UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes – Campus São Paulo PAULO RODRIGUES DA SILVA EDUCAÇÃO MUSICAL E A PEDAGOGIA DE PROJETOS Um enfoque no ensino fundamental da cidade de São Paulo São Paulo 2024 PAULO RODRIGUES DA SILVA EDUCAÇÃO MUSICAL E A PEDAGOGIA DE PROJETOS: Um enfoque no ensino fundamental da cidade de São Paulo Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da UNESP para obtenção do título de Licenciado em Música. Orientadora: Profa. Dra. Margarete Arroyo. São Paulo 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. S586e Silva, Paulo Rodrigues da, 1983- Educação musical e a pedagogia de projetos : um enfoque no ensino fundamental da cidade de São Paulo / Paulo Rodrigues da Silva. -- São Paulo, 2024. 83 f. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Margarete Arroyo. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Música - Instrução e estudo. 2. Educação. 3. Ensino fundamental. 4. Método de projeto no ensino. I. Arroyo, Margarete. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.7 Bibliotecária responsável: Luciana Corts Mendes - CRB/8 10531 PAULO RODRIGUES DA SILVA EDUCAÇÃO MUSICAL E A PEDAGOGIA DE PROJETOS: Um enfoque no ensino fundamental da cidade de São Paulo Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da UNESP para obtenção do título de Licenciado em Música. São Paulo, 11 de dezembro de 2020 Banca Examinadora: ________________________________________ Prof.ª Dra. Margarete Arroyo (orientadora) ________________________________________ Prof.ª Dra. Rita Luciana Berti Bredariolli DEDICADO à minha mãe, pela fé e dedicação de toda uma vida; à minha madrinha Geralda, meu padrinho Raimundo, e minha avó Maria, por serem verdadeiros anjos-da-guarda; à minha tia Cida, pelos primeiros acordes ao violão; à minha filha Ana Lívia, pelo farol que me inspira. AGRADECIMENTOS À minha orientadora Prof.ª Dra. Margarete Arroyo por compartilhar seu tempo e paixão pela docência. Também por ser extremamente criteriosa, uma inesgotável fonte de conhecimentos e uma referência inspiradora. Eternamente grato! À Prof.ª Dra. Rita Luciana B. Bredariolli por aceitar decidida e carinhosamente avaliar este trabalho. Também pela sensibilidade docente, pela poesia e boniteza que marcaram suas aulas e pela grandeza acadêmica. Aos professores do Instituto de Artes da UNESP aos quais guardo profunda identificação na atividade docente e na relação humana: Dra. Gabriela Bortz, Dra. Yara Caznok, Ma. Isabel Cristina D. Bertevelli, Dr. Wladimir F. Contesini de Mattos, Dr. Maurício F. de Bonis e o Maestro Dr. Lutero Rodrigues. Aos professores do Instituto de Artes da UNESP que, mesmo sendo admiráveis pessoas e profissionais, divergi didática e pedagogicamente, aumentando a certeza de realizar este trabalho: Dr. Fábio Miguel (em memória) e Dr. Marcos F. Pupo Nogueira. Ao Mestre de Maracatu Jorge Fofão e ao grupo Baque Livre – São Paulo pela recepção, convivência e aprendizados. A todos(as) os(as) mestres/docentes que passaram em minha vida! Ao Adegreil por termos iniciado juntos e a quem devo boa parte desta trajetória. Também pela indelével hombridade, pelo carinho e respeito e pela criatividade. À Prof.ª Rosa Campos pela amizade, consideração e pelas conversas reflexivas. À Renata pela parceria, dedicação e paciência dos últimos cinco anos. À minha irmã Janete e meus irmãos Sérgio e Lucas aos quais tenho profundo amor e admiração. Aos meus primos Reginaldo e Adriano. Ao primeiro por ser meu parceiro e uma grande inspiração; ao segundo pelo talento e juventude contagiantes. Aos familiares mais próximos que sempre me valorizaram. E àqueles distantes também. Aos amigos e educadores Adriane, Cláudia e Zé Santos ao quais espero que este trabalho seja útil. Também pelo carinho e aprendizados construídos. Ao meu amigo Zé Matias (em memória) por sua ética, garra e capricho. Também pelo incentivo e legado. A todos os amigos e amigas mais próximos pelo apoio e incentivo que nunca faltaram. E àqueles distantes também. A todos os funcionários e funcionárias da BIA – Biblioteca do Instituto de Artes da UNESP – SP. Especialmente à Clarissa, Fabiana, Luciana, Mariana e Paulo. Ao prof. Wladimir Farto Contesini de Mattos, pela indispensável ajuda e dedicação. ... o professor é sobretudo motivador, alguém a serviço da emancipação do aluno, nunca é a medida do que o aluno deve estudar [...] o aluno leva para a vida não o que decora, mas o que cria por si mesmo. Pedro Demo (1996) RESUMO Buscamos estabelecer uma relação entre o aprendizado de música no ensino fundamental e os paradigmas da educação para o séc. XXI que surgem das novas formas de comunicação e de produção da informação. Após breve contextualização histórica do ensino de Arte no Brasil do séc. XX, nos debruçamos sobre a fundamentação teórica que embasa objeto de interesse: as múltiplas inteligências e a necessidade de garantir a autonomia do estudante e o ensino significativo de Arte. Apresentamos a Pesquisa e a Aprendizagem Baseada em Projetos como os principais caminhos para a ruptura com as abordagens tradicionais calcadas na fragmentação do conhecimento em disciplinas, pela organização escolar em salas de aula e pela aula expositiva. Com esse objetivo, realizamos uma revisão bibliográfica sobre o tema, consultamos a legislação histórica e em vigor e investigamos os instrumentos didáticos – como os Roteiros de Aprendizagem - e o projeto pedagógico da escola municipal Desembargador Amorim Lima. Não se encontrará aqui a simples execração do método tradicional e o enaltecimento dos métodos “alternativos”. Contudo, pretende-se apontar as contradições entre os documentos legais e os currículos em relação à aplicação prática e a realidade escolar, bem como apontar caminhos quanto à abordagem didático-pedagógica e a organização do espaço escolar e do currículo. Apontamos, de forma contundente, o colapso do atual modelo educacional brasileiro e as dificuldades em sua superação, sobretudo no ensino de Arte. Com este trabalho, procuramos enfatizar a necessária coragem e vontade política, dentro e fora da instituição escolar, além do esforço para romper com as práticas enraizadas e já ultrapassadas para uma nova realidade que se apresenta. Acreditamos que somente o enfoque no estudante e suas características individuais pode apontar as soluções que consideramos mais adequadas e contemporâneas. PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia de Projetos, Educação Musical, Ensino de Arte, Aprendizagem Significativa, Educação do séc. XXI, Pesquisa e Autonomia, EMEF Desembargador Amorim Lima. ABSTRACT We aim to establish a connection between music education in elementary schools and the educational paradigms of the 21st century that emerge from new forms of communication and information production. After a brief historical contextualization of Arts education in Brazil during the 20th century, we delve into the theoretical foundations underlying our object of interest: multiple intelligences and the need to ensure student autonomy and meaningful Arts education. We present Project-Based Research and Learning as the primary paths to breaking away from traditional approaches rooted in the fragmentation of knowledge into disciplines, the organization of schools into classrooms, and lecture-based teaching. To this end, we conducted a literature review on the topic, consulted both historical and current legislation, and investigated educational tools—such as Learning Guides—and the pedagogical project of the municipal school Desembargador Amorim Lima. This work does not simply condemn traditional methods while praising "alternative" methods. However, it aims to highlight the contradictions between legal documents and curricula regarding practical application and school reality, as well as to suggest pathways for didactic- pedagogical approaches and the organization of school spaces and curricula. We strongly point out the collapse of the current Brazilian educational model and the difficulties in overcoming it, especially in Arts education. Through this work, we seek to emphasize the necessary courage and political will, both within and outside the school institution, in addition to the effort needed to break with entrenched and outdated practices in light of a new emerging reality. We believe that only a focus on the student and their individual characteristics can point to the solutions we consider most appropriate and contemporary. KEYWORDS: Project-Based Learning, Music Education, Art Education, Meaningful Learning, 21st Century Education, Research and Autonomy, EMEF Desembargador Amorim Lima. SUMÁRIO 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................ 7 2. A ESCOLA PÚBLICA E O ENSINO DE ARTE NO BRASIL DO SÉC. XX ........ 11 3. AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS (IM) E O ENSINO DE ARTE ....................... 25 4. CURRÍCULO DE ARTE: LEGISLAÇÃO E PRÁTICA CONTEMPORÂNEA ...... 34 5. A PESQUISA COMO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO ..................................... 43 6. APRENDIZAGEM BASEADA EM PROJETOS - ABP ....................................... 53 7. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO AMORIM LIMA ...................................... 57 8. A ARTE NO AMORIM LIMA E NO ENSINO FUNDAMENTAL .......................... 60 8.1. UM ROTEIRO ARTICULADO PELA MÚSICA ................................................. 67 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 71 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 77 7 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Vivemos um momento de reflexão histórica sobre os métodos e abordagens didático-pedagógicas no ensino escolar. Atravessando a pandemia de Covid-19 notamos a fragilidade e anacronismo do sistema educacional brasileiro, sobretudo no que tange ao ensino público em todos os níveis. Não se trata apenas da realidade brasileira, mas sobretudo aqui, o ambiente escolar e sua filosofia encontram-se em descompasso com o perfil e demandas do estudante desta década. Observa-se a presença conflitante de metodologias e tecnologias do séc. XIX, docentes do séc. XX e estudantes do séc. XXI (Diálogos, 5:18 min). [...] algo muito importante permanece igual em vários lugares do Brasil e do mundo: a escola. Tudo mudou muito rápido e a educação precisa mudar também. Da forma como está, a escola tem dificuldade de dar conta do recado e manter bons resultados, que vão desde um melhor desenvolvimento dos alunos até o combate à defasagem entre idade e série, diminuindo a repetência e a evasão escolar. Essa mudança não deve acontecer só com a redefinição de como as atividades e o conteúdo são apresentados em sala de aula. É preciso que você tenha claro o objetivo de preparar crianças e adolescentes para a vida, ajudando-os a se desenvolverem integralmente. Isso significa oferecer oportunidades para que se fortaleçam não só nas competências básicas (aquelas também conhecidas como intelectuais), mas também nas competências para o século XXI (Fundação, 2016). Com relação ao docente, sua formação é precária, não favorece a autonomia discente na produção do conhecimento e sua atuação é destituída das condições e valorização necessárias para garantir a qualidade do ensino. Neste momento de pandemia e isolamento social, nos deparamos com uma enorme variedade de terminologias e conceitos, muitas vezes, pleonásticos: ensino à distância, ensino virtual, ensino remoto, ensino semipresencial, ensino híbrido, entre outros. O certo é que em qualquer uma dessas modalidades, estamos lidando com uma sociedade fundada na cultura das redes sociais, no aprendizado em redes e perpassada pelas tecnologias da informática e da comunicação: senão uma sociedade do conhecimento – já que esse envolve critérios para seu estabelecimento, uma sociedade da informação. Nesse sentido, é preciso clareza quanto ao perfil do estudante que nos chega como “matéria-prima” nas escolas. O estudante exige protagonismo, autonomia e uma relação dialética e horizontalizada na construção dos saberes que, em muitos 8 aspectos, são conceitos pressupostos das metodologias ativas surgidas no início do séc. XX, notadamente no ensino de Arte. O estudante da terceira década do séc. XXI tem necessidades e características que distam profundamente daquelas do início deste século e abissais em relação ao século anterior. As estratégias, conceitos e princípios educativos inovadores que impulsionaram o séc. XX estão sobejamente ultrapassados pelo avanço tecnológico que marca as novas relações humanas. Ou seja, as abordagens didático-pedagógicas, os materiais didáticos, a estrutura e formatação do ambiente escolar e do currículo estão, via de regra, obsoletos para a contemporaneidade. Em nossa percepção, o ensino de Arte na escolarização fundamental é relegado ao segundo plano e carece de valorização numa sociedade cuja economia é estruturada em outras habilidades, como a linguística e o raciocínio lógico- matemático. Evidencia-se que, não raras vezes, a prática artística no ambiente escolar se configura como mero momento de entretenimento e diversão. Uma hipótese é de que o aprendizado deste conteúdo conduz à emancipação política, qualifica as relações sociais, promove o autoconhecimento e autonomia do estudante. Outra que nos ocorre, sobretudo nas instituições que adotam a Pedagogia de Projetos, é que o conteúdo de Arte pode ser aproveitado e potencializado como articulador de aprendizagens interdisciplinares e significativas. Ainda no contexto escolar, nos interessa amplamente dialogar com os processos de avaliação e sua relação com a qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Sendo assim, nosso objeto principal é investigar as possibilidades das abordagens didático-pedagógicas, metodológicas e dos conteúdos da atividade artístico-musical no ensino fundamental com enfoque nas escolas públicas que utilizam a Pedagogia de Projetos, fazendo um recorte no currículo escolar da cidade de São Paulo. Justificamos, portanto, que é preciso investigar mais profundamente as mudanças necessárias no papel da escola e do docente, que se encontra – mais que nunca - em franco questionamento. A instituição escolar se mostra impermeável às mudanças de comportamento e tecnológicas aceleradas, principalmente nas últimas duas décadas - após os anos 2000. Nossa aposta é que a Pedagogia de Projetos aponta importante alternativa às formas tradicionais de ensino-aprendizagem e de interpretação da realidade. Cada vez mais os estudantes aprendem em rede, 9 comunicados entre si e com o mundo extraescolar mediados pelas tecnologias midiáticas. Consideramos que a linguagem artística tem inequívoco potencial na consolidação e valorização desses aspectos. O que propomos não é a superação abrupta e açodada do modelo educacional tradicional, mas perceber que é necessário reorientar e construir novas possibilidades, aproveitando aquilo que é válido daquelas práticas, sem receio de incorporar o “espírito do nosso tempo”, de atualizar-nos e atender as demandas que se impõem inexoravelmente. No segundo capítulo nos preocupamos em entender, mesmo que em linhas gerais, a evolução da implementação da escola pública no Brasil do séc. XX. O país acabara de abandonar quatro séculos de regime escravocrata e passaria por longos períodos de ditadura (Getúlio Vargas e o Regime Militar). No contexto nacional e internacional, o capitalismo aprofunda as desigualdades sociais e a revolução tecnológica e dos veículos de comunicação em massa será a marca daquele período. Assim, as legislações brasileiras, inclusive na área da educação e, portanto, no ensino regular de Arte, vão sendo moldadas aos solavancos e orientadas pelas experiências internacionais, notadamente da Europa. No terceiro capítulo investigamos o caráter multidisciplinar do aprendizado em Arte e procuramos estabelecer um paralelo com a teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner. Também constatamos os postulados de tal teoria na construção histórica das políticas públicas do ensino de Arte no que diz respeito à dimensão interdisciplinar. Já no quarto capítulo nos debruçamos sobre as legislações do ensino de Arte, sobretudo no âmbito federal e do município de São Paulo. Pudemos identificar os preceitos teóricos e as proposições práticas que tornam o processo de ensino- aprendizagem mais adequado à contemporaneidade. Contudo, atestamos a contradição entre a legislação e sua aplicação na realidade das escolas públicas. No quinto capítulo - um dos mais importantes desse trabalho - trazemos o conceito da Pesquisa como instrumento pedagógico, tendo como principal referência as ideias do prof. Pedro Demo. Para nós, é urgente que se faça essa guinada conceitual e a produção de conhecimento passe a valorizar as necessidades e possibilidades do aluno e não interesses alheios. Fica claro, ao longo de todo esse trabalho que o desafio atual da escola é o da “ensinagem”, conforme enfatiza o 10 professor português José Pacheco (Diálogos, 3:40 min). As dificuldades para alcançar um processo de educação significativa e de qualidade não está, via de regra, nas limitações do estudante, mas entranhadas na formatação do ambiente escolar e na atividade docente. No sexto capítulo discorremos sobre a abordagem didático-pedagógica da Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP). Nos parece imperativo romper os paradigmas dos modelos tradicionais engessados em que a aula expositiva1 é o principal instrumento de ensino. Aqui, constatamos, existem caminho mais adequados e atrativos para o estudante do séc. XXI, que é um nativo digital e possui uma relação própria com o espaço/tempo, com o consumo/aquisição de informação e a produção do conhecimento. Por fim, nos capítulos sete e oito trazemos uma análise do PPP Desembargador Amorim Lima, da cidade de São Paulo e o ensino de Arte no Ensino Fundamental. A base filosófica do referido PPP está na autonomia do estudante por meio da pesquisa e da integração e participação ativa de toda a comunidade escolar. Trata-se de um processo horizontalizado em que docentes e discentes são responsáveis pela produção do conhecimento e amadurecimento da cidadania, com ética e responsabilidade social. Elaboramos uma proposta de Roteiro de Aprendizagem tendo a música como componente disparador. Pedimos licença a(o) leitor(a) que nos permita, apenas por questão de conveniência prática e de padronização, quando se tratar de nossa redação autoral, a nos referir majoritariamente como o estudante, o docente, etc. No caso do ensino fundamental, por exemplo, não se ignora que a maioria esmagadora são professoras. Portanto, queremos reconhecer e nos alinhar com o legítimo movimento que procura combater, no emprego linguístico, a violência simbólica que acaba por privilegiar termos no masculino. Feitas essas colocações, vamos aos capítulos deste trabalho de conclusão de curso. 1 “[no século XX] se tornou a representação mais clara de um ensino diretivo e tradicional, que tem por base a transmissão do conhecimento do mestre para o aluno [...] a aula expositiva se consolidou como prática pedagógica na Idade Média pelas mãos dos jesuítas, se transformando na estratégia mais utilizada nas escolas - quando não a única. A transmissão do conhecimento, sobretudo pela linguagem verbal, era uma corrente hegemônica. Acreditava-se que bastava o mestre falar para as crianças aprenderem” (Fernandes; Santomauro, 2011) 11 2. A ESCOLA PÚBLICA E O ENSINO DE ARTE NO BRASIL DO SÉC. XX No início da República no Brasil, na passagem para o séc. XX, a conturbada sociedade brasileira procurou na Europa e nas práticas norte-americanas as referências para implementação do seu modelo de escola pública. Para aqueles pensadores, a escola era a base do desenvolvimento e transformação sociais e da construção da democracia e, sobretudo naquele período, a consolidação das ciências condizia com essa compreensão. Muitas dessas modificações foram no sentido de “compreender a infância, dando ênfase a um ativismo nos ideários educacionais libertários. Como fundamento dessa nova consciência educacional estavam as descobertas da psicologia e os movimentos de emancipação das massas populares” (Darius, R.; Darius, F., 2018, p. 33). Nesse período, houve a consolidação da escola pública e sua abertura às massas e às correntes ideológicas. Sobre isso, no ensino de Arte, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) traz que foi [...] na confluência da antropologia, da filosofia, da psicologia, da psicanálise, da crítica de arte, da psicopedagogia e das tendências estéticas da modernidade [que] surgiram autores que formularam os princípios inovadores para o ensino de artes plásticas, música, teatro e dança. Tais princípios reconheciam a arte da criança como manifestação espontânea e auto- expressiva: valorizavam a livre expressão e a sensibilização para a experimentação artística como orientações que visavam o desenvolvimento do potencial criador, ou seja, eram propostas centradas na questão do desenvolvimento do aluno (Brasil, 1997, p. 20). Todos os benefícios referentes à qualidade de vida advindos do desenvolvimento do capitalismo e do avanço tecnológico e científico foram incorporados apenas por uma parcela privilegiada, agravando as diferenças entre as classes sociais - trabalhadores versus detentores do poder político e econômico: a desigualdade social é característica inerente do modo capitalista de produção. Neste contexto, apenas uma pequena parte da sociedade conseguia acesso à escolarização, sobretudo no ensino superior. Embora seja uma afirmação ainda hoje verdadeira, naquele período a educação jamais conseguiu cumprir seu ideal utópico de aplainar as diferenças e garantir uma sociedade verdadeiramente democrática. Conforme Saviani apud Darius e Darius (2018, p. 34), para a época: “o projeto 12 pedagógico que deveria ser o sonho possível se mantém nos mesmos patamares dos últimos duzentos anos [...]”. Saviani divide a história da educação brasileira em duas etapas: a primeira entre 1549 até 1890, compreendendo os períodos do ensino Jesuítico/Religioso (1549-1759)2; Reforma Pombalina (1759-1827)3 e; domínio do Estado (1827-1890)4. Sucede então, outra etapa com o surgimento dos Grupos Escolares, marcando a origem da escola pública: implantação gradativa das escolas primárias e escolas normais de formação de professores (1890-1931); regulamentação dos ciclos da escola primária, secundária e superior (1931-1961) e; leis de Diretrizes e Bases da Educação nº4.024/61 e 9.394/96 (1961-1996). Explica que esta última foi marcada por um aspecto paradoxal: se por um lado garantiu maior acesso da população ampliando sua estrutura e criaram-se os cursos de pós-graduação e o Ministério da Educação, do outro, o analfabetismo persistia, houve baixa qualidade do ensino e não se consolidou um sistema unificado para o país. Surgidos primeiro no Rio de Janeiro e São Paulo no final do séc. XIX, logo os Grupos Escolares se espalharam por todo o país instituindo a base do ensino fundamental na escola pública. Sua presença tem destaque no período da Primeira República, entre 1889 e 1929 (Rossi, 2017). “Os Grupos Escolares centralizavam num único prédio as antigas escolas isoladas, organizando o ensino em salas seriadas e 2 O ensino jesuítico foi uma das principais reações da igreja católica à reforma protestante. No Brasil, se prestou ao projeto de colonização portuguesa ao promover a domesticação e conversão dos indígenas à fé cristã. As características do ensino eclesiástico implementado pela Companhia de Jesus, tanto em Portugal quanto na colônia, Brasil, eram a “busca da perfeição humana por intermédio da palavra de Deus e a vontade dos homens; obediência absoluta e sem limites aos superiores; disciplina severa e rígida; hierarquia baseada na estrutura militar; valorização da aptidão pessoal de seus membros” (Maciel; Neto, 2006, p. 468). 3 Para Maciel e Neto (2006), a reforma pombalina foi inspirada no Iluminismo europeu e visava a ruptura com o ensino jesuítico, pretendendo fazer de Portugal um centro de poder cultural, político e econômico. Pombal defendeu uma instrução pública e laica, controlada pela Coroa, com vistas a preparar a sociedade para o novo momento histórico que se impunha: o avanço científico e o pré-capitalismo. Para ele, a educação deveria estar a serviço dos interesses do Estado. Para o Brasil, tal reforma foi nociva, pois o crescente “espírito nacionalista” foi abafado pela destruição sistemática e permanente dos modelos educacionais postos em vigor, datando daí, a precariedade característica da educação brasileira, ou seja, a falta de continuidade e reconstrução sobre as bases históricas fundantes. Se inicia também o modelo fragmentado da instrução pública, onde existem escolas para a elite e outras para a população menos abastada, além do ensino privado favorecido pelo Estado. 4 Sob responsabilidade do Estado, a educação continuou sem avanços concretos e significativos. Suas bases foram referenciadas no “Método Lancasteriano”, de Joseph Lancaster, cuja essência era a escrita, a leitura, as quatro operações matemáticas e a geometria. Considerado o primeiro método pedagógico da instrução pública brasileira, se fundava nos conceitos da oralidade, da repetição e memorização (Krumel, 2018). 13 sequenciais sob a autoridade do professor. Nesse momento passa a existir o diretor, e uma nova hierarquia se configura na escola pública” (Vidal apud Darius, R.; Darius, F., 2018, p. 36). O Estado passa a ser responsável pela construção de prédios e pela manutenção da estrutura do ensino, cuja matrícula entre os 7 e 12 anos era obrigatória. Propondo uma inovação metodológica e dos conteúdos, grande parte da preocupação se dirigiu então à formação dos professores, na grande maioria leigos até aquele momento. Contudo, o crescimento urbano, o custo para a manutenção e construção de novos prédios, a contratação e formação de profissionais e alguma resistência por parte dos setores da sociedade – alegando que as crianças passavam muito tempo na escola – foram fatores que fizeram persistir grande número de analfabetos. Embora o analfabetismo tenha sido uma marca indelével da educação pública, esse modelo conduziu no final do séc. XX a um grande aumento no acesso, saltando de cerca de 20 para 36 milhões entre 1975 a 1999. Ao mesmo tempo das mudanças promovidas pelos Grupos Escolares, reorganizando o tempo e o espaço escolar, com o currículo voltado para o conhecimento enciclopédico, o grupo Escola Nova5 (principalmente entre 1920 e 1940) já propagava ideias de um ensino baseado na metodologia de projetos, centros de interesse e a pesquisa. Sem que caiba abordar todos os aspectos históricos, precisamos mencionar o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova6 que, em essência, assimilava o ideário dos defensores do movimento Escola Nova. Tal documento, elaborado em 1932, possuía caráter profundamente nacionalista e era inspirado nas proposições do educador americano John Dewey7. Propunha a transformação social a partir da revolução educacional e a 5 No Brasil, o ideário visava a preparação para a sociedade industrial emergente e a superação das desigualdades sociais: promover a mobilidade social mediante uma escolarização adequada e voltada para o indivíduo, desde que não lhe faltasse o esforço e talento (pedagogia liberal – economia e política burguesa). Na abordagem pedagógica, o aluno - e não o professor - é o centro do processo educativo, devendo-se respeitar seus interesses e limitações. O professor deve provocar a curiosidade e viabilizar a experiência, a espontaneidade e a pesquisa, partindo do concreto para o teórico (Santos; Prestes; Vale, 2006, p. 135, p. 138) 6 1932 - Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova: A reconstrução educacional no Brasil, escrito por Fernando Azevedo e assinado por intelectuais como Carneiro Leão, Hermes Lima e Anísio Teixeira. É considerado o documento que acentuou a disputa entre progressistas e conservadores (Santos; Prestes; Vale, 2006, p. 137) 7 “filósofo norteamericano, nasceu em Burlington, no Estado de Vermont (EUA), em 20 de outubro de 1859. Formou-se bacharel em artes pela Universidade de Vermont e foi professor em pequenas escolas de sua região. Seu interesse por filosofia surgiu nos estudos secundários, que o guiaram para seu título de doutorado em 1884, com a defesa da tese a respeito da psicologia de Kant. Demonstrou também, em sua educação superior, certo 14 superação da abordagem pedagógica vigente – identificada como Tradicional e Burguesa dualista – para centrar-se no interesse e espontaneidade da criança, nos seus aspectos psicobiológicos e na valorização do trabalho em grupo: a defesa era promover “a atividade espontânea, alegre e fecunda, dirigida à satisfação das necessidades do próprio indivíduo” (Darius, R.; Darius, F., 2018). Seguindo, passamos a expor e dialogar com as informações e conclusões de Vera Lúcia Gomes Jardim, cujo estudo procura compreender o trajeto histórico do currículo e das metodologias em música entre 1938 e 1971, sob o ponto de vista do ensino especializado (artístico) e escolar (educacional). A autora observa que os temas relativos à didática e a pedagogia foram recentemente incorporados e que, embora se tenha a divisão de Bacharelado e Licenciatura em música, grande parte daqueles que se formam como especialistas no instrumento (ou composição e regência) se envolvem com atividades de ensino da música no contexto formal ou informal. Jardim explica que no Brasil Imperial, por volta de 1840, o ensino de música (no caráter especializado, com finalidades artísticas) era promovido apenas para os mais abastados da sociedade e não havia nenhum interesse do governo brasileiro em estimular esse segmento. Naquele momento histórico os músicos não dispunham de liberdade estilística nem de prestígio econômico e social. No início da Europa moderna, de acordo com Burke apud Jardim (2009, p. 17), “uma distinção recorrente era feita entre o conhecimento teórico e prático, o conhecimento dos filósofos e dos empíricos, ou como alguns diziam, ‘ciência’ (scientia) e ‘arte’ (ars)”. Aqui, arte está no sentido do trabalho manual e artesanal, de ordem prática. Porém, serve como referência histórica para a compreensão entre as atividades de maior e menor prestígio para os momentos posteriores, inclusive no caso brasileiro. Aprender e praticar música era requisito de formação integral dos membros da elite, preparando-os para a apreciação e para o exercício da arte, mas não para o exercício da profissão. Para tanto, um curso de música integrava, desde 1838, o currículo do Imperial Colégio de Pedro II – escola de ensino secundário público destinado às elites, organizado como instituição de referência para servir de modelo [...] (Jardim, 2009, p. 17). Destaca-se a predominância do ensino teórico, do arcabouço estético e de repertório em detrimento da prática musical e do desenvolvimento da criatividade, fascínio pessoal pela teoria de Hegel, pelas ideias de Thomas Henry Huxley e, consequentemente, pela teoria Darwiniana” (Ali, 2014, p. 15). 15 abordagem evidenciada na elaboração dos currículos da época. Somente no período da Primeira República a música se “encontrou” com a educação, promovendo mudanças na concepção didático-pedagógica do ensino especializado. “[...] no projeto educacional republicano paulista (1890), com a entrada da Música como componente de ensino na escola pública, seus objetivos de saber especializado tiveram de ser redirecionados, alterando o estatuto de suas finalidades de formação artística-profissional. A Música, por esta vertente, entrou em diálogo com propostas pedagógicas, com a incorporação dos saberes advindos da psicologia, com o cientificismo do conhecimento, gerando a necessidade de adequação dos métodos [...] a música na escola assumiu um propósito de educar musicalmente, e não de instruir para a música” (Jardim, 2009, p. 33). Quanto à prática musical e ao ensino de música nos conservatórios do Rio de Janeiro e de São Paulo, no início do séc. XX, afirma que era destinada quase exclusivamente às mulheres (90%) e que “incorporava outras significações sociais que relacionavam uma prática musical diletante a uma elevação do status; era socialmente aceita quando realizada em ambientes familiares e desqualificada como exercício profissional” (Jardim, 2009, p. 30). Embora tenha havido algum avanço no sentido estético da produção musical, procurando valorizar os elementos populares e folclóricos, no que diz respeito ao ensino, a prática pedagógica pouco se alterou. Associado ao CDMSP (Conservatório Dramático e Musical de São Paulo) e promovido pela Secretaria de Educação e Saúde Pública do Estado, em 1933, foi criado o primeiro Curso Musical Infantil, que conforme as autoridades responsáveis propalavam, baseava-se nas orientações pedagógicas mais modernas. Com grande sucesso, logo se tornou referência para todo o país. Como base metodológica adotou- se os pressupostos de Émile Jacques-Dalcroze8 e, portanto, se tratava de um ambiente devidamente preparado, alegre e estimulante para a vivência integral do fazer musical. 8 “Em 1892, foi nomeado professor da cadeira de Harmonia Teórica do Conservatório de Genebra, onde lecionou durante 18 anos. Consternava-se, então, ao notar que o Conservatório formava excelentes executantes que não eram, infelizmente, ‘músicos completos’. Dedicou os primeiros 10 anos de trabalho à elaboração da Rítmica, inicialmente conhecida como Ginástica Rítmica, por tratar-se de um sistema de educação musical inteiramente fundamentado nos exercícios corporais. Seu empenho em elaborar e aplicar exercícios do ‘método integral de rítmica’ nasceu de sua convicção de que nosso intelecto, nossa sensibilidade e nosso corpo, que Montaigne considerava como intimamente ‘costurados’, apresentam-se, muitas vezes, fragmentados e até mesmo em desacordo, ‘desafinados’. A proposta de Dalcroze buscava criar uma inter-relação entre o cérebro, o ouvido e a laringe, para transformar o organismo inteiro no que ele próprio denominava de ‘ouvido interno’ (Madureira; Banks-Leite, 2010, p. 215). 16 Cabe registrar, numa breve digressão, que a filosofia e metodologia de Friedrich Wilhelm August Fröbel9 (que possivelmente influenciaram Dalcroze), já haviam sido utilizadas como base pedagógica no Jardim da Infância Caetano de Campos, ligado à Escola Normal de São Paulo, ainda no final do séc. XIX. Os pensamentos de Fröebel admitem a criança como um ser dinâmico e criativo e indicam atividades lúdico-estéticas, o jogo e o canto nas atividades escolares. Para ele, a música deve se associar ao movimento corporal e na ocupação dos espaços, promovendo a autopercepção e a percepção do mundo por parte da criança: [...] enquanto se percebe e se conhece como distinto do mundo exterior, nasce no homem o desejo de compreender a vida, a linguagem do mundo exterior e da natureza [...] as propostas de auto-desenvolvimento criador por meio dessas atividades que permitiam a expressão espontânea das crianças sustentavam a ideia de Frõebel de um desenvolvimento simultâneo das linguagens – fala, canto, raciocínio, atitudes, construções sociais. A música figurava como atividade auto-expressiva [...] (Jardim, p. 35). Em 1844, dada a importância que atribuía à música na fase pré-escolar, Fröebel publicou a obra Mutter-und Koselieder (“Os Cantos Maternais”), que trazia figuras e jogos para as crianças cantarem. A despeito de certa distorção dos seus ideais, fruto da ampla divulgação e aderência ao longo de todo o mundo, é possível sintetizar suas proposições em “liberdade” e “atividade”, onde o professor auxilia a produção de conhecimento por parte do estudante, valorizando seus saberes iniciais. Esses conceitos, supostamente, influenciaram fortemente Dalcroze e, no Brasil, o movimento Escola Nova - também chamado de Escola Ativa, Progressista, ou, ainda, Escolanovismo. A obra de Dalcroze foi a base para o ensino de música ligado ao sistema público educacional voltado para o ensino infantil: Iniciação Musical ou Musicalização. Atividades em grupo, jogos lúdicos e que estimulavam o prazer em brincar iam inserindo os conceitos musicais como as propriedades do som, o movimento corporal, a percepção espacial e a capacidade de reproduzir e improvisar. Os preceitos dessa abordagem se encaixavam com o propósito das atividades escolares, já que previam 9 “O pedagogo alemão Friedrich Wilhelm August Fröbel [1782-1852], idealizador e fundador do primeiro ‘Kindergarten’ (jardim de infância) do mundo [...] a escola é o lugar onde a criança deve aprender as coisas importantes da vida, os elementos essenciais da verdade, da justiça, da personalidade livre, da responsabilidade, da iniciativa, e não por meio dos estudos, mas por meio da vivência. Para possibilitar esse aprendizado, Fröbel via os brinquedos, o trabalho manual e o estudo da natureza como processos espontâneos na criança e, ao mesmo tempo, meios educativos” (Bastos, 2001). 17 o ensino dos aspectos teóricos após ampla vivência musical. Espelhava-se no Brasil, portanto, o desenvolvimento da pedagogia musical europeia. No ensino especializado de música, depois de muitas transformações no âmbito político e conceitual, firma-se em 1937, no Rio de Janeiro, a importante Escola Nacional de Música (ENM) em substituição ao Instituto Nacional de Música (INM). Destaca-se no curso de Professores de Instrumento a inserção das disciplinas ligadas à Pedagogia Musical, “composta das definições e conceitos da Pedagogia antiga e moderna e as concepções de ensino passivo, ativo ou funcional e a criança como centro do ensino” (Jardim, 2009, p. 41). O currículo ia além, incluindo a Psicologia Pedagógica: Tratava-se de temas como a utilização, modificação e aquisição de comportamentos. Dava-se enfoque à necessidade de adaptar o ensino às tendências naturais da criança e aos processos de Ensino Intuitivo e Educação dos Sentidos, abordando itens como: 1) Elaboração, 2) Raciocínio, 3) mecanismos de associação, 4) Análise/síntese – indução/dedução, 5) Atenção/distração, 6) Concentração e interesse, 7) Mecanismos de memória, 8) Consciência e automatismo, 9) Prontidão, repetição, transferência (Jardim, 2009, p. 41). No ensino de música passou-se a privilegiar a aprendizagem por meio da vivência, dos jogos e de conceitos sistêmicos, de ordem prática e intuitiva. Jardim destaca ainda um trecho do Programa de Ensino do Instituto Nacional de Música, de 1937: a) Exercício sobre a escada desenhada no solo: Movendo-se sobre os degraus da escada, de acordo com os sons que ouve, o aluno associa a percepção auditiva à percepção visual (distância dos degraus desenhados) e a cinestésica (movimentos executados), o que contribui grandemente para reforçar e melhorar a audição. Os exercícios podem ser: de entoação (dada uma nota, cantar a que corresponde a um novo degrau) ou de reconhecimento do intervalo dado. Brincando, a criança aprende rapidamente as notas da escala, assim como todos os intervalos [...] (Jardim, 2009, p. 41). Podemos afirmar que no controverso e instável contexto do séc. XX, as transformações políticas e sociais afetaram todas as esferas da vida em todo o mundo. O Brasil passou por significativos processos de urbanização e crescimentos populacionais e econômicos, bem como pelo aprofundamento da desigualdade social. No âmbito da educação, a Música – e não a Arte e suas demais linguagens, teve muita relevância para os interesses políticos, sobretudo nos períodos da Era Vargas (1930- 1945) e na Quarta República (1946-1964). Didática e pedagogicamente, muitas referências foram obtidas nas práticas europeias e estadunidense e em seus 18 respectivos pensadores. É nesse cenário que surgem as primeiras ideias de transformação das práticas didáticas e pedagógicas no ensino, incorporando práticas e Métodos Ativos - onde o foco deveria estar no estudante e suas necessidades – e abordagens da Pedagogia de Projetos. Era preciso, portanto, a superação do currículo enrijecido e das práticas educativas centradas na repetição e memorização para uma abordagem que se vinculasse à vida do estudante e a transformação de sua realidade. A proposta de reestruturação pedagógica do Escolanovismo, referenciada nas ideias de John Dewey, era contrária aos objetivos do Governo Vargas, que logo instaurou, através do Conselho Nacional de Educação, um sistema extremamente rígido e controlador, cujo principal objetivo era promover o sentido de unificação nacional. No campo da arte e cultura, o movimento modernista brasileiro, liderado por Mário de Andrade, se alinhava ao nacionalismo de Getúlio Vargas, pelo menos subjetivamente, no sentido de promover uma identidade nacional. Tal movimento defendia uma produção artística voltada aos aspectos do folclore e da cultura nacional, tanto na forma quanto no conteúdo. Kater (2001, p. 39), citando o musicólogo Renato Almeida, explica que no “modernismo uma coisa foi real e fecunda, reclamar que se fizesse obra nossa e nova, e bastaria ser verdadeiramente nossa pra ser nova”: buscava-se construir uma estética nacional em detrimento de estrangeirismos. Jardim destaca que esse alinhamento se fez sentir mais acentuadamente no conteúdo escolar do que na produção artística especializada, ou seja, no ensino dos conservatórios. Surge, assim, a prática do Canto Orfeônico10 como disciplina obrigatória no currículo da escola pública. Muitas eram as funções dessa estratégia. Por um lado, incutia-se o conteúdo e as mensagens de culto ao nacionalismo através das letras dos hinos pátrios e, por outro, valia-se do potencial “disciplinador” da prática musical garantindo um sentido de ordem e obediência hierárquica. Também o repertório das canções valorizava a identidade e o folclore nacional, reforçando a ideia de união. 10 Trata-se da prática coral de grandes grupos obrigatória na escola pública de ensino geral. Heitor Villa-Lobos, atendendo aos interesses do governo de Getúlio Vargas, em 1932, dará “início às monumentais demonstrações orfeônicas e à elaboração de um plano pedagógico-musical de grandes proporções. Num conjunto de ações impregnadas pelas exortações cívicas, participará enquanto agente musical (animador, regente, educador e compositor) da fixação da ideologia nacionalista decorrente do atual momento político” (Kater, 2001, p. 39). 19 Com o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1946), a música serviu a um projeto de poder e “domesticação” popular. O Canto Orfeônico, levado a cabo pelo compositor e maestro Heitor Villa-Lobos11, cumpria papel estratégico em promover um espírito nacionalista que mantivesse o povo alienado ao governo que se projetava de forma autoritária. Essencialmente centrado na reprodução metódica, o ensino de Arte transferia para as demais camadas os padrões estéticos da parcela dominante da sociedade, revestido de conceitos como organização, disciplina e precisão. Em Música, a tendência tradicionalista teve seu representante máximo no Canto Orfeônico, projeto preparado pelo compositor Heitor Villa-Lobos, na década de 30. Esse projeto constitui referência importante por ter pretendido levar a linguagem musical de maneira consistente e sistemática a todo o País. O Canto Orfeônico difundia ideias de coletividade e civismo, princípios condizentes com o momento político de então [...] esbarrou em dificuldades práticas na orientação de professores e acabou transformando a aula de música numa teoria musical baseada nos aspectos matemáticos e visuais do código musical com a memorização de peças orfeônicas, que, refletindo a época, eram de caráter folclórico, cívico e de exaltação (Brasil, 1997, p. 22). Essa base de cunho nacionalista começou a ser questionada pelo Grupo Música Viva, em documento intitulado “Manifesto de 1944”. Alguns expoentes da música foram liderados pelo professor alemão Hans-Joachim Koellreutter12, que se instalara no Brasil. Com uma abordagem do ensino de composição musical mais flexível no sentido didático e pedagógico e inspirado no dodecafonismo, o movimento defendia uma produção artística de caráter “moderno” voltado à “arte do futuro” e, de certa forma, contrário a raízes estritamente folclóricas e nacionalistas. Kater (2001, p. 14 e 15) explica que houve uma primeira fase do modernismo musical brasileiro coincidente com o movimento da Semana de Arte Moderna, entre as décadas de 1920 11 “Considerado, ainda em vida, o maior compositor das Américas, Heitor Villa-Lobos compôs cerca de 1.000 obras e sua importância reside, entre outros aspectos, no fato de ter reformulado o conceito brasileiro de nacionalismo musical, tornando-se seu maior expoente. Foi, também, através de Villa-Lobos, que a música brasileira se fez representar em outros países, culminando por se universalizar [...] preocupa-se com o descaso com que a música é tratada nas escolas brasileiras e acaba por apresentar um revolucionário plano de Educação Musical à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. A aprovação do seu projeto leva-o a mudar-se definitivamente para o Brasil [...] Com o apoio do então presidente da República, Getúlio Vargas, organiza concentrações orfeônicas grandiosas que chegam a reunir, sob sua regência, até 40 mil escolares, e, em 1942, cria o Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, cujos objetivos são: formar candidatos ao magistério orfeônico nas escolas primárias e secundárias; estudar e elaborar diretrizes para o ensino do canto orfeônico no Brasil; promover trabalhos de musicologia brasileira; realizar gravações de discos etc”. Disponível em: www.museuvillalobos.museus.gov.br/biografia. Acesso em: nov. 2020. 12 A respeito da trajetória de Koellreutter, do “Manifesto de 44” e do Grupo Música Viva, ver: Kater (2001). http://www.museuvillalobos.museus.gov.br/biografia 20 e 30. Esse momento foi marcado pela obra e o espírito inventivo de Villa-Lobos. Já na década de 1940, com o Música Viva, ocorre o que o autor denomina como segunda fase do modernismo musical do país, sob influência do atonalismo, dodecafonismo e serialismo. Aqueles que se posicionaram contra ao Música Viva, argumentavam sua nocividade à formação dos jovens compositores e à construção da estética nacional, aprofundando a disputa entre nacionalistas e vanguardistas. Os partidários do movimento Música Viva defendiam “a necessidade de educar artística e ideologicamente [...] dimensão mais ampla do termo [educar], que diz respeito ao desenvolvimento humano e não, necessariamente, à condição específica do ensino” (Jardim, 2009, p. 47). É importante explicar que os defensores do Música Viva não se pautavam exclusivamente pela estética de composição dodecafônica, mas, essencialmente, pela liberdade da pesquisa e pela busca de novas formas de expressão. Todas essas disputas ideológicas influenciaram o conceito de Educação Musical que surgia no país, exigindo novas bases didático-pedagógicas menos centradas na teoria e na técnica instrumental, seja no ensino especializado de música, seja nas escolas públicas de ensino geral, como disciplina curricular entre as demais. Essa “vertente de ensino reedita, nas devidas proporções, práticas realizadas no âmbito das escolas de formação geral, muito anteriores a essa época, que, por meio de atividades musicais, buscavam a inserção do aluno num amplo contexto cultural, sem necessariamente, visar à formação do músico” (Jardim, 2009, p. 48). Conforme mencionamos, essa abordagem intuitiva - que parte das experiências para a compreensão dos pressupostos teóricos - foi a base para a reforma da instrução pública paulista de 1890 para todas as disciplinas do currículo escolar, inclusive a música. Constituem-se, então, esforços e interesses na elaboração de metodologias e conteúdo para o ensino musical voltado à linguagem e necessidade das crianças e adolescentes, que garantisse o acesso da prática artística-musical de forma ampla, crítica e democratizada. Todo esse caldo de reflexões e disputas marcaram sensivelmente a elaboração da lei 4.024/1961, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Tal lei instaurou nas escolas públicas a Educação Musical em substituição à prática do Canto Orfeônico. 21 Com a Educação Musical, incorporaram-se nas escolas também os novos métodos que estavam sendo disseminados na Europa. Contrapondo-se ao Canto Orfeônico, passa a existir no ensino de música um outro enfoque, quando a música pode ser sentida, tocada, dançada, além de cantada. Utilizando jogos, instrumentos de percussão, rodas e brincadeiras buscava- se um desenvolvimento auditivo, rítmico, a expressão corporal e a socialização das crianças que são estimuladas a experimentar, improvisar e criar (Brasil, 1997, p. 23). No entanto, investigando os PCNs, observamos que o papel do fazer artístico dentro das instituições escolares esteve longe do ideal emancipatório do indivíduo ou a serviço de despertar habilidades que pudessem ser aproveitadas em outras áreas do conhecimento. Assim foi até 1971, quando uma nova LDB definiu a presença da Educação Artística no currículo como atividade educativa - não como disciplina obrigatória. A crítica feita sobre os desdobramentos da LDB 5.692/71 recai sobre o fato de não exigir o docente como especialista em uma determinada linguagem artística, postulando o conceito de polivalência. Conforme lemos no PCN Arte (Brasil, 1997, p. 24): Os professores passam a atuar em todas as áreas artísticas, independentemente de sua formação e habilitação. Conhecer mais profundamente cada uma das modalidades artísticas, as articulações entre elas e conhecer artistas, objetos artísticos e suas histórias não faziam parte de decisões curriculares que regiam a prática educativa em Arte. Outros trechos do referido documento dão mais pistas daquele período: [...] até aproximadamente fins da década de 60 existiam pouquíssimos cursos de formação de professores nesse campo, e professores de quaisquer matérias, artistas e pessoas vindas de cursos de belas artes, escolas de artes dramáticas, de conservatórios etc. poderiam assumir as disciplinas de Desenho, Desenho Geométrico, Artes Plásticas, Música e Arte Dramática [...] A introdução da Educação Artística no currículo escolar foi um avanço, principalmente pelo aspecto de sustentação legal para essa prática e por considerar que houve um entendimento em relação à arte na formação dos indivíduos. No entanto, o resultado dessa proposição foi contraditório e paradoxal. Muitos professores não estavam habilitados e, menos ainda, preparados para o domínio de várias linguagens, que deveriam ser incluídas no conjunto das atividades artísticas (Artes Plásticas, Educação Musical, Artes Cênicas) [...] as faculdades que formavam para Educação Artística, criadas na época especialmente para cobrir o mercado aberto pela lei, não estavam instrumentadas para a formação mais sólida do professor, oferecendo cursos eminentemente técnicos, sem bases conceituais. Nessa situação, os professores tentavam equacionar um elenco de objetivos inatingíveis, com atividades múltiplas, envolvendo exercícios musicais, plásticos, corporais, sem conhecê-los bem e que eram justificados e divididos apenas pelas faixas etárias (Brasil, 1997, p. 26, p. 27). 22 Deste modo, concluímos que a má formação do docente, o currículo impositivo, o pouco tempo destinado à disciplina e, principalmente, as condições de trabalho, não favoreceram o ensino de arte como atividade educativa de fato emancipadora. Não nos parece haver nada de errado com o conceito de Educação Artística (ou Arte- educação), maculado pela proposição de polivalência didático-pedagógica. O que ocorreu naquele momento histórico, nas décadas de 70 e 80, aparentemente, foi uma grande deficiência na implementação. Um sólido plano estratégico/conceitual e econômico e boa vontade sempre são, historicamente, barreiras quase intransponíveis na implementação de políticas públicas. Reconhecemos que não é factível que um profissional ministre todas as linguagens artísticas simultaneamente, conforme era a proposta. No entanto, mesmo admitindo a necessidade de especialização em uma determinada linguagem, para fins educacionais, tanto é necessário dialogar com as demais, quanto é evidente que existe uma base didática, pedagógica e de conteúdo comum entre elas. O insucesso não ocorreu por causa do conceito, mas sim pela estruturação das políticas de educação àquele respeito. Para nós, seria mais razoável admitir a formação numa área comum – a Arte, com abordagens didáticas e pedagógicas que favoreçam a integração entre as linguagens artísticas e promover, de acordo com a aptidão e escolha de cada docente, a especialização em uma delas. Tal como ocorre nos cursos de engenharia ou medicina, por exemplo: na parte inicial do currículo todos partilham de uma grade comum e básica de formação até que o profissional escolha em qual área se tornará especialista, posteriormente. Insistimos que não parece racional falarmos em áreas de conhecimento, dissolução do conceito estanque de “disciplina” e criarmos cursos isolados de Licenciatura em Música, em teatro, em dança e em artes plásticas. O conveniente, sugerimos, seria a Licenciatura em Arte, ou Arte-educação, com a necessária e devida especialização em uma de suas linguagens. Como componente curricular, concordamos que o aprendizado de Música – e Arte, favorece outras áreas do conhecimento. Se trata de permitir o desenvolvimento integral do estudante na fase de escolarização, conforme preconiza Howard Gardner. Não defendemos que a Música na escola seja focada na aquisição de habilidades exclusivamente técnicas com o intuito de formação profissional – na verdade, isso seria impossível, indesejável e impraticável. Do contrário, seria louvável se 23 conseguíssemos favorecer que os estudantes se valessem da linguagem e do fazer musical para proveito em outras áreas do conhecimento. No currículo, matemática interage com física, português é base para todas a demais, geografia e história andam juntas, biologia conversa diretamente com química, etc. Na prática, comumente vemos abordagens didáticas e pedagógicas que fazem uso da música para melhorar o desempenho do estudante em matemática, português, relações interpessoais, criatividade, etc. Talvez, deva ser essa mesma a função do ensino de Arte no currículo escolar, e não se trata de apequená-la. Não se trata de reduzir o fazer artístico e musical a mero coadjuvante curricular ou atividade recreativa, relegando à segundo plano a qualidade da prática artística, mas sim indicar seu uso mais democrático e abrangente no ambiente escolar. Não se trata, tampouco, de negar a necessidade de praticar e fazer Arte com qualidade e consciência artística. Dominar a linguagem simbólica da arte e sua carga cultural inerente é de grande proveito para todos e se potencializa quanto mais cedo se propicia esse contato às crianças e jovens, sobretudo para aqueles que poderão desenvolver interesse para seguir profissionalmente como artistas. Nossas proposições encontram eco nos idos anos 80, com o surgimento do movimento Arte-Educação, que organizou um amplo debate acerca da caracterização curricular e pedagógica da Educação Artística, culminando na LDB de 1996, tornando- a disciplina obrigatória e como área de conhecimento autônoma denominada Arte. A esse respeito, vale destacar a Proposta Triangular do Ensino de Arte, elaborada por Ana Mae Barbosa13 e amplamente difundida no país a partir do início do séc. XXI. Essencialmente, a proposta tem por premissa a integração entre o fazer, a apreciação e a contextualização da atividade artística – por isso triangular. Não há dúvida que um dos primeiros e mais importantes passos nessa direção é a formação docente. Sobre esse grande desafio o que lemos nos PCNs ainda hoje se revela atual. Quanto à 13 “Professora de pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA, Ana Mae Barbosa é uma das principais referências brasileiras em arte-educação e, embora já aposentada, ainda é disputada pelos alunos da instituição como orientadora. Desenvolveu, influenciada diretamente por Paulo Freire, o que chamou de abordagem triangular para o ensino de artes, concepção sustentada sobre a contextualização da obra, sua apreciação e o fazer artístico. A pesquisadora foi, também, a primeira a sistematizar o ensino de arte em museus, quando dirigiu o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC”. Disponível em: www.iea.usp.br/pessoas/pasta-pessoaa/ana-mae-barbosa. Acesso em: out. 2020. http://www.iea.usp.br/pessoas/pasta-pessoaa/ana-mae-barbosa 24 formação docente e às condições de trabalho para o ensino de Arte nas escolas, temos que [...] um sistema extremamente precário de formação reforça o espaço pouco definido da área com relação às outras disciplinas do currículo escolar. Sem uma consciência clara de sua função e sem uma fundamentação consistente de arte como área de conhecimento com conteúdos específicos, os professores não conseguem formular um quadro de referências conceituais e metodológicas para alicerçar sua ação pedagógica; não há material adequado para as aulas práticas, nem material didático de qualidade para dar suporte às aulas teóricas (Brasil, 1997, p. 26). Com isso concluímos nosso objetivo de apresentar um panorama geral da evolução do ensino de Arte e de Música nas escolas públicas ao longo do séc. XX. Também nos interessou os processos didáticos-pedagógicos e os desafios em termos da formação docente, bem como as escolhas políticas que definiram as propostas de educação postas em vigor. O que propomos, na sequência do trabalho, é investigar o diálogo entre as diversas linguagens artísticas e como podem ser aproveitadas para o desenvolvimento integral do estudante e, além disso, como o conteúdo de Arte – reivindicando o seu fim em si mesmo, com autonomia de práxis - pode ser transversal no currículo escolar, favorecendo e se beneficiando de outras áreas do conhecimento. 25 3. AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS (IM) E O ENSINO DE ARTE De acordo com os PCNs em Arte, essa área do conhecimento é indispensável para o indivíduo contemporâneo, seja para ampliar sua capacidade criativa, seja para incutir valores de socialização com a diversidade cultural, tendo sua importância equivalente às demais do currículo. Produzindo e apreciando os produtos artísticos autorais, de terceiros e até mesmo os padrões encontrados na natureza, os estudantes são estimulados a refletir, sentir, imaginar e ampliar suas capacidades estéticas e críticas. Destaca-se o fato inconteste de que ao potencializar a capacidade criativa e inventiva do estudante, a prática artística favorece o aprendizado em outras áreas como na elaboração de um texto, no estabelecimento de relações históricas e sociais, na resolução de situações-problema envolvendo habilidades lógicas, no desenvolvimento interpessoal, no autoconhecimento, entre muitos outros. “A arte possibilita ao indivíduo a compreensão mais significativa das questões sociais. Ela ensina que é possível transformar a existência, que é preciso mudar referências a cada momento, ser flexível” (Trajano, 2008, p. 77). Criar e conhecer são ações complementares e indissociáveis. O atual mundo do trabalho exige, cada vez mais, a capacidade criativa, portanto, é necessário oferecer essa oportunidade no período escolar. O ser humano que não conhece arte tem uma experiência de aprendizagem limitada, escapa-lhe a dimensão do sonho, da força comunicativa dos objetos à sua volta, da sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das cores e formas, dos gestos e luzes que buscam o sentido da vida (Brasil, 1997, p.19) [...] O que distingue essencialmente a criação artística das outras modalidades de conhecimento humano é a qualidade de comunicação entre os seres humanos que a obra de arte propicia, por uma utilização particular das formas de linguagem (Brasil, 1997, p. 28) Impressiona o quanto os referenciais trazidos pelos PCNs de Arte de 1997/98 se colocam de modo atual. Mais do que isso, nos causa verdadeira perplexidade que se possam desconhecê-los – ou conhecê-los e não buscar sua efetiva implementação até os dias de hoje. Os documentos esclarecem que o ensino-aprendizagem em Arte é extremamente rico e cheio de possibilidades de desenvolvimento das múltiplas capacidades cognitivas: 26 [...] entende-se que aprender arte envolve não apenas uma atividade de produção artística pelos alunos, mas também a conquista da significação do que fazem, pelo desenvolvimento da percepção estética, alimentada pelo contato com o fenômeno artístico visto como objeto de cultura através da história e como conjunto organizado de relações formais. É importante que os alunos compreendam o sentido do fazer artístico; que suas experiências de desenhar, cantar, dançar ou dramatizar não são atividades que visam distraí-los da “seriedade” das outras disciplinas. Ao fazer e conhecer arte o aluno percorre trajetos de aprendizagem que propiciam conhecimentos específicos sobre sua relação com o mundo. Além disso, desenvolvem potencialidades (como percepção, observação, imaginação e sensibilidade) que podem alicerçar a consciência do seu lugar no mundo e também contribuem inegavelmente para sua apreensão significativa dos conteúdos das outras disciplinas do currículo (Brasil, 1997, p. 32) Quanto aos métodos e estratégias didáticas e pedagógicas, também encontramos uma indicação clara e que hoje nos parece cada vez mais alinhada com as demandas do mundo contemporâneo: Ensinar arte em consonância com os modos de aprendizagem do aluno, significa, então, não isolar a escola da informação sobre a produção histórica e social da arte e, ao mesmo tempo, garantir ao aluno a liberdade de imaginar e edificar propostas artísticas pessoais ou grupais com base em intenções próprias. E tudo isso integrado aos aspectos lúdicos e prazerosos que se apresentam durante a atividade artística (Brasil, 1997, p. 35). Observando a premissa de que a Arte articula diversos saberes e potencialidades, decidimos investigar esse diálogo com as demais áreas do conhecimento. Em suas pesquisas, Alexandre Trajano (2008) procura estabelecer, inicialmente, uma relação entre a teoria das Inteligências Múltiplas (IM) de Howard Gardner14 e os Métodos Ativos em Educação Musical, tendo como referência os postulados de Émile-Jacques Dalcroze (1865-1950), Edgar Willems (1890-1978) e Shinichi Suzuki (1898-1998). As IM identificadas nessa teoria são: Linguística, Lógico- Matemática, Cinestésico-Corporal, Espacial, Musical, Interpessoal e Intrapessoal. Aqui, já podemos ver o destaque dado por Gardner à atividade musical, dedicando um tipo de inteligência exclusivo. As demais linguagens artísticas, como o teatro, a dança e as artes plásticas, contidas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), são abrigadas na interseção destas inteligências. Obviamente, também para o fazer 14 “Formado no campo da psicologia e da neurologia, o cientista norteamericano Howard Gardner causou forte impacto na área educacional com sua teoria das inteligências múltiplas, divulgada no início da década de 1980. Seu interesse pelos processos de aprendizado já estava presente nos primeiros estudos de pós-graduação, quando pesquisou as descobertas do suíço Jean Piaget (1896-1980). Por outro lado, a dedicação à música e às artes, que começou na infância, o levou a supor que as noções consagradas a respeito das aptidões intelectuais humanas eram parciais e insuficientes” (Ferrari, 2008). 27 musical são exigidas outras inteligências. Em suma, qualquer atividade criativa é um fenômeno complexo e exige a combinação múltiplas habilidades. Trajano investiga também o trabalho de outros autores que utilizam os conceitos de Gardner. Em geral, de acordo com ele, tais autores abordam as várias inteligências apresentadas na teoria de modo isolado, propondo métodos de identificá- las e potencializá-las separadamente. No entanto, explica que originalmente a teoria das IM propõe a compreensão sistêmica entre elas, considerando que o nível com que cada uma se manifesta determina as capacidades do indivíduo, tendo em conta a interação entre as inteligências. Ademais, Gardner “considera não apenas elementos inatos, treinos repetitivos ou lúdicos, mas também, a cultura e o ambiente em que vive o indivíduo, ou seja, seu contexto relacional” (Trajano, 2008, p. 13). O pesquisador identifica um caráter democrático na abordagem de Gardner no sentido de contemplar a diversidade dos estudantes e, com relação ao aprendizado de música, comenta que torna possível ao professor [...] trabalhar com as inteligências de forma a identificar qual o melhor caminho a ser adotado nos processos de ensino/aprendizagem musical. Poderíamos supor que um aluno com extremo desenvolvimento da inteligência lógico-matemática, com certeza, estaria mais motivado para o conhecimento da estrutura morfológica da música [...] ao estudo da harmonia, da forma, da análise e da composição. Outro, com mais desenvolvimento cinestésico-corporal estaria mais habilitado às práticas instrumentais, e assim por diante. Na prática em conjunto, a inteligência interpessoal tornar-se-ia indispensável [...] A inteligência linguística proporcionaria uma consciência mais aprofundada da música enquanto linguagem, já a inteligência espacial passaria a ser indispensável para o instrumentista interagir com seu instrumento [...] Um compositor também deveria ter uma inteligência interpessoal bastante desenvolvida para ser capaz de transportar seus pensamentos [...] (Trajano, 2008, p. 15). Dessa maneira, é inescapável idealizar o processo de ensino-aprendizagem numa perspectiva interdisciplinar. Concordamos amplamente com Trajano, que ao citar Marília Freitas de Campos, afirma que o conceito de interdisciplinaridade “pressupõe a busca da integração para além da troca de informação sobre objetivos, conteúdos, procedimentos e compatibilização de bibliografia entre docentes, pois é uma tentativa de maior integração dos caminhos epistemológicos, da metodologia e da organização do ensino nas escolas” (Trajano, 2008, p. 18). Não se trata de extinguir as especificidades de cada área do conhecimento, mas de reconhecer a conexão entre elas e usufruir das contribuições de cada uma. Para esse propósito, entendemos 28 que as abordagens da Pedagogia de Projetos ou da Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP) são extremamente promissoras. Não será nosso propósito detalhar a construção da teoria de Gardner nem discutir os vários conceitos historicamente atribuídos à inteligência. Vamos admitir como pressuposto a validade da teoria supracitada e apenas reafirmar o fato de que as inteligências lógico-matemática e linguística são mais conhecidas, pesquisadas, aceitas e, portanto, mais valorizadas. Ainda hoje, há quem acredita que essas duas habilidades são mais importantes e defendem que o indivíduo que as possui pode desenvolver quaisquer outras habilidades ou capacidades. Os testes psicométricos, normalmente, focam apenas essas duas dimensões da capacidade cognitiva. Essa abordagem não encontra eco na teoria de Gardner. Ele próprio admite dificuldade em definir histórica e biologicamente as inteligências e aponta a constante integração entre elas. Todas estão presentes nas atividades humanas em maior ou menor grau e suas delimitações possuem objetivo unicamente metodológico. Trajano explica que, para Gardner, a inteligência musical se assemelha à linguística, no sentido da percepção do discurso e na exigência de um universo simbólico específico e bem definido. Como suas especificidades, destaca “a apreciação da melodia e da harmonia; a sensibilidade ao ritmo; a capacidade de reconhecer variações no timbre e na tonalidade e a capacidade de captar a estrutura do funcionamento da música” (Trajano, 2008, p. 31). De acordo com Trajano, dentre as maneiras que Gardner supõe ser possível alterar a capacidade cognitiva, ou seja, produzir novos conhecimentos, destacamos a redescrição representacional: Podemos imaginar que a educação pode utilizar redescrições representacionais em várias situações, seja para implantação de novos conhecimentos, seja para a alteração de paradigmas já consolidados [...] são procedimentos mentais que permitem ao indivíduo receber a mesma mensagem de maneira diferente [...] Se esses aspectos forem objetos de reflexão por parte do professor, ele poderá promover a transmutação cognitiva nos processos de ensino/aprendizagem, pois as redescrições representacionais permitem ao indivíduo atuar com uma multiplicidade de interpretações sobre o mesmo objeto e valorizar as diversas inteligências em uma mesma circunstância [...] Gardner viu na arte a capacidade de mudar padrões mentais. Ao invés de operar com a inteligência linguística, como fazem os cientistas, pensadores, líderes de nações ou grupos homogêneos, os artistas utilizam diversas formas de representação mental capturadas em uma variedade de sistemas simbólicos tradicionais e inovadores [...]” (Trajano, 2008, p. 36, p. 37). 29 Assim, justificamos nossa proposta de elaborar Roteiros de Aprendizagem – que vamos detalhar mais adiante - tendo como foco a atividade e os conteúdos artísticos-musicais, tomando os postulados da IM como a essência de atividades multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares, conforme propõe Gardner. Segundo Trajano, Gardner embasa suas proposições em duas correntes de pesquisa: a estruturalista e a filosófica. Na primeira destacam-se o biólogo e pedagogo Jean Piaget, o linguista Noam Chomsky e o antropólogo Lévi-Strauss e na segunda, os filósofos Ernest Cassier e Nelson Goodman e a filósofa Susanne Langer. Os estruturalistas propõem uma compreensão relativamente limitada do funcionamento da mente humana. Seu sistema de interpretação deixa pouca margem para o pensamento criativo e se pauta, principalmente, por resultados obtidos a partir da ação e da linguagem, observando o desenvolvimento quase exclusivamente biológico do corpo. Os adeptos das proposições de Piaget sugerem que o desenvolvimento se dá a partir da adaptação do corpo com o meio externo, mediado pela experiência e amadurecimento das capacidades mentais, ou seja, por estágios de desenvolvimento intelectual. Em linhas gerais, se apoiam em características genéticas e psicológicas do indivíduo, procurando um modelo de explicação lógico e universal. Gardner apud Trajano (2008, p. 42) pondera que Piaget, em sintonia com as tradições científicas da época, contemplou “somente as operações lógico-matemáticas, deixando de lado a arte e a literatura. No seu zelo por captar as operações da mente, acabou por negligenciar a esfera do sentimento [...]”. Assim, a teoria do desenvolvimento de Piaget desconsidera os aspectos dos sentimentos, das emoções e da criatividade, às quais Gardner atribui relevância considerável na construção da inteligência humana. Por outro lado, Chomsky considera os aspectos criativos e simbólicos originados na capacidade linguística, chegando a afirmar que alguns dos seus traços manifestam-se de forma inata, desenvolvendo-se naturalmente durante o crescimento da criança. Para ele, diferentemente de Piaget, os processos cognitivos não se desenvolvem em estágios, pois não acredita que formas superiores de raciocínio possam derivar de outras inferiores. Chomsky sugere que a capacidade de relacionar os símbolos e se comunicar através deles não ocorre a partir de um determinado estágio, como Piaget. Do contrário, acredita ser uma habilidade independente das 30 demais e presente desde os primeiros anos de vida. Ainda a esse respeito, Chomsky atribui à linguagem um protagonismo na construção do pensamento, enquanto Piaget admite que é composto por várias capacidades simultâneas - físicas e mentais. Entre os estruturalistas, Gardner afirma que os pressupostos de Lévi-Strauss são bastante relevantes, sobretudo por atribuir grande valor à capacidade inventiva do pensamento associando forte ligação com a atividade simbólica e linguística. Também atribui importância aos aspectos culturais, comportamentais e aos fenômenos sociais, sobretudo através da manifestação artística. Por fim, Gardner considera que as limitações do estruturalismo decorrem da interpretação excessivamente fechada do pensamento criativo. Para ele, é preciso admitir que o pensamento humano opera com sistemas simbólicos e possui capacidade inventiva infinita (Trajano, 2008, p. 40- 47) Para Gardner, na corrente filosófica, a compreensão dos símbolos ligados à arte foi melhor delineada. Langer, em decorrência dos pressupostos de Cassirer, propõe as diferenças entre pensamento simbólico científico e artístico, respectivamente discursivo e representativo. Essas ideais, posteriormente, foram aprofundadas por Goodman que ampliou a categoria dos símbolos. Em sua obra, Cassirer admitiu que a construção da realidade depende do repertório simbólico do indivíduo, equiparando a “noção de mito, imaginação e outras formas de ‘imprecisão’ ou ‘ignorância’” (Gardner apud Trajano, 2008, p. 47) a importância dada à matemática e ao fazer científico. Para ele, os símbolos não se resumem em ferramentas para construir os sentidos e percepções de fora para dentro, mas sim na essência própria do pensamento, que atribui significados a partir dos sentimentos interiores aplicados à realidade, configurando as capacidades criativa e de síntese da mente. Postula que a arte pode apresentar um modo ainda mais profundo e interessante de estruturar a realidade, dado que incorpora além da dimensão objetiva, várias outras de ordem subjetiva e originais, o que não ocorre nos métodos cientificamente cartesianos. As proposições de Langer a esse respeito ampliou ainda mais a compreensão dos sistemas simbólicos. Para a autora, os símbolos discursivos requerem uma sintaxe bem definida, com regras que possam ser objetivamente reconhecidas e estão na base da comunicação das ideias nos diversos tipos de linguagem. Já os símbolos representativos incorporam, simultaneamente, um leque variado de significações e 31 precisam ser apreendidos como um todo. Essa compreensão tornou possível analisar cientificamente os aspectos dos sentimentos e das emoções humanas e o impacto da arte na vida em sociedade. Da nossa leitura depreendemos a importante relação entre as linguagens - ou sistemas simbólicos, seja no aprendizado de um idioma ou na percepção do discurso construído a partir de uma obra de arte. Através do fazer artístico o estudante comunica mais do que conceitos objetivos e “filtrados” pela linguagem verbal: deixa fluir as emoções e é estimulado a refletir através de outras perspectivas de raciocínio. Através da linguagem artística, outras habilidades cognitivas e maneiras de conhecer se estabelecem. Os avanços das pesquisas envolvendo os processos cognitivos e o fazer artístico, na atualidade, apontam essa estreita relação. No “Projeto Zero”, encabeçado por Gardner e Goodman, é possível observar como as trocas produzidas sobre a concepção de inteligência e desenvolvimento cognitivos têm afetado o mundo educativo, transformando em muito as noções consolidadas, as investigações e aplicações curriculares na educação artística [...] o funcionamento das inteligências, os processos de percepção, criatividade e os mecanismos de simbolização [...] (Trajano, 2008, p. 51). Trajano, citando o linguista Imanol Agirre, concorda que o trabalho de Gardner e Goodman vem recolocando o papel do ensino de Arte como estratégico na formação integral do indivíduo, tanto por permitir que ele conheça outros símbolos comunicativos além dos linguísticos, quanto por permitir outras formas de pensamento diferentes da objetividade lógico-matemática. Portanto, hoje a educação artística adquire notoriedade enquanto suporte ideal para a resolução de problemas na aprendizagem, tarefa bastante relevante destinada a essa área de conhecimento [...] admite que as artes, tanto quanto as ciências, podem contribuir, produzir e transmitir conhecimentos. Isso pressupõe uma matriz curricular não hierarquizada e nem ordenada, uma vez que as artes, os esportes e outras áreas não tão incentivadas pelas escolas, ocupariam o mesmo patamar que hoje é destinada às ciências naturais, à linguagem e às ciências lógico-matemáticas no ensino formal brasileiro (Imanol Agirre apud Trajano, 2008, p.52, p.56). Gardner, nos projetos que desenvolve, “prefere sempre trabalhar na área de arte com projetos de pesquisa sem oferecer um modelo de ensino artístico consolidado” (Trajano, 2008, p. 80) Uma preocupação extremamente atual que se manifesta na teoria de Gardner e objeto de nossa reflexão, refere-se à padronização dos métodos de ensino- 32 aprendizagem. Como concebe a presença de múltiplas inteligências em diferentes níveis em cada indivíduo, sugere que as abordagens didático-pedagógicas tenham enfoque, tanto quanto possível, nas particularidades dos estudantes. É preciso oportunizar que o estudante tenha à sua disposição vários caminhos cognitivos e possa usufruir daquele que mais lhe seja adequado. Deve-se, portanto, abandonar os currículos demasiadamente rijos em conteúdo e períodos de execução e flexibilizá-los de acordo com as expectativas, demandas e pré-disposição de cada estudante. Com pesar, concluímos que no Brasil, a despeito dos documentos legais reconhecerem a importância do ensino artístico, não se observa avanço significativo: seja pelo tempo exíguo destinado à essa matéria, seja pela falta de formação especializada dos docentes. O conteúdo de arte, sob o pretexto de se respeitar os conceitos de “livre expressão” e de “criatividade subjetiva”, não pode estar “solto” dentro do currículo, como uma “válvula de escape” ou simples recreação para os estudantes. Do contrário, exige problematização crítica e consciência metodológica em seu ensino. Na arte, diferentemente do que se pode supor, não vale tudo. É preciso razoável assertividade naquilo que se quer comunicar. Referente à prática artística no ambiente escolar, podemos citar alguns benefícios diretos, dentre muitos outros, como: o desenvolvimento físico e psicomotor, a percepção espacial, o aumento da criatividade, a melhora na expressividade, a autoconsciência e autoestima, a diminuição do estresse, a capacidade se posicionar criticamente, a socialização e o reconhecimento da diversidade humana e do meio ambiente. Por exemplo, ao ser capaz de expressar através de palavras os sentimentos sobre a audição sonora, conclui-se que é possível estimular a criatividade e a intuição através da música. O estudante é capaz de criar estórias e narrativas a partir do estímulo musical, ampliando consideravelmente sua capacidade cognitiva, afetiva, estética e ética. Quanto mais avançam as tecnologias que permitem estudar o comportamento cerebral, mais vemos as reações que o fazer musical causa na cognição. Por essência, o ser humano possui uma capacidade musical inata. No Brasil, graças ao movimento Arte-Educação da década de 80, a LDB de 1996 reconheceu a importância e recolocou a Arte como componente obrigatório, equiparando o conhecimento artístico ao científico. Os PCN, guardando essa recomendação, esclarecem: 33 Na verdade, nunca foi possível existir ciência sem imaginação, nem arte sem conhecimento. Tanto uma como a outra são ações criadoras na construção do devir humano. O próprio conceito de verdade científica cria mobilidade, torna-se verdade provisória, o que muito aproxima estruturalmente os produtos da ciência e da arte [...] ao fazer e conhecer arte o aluno percorre trajetos de aprendizagem que propiciam conhecimentos específicos sobre sua relação com o mundo. Além disso, desenvolvem potencialidades (com percepção, observação, imaginação e sensibilidade) que podem alicerçar a consciência do seu lugar no mundo e também contribuem inegavelmente para sua apreensão significativa dos conteúdos das outras disciplinas do currículo [...] (Brasil, 1997, p. 27, p. 32) Trajano (2008, p. 80) sugere um encaminhamento. Diante da nossa realidade pedagógica, parece-nos bem mais adequado desenvolver uma proposta de ensino musical explicitada nos capítulos iniciais deste documento, ou seja, introduzir no Ensino Fundamental um ensino musical capaz de auxiliar os processos de desenvolvimento cognitivo do aluno, propiciando maior integração da música com as demais áreas de conhecimento, promovendo um trabalho musical sensibilizador. A proposta estaria amparada nos textos de Eliana Leão destinados exclusivamente ao ensino musical, nos próprios parâmetros curriculares, convergindo com o sentido que H. Gardner confere ao ensino artístico. Assim, justificamos a decisiva relevância do aprendizado de Arte na formação geral do estudante no período escolar. Verificamos que a atual legislação se alinha com as proposições de Howard Gardner e outros autores que estudam os impactos do fazer artístico no desenvolvimento humano. Para atingir tais objetivos, é preciso verdadeira revolução curricular e a reestruturação do espaço/tempo escolar; a formação docente precisa ser mais voltada às demandas contemporâneas; é preciso superar a sala de aula sem que isso signifique, necessariamente, eliminar o conceito de aula. A aula, verdadeiramente, dispensa a sala como espaço consolidado e a hierarquia docente/discente tão atrasadas para nossos tempos. Assim, a aula expositiva pode ocorrer quando e onde for necessária para (re)orientar a atividade discente na construção própria do aprendizado. Nos preocupa, na sequência desse trabalho, apontar uma proposição que atenda à tais perspectivas no âmbito da educação formal. 34 4. CURRÍCULO DE ARTE: LEGISLAÇÃO E PRÁTICA CONTEMPORÂNEA No que tange às legislações em vigor pomo-nos a investigar alguns documentos no âmbito federal e do munícipio da cidade de São Paulo com foco no ensino de Arte na Educação Básica, tais como: a LDB (Lei 9.394/1996 das Diretrizes e Bases da Educação, e sua 3ª edição de 2019); BNCC (Base Comum Curricular), em sua versão mais atualizada de 2017; PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte – primeira à quarta séries, de 1997); PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte – quinta à oitava séries, de 1998); Prefeitura de São Paulo - Currículo da Cidade: Componente Arte, 2019; e Prefeitura de São Paulo – Direitos de Aprendizagem dos Ciclos Interdisciplinar e Autoral: Arte, 2016. Nosso argumento principal decorre do fato – verificado empiricamente e constatado nos documentos legais e na literatura consultada - de que o componente Arte não possui o seu potencial valorizado nas diretrizes curriculares das escolas de ensino fundamental a despeito de toda a legislação que reforça tal indicação. Nos documentos como os PCNs, a LDB, a BNCC e o Currículo da Cidade de São Paulo, notamos o papel proeminente que se dá ao ensino de matemática e língua portuguesa, consideradas a base para uma boa formação e como instrumentos necessários para “acessar” o mundo. Sem que isso seja correto, o ensino de Arte deve ser colocado no mesmo patamar de importância e, paradoxalmente, a legislação robustece essa sugestão. A Arte e a Educação Física na prática são componentes secundarizados e colocados à margem do currículo. Conforme expusemos anteriormente, Gardner reforça a importância do aprendizado da linguagem artística englobando a totalidade do desenvolvimento humano, integrando corpo e mente. A BNCC (Brasil, 2017, p. 14, p. 15) também considera a educação no seu aspecto integral, propondo a superação da divisão dos conteúdos em disciplinas curriculares radicalmente estanques. Destaca o caráter social e político da ação educadora: formar o ser humano globalmente, na sua dimensão cognitiva e afetiva. Também destaca a autonomia e a convivência em grupo, bem como a capacidade de produzir conhecimento e informação com criticidade. Nesse sentido, o estudante deve ser o protagonista do processo de ensino-aprendizagem e os saberes devem ser significativos para o meio social em que está inserido. Já na página 59 (Brasil, 2017), 35 afirma que o foco dos dois primeiros anos do ensino fundamental deve ser na alfabetização como maneira de oportunizar o estudante a se inserir num mundo letrado. Caracterizando a área de linguagens, na qual insere também o conteúdo de Arte e Educação Física, traz que “a finalidade é possibilitar aos estudantes participar de práticas de linguagens diversificadas, que lhes permitam ampliar suas capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais e linguísticas” (Brasil, 2017, p. 63). Mais adiante, se atendo ao ensino de Arte, explica que essas linguagens articulam saberes referentes a produtos e fenômenos artísticos e envolvem as práticas de criar, ler, produzir, construir, exteriorizar e refletir sobre formas artísticas. A sensibilidade, a intuição, o pensamento, as emoções e as subjetividades se manifestam como formas de expressão no processo de aprendizagem em Arte (Brasil, 2017, p. 193). Também se reconhece a função que o fazer artístico possui no sentido de promover o respeito pela diversidade cultural durante o processo de conhecimento sobre ela. Não se pode reduzir o conteúdo à reprodução de produtos consolidados hegemonicamente pela mídia ou a simples aquisição de códigos e técnicas. O contato com a produção artística precisa, necessariamente, considerar o contexto social do estudante. O foco deve estar em promover a criação autoral, valorizando o processo e o produto. São muitos os desajustes entre a prática e as proposições legais. Por exemplo, quanto à distribuição das atividades no calendário escolar: embora se preveja que os alunos devam ser oportunizados em eventos ao longo do ano, percebe-se que quando ocorrem, tais momentos ficam quase exclusivamente restritos ao entretenimento, sem problematização ou aprofundamento pedagógico, e em datas muito específicas e comemorativas. Conforme indica a BNCC (Brasil, 2017, p. 193), “a prática artística possibilita o compartilhamento de saberes e de produções entre os alunos por meio de exposições, saraus, espetáculos, performances, concertos, recitais, intervenções e outras apresentações e eventos artísticos e culturais, na escola ou em outros locais.” De modo sintético, resta dizer que a BNCC traz uma dupla e necessária compreensão sobre o currículo de Arte: a especificidade e integração entre cada uma das linguagens artísticas. Além das seis dimensões do saber definidas no documento (criação, crítica, estesia, expressão, fruição e reflexão) e detalhadas para cada uma das linguagens, propõe uma sétima, onde apresenta atividades 36 contemplando conteúdos comuns. No que se refere à organização das habilidades almejadas como desenvolvimento, o documento enfatiza que se trata apenas de um arranjo possível, que deve ser tomado como referência, não se tratando de uma obrigatoriedade na elaboração dos currículos. Criação refere-se, obviamente, à capacidade imaginativa e inventiva da mente humana, com foco em soluções originais de modo individual ou coletivo; a Crítica propõe a necessidade de relativizar e interpretar sob a ótica política, histórica, filosófica e social tudo que rodeia a realidade do estudante; a Estesia diz respeito ao aspecto sensitivo e intuitivo do corpo e sua capacidade de reagir às variadas sensações e experiências materiais e imateriais, tanto individual quanto coletivamente; Expressão é o resultado da materialização do processo artístico com intencionalidade comunicativa de acordo com o vocabulário específico de cada linguagem; a Fruição, objetivamente, trata da apreciação e compartilhamento da pluralidade das manifestações artísticas e; a Reflexão a capacidade de atribuir valores filosóficos, éticos e estéticos à fruição artística. Essas definições são encontradas de forma mais detalhada nas páginas 194 e 195 da BNCC (Brasil, 2017). Embora expresse as distinções conceituais entre as linguagens artísticas, há reforço para o fato de que o indivíduo não usufrui do fazer e da apreciação artística de modo fragmentado, sendo necessário considerar suas múltiplas afetações. Atividades que facilitem um trânsito criativo, fluido e desfragmentado entre as linguagens artísticas podem construir uma rede de interlocução, inclusive, com a literatura e com outros componentes curriculares. Temas, assuntos ou habilidades afins de diferentes componentes podem compor projetos nos quais saberes se integrem, gerando experiências de aprendizagem amplas e complexas [...] ao longo do Ensino Fundamental, os alunos devem expandir seu repertório e ampliar sua autonomia nas práticas artísticas, por meio da reflexão sensível, imaginativa e crítica sobre os conteúdos artísticos e seus elementos constitutivos e também sobre as experiências de pesquisa, invenção e criação (Brasil, 2017, p. 196, p. 197). No documento que embasa a formatação do Ciclo de Alfabetização, intitulado Elementos Conceituais e Metodológicos Para Definição dos Direitos de Aprendizagem (e do desenvolvimento do ciclo de alfabetização – 1º, 2º e 3º anos – do Ensino Fundamental, publicado pelo Ministério da Educação, em 2012, destacamos algumas considerações feitas a respeito do ensino de Arte. Tal documento subsidiou as políticas da SME (Secretaria Municipal de Educação) da Prefeitura de São Paulo. Quanto ao ensino do componente Arte, registra que, 37 as experiências devem contemplar apreciação, execução, criação e reflexão nas diferentes linguagens da Arte – cantando, tocando, pintando, desenhando, dançando, interpretando, encenando –, bem como em diferentes manifestações da cultura corporal – jogando, brincando com os elementos da ginástica, criando – de maneira a também conhecer, (re)criar e ampliar suas possibilidades de expressão [...] Pode ser considerada como uma das formas de significar o mundo e, para tal, diferentemente das ciências que utilizam a linguagem verbal, a Arte usa, além da palavra, cores, sons, formas, movimentos, criando suas próprias maneiras de atribuir sentidos às coisas, sendo polissêmica por natureza. [...] cabe sublinhar que a experiência estética, na escola, não visa estimular a formação de artistas – sejam eles músicos, artistas plásticos, atores ou dançarinos –, mas tornar os sujeitos mais sensíveis, apreciadores, conhecedores e criadores nas/das diferentes linguagens e expressões humanas (Brasil, 2012, p. 115, p. 118, p. 119). O documento é incisivo em esclarecer que não basta o contato esporádico com materiais de pintura, ensaios de coreografias ou textos, ou ainda ensaiar hinos e músicas para os eventos do calendário escolar. Nada se coloca contra essas medidas, no entanto, é preciso ter clareza quanto à intencionalidade no ensino do conteúdo de Arte, promovendo e favorecendo que o estudante se desenvolva e adquira as habilidades inerentes à essa linguagem, de modo crítico, estético, autoral e criativo. Amplamente referenciadas nas legislações e documentos federais, como os PCNs, a LDB e a BNCC, e amparados em robusta consulta à gestores e comunidade escolar, temos as diretrizes do Currículo da cidade de São Paulo, em vigor a partir de 2016/19. No Ciclo 1 da SME (Secretaria Municipal de Educação) vemos a relação direta que se faz entre Educação Artística e Educação Física, orientando-se pelo descrito na BNCC, organizadas na área de linguagens. Entendemos esse agrupamento como correto e estratégico para potencializar a presença desses componentes na vida escolar. Concordamos que existem muitos pontos de contato entre os dois componentes e a integração entre eles, além de potente, é natural. Ademais, conforme afirmamos acima, a legislação é clara quanto à sua valorização e relevância. No Currículo da Cidade de São Paulo – Arte (São Paulo, 2019, p. 11), para o Ensino Fundamental, encontramos quatro premissas que orientam o documento: Continuidade – aproveitar as experiências acumuladas; Relevância – voltar-se ao interesse do estudante; Colaboração – elaborado conjuntamente por toda a comunidade escolar e; Contemporaneidade: focar nos desafios da aprendizagem do séc. XXI. 38 Com relação à concepção, o documento afirma em suas páginas 11 e 12: reforça a mudança de paradigma que a sociedade contemporânea vive, na qual o currículo não deve ser concebido de maneira que o estudante se adapte aos moldes que a escola oferece, mas como um campo aberto à diversidade. Essa diversidade não é no sentido de que cada estudante poderia aprender conteúdos diferentes, mas sim aprender conteúdos de diferentes maneiras (São Paulo, 2019). As diretrizes se estruturaram em três importantes conceitos: a Educação Integral, que contempla as dimensões intelectual, social, emocional, física e cultural; a Equidade, que prevê que todos podem aprender e desenvolver-se desde que se ofereça as condições necessárias e o processo seja significativo e; a Educação Inclusiva, onde é preciso respeitar as particularidades e valorizar a diversidade humana, redundando numa postura essencialmente democrática (São Paulo, 2019, p. 12). Na perspectiva de atender as variadas demandas atuais no aspecto social, ambiental e econômico, a proposta incorpora as proposições feitas pela Organização das Nações Unidas (ONU), definidas na Agenda 2030 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Trata-se dos 5P’s que já se tornaram parte das reflexões sobre Educação na cidade. Fugiríamos do nosso propósito ao detalhar esse conteúdo, portanto, trazemos um infográfico que o sintetiza, retirado da página 37, conforme Figura 1. Os significados atribuídos aos 5P’s podem ser facilmente lidos e são bastante intuitivos. Notamos que todas as ações concorrem para um desenvolvimento social sustentável em seus múltiplos aspectos. Para favorecer a compreensão, reescrevemos abaixo os objetivos que se encontram dentro de cada selo numerado: 1. Erradicação da pobreza; 2. Fome zero e agricultura sustentável; 3. Saúde e bem-estar; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de gênero; 6. Água potável e saneamento básico; 7. Energia Limpa e Acessível; 8. Trabalho decente e crescimento econômico; 39 9. Indústria, inovação e infraestrutura; 10. Redução das desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Consumo e produção responsáveis; 13. Ação contra a mudança global do clima; 14. Vida na água; 15. Vida terrestre; 16. Paz, justiças e instituições eficazes; 17. Parcerias e meios de implementação. Fonte: São Paulo (2019, p. 37) Figura 1 – Os Cinco P´s – Agenda 2030 40 Para viabilizar a Agenda 2030, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), reúne as estratégias metodológicas, materiais e de conteúdo, e apresenta uma relação de competências. O Currículo da Cidade de São Paulo, em diálogo com essas premissas, elabora sua matriz de saberes da qual extraímos os principais conceitos: • Pensamento Científico, Crítico e Criativo; • Empatia e Colaboração; • Resolução de problemas; • Responsabilidade e Participação; • Empatia e Colaboração; • Autonomia e Determinação; • Comunicação; • Abertura à Diversidade; • Empatia e Colaboração; • Repertório Cultural e; • Autoconhecimento e Autocuidado. Essa correspondência pode ser verificada com detalhes na página 38 (São Paulo, 2019). Pelo exposto, percebe-se como a disciplina de Arte pode ser útil no alcance de tais objetivos, sobretudo quando articulada de forma interdisciplinar. O Currículo da Cidade é uma proposta que visa subsidiar a concepção dos currículos de cada unidade escolar do município, respeitando suas necessidades locais. Em sua elaboração, o docente é o ator mais importante para “dar vida” ao currículo, integrando-o à realidade da escola. O componente de Arte deve ser considerado em sua especificidade dentro do currículo, e não como simples acessório de outras áreas do conhecimento. A relações interdisciplinares ocorrem entre todas as áreas sem que se percam os contornos de cada uma e o mesmo ocorre com a Arte. O objetivo desse componente curricular é possibilitar que o estudante seja capaz de “ler” os símbolos e compreender a linguagem artística e estética de diferentes momentos históricos, 41 reconhecendo os valores culturais intrínsecos e que caracterizam a evolução das sociedades humanas, bem como de se expressar criticamente. Não há outro