço Social que houve uma preocupação de se trabalhar de forma mais integrada.”(D-3) 58 CAPÍTULO III Análise do Currículo do Curso de Serviço Social da UCDB (A pesquisa) 3.1 – Cenário e Construção da Pesquisa O cenário de nossa pesquisa caracteriza-se pelas conseqüências sociais da crise do capital. A investida conservadora neoliberal, na busca de uma alternativa que não a afaste demais do compromisso social-democrata e, ao mesmo tempo, encontre soluções políticas concretas para garantir o exercício do poder no capitalismo avançado. Situação essa que deu origem a tese de uma “terceira via” (consenso de centro-esquerda para o século XXI, defendido pelo ministro inglês Tony Blair). A “terceira via” é o equilíbrio entre os princípios neoliberais e sociais-democratas considerada hoje como alternativa ao bom desenvolvimento do capitalismo. Significa subordinar a defesa e a expansão dos ganhos defensivos dos trabalhadores na relação capital-trabalho aos imperativos da chamada economia mista. Economia mista não no sentido de equilíbrio entre indústrias estatais e privadas, mas no aspecto econômico e o não-econômico na vida da sociedade. Segundo Paniago (2000: 8), a economia mista, para tanto, deve conter medidas que privilegiem os seguintes objetivos: 59 “preservar a competição econômica quando ela é ameaçada pelo monopólio; controlar monopólios naturais; criar e sustentar as bases institucionais dos mercados; resguardar bens públicos, políticos ou culturais da intromissão indesejada do mercado; fazer uso dos mercados para objetivos de médio e longo prazo; minimizar as flutuações dos mercados, no plano macro assim como no micro; proteger as condições físicas e contratuais dos empregados, já que os trabalhadores não são uma mercadoria como outra qualquer; reagir às catástrofes e enfrenta- las, incluindo aí os efeitos catastróficos induzidos pelos mercados”. Nesse cenário, em que se busca controlar o capital ao mesmo tempo em que se cultua a liberdade individual e o mercado, é que se faz necessário a formação de profissionais capazes de reverter as conseqüências danosas da crise estrutural do capital, a ponto de resgatar a prioridade das necessidades humanas, isto é, profissionais capazes de entender o mundo atual e agir sobre ele de forma consciente e transformadora. 60 O contexto espacial de nossa pesquisa compreende a Universidade Católica Dom Bosco, situada em Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul. Universidade nascida graças à fibra de padres salesianos que aqui chegaram (Mato Grosso) em 1884, obedecendo ao plano de Dom Bosco, seu superior e criador da Congregação Salesiana, de levar amor e educação aos que aqui viviam, na crença de que “só a educação tira o homem da escravidão” A Congregação Salesiana tem sede na Itália, onde Dom Bosco vivia. Apesar de nunca ter vindo ao Brasil, Dom Bosco, fez muitas e detalhadas previsões sobre o futuro deste país, em especial sobre a Região Centro-Oeste onde assinalou a presença de riquezas minerais inimagináveis que, de fato, foram mais tarde confirmadas. Diz Dom Bosco: “ - Entre o grau 15 e 20 (Mato Grosso na faixa Cui- abá/Corumbá) há uma enseada bastante larga e bastante grande que parte de um ponto onde se forma um lago. Quando se vier cavar as minas escondidas no meio destes montes aparecerá ali a terra prometida, que jorra leite e mel. Será uma riqueza inconce- bível”. (Baez, 1988:10) 61 São João Bosco faleceu em 1888 em Turin/Itália, mas a obra salesiana continuou nesta terra levando à educação o cunho do amor ao próximo. Foi com esse espírito que em 1972 a Missão Salesiana de Mato Grosso criou o primeiro curso de Serviço Social do, hoje, estado de Mato Grosso do Sul. Mato Grosso do Sul tornou-se estado a partir de 11 de outubro de 1977, após longo tempo de luta pela divisão. Tempo esse que remonta à época da Proclamação da República quando a Constituição republicana transferiu para o estado a responsabilidade de legislar sobre as terras devolutas. Foi a concessão e ampliação do monopólio da exploração dos ervais sul-mato-grossenses à Companhia Matte Laranjeira , aliado a outros fatores, que deu início aos atritos entre o norte e sul de Mato Grosso configurando, segundo Alisolete Weingartner (1995), o movimento divisionista que só veio a se concretizar em 1977. Hoje, Mato Grosso do Sul é um estado marcado pela miscigenação entre portugueses, paraguaios e guarani e pela influência cultural de imigrantes libaneses e japoneses e migrantes goianos, mineiros, paulistas, gaúchos e paranaenses, que para cá vieram atraídos pela fertilidade do solo. Sua capital, Campo Grande, foi fundada por José Antônio Pereira, mineiro de Monte Alegre / MG que, encantado com a região, que na ocasião era ocupada por posseiros (duas famílias), vindos de Camapuã/ MS e Poconé/ MT, trouxe sua família e 62 alguns agregados, em um total de sessenta e duas pessoas, criando em 1875 um verdadeiro povoado às margens dos córregos Prosa e Segredo, que foi chamado de Campo Grande de Vacarias. “A localização geográfica de Campo Grande, aliada a outros fatores, faculta-lhe a condição de encruzilhada dos caminhos utilizados no início pelos desbravadores, depois como meio de comunicação com os diversos povoados no sul de Mato Grosso e, também é uma das passagens rumo ao Triângulo Mineiro e Oeste Paulista”5 Campo Grande cresceu e prosperou com os negócios de gado. Tornou-se um centro de comercialização de gado de onde partiam comitivas conduzindo boiadas para o Triângulo Mineiro e o Paraguai. Em 1914, a chagada dos trilhos da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil marcou decisivamente o crescimento da cidade. Entretanto, a distância da capital impedia a participação na vida política do estado. Até meados de 1940, além do transporte aéreo, bastante incipiente, o único meio de acesso à capital era o barco a vapor que, a partir de Corumbá, levava pelo menos oito dias, rio acima, para chegar à Cuiabá. 5 - Relatório da Pesquisa : “Características sócio-econômicas e políticas das famílias de baixa, média e alta renda residentes em Campo Grande/MS – Alizolete dos Santos, Dolores Ribeiro, Elisa Villanueva. 63 Separadas pela planície do Pantanal, as regiões norte e sul de Mato Grosso são bastante diferentes nos aspectos físicos, étnicos e econômicos. O norte ocupa mais de dois terços do território estadual e pertence à bacia amazônica e o sul ocupa menos de um terço do território e pertence à bacia do Prata. O norte dedicou-se à cata do ouro, à garimpagem do diamante e à extração da borracha e o sul à criação de gado, à agricultura e à exploração da erva-mate. Quanto à origem étnica, o norte recebeu maior influência de migrantes do norte e nordeste do país, que mesclados aos indígenas locais deu origem a hábitos, costumes e linguagem bastante peculiares. O sul, ao acolher mineiros, paulistas, paranaenses, gaúchos, além dos vizinhos estrangeiros, paraguaios e bolivianos e, no decorrer do tempo, italianos, sírio-libaneses e japoneses, deram vida a uma população diversificada sem características marcantes, a não ser na música que guarda a influência paraguaia. Quanto à economia, apesar do sul contribuir com dois terços da arrecadação estadual, não recebia a contrapartida equivalente. Sendo esse um dos motivos do movimento separatista que, quando se consolidou trouxe, ao Mato Grosso do Sul um tão rápido crescimento que surpreendeu as autoridades, a população e os visitantes, como um milagre de exuberância, civilização e riqueza. Cresceu o interesse pela nova capital nas mais variadas regiões do país, especialmente o interesse de 64 trabalhadores agrícolas do próprio estado, expulsos da terra por falta de incentivos para a fixação do homem ao campo, o que causou um crescimento populacional, na capital, incontrolável. Assim, desencadeiam-se transformações estruturais e conjunturais no aspecto econômico, social e político. “No final dos anos 70 e início dos anos 80, a Capital Morena assistiu ao ‘boom’ do surgimento das favelas, formadas basicamente de pessoas expulsas da terra por motivos já citados, sem emprego e sem moradia, a população, oriunda das fazendas do próprio Estado de Mato Grosso do Sul, erguia barracos precários e passava a viver em condições subumanas.”(Bittar,1999:244) Ainda, segundo Mariluce Bittar, Vila Nhanhá foi uma das primeiras favelas formadas em Campo Grande e, por ocasião de uma pesquisa realizada por acadêmicos da FUCMT, entre eles a hoje doutora Mariluce Bittar, 50% dos moradores eram provenientes do próprio estado, sendo que 34,3% destes vinham de fazendas da região. Além das favelas, o estado como um todo enfrenta, hoje, mais um grave problema social, os trabalhadores sem terra exigindo uma verdadeira reforma agrária e nações indígenas aguardando a demarcação de 65 suas terras, o que deu origem na capital à comunidade chamada de Desaldeado, onde se abrigam índios desaldeados. Nossa pesquisa tem respaldo teórico na dialética conforme entendida por Agnes Heller e em paradigmas tradicionais da corrente transformadora, mas também leva em conta a abordagem histórica defendida por Peter Burke (docente de história cultural da Universidade de Cambridge e membro do Emmanuel College) como “La nouvelle histoire”, uma vez que acreditamos na importância da história das mentalidades e em sua pressão sobre a realidade social e culturalmente construída. Assim, não deixamos de lado os pressupostos das estruturas significativas da cotidianeidade que caracterizam “a história vista de baixo” de Burke, expressos pela visão de mundo das pessoas comuns em sua existência cotidiana. “O movimento da história- vista-de-baixo também reflete uma nova determinação para considerar mais seriamente as opiniões das pessoas comuns sobre seu próprio passado do que costumavam fazer os historiadores profissionais” (Burke, 1992:16) 66 Segundo Burke, os paradigmas tradicionalmente usados fazem uma análise histórica essencialmente política, constatativa e vista de cima, motivo pelo qual nem sempre conseguem responder satisfatoriamente a todos os questionamentos que se lhes impõem, como no nosso caso em que o que nos importa não é apenas uma visão de consenso, mas também a heteroglossia, definida como “vozes variadas e opostas” em que “a percepção dos conflitos é certamente mais realçada”. “Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas, esteriótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra. Nessa situação, nossa percepção dos conflitos é certamente mais realçada por uma apresentação de pontos de vista opostos .....” (Burke, 1992:15) A sociedade em que vivemos exige de nós uma constante análise crítica da realidade, isto é, do conjunto de estruturas, organizações sociais, representações mentais que se encontram articuladas e exprimem a complexidade da existência humana que tem dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais. Para tanto, a participação consciente e crítica na vida social e política é de suma importância, assim como a sua percepção através de “vozes variadas e opostas” 67 Falamos de participação no sentido a ela dado por Safira Amman “processo mediante o qual as diversas camadas sociais tomam parte na produção, na gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade historicamente determinada..” (1991: 17) Participação essa que tem como essencial a interpretação/compreensão dos fatos, através da aproximação/conhecimento, e de vozes variadas e opostas por nós captadas em nossas entrevistas e pesquisas documentais. “Nesse sentido, a linguagem pode expressar tanto a alienação do homem de si mesmo como sua resistência e criatividade na vida social” (Yazbek, 1996: 77,78) Suely Mello, em sua tese de doutorado “A obviedade como obstáculo ao desenvolvimento da consciência crítica do educador” (São Carlos,1996), ressalta que a consciência e a linguagem se relacionam no processo de trabalho e são o resultado histórico e social da atividade humana. A linguagem é elemento essencial no processo de abstração e na organização da percepção e apreensão da realidade, sua aquisição impõe um salto qualitativo do comportamento humano. “É o pensamento abstrato – verbal, conceitual, categorial, tipicamente humano – que 68 permite que os processos externos sejam interiorizados no plano da consciência, se generalizem, se fixem, e transcendam os limites da percepção sensorial imediata.” (Mello, 1996:48) Daí nosso interesse em, ao realizar as entrevistas, levar em conta o processo de apreensão da realidade envolto na linguagem, embora saibamos que a linguagem verbal nem sempre é comunicativa, assim como a comunicação não se expressa apenas pela linguagem verbal. Há comunicados não verbais por meio do silêncio, do olhar ou do gesto que não podemos desprezar. Assim, neste trabalho procuramos explicitar e sistematizar o conteúdo das mensagens colhidas através das entrevistas realizadas, a fim de nos permitir inferir juízo de valor sobre as significações, ou seja, aquilo que está por traz das palavras. A análise de conteúdo. Segundo Laurence Bardin, análise de conteúdo é: “Um conjunto de técnicas de análise das comunicações vi- sando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de des- crição do conteúdo das mensa- gens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a infe- rência de conhecimentos relati- vos às condições de produ- ção/recepção (variáveis inferi- 69 das) destas mensagens.” (Bardin,1979:42) Podemos dizer que nosso estudo foi realizado através de uma pesquisa etnográfica e, portanto, qualitativa o que exigiu nosso contato direto com o campo, e habilidade suficiente para inspirar confiança, ser pessoalmente comprometida, autodisciplinada, sensível, madura e consistente de forma a garantir a confidencialidade das informações. “Enquanto cientistas sociais que trabalham com estatística apre- endem dos fenômenos apenas a região ‘visível, ecológica, mor- fológica e concreta’, a aborda- gem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas”. (Minayo,1994:22) Assim fundamentada ouvimos, através de entrevistas semi- estruturadas, os professores que participaram da elaboração do currículo de ensino referente à resolução nº 06 de 23 de novembro de 1982 do Conselho Federal de Educação – parecer 734/85, implantado na FUCMT a partir de 1985. Buscamos proporcionar um clima de interação que permitisse a abordagem do tema sem imposições ou mesmo uma ordem rígida de questões. As respostas verbais não foram as únicas fontes de informações mas, e principalmente, as expressões, entonações, alterações de ritmo e hesitações, enfim, toda uma comunicação não verbal cuja captação foi de 70 importância fundamental na compreensão efetiva do fenômeno pesquisado. Durante as entrevistas procuramos intervir minimamente a fim de que o entrevistado pudesse sentir-se livre para fazer suas associações em relação ao tema proposto. A técnica de entrevista exige a capacidade de ouvir com atenção e estimular o fluxo natural das informações, sem se descuidar do respeito ao pluralismo de idéias que deve imperar em um campo de ensino. Utilizamos um roteiro flexível, que respeitava o encadeamento lógico do assunto, sem saltos bruscos, com o objetivo de garantir o aprofundamento gradativo do conhecimento. Fizemos uso do gravador sempre que o entrevistado o permitiu. Certa da adequação do paradigma qualitativo e do instrumental utilizado, procuramos obter uma visão geral da concepção de currículo buscada, alicerçando os dados obtidos em uma pesquisa bibliográfica e documental, na articulação criativa e na humildade de reconhecer que todo conhecimento científico é condicionado historicamente, provisório e, portanto, não é tão preciso quanto a própria realidade. A pesquisa bibliográfica embasou todo o nosso trabalho. Quanto à pesquisa documental fizemos uso dos livros de ata existentes (cinco), de documentos como, Leis estaduais e federais relativas à criação da Faculdade de Serviço Social das Faculdades Unidas 71 Católicas de Mato Grosso – FUCMT, antecessora do atual Curso de Serviço Social da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, bem como do Estatuto, do Regimento Interno, Decretos e Leis de criação da UCDB, além do relatório de avaliação do curso realizado por perito de MEC (exigência para transformação em universidade). A pesquisa documental permite a interpretação dos dados tanto de forma quantitativa quanto de forma qualitativa, pela análise de conteúdo que possibilita a interpretação não só do conteúdo manifesto, mas também do conteúdo latente das comunicações e foi esta última que utilizamos. Quanto a organização e análise dos dados, procuramos fazer uso de categorias tanto previamente definidas, como consciência crítica, transformação social e alienação, presentes na visão de mundo dos professores elaboradores do currículo, quanto as que vieram a surgir do decorrer das entrevistas, como compromisso e participação. “As categorias são empregadas para estabelecer classificações. Nesse sentido, trabalhar com elas significa agrupar elemen- tos, idéias ou expressões em torno de um conceito capaz de abranger tudo isso. (...) As ca- tegorias podem ser estabeleci- das antes do trabalho de campo, na fase exploratória da pes- quisa, ou a partir da coleta de dados. Aquelas estabelecidas 72 antes são conceitos mais gerais e mais abstratos. Esse tipo re- quer uma fundamentação teó- rica sólida por parte do pesqui- sador. Já as que são formula- das a partir da coleta de dados são mais específicas e mais concretas.” (Minayo,1994:70) A análise dos dados fundamentou-se no contexto dialético helleriano, cuja interpretação baseia-se na compreensão dos fatos surgidos com a visão dialético/existencialista de Agnes Heller. As comunicações individuais, as observações de condutas e costumes foram consideradas e analisadas em seu conteúdo mais profundo, através da análise de conteúdo (conjunto de técnicas de análise das comunicações) bastante estudada por Laurence Bardin. 3.2 – A análise O estudo que ora apresentamos busca compreender o alcance pedagógico do currículo da FASSO/UCDB, período 1985 a 2000, partindo de reflexões sobre o processo de sua elaboração até a interpretação e avaliação dos dados colhidos, à luz da teoria dialética conforme entendida por Agnes Heller. 73 Agnes Heller representa hoje o novo caminho que a filosofia contemporânea encontrou para enfrentar as dificuldades do momento em que vivemos, repleto de crises frente às doutrinas já definidas. Discípula de Georg Luckács, Heller nasceu na Hungria em 1929. É prestigiada figura da Escola de Budapeste e em sua vida traz experiências do mundo soviético, onde viveu até 1978 e do mundo capitalista (Nova York) onde vive atualmente. “Há passagens inteiras nos escritos de Heller que poderiam, com certa facilidade, ser atribuídas a algum filósofo existencialista, talvez não a Kierkegaard ou Heidgger, mas possivelmente a Sartre ou Merleau-Ponty. Em um de seus mais recentes trabalhos, fala da possibilidade de se combinar a filosofia social com a filosofia existencial e, a partir daí, analisar a situação das pessoas precipitadas num mundo concreto por circunstâncias de nascimento.”(Granjo,2000:12) Trata-se de um estudo de natureza compreensiva e explicativa, cuja proximidade aos atores do processo nos permitiu avaliar o alcance pedagógico do currículo, através da sistematização dos dados sob a forma de categorias que expressam as características dadas à formação 74 profissional do assistente social. São eles a consciência crítica, a transformação social, a alienação, a participação e o compromisso. Para tanto, entrevistamos quatro professores que compunham a comissão formada na época para elaborar o currículo. “... o diretor informou ser o estudo do currículo da Faculdade de Serviço Social o motivo da convocação, .... a seguir, solicitou que os professores assistentes sociais se reunissem para elaboração do currículo ideal, cuja proposta poderia ser vista e analisada pelos outros professores, que se ateriam às próprias disciplinas. Estando de acordo com a sugestão feita, os professores Antonio Garcia Dias, Vânia Chaves Aragão, Raimunda Luzia de Brito, Iraci Vilela Pereira, Eliza Marques Inouye, Tereza Keiko Shimabukuro, João Sandes, Maria José Rodrigues da Cruz e Áurea Machado Vidal formaram uma comissão com reuniões marcadas para as quarta-feiras durante os dois primeiros tempos de aula.”(13/05/81- Ata Reunião da Congregação) A convocação feita denotou um alto grau de liberdade emanado da direção geral da FUCMT. Entretanto, essa autonomia não se verificou mais tarde. 75 Apesar dos professores terem, por diversas vezes, abordado o assunto implantação do novo currículo, as reuniões, de fato, só em 1984 passaram a ser sistemáticas e realizadas, semanalmente, após as aulas. Começavam às 22:30 h e se prolongavam, algumas vezes, até às 3 horas da manhã. “Foram feitas inúmeras reuniões, na verdade não sei precisar quantas, porque ficamos vários anos discutindo. ... Durante o ano de 1984 é que nós nos reunimos semanalmente discutindo a proposta do novo currículo. (D-3) “A gente conversava sobre o assunto até que o prazo foi se aproximando e começamos a nos reunir. Nós dávamos aulas até 22:30 h e nos sentávamos para discutir o currículo enquanto agüentasse. Duas horas, duas e meia, três horas da manhã estávamos lá discutindo. Era o grupo de sempre, agora desfalcado pelas professoras Iraci e Vânia , mas que é sempre aquele grupo que fica, que discute e está sempre participando.”(D-4) O chamado “grupo de sempre” era composto pelos professores Vânia Chaves Aragão, Iraci Vilela Pereira, João Sandes, Raimunda Luzia de Brito, Maria José Rodrigues da Cruz e Antonio Garcia 76 Dias. Destes, conseguimos ouvir Maria José, Iraci, João e Raimunda, os demais não nos foi possível ouvir. Apesar da importância do assunto essas inúmeras reuniões não foram registradas em atas, só podendo ser resgatado o que foi possível ser lembrado por seus participantes. Daí, a importância dos depoimentos colhidos, para o conhecimento da participação docente nas diretrizes do ensino, além das motivações e intencionalidades que caracterizaram a sua elaboração. “Não, não tiveram ata porque não existia alguém que estivesse coordenando” (D-3) Por se tratarem de professores horistas, a grande maioria das reuniões não era paga. Somente a uma reunião, a reunião mensal do curso, eram pagas duas horas/aula. As reuniões eram feitas por interesse pessoal dos professores, o que denota um alto grau de compromisso com o curso e de participação nas decisões que sobre ele eram tomadas. Segundo Miriam Padilha (1988), assumir um compromisso efetivo com os interesses dos grupos sociais com os quais se trabalha denota visão política e fortalece a organização e o poder de pressão e de reivindicação do grupo. Em 1985 a professora Maria José R. da Cruz foi indicada por seus pares para assumir, o reaberto cargo de vice-diretora da FASSO, 77 extinto desde a saída da professora Mary Dayse em 1976 e o curso ganhou visibilidade e voz junto à direção. A união do “grupo de sempre” foi decisiva quando, ao ser encaminhado o currículo elaborado pelo corpo docente à direção geral da Faculdade para aprovação, a direção reformulou-o totalmente, devolvendo ao curso um currículo que não correspondia ao desejo do grupo, nem atendia à orientação emanada da ABEPSS. “Chamamos o diretor e não aceitamos as modificações que eles tinham feito. Questionamos que eles não eram profissionais da área, eles não tinham conhecimento e não podiam mudar (só) porque eles achavam que tinha que ser assim. E nós é que detínhamos esse conhecimento”(D-4) O corpo docente revoltou-se e tomou a decisão de não aceitar o currículo imposto. Currículo esse que dava à psicologia a maior carga horária do curso (o diretor do curso era psicólogo) e colocava História do Serviço Social, disciplina nova na grade, no último semestre do curso, quando ela havia sido proposta para o primeiro semestre. Muitas outras discrepâncias foram questionadas, mas não foi possível lembra-las todas. Diante da resistência do grupo de professores encabeçado pela vice-diretora, o diretor propôs que fosse apresentada uma contra- proposta. 78 “Ficamos uma tarde inteirinha discutindo. Colocamos no quadro negro semestre por semestre e fomos argumentando porque tinha que ser daquela forma, para o diretor, o padre Morales. Então ele pediu que nós elegêssemos um representante dos professores e um representante dos alunos, para ir à reunião em que seria novamente discutida e votada a grade.”(D-3) Foi elaborada, então, a terceira grade curricular que, ao ser levada para a aprovação no Conselho de Ensino e Pesquisa, no qual não havia representante do Curso de Serviço Social, foi permitida a presença de um professor e um acadêmico do curso, para defender a proposta sem, entretanto, direito a voto. Participou dessa reunião a professora Iraci Vilela Pereira e a acadêmica Maria Aparecida (não foi possível recordar o sobrenome), que defenderam e conseguiram a aprovação da nova grade. “Nós tivemos que ceder em al- guma coisa, mas nós mantive- mos assim, aproximadamente e aleatoriamente 75% (da pro- posta). Inclusive estágio. Por- que obrigatoriamente o estágio pode ter apenas 10% da carga horária total do curso. Se era de 2.700 horas, o estágio cairia pata 270 horas e nós não acei- tamos e continuamos com as quinhentas e poucas que tínha- mos”(D-3) 79 As reivindicações de diminuição da carga horária de psicologia, da mudança de semestre para a história do Serviço Social, entre outras, foram aceitas sendo aprovado o seguinte currículo: SERVIÇO SOCIAL QUADRO CURRICULAR 1982 SEMESTRE I Cultura Teológica I.............. Economia I........................ Metodologia Científica I........ Filosofia I........................... História do Serv. Social I...... Psicologia I........................ Sociologia I........................ Educação Física I................ CR 02 04 02 04 02 04 04 02 SEMESTRE II Cultura Teológica II.............. Economia II......................... Metodologia Científica II........ Filosofia II........................... História do Serv. Social II...... Psicologia II......................... Sociologia II........................ Educação Física II................. CR 02 04 02 04 02 04 04 02 SEMESTRE III Antropologia I..................... Direito e Legisl. Social I........ Form. Social, Econ. e Pol. Brasil I............................... Psicologia III...................... Teoria do S. Social I............. Estatística I........................ Pesquisa em Serv. Social I.... CR 02 04 02 02 04 02 04 SEMESTRE IV Antropologia II..................... Direito e Legisl. Social II....... Form. Social, Econ. e Pol. Brasil II.............................. Psicologia IV........................ Teoria do S. Social II............ Língua Portuguesa I.............. Estágio Supervisionado I....... Estatística II........................ Pesquisa em Serv. Social II... CR 02 04 02 02 02 02 04 02 04 SEMESTRE V Planej. em Serv. Social I...... Desenvolv. de Comun. I....... Estágio Supervisionado II..... EPB I................................. Metod. do Serv. Social I....... Ética Prof. Em Serv. Social.... Língua Portuguesa II............ CR 04 03 08 02 04 04 02 SEMESTRE VI Planej. em Serv. Social II...... Desenvolv. de Comun. II....... Estágio Supervisionado III..... EPB II................................. Metod. do Serv. Social II....... Política Social I.................... CR 04 02 08 02 04 04 SEMESTRE VII Estágio Supervisionado IV.... Política Social II.................. Orientação TCC I................. Admin. Em Serv. Social I...... Metod. do Serv. Social III..... Seminário I........................ CR 08 04 02 04 04 04 SEMESTRE VIII Doutrina Social Cristã........... Orientação TCC II................. Admin. Em Serv. Social II...... Metod. do Serv. Social IV...... Seminário II........................ CR 03 02 04 04 04 Horas Aula: 2.844 - Estágio: 504 - Total: 3.348 80 O currículo, conseguido graças à garra dos professores do curso, teve incluso, além da disciplina Cultura Teológica (presente na proposta dos professores), a disciplina Doutrina Social Cristã considerada dispensável por poder ser incluída na disciplina Cultura Teológica. Não só essas disciplinas extrapolaram o currículo mínimo, enriquecendo mais a formação dos acadêmicos, mas também a disciplina Português, alvo de muitos debates nas reuniões de elaboração do currículo. Alguns professores consideravam-na necessária devido a baixa qualificação dos acadêmicos nessa área e outros não aceitavam que essa dificuldade fosse ser resolvida no âmbito universitário. Estes últimos preferiam desconhecer a realidade cultural dos acadêmicos, mesmo sabendo ser essa atitude uma forma de exclusão, inaceitável em uma perspectiva intercultural crítica. Também ampliaram o currículo as disciplinas Seminário I e Seminário II que permitiam a escolha de temas atuais pelos acadêmicos, para serem apresentados e debatidos. Este foi o espaço mais democrático e participativo e que possibilitaria o estudo de temas regionais e locais como a situação agrária, a situação indígena e os problemas locais criados pelo crescimento exagerado de Campo Grande com a promoção à capital, após a divisão de estado. Entretanto, por muito tempo as turmas (7º e 8º semestres) revezavam a solicitação por seminários de Dinâmica de Grupo e Serviço 81 Social de Empresa, com raras solicitações de te