UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CAMPUS DE MARÍLIA BRUNA CARLA DE CARVALHO AMARAL RETRATOS DA INCLUSÃO ESCOLAR: problematização de um caso a partir da biopolítica de Michel Foucault MARÍLIA 2021 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS CAMPUS DE MARÍLIA BRUNA CARLA DE CARVALHO AMARAL RETRATOS DA INCLUSÃO ESCOLAR: problematização de um caso a partir da biopolítica de Michel Foucault Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília para obtenção de título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: História e Filosofia da Educação. Orientador: Prof. Dr. Pedro Angelo Pagni. MARÍLIA 2021 A485r Amaral, Bruna Carla de Carvalho Retratos da inclusão escolar : problematização de um caso a partir da biopolítica de Michel Foucault / Bruna Carla de Carvalho Amaral. -- Marília, 2021 82 p. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientador: Pedro Angelo Pagni 1. Educação. 2. Biopolítica. 3. Educação Especial. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. BRUNA CARLA DE CARVALHO AMARAL RETRATOS DA INCLUSÃO ESCOLAR: problematização de um caso a partir da biopolítica de Michel Foucault Dissertação para obtenção do título de Mestre em Educação Banca Examinadora _____________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Pedro Angelo Pagni Unesp – Marília _____________________________________________________ 2ª Examinadora: Profa. Dra. Vanessa Regina de Oliveira Martins UFSCAR ______________________________________________________ 3º Examinador: Prof. Dr. Raphael Guazzelli Valerio UFPE Suplentes _______________________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo Unesp – Marília _______________________________________________________ Prof. Dr. Divino José da Silva Unesp – Presidente Prudente Para o Bob, por sua vida plena e amor incondicional. AGRADECIMENTOS Ao orientador e amigo, Pedro Angelo Pagni, por ter acreditado nessa proposta e por todo o respeito e companheirismo durante essa jornada. Aos membros da banca: Vanessa Regina de Oliveira Martins e Raphael Guazzelli Valerio. Aos professores: Rodrigo Pelloso Gelamo e Divino José da Silva. Aos membros do GEPEF, pelas contribuições e pela amizade. A minha família, pelo estímulo constante, especialmente à minha mãe, por ter plantado as sementes de luta e do valor da educação, que hoje florescem neste trabalho. À Gabriela, companheira e cúmplice nessa e noutras jornadas, pelo apoio, encorajamento, cuidado e amor infinitos. Sua persistência em disciplinar nossos tempos e as horas diárias de companhia que abdicou são os pilares, sem os quais esse trabalho jamais teria saído do campo das ideias. Aos amigos, cujo apoio, em momentos decisivos, foram fundamentais para a conclusão dessa pesquisa: Luciana, Kaliny, Jonas, Cinthia, Jo, Gustavo, Mari, Laura e Priscila. A todos os professores que, de algum modo, cultivaram em mim novas lutas e paixões. Ao tio Luiz e à tia Leninha, pois nunca é tarde para agradecer. A vocês, o meu amor e meu respeito por um gesto tão grandioso quanto significativo. Aos servidores técnico administrativos da FFC, em especial à equipe do RU. À UNESP. [...] como ter a força de estar à altura de sua própria fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força? Peter Pál Pelbart RESUMO Esta pesquisa teve origem a partir de experiências no campo da inclusão escolar, que despertaram questionamentos a respeito dos resultados de sua implementação e do modo como seus dispositivos repercutiam nos atores da escola. A partir da observação e de diálogos com educadores de uma escola de Educação Infantil, foi possível constatar a procura frequente por laudos e diagnósticos das crianças, como uma busca por algum elemento externo que solucionasse o “problema” da impotência dos educadores diante de determinados alunos; fosse ele uma medicação, um laudo ou um professor especialista. Tal questionamento culminou, nesta pesquisa que investiga, por meio de certa genealogia da História da Educação Especial, de qual modo os saberes e poderes desse campo atuam diretamente na construção da concepção predominante de inclusão escolar no Brasil, atualmente; atrelada ao que buscou preconizar a PNEEPEI1, em 2008. Para relatar a experiência disparadora dessa pesquisa, optamos por construir cenas e retratos empírico-ficcionais, que buscam ilustrar possíveis práticas escolares que pretendem ser inclusivas. Buscou-se compreender as eventuais causas da relutância em admitir a implementação de dispositivos de inclusão, numa escola de Educação Infantil em 2018, assim como analisar, sob a ótica da biopolítica e de outros conceitos foucaultianos, de que forma as políticas públicas inclusivas relacionam-se com o campo da Educação Especial e quais características desse campo podem apontar para as causas da contradição assinalada. Optou-se por utilizar o método genealógico, a fim de valer-se das singularidades do caso narrado, para compreender as lutas históricas envolvidas e traçar novas estratégias para as lutas atuais. Ao final da dissertação, após problematizar o caso analisado, compreendemos os obstáculos que os movimentos por uma inclusão, concebida a partir da valorização da diferença, não conseguem transpor. Nossa hipótese era a de que eles advenham dos poderes e paradigmas, que norteiam os documentos oficiais e das dificuldades de realização das mudanças necessárias na formação de professores, para atuarem com uma perspectiva mais ampla de inclusão. Com a pesquisa pode-se confirmar essa expectativa e compreender que esses poderes estão ligados ao paradigma científico e ao caráter de correção dos corpos presentes na constituição do campo da Educação Especial. Espera-se que as experiências de inclusão e os focos de resistência a esse modelo normalizador predominante estimulem a reinvenção das práticas de inclusão escolar. Palavras chave: Inclusão escolar. Governamentalidade. Biopolítica. 1Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). ABSTRACT This research originated from experiences in the field of school inclusion that raised questions about the results of its implementation and the way its devices had repercussions on school actors. From the observation and dialogues with educators at a kindergarten school, it was possible to observe the frequent search for reports and diagnoses of children as a search for some external element that would solve the "problem" of the impotence of educators towards certain students, regardless of a medication, a report or an expert teacher. Such questioning culminated in this research that investigates, through a certain genealogy of the History of Special Education, how the knowledge and powers of this field act directly in the construction of the predominant concept of school inclusion in Brazil today, linked to what the PNEEPEI sought to advocate, in 2008. To report the triggering experience of this research, we chose to build scenes, empirical-fictional portraits, which seek to illustrate possible school practices that intend to be inclusive. We sought to understand the possible causes of the reluctance to admit the implementation of inclusion devices in a kindergarten school in 2018, as well as to analyze from the perspective of biopolitics and other Foucaultian concepts, how inclusive public policies relate to the field of Special Education and which characteristics of this field can point to the causes of the pointed contradiction. It was decided to use the genealogical method in order to take advantage of the singularities of the narrated case to understand the historical struggles involved and trace new strategies for the current struggles. At the end of the dissertation, after problematizing the analyzed case, we understand the obstacles that movements for inclusion, conceived from the valuation of difference, cannot overcome. Our hypothesis was that they arise from the powers and paradigms that guide official documents and from the difficulties in carrying out the necessary changes in teacher education to act with a broader perspective of inclusion. With the research it is possible to confirm this expectation and understand that these powers are linked to the scientific paradigm and to the character of correction of bodies present in the constitution of the field of Special Education. It is expected that the experiences of inclusion and the outbreaks of resistance to this predominant normalizing model will encourage the reinvention of school inclusion practices. Keywords: School inclusion. Governmentality. Biopolitics. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 11 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 13 2 BIOPOLÍTICA, GOVERNAMENTALIDADE E RACISMO DE ESTADO PARA FOUCAULT ............................................................................................................................. 20 1.2 Governamentalidade ........................................................................................................... 23 1.3 População ........................................................................................................................... 25 1.4 Norma ................................................................................................................................ 26 1.5 Racismo de Estado ............................................................................................................. 28 1.6 Medicalização .................................................................................................................... 30 2. PNEEPEI, SEUS REFLEXOS NAS PRÁTICAS DE INCLUSÃO ESCOLAR E ALGUNS RETRATOS EMPÍRICO-FICCIONAIS .................................................................................. 33 2.1 Transversalidade ................................................................................................................. 33 2.2 Os efeitos da PNEEPEI numa escola de Educação infantil: um caso paradigmático ........ 35 2.3 O apoio em um paradigma científico ................................................................................. 39 2.4 Um retrato empírico do paradigma da inclusão adotado e seus paradoxos ........................ 43 2.5 Invisibilidade e Exclusão .................................................................................................... 44 3 POR UMA FUTURA ARQUEO-GENEALOGIA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL: RETRATOS DA CONSTITUIÇÃO DE UM CAMPO ........................................... 47 3.1 A emergência de uma racionalidade .................................................................................. 47 3.2 Exclusão, medicalização e correção ................................................................................... 51 3.3 O dispositivo de inclusão neoliberal ................................................................................... 58 4 ESCOLA ENQUANTO DISPOSITIVO DE GOVERNO DA INFÂNCIA E O (NÃO) LUGAR DOS CORPOS DEFICIENTES: POR OUTRO PARADIGMA DE INCLUSÃO ESCOLAR ................................................................................................................................ 63 4.1 Dispositivo, tecnologias disciplinares e subjetivação ........................................................ 63 4.2 Governo da infância............................................................................................................ 69 4.3 Cenas e sinais de resistência ............................................................................................... 73 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 77 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 79 APRESENTAÇÃO Prezado leitor, este trabalho, embasado em conceitos e critérios acadêmicos, também é fruto de diversos disparadores, que me constituíram enquanto sujeito, educadora e pesquisadora. Desse modo, torna-se relevante pontuar alguns momentos que hoje, percebo, entrelaçarem-se em minha concepção de indivíduo e na elaboração dessa dissertação de mestrado. Revendo minha trajetória profissional, as pontas encontram-se e tecem-se na construção do tema dessa dissertação. Educação e inclusão estiveram presentes por toda minha vida, nas mais variadas formas. Por isso, são a base do objeto, um pequeno fragmento do tempo e espaço que escolhi para servir de ignição para esta pesquisa. Pude perceber, durante o processo de escrita, que esse trabalho me possibilitou uma reconexão com minha própria história. Reconheço hoje, claramente, que inclusão e educação foram ideias desde cedo, muito presentes em minha vida. Desde a infância era muito destacado em minha educação o estímulo ao estudo e a busca por cursar uma graduação em universidade pública, como única forma de obter independência financeira e reconhecimento social. Quando esse objetivo foi alcançado, só pude concluir minha graduação em História graças às políticas de permanência estudantil; graças ao RU (Restaurante Universitário), à Moradia e às bolsas de auxílio socioeconômico. No decorrer da graduação estive envolvida em um projeto, sem fins lucrativos, de cursinho pré-vestibular. Nesse espaço, podia compartilhar conhecimentos e experiências, estimular outros jovens a insistirem nesse sonho e aprender com eles o quão gratificante pode ser a atividade docente. O curso da vida me trouxe até esta universidade como funcionária técnico- administrativa. A princípio, trabalhava na creche, o que despertou meu interesse de historiadora e educadora nos mecanismos do governo da infância e, posteriormente, pedi transferência para atuar no Restaurante Universitário. Esse espaço me permitiu o contato direto com os mais diversos estudantes e, de certo modo, supria as saudades que sinto da sala de aula. Trabalhar no restaurante me fez ter mais armas para defendê-lo enquanto ferramenta da permanência estudantil, cuja importância reconheço por experiência própria. Percebo, então, que existe uma certa linearidade em minha trajetória, na qual estão sempre presentes: a defesa da educação pública, do acesso ao ensino superior gratuito e da inclusão social que ele permite. Cabe-me ressaltar que essa dissertação teve sua concepção e escrita desenvolvidas em um período de fortes ataques à ciência, às Universidades Públicas e à autonomia universitária e que, poder desenvolver uma pesquisa no seio de uma universidade com reconhecimento internacional, no atual momento histórico, torna indispensável o nosso protagonismo nas lutas em defesa dessas instituições e de seu papel emancipador em uma sociedade. Quando decidi me reaproximar da vida acadêmica, busquei por uma especialização EAD em Educação Especial e Inclusiva, pois havia em minha trajetória docente uma ferida aberta de uma experiência em sala de aula como professora substituta, na qual se encontrava uma estudante surda. Àquela época, senti uma enorme lacuna em minha formação, pois não conseguia me comunicar com uma estudante, nem me sentia confortável para avaliá-la. Foi em busca de respostas para esse evento marcante que cursei a citada especialização e, para sua conclusão, foi necessária a realização de estágio de observação em alguma escola da região. Escolhi, então, uma escola de Educação Infantil numa cidade no interior do Estado de São Paulo com tradição no trabalho de atendimento educacional especializado. A experiência vivenciada nesses encontros do estágio, somada às leituras sobre História da Educação Especial, que vieram a ser o tema de meu TCC nesse curso, não trouxeram as respostas que eu esperava. Ao contrário despertaram ainda mais perguntas que se colocaram de modo ainda mais inquietantes. Desse percurso, nasceu o projeto de mestrado que culminou nessa dissertação intitulada: RETRATOS DA INCLUSÃO ESCOLAR: problematização de um caso a partir da biopolítica de Michel Foucault. 13 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa é fruto de inquietações vivenciadas durante minha trajetória docente. A primeira delas, talvez o elemento disparador para os primeiros questionamentos acerca da inclusão escolar, ocorreu em 2008 em um período de contrato temporário, numa escola estadual, ministrando aulas de História. Na ocasião, ao assumir por um curto período algumas salas do ensino fundamental, encontrava-se matriculada na sétima série uma aluna surda. Não era novidade a implantação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), portanto, a presença de um aluno surdo em sala de aula não era motivo de estranhamento. Mas esta experiência me instigou a uma problematização a respeito da formação de professores e da política de inclusão. Como se daria a comunicação em sala de aula com esta estudante? Minha formação em licenciatura não ofereceu requisitos para tanto e a escola não possuía tradutor e intérprete em Libras – nota-se que após doze anos a realidade da formação docente e da oferta de intérpretes pouco avançou. A aluna participava das aulas e “compreendia” seus professores através de leitura labial e do auxílio de uma colega que, com a convivência, aprendera um pouco de Libras. Essa experiência deixou uma marca e fui à busca por respostas dos questionamentos gerados por ela, o que me levou a cursar uma especialização em Educação Especial e Inclusiva. Para a obtenção desse título, foi necessária a realização de estágio de observação em alguma escola. Por esta razão, escolhi uma escola municipal de educação infantil, no interior do Estado de São Paulo, com notória experiência no Atendimento Educacional Especializado e em inclusão. O caminho trilhado em busca de respostas a antigas questões resultou em mais indagações. Durante o primeiro semestre de 2017, acompanhei as atividades desenvolvidas pelas profissionais do Atendimento Educacional Especializado – AEE, tive acesso ao Projeto Político Pedagógico da escola e vivenciei diversos diálogos espontâneos com as profissionais, enquanto circulava por seus espaços. No decorrer dos encontros, foi possível obter um breve diagnóstico, principalmente a partir de conversas com as coordenadoras pedagógicas e com as duas professoras do AEE, à época. Os alunos, caracterizados como pertencentes ao Atendimento Educacional Especializado, dividiam-se em dois grupos: inclusão e Classe Especial. O primeiro frequentava as turmas regulares e contava com o apoio de uma professora especialista, que auxiliava e acompanhava cada criança uma vez por semana nas aulas e desenvolvia com elas atividades específicas na sala de recursos num segundo encontro semanal, no contra turno. O segundo grupo, geralmente composto por crianças com limitações físicas mais severas, 14 frequentava a Classe Especial, sob a responsabilidade da outra profissional de AEE que, por sua vez, desenvolvia com elas atividades em consonância, com as temáticas trabalhadas pela escola ao longo do ano. O trabalho de observação permitiu acompanhar as atividades da equipe de cuidadoras, os momentos de integração com as demais crianças, o desenvolvimento das atividades pedagógicas, os encontros com os pais na chegada e saída e o processo de alimentação das crianças. Dessa experiência, originou-se uma série de questionamentos que serviram de disparadores iniciais na construção dessa dissertação, tais como: Quais lacunas ou signos existem na formação do professor regular e do especialista em Educação Especial e em que eles implicam nas práticas educacionais inclusivas? O que levou essa escola a construir um modelo híbrido de inclusão? Quais as contribuições da PNEEPEI para os avanços e entraves no estabelecimento das práticas de inclusão escolar no Brasil? Tais questionamentos tornaram-se ainda mais latentes, após contato com a literatura acerca da História da Educação Especial no Brasil, tema escolhido para compor o Trabalho de Conclusão de Curso da referida especialização. O aparente descaso do aparelho gestor estatal com as individualidades dos sujeitos e a forte presença do poder do saber médico na constituição e organização da escola direcionaram o curso inicial do atual projeto. Por estas razões, os debates sobre inclusão e biopolítica formaram o caminho teórico escolhido para esta análise. O processo de inclusão parece ter encontrado um meio termo nessa instituição que, mesmo com a implantação da PNEEPEI de 2008, manteve um modelo que mescla a inclusão escolar com a permanência de uma Classe Especial, que inclui excluindo. Os profissionais das turmas regulares demonstravam insegurança e despreparo para o trabalho com os alunos chamados “de inclusão”. Essas professoras pareciam não se sentirem aptas a atuarem em turmas com alunos cuja conduta desviasse da norma. Seus diálogos demonstravam certa apologia da medicalização, com destaque para a busca por laudos e diagnósticos das crianças, com a presença de inferências sobre o uso de fármacos, suas dosagens e seus efeitos. Foi possível perceber, em suas falas, a busca constante por um elemento externo que solucionasse o problema de não saber como agir com determinados alunos, fosse ele uma medicação, um laudo, ou um professor especialista. Buscamos investigar, genealogicamente, como essa contradição foi construída e de que modo ela é exposta pela presença desses corpos ingovernáveis na escola. A PNEEPEI abriu as portas das escolas para todas as crianças, garantiu o direito ao acesso, rompeu com certo paradigma da Educação Especial, mas a prática parece não atingir os objetivos propostos pelo documento. Quais relutâncias são evidenciadas pela manutenção de 15 uma Classe Especial, dentro de uma escola, na perspectiva da educação inclusiva? De que modo a Educação Especial e a educação inclusiva fundem-se, ao ponto de levarem o professor regular a não se sentir apto a governar os corpos deficientes? Como analisar essas questões sob a ótica da biopolítica e das lutas transversas desses corpos como novos focos de resistência emergentes na escola durante o período observado? Ao responder a essas questões, compreendemos as eventuais causas da relutância em admitir a implementação de dispositivos de inclusão em uma escola de Educação Infantil em 2018; problematizamos, sob a ótica da biopolítica, de que forma as políticas públicas inclusivas, em especial a PNEEPEI de 2008, se relacionam com o campo da Educação Especial e quais características desse campo do saber podem apontar para as causas da contradição assinalada. Para tanto, recorremos a alguns conceitos fundamentais de Foucault como: biopolítica, neoliberalismo, governamentalidade do povo e da população, dispositivo, racismo de Estado e, a partir deles, problematizamos essa política e as práticas escolares. Por fim, examinamos como se materializou essa tensão durante a tentativa de transição entre Educação Especial e inclusão, em algumas escolas, tendo como exemplo um caso ficcional na Educação Infantil, de um município do interior do Estado de São Paulo. Para resguardar os atores da escola com os quais convivemos, optamos por utilizar essa experiência apenas como orientação inspiradora para a construção de um relato literário, com o propósito de ilustrar uma situação ficcional, mas com elementos que tangenciam a realidade. O caso retratado apresenta um paradigma: uma escola com sistema híbrido de ensino, que nos trouxe, como hipótese de pesquisa, que essas relutâncias em implementar práticas inclusivas estivessem ligadas aos saberes da Educação Especial, os quais buscamos analisar, a partir de certa genealogia desse campo de saber. Pudemos perceber que ele não se desprendeu de suas heranças eugênicas, conservando traços de um paradigma científico, que busca pela correção e homogeneização dos corpos. Reconhecemos que o resultado desse problema repercutiu na escola, gerando tensões e questionamentos. Compreendemos que ele se desdobrou em alguns focos de relutância organizada e de recusa às políticas inclusivas, mas também, demonstrou-se oriundo da dificuldade intrínseca ao processo e tempo necessários para mudança no paradigma da Educação Especial. Ainda assim, também pudemos observar alguns sinais de resistência a esse modelo de inclusão normalizador, assinalando possíveis caminhos para que se rompa com essas práticas cristalizadas nos ambientes escolares. Acreditamos ter contribuído na construção de novos paradigmas que possam auxiliar na renovação do campo de Educação Especial, de modo a favorecer o processo de inclusão. 16 Para o desenvolvimento da presente pesquisa foi utilizado o enfoque genealógico, inspirado no conceito de Foucault (2008a). Ele consiste em buscar elementos esclarecedores das questões abordadas no problema, por meio do exame das singularidades de suas histórias constitutivas. Partimos da análise de documentos voltados para a educação inclusiva, que foram contrapostos aos focos de possíveis relutâncias encontradas na escola, no processo de estabelecimento da inclusão escolar. Para isso, elegemos a Política Nacional para Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). Para contrastá-la, utilizamos de modo ficcional as lembranças subjetivas das vivências, obtidas na experiência de estágio de observação em uma escola de Educação Infantil em 2017, que nos serviu como elemento disparador para a construção de um retrato ficcional, propondo ilustrar um caso paradigmático a ser problematizado. Serviram-nos de inspiração para a construção desse relato literário, tanto as experiências vivenciadas através de diálogos com profissionais da escola e as observações, quanto os registros pessoais dessa experiência, baseados no Projeto Político Pedagógico da instituição, nos prontuários dos alunos da Classe Especial e do semanário dessa turma. As singularidades, presentes no caso esboçado tiveram papel de guia e de fio condutor na busca pelas lacunas geradoras do problema. A partir da descontinuidade, observada no processo de inclusão emergida na resistência dos corpos na escola, pôde-se buscar perceber o lugar dos sujeitos nas relações de poder estabelecidas, naquele momento histórico retratado. Sob essa perspectiva, buscamos compreender as barreiras existentes na Educação Especial, que atuam como freio no desenvolvimento do processo de inclusão. Paradigmas cristalizados como a busca pelos limites entre normal e anormal e a consequente patologização e tentativa de correção, de tudo que foge à norma foram observados como alguns dos elementos formadores dessas barreiras. A genealogia busca permitir a construção de uma oposição, de modo que seus saberes sejam usados nas lutas atuais, possibilitando novas conduções e respostas ao problema estudado (REVEL, 2005). Desse modo, partimos do retrato proposto, o caso ficcional da escola com o modelo paradigmático que construiu de inclusão, observando-a enquanto fragmento singular da sociedade. O método genealógico não pretende encontrar as origens das questões anunciadas. Ele busca traçar uma trajetória que traga elementos que permitam compreender melhor o presente, o problema ou momento estudado. Para tanto, retomamos alguns momentos da Educação Especial no Brasil na busca de compreender o cenário político em que esse campo de estudos se forjou e buscamos observar as transformações que sofreu ao longo do século XX. Os anseios da sociedade, dos grupos minoritários, dos dominantes e as legislações caminham paralelamente, nunca em total sintonia, de modo que um impulsiona o outro a modificar-se, 17 dependendo da relação de forças do momento. O recorte do caso literário que buscamos observar apresentou talvez um instante em que a legislação procurou avançar e expandir as práticas de inclusão - momento em que a segregação cristalizada do deficiente, em suas mais diversas categorias, precisou dar lugar à sua inserção plena nos espaços comuns escolares. Nesse contexto, a PNEEPEI de 2008 rompeu com a responsabilidade exclusiva do professor especialista, pelos alunos vistos como anormais e estendeu a todos os educadores esse papel. Vimos, no caso retratado, a resistência de muitos professores em assumir essa tarefa e a persistência de pais e equipe escolar na manutenção de um modelo, que legalmente deveria estar abolido há uma década. Esse é o aspecto que se evidenciou como um paradigma que, embora circunscrito a uma escolha, espelha uma inquietação, dificuldades e desafios comuns a instituições escolares reais, tanto dessa cidade e estado quanto, provavelmente, de todo o país. Nesse sentido, tentamos corresponder, metodologicamente, a uma perspectiva que postula, com o caso esboçado e com seu recorte genealógico, certa problematização. A história do pensamento se interessa, portanto, por objetos, regras de ação ou modos de relação de si, na medida em que ela os problematiza: ela se interroga sobre sua forma historicamente singular e sobre a maneira pela qual eles apresentaram numa dada época um certo tipo de resposta a um certo tipo de problema (REVEL, 2005, p. 70). Revel (2005) afirma que a genealogia de Foucault pode ser chamada de anticiência. Ela busca pela singularidade dos acontecimentos, a partir da diversidade, do acaso, dos começos e dos acidentes. Pretende ativar saberes locais, desqualificados e não legitimados a fim de desassujeitar os sujeitos históricos. Pretendemos, portanto, partir do olhar para a escola hipotética e seu modelo de inclusão híbrido para investigar o que a singularidade desse caso podia nos dizer. De que modo a resistência a uma legislação federal por toda uma equipe escolar e pelos pais foi vista com tamanha naturalidade e aceitação? Apreendemos com a observação dessas condutas inúmeros traços da sociedade em que estão imersos esses sujeitos. O olhar para o caso retratado buscou focá-lo como uma fotografia, figura estática, contextualizada historicamente, com seus atores, fundos e a composição e filtros escolhidos por quem a fotografou. Desse modo, a análise contou com as subjetividades advindas das percepções vivenciadas nesse contato com a escola. A experiência da observação, da interação com as crianças e das trocas com a equipe despertaram questionamentos, sentimentos e reflexões na pesquisadora que se fizeram presentes no texto. Esses retratos, apesar de inspirados na realidade, foram descritos agregados a traços de ficção e à subjetividade da memória. 18 Buscamos retratar o caso vivenciado na escola e problematizá-lo a partir de algumas ferramentas disponibilizadas por Michel Foucault. Esse caso paradigmático observado apresentava, em 2017, a coexistência de estudantes caracterizados como “de inclusão” nas salas regulares e de crianças matriculadas na Classe Especial. A escola contava, à época, com uma educadora especialista, responsável pela Classe Especial há muitos anos, e com uma segunda profissional da mesma área, que acompanhava os alunos do AEE nas salas regulares, onde realizava com eles atividades no contra turno, na sala de recursos. A partir desta observação e da conversa com as educadoras das turmas regulares, foi possível identificar recorrente insegurança e sensação de despreparo, por parte das professoras que atuavam nessas turmas regulares. Elas pareciam, em sua maioria, não se sentirem aptas a atuarem em turmas com alunos, cuja conduta, ou mesmo os seus corpos, desviassem da norma. Seus relatos ouvidos naquela ocasião, hoje, sugerem a procura frequente por laudos e diagnósticos das crianças, como uma busca por algum elemento externo que solucionasse o problema de não saber como agir com determinados alunos, fosse ele uma medicação, um laudo ou um professor especialista. Buscamos nesse trabalho investigar genealogicamente este paradoxo que se tornou exposto pela presença desses corpos ingovernáveis na escola. Cabe-nos destacar que esse trabalho pretendeu problematizar uma experiência vivenciada, que serviu como disparadora de questionamentos que o originaram. Essa situação – o caso observado – nesta ocasião será a reunião de vários casos que ficcionalmente se aglutinam para dar uma sensação de que, ao vermos o singular, estamos diante do comum. Isso significa dizer que esse caso representa concomitantemente uma particularidade e inúmeros cenários que nela possivelmente se igualam ou assemelham-se por todo o território nacional, corroborando o que está prescrito em um dos marcos das políticas inclusivas na educação brasileira, a PNEEPEI de 2008, assim como a contrariando, isto é, se apresentando como a instauração de um conflito. Assim, apresentamos no primeiro capítulo, conceitos fundamentais de Michel Foucault utilizados nessa dissertação, a fim de possibilitar que todo leitor tenha pleno acesso às discussões que realizamos. No segundo capítulo, selecionamos alguns pontos que destacamos da PNEEPEI de 2008, por se aproximarem dos debates de inclusão que abordamos, para tanto, fizemos uso de um relato empírico-ficcional e, através da construção de cenas, procuramos salientar os pontos de diálogo entre essa política educacional, as práticas escolares de inclusão e o paradigma científico impregnado na Educação Especial que nelas ainda se faz presente. Já no capitulo três, nosso objetivo foi ensaiar uma genealogia da Educação Especial no Brasil. Nessa trajetória percebemos alguns saberes que se fizeram fortemente presentes na constituição 19 desse campo, dos quais ainda encontramos traços, com destaque para o higienismo e a eugenia, que implicam em práticas educacionais com viés corretivo e homogeneizante. Por fim, no capitulo quatro, defendemos o papel majoritário que a escola cumpre de dispositivo de governo da infância, com práticas subservientes à governamentalidade do Estado que operam, através de uma inclusão normativa, a exclusão no interior dos espaços escolares, mas que também presenciam sinais de resistência por parte dos atores escolares que nos alertam para a (bio)potência dos corpos deficientes, como um caminho para outro paradigma de inclusão. Como já enunciado, utilizamos parte do arsenal teórico fornecido por Michel Foucault como ferramentas para interpretação de nosso objeto. Por essa razão, fez-se necessária a apresentação de alguns conceitos que nos são importantes, dentro do campo de análise escolhido, que foram utilizados no decorrer do texto. A fim de simplificar sua compreensão e apoiar o entendimento de todo o trabalho, procuramos condensar sua definição ao longo do primeiro capitulo, dialogando, por vezes, com o caso proposto e com exemplos do momento político atual. Os saltos cronológicos que se fizeram presentes, remontando a um período anterior ao caso, são provenientes do aproveitamento dos exemplos utilizados pelo referido autor na descrição desses conceitos. 20 2 BIOPOLÍTICA, GOVERNAMENTALIDADE E RACISMO DE ESTADO PARA FOUCAULT A passagem do século XVIII para o XIX é marcada por uma transformação no poder do Estado, a construção de um novo modo de governo denominada de biopolítica. Essa nova forma de governamentalidade consiste em agregar ao poder a regulação da população, da vida enquanto espécie. Para tanto, faz-se uso de tecnologias e saberes que buscam a longevidade e o fortalecimento da população, no anseio por índices como: redução das taxas de morbidade, aumento da expectativa de vida e da natalidade. “A biopolítica age como uma tecnologia de poder que atua sobre esse novo objeto chamado população” (REVEL, 2005, p. 27). “Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e de morte” (FOUCAULT, 1999, p. 127). O poder soberano para ser validado requeria essa exaltação, essa exposição pública da execução da vontade do rei. O soberano detinha o direito ao confisco da vida de cada um de seus súditos e era sobre o corpo do indivíduo que ele aplicava sua força e legitimava seu poder aos olhos de todos, fosse através do martírio, da execução ou da indulgência, permitindo-o viver. Esse direito de morte começa a se deslocar para um poder que gere a vida de modo positivo, não a vida jurídica, mas a vida biológica. “Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (FOUCAULT, 1999, p. 130, grifo do autor). Foucault afirma que o poder sobre a vida desenvolve-se a partir do século XVII em duas vias que não são antagônicas, mas complementares: o poder sobre o corpo ao nível de organismo que, através de um poder disciplinar, busca otimizar suas competências e docilizá-lo, tendo como principal ferramenta as instituições e uma anátomo-política do corpo; e a segunda via, organizada por volta da metade do século XVIII, refere-se ao poder sobre os processos biológicos da população, centrado no corpo-espécie a partir de mecanismos e intervenções de regulação centralizados principalmente no Estado, uma biopolítica da população (FOUCAULT, 2005; 1999). A potência da morte que prevalecia no poder soberano vai sendo sobreposta pela gestão dos corpos por meio das disciplinas nas escolas, fábricas, conventos, exército e pela administração das populações, baseada em saberes científicos como a medicina, a higiene pública, a demografia e a estatística. O corpo-organismo deve ser docilizado e condicionado a agir conforme as orientações da ciência médica. Como vivenciado no cenário atual de combate à pandemia do coronavírus, no qual o indivíduo ao pretender afastar-se do vírus, proteger a si e à sua família, ele precisa seguir as orientações de higiene, distanciamento social e proteção - com o uso de máscaras, por 21 exemplo. Agindo desse modo, o corpo-organismo protege o corpo-espécie e a população que, acatando as orientações centralizadas do Estado, tem a perspectiva de reduzir as taxas de disseminação do vírus e de óbitos. Os números coletados pelos serviços de saúde de cada município alimentam um banco de dados centralizado e por meio deles elaboram-se gráficos e mapas que orientam quando enrijecer e quando relaxar as medidas de distanciamento social. A constituição desse biopoder foi fundamental para a organização e o estabelecimento do capitalismo, as grandes demandas de produção e consumo que ele produz, juntamente à necessidade de gestão minuciosa dos recursos financeiros e dos mecanismos reguladores de seus fluxos, que requerem novas e sofisticadas técnicas de controle para o envolvimento de todos os indivíduos nesse aparelho. Essas demandas só são possíveis com o desenvolvimento de tecnologias capazes de docilizar os corpos, otimizar seu desempenho e de regular as populações. A inclusão escolar, tanto dos corpos deficientes quanto dos excluídos sociais, atua como um dispositivo da biopolítica, pois, a instituição escolar permite que esses corpos sejam estudados, disciplinados, docilizados e ajustados às exigências do mercado. O governo, adequado de suas condutas, leva uma maior eficácia e abrangência do poder da biopolítica da população. “Com efeito, o biopoder define o verdadeiro objeto do poder moderno, isto é, a vida, biologicamente considerada” (CASTRO, 2016, p. 309). Biopolítica e biopoder são conceitos que Foucault traz no último capítulo de História da Sexualidade I em seus cursos no Collège de France em 1976, 77 e 792, associados aos estudos das modificações nas estruturas de poder estatal, estabelecidas após a Revolução Francesa. Com o advento do capitalismo comercial e a necessidade de regulação criteriosa de bens e condutas, o modelo de governo soberano, centrado em suas vontades - cujo poder fazia morrer e deixava viver - já não eram suficientes. É nesse momento que começa a se organizar o aparelho de estado administrativo, a ciência de estado, fazendo uso de tecnologias e saberes e centralizando dados sobre a população dando origem ao que Foucault chama de sociedade disciplinar. Nela, se estabelece toda uma rede de tecnologias físicas, de saberes, de sistematizações e, principalmente, de arquitetura, que caracterizam um estado de vigilância permanente, “uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos” (FOUCAULT, 1987, p. 197). Inspirado pelo Panoptico de 2 “Direito de morte e poder sobre a vida”. História da sexualidade I: a vontade de saber (FOUCAULT, 1999); cursos respectivamente nas obras: Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 2005), Segurança, território, população (FOCAULT, 2008b) e Nascimento da biopolítica (FOUCAULT, 2008c). 22 Bentham3, Foucault analisa os modelos arquitetônicos das instituições disciplinares como: presídios, hospitais, manicômios, escolas e fábricas pelos quais há a possibilidade constante de se estar sendo vigiado. Essas instituições disciplinares, sob tal modelo, instituem a sensação permanente de vigilância da população por parte de agentes de estado, de figuras-chave como o médico, o professor, o padre, a polícia os pais e a própria comunidade. O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções — trancar, privar de luz e esconder — só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. (FOUCAULT, 1987, p. 223-224). A ideia da constante vigilância do olhar do outro permitiu a construção de saberes por meio da observação dos indivíduos no interior dessas instituições. Por esse conceito, aferia-se se os sujeitos estavam ou não agindo de acordo com a norma e sua conduta era disciplinada, por meio da punição ou da recompensa. A partir de meados do século XVIII, principalmente após o avanço das tecnologias de morte em massa nas guerras, essa estrutura de controle é aprimorada e voltada para o controle da vida em seu sentido biologizante, fisiológico, não mais em seu sentido legal ou abstrato. O poder passa a ser minuciosamente exercido sobre o corpo individual, e isso é o que Foucault chama de disciplinas, de anátomo-política do corpo, que compõem o exercício amplo do Estado de gerir o corpo vital: a população, denominado de biopolítica. Podemos verificar na atualidade, que meses após a instalação da crise sanitária mundial do coronavírus, recebemos com normalidade controles minuciosos e, por vezes, invasivos sobre os corpos, medição de temperatura na entrada de estabelecimentos, testagens obrigatórias antes de determinadas atividades, uso disseminado de máscaras, controle de circulação e de aglomerações a partir de dispositivos de localização em aparelhos celulares. 3Jeremy Bentham, Panopticon. Foucault traz a descrição do panóptico primeiramente no capítulo III “O panoptismo” de Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987) e ele é retomado no capítulo XIV “O olho do poder” em Microfísica do Poder (FOUCAULT, 2008a). 23 Nesse estágio avançado de governamentalidade, a gestão da vida ocupa lugar de destaque, o objeto do poder do Estado volta-se para a vida, no biopoder o objetivo do poder passa a ser “fazer viver e deixar morrer” (FOUCAULT, 1999). Para tanto, faz-se uso de inúmeras tecnologias que maximizam a saúde, o tempo de vida, de produção e de consumo, por parte da população. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 2008a, p. 80). A inserção dos corpos deficientes nos espaços comuns escolares, decorrente das políticas de democratização dos últimos 20 anos, aprimorou os saberes sobre seus modos de vida, potências e limitações, pois inseriu-os nesses espaços que permitiram constante observação e vigilância tornando-os incluídos nas redes de governamentalidade do Estado e nos processos de produção e consumo, aproximando-os da normalidade através da correção. 1.2 Governamentalidade A sociedade moderna está estruturada num modelo cujo Estado ocupa papel central no governo das condutas da população e dos indivíduos. Podemos chamar essa estrutura de medicalizada, pois baseia-se nos preceitos de medicina social através dos quais o estado moderno se organizou, no momento em que percebeu a necessidade de gerir as mercadorias, os lucros, a mão de obra e os consumidores. Essa necessidade surgiu na organização da sociedade capitalista a partir do nascimento do mercantilismo comercial enquanto base para o Estado Administrativo. Em sua aula de 1º de fevereiro de 1978, no curso Segurança, Território, População, Michel Foucault (2008b, p. 277) abordou sua investigação sobre a governamentalidade enquanto meio de solucionar o problema de gerir a população. A questão do governo aparece no século XVI voltada a diversas questões: governo de si mesmo, governos das almas e das condutas, governo das crianças, governo dos Estados pelos príncipes. “Como se governar, como ser governado, como fazer para ser o melhor governante possível, etc.” (FOUCAULT, 2008a, p. 277-278). O século XVI passava por dois grandes processos que justificavam a eclosão desses problemas: a superação da sociedade feudal e organização dos Estados Administrativos; e a Reforma Protestante, seguida da Contra Reforma Católica. O primeiro, processo de concentração de poder político estatal e o segundo, processo de dispersão do pensamento 24 religioso e dos preceitos de condução à salvação das almas. A teoria da arte de governar esteve intimamente ligada à organização do aparelho administrativo durante a construção dos Estados territoriais modernos. Essa técnica constrói-se a partir da ciência do Estado formulando a Razão de Estado4. Portanto, a arte de governar deve seguir a racionalidade no que tange as regras próprias estatais. Arte de governar busca responder a uma questão central: como gerir adequadamente os indivíduos, bens e riquezas no interior da família? Como introduzir nela esse modelo de gestão ao nível do Estado? (FOUCAULT, 2008a, p. 281). Fez-se necessário organizar os mais diversos mecanismos de gestão para permitir o controle de cada indivíduo e dos comportamentos coletivos, estabelecer meios de vigilância tão eficazes quanto os de um pai sobre seus filhos. A princípio a família era vista enquanto modelo de núcleo de organização onde se pode exercer uma gestão minuciosa dos indivíduos. Com o surgimento da problemática da população a família torna-se um segmento interno e privilegiado da população, um instrumento capaz de atingir o governo da população. É a partir do século XVIII que a família toma essa dimensão instrumental fundamental na arte de governar a população, enquanto alvo de campanhas contra a mortalidade, relativas à vacinação ou reguladoras dos casamentos (FOUCAULT, 2008a, p. 289). Na arte de governo, a população ocupa um papel de destaque, pois é, ao mesmo tempo, fim e instrumento, sujeito de necessidades e objeto nas mãos do governo e geri-la adequadamente requer minúcia. Para alcançar a profundidade de gestão pretendida na arte de governar, a disciplina é uma peça essencial e os instrumentos para obtê-la são os dispositivos de segurança. Nesse cenário, destaca-se o papel da escola enquanto instituição capaz de disciplinar os corpos e de disseminar saberes para o interior das famílias, atuando como um dispositivo da biopolítica. Desde o século XVIII vivemos num Estado que Foucault chama de governamentalizado e foi esse fenômeno que permitiu sua sobrevivência, através do aprimoramento de suas táticas. Assim, ele pode determinar o que lhe cabe ou não, o que é público e o que é privado, interior ou exterior a si (FOUCAULT, 2008a, p. 292). Contudo a construção da razão do Estado não implica na superação das antigas regras da soberania, mas atua como uma nova matriz de racionalidade (REVEL, 2005, p. 54). A governamentalidade moderna coloca pela primeira vez o problema da “população”, isto é, não a soma dos sujeitos de um território, o conjunto de sujeitos de direito ou a categoria geral da “espécie humana”, mas o objeto construído pela gestão política global da vida dos indivíduos (biopolítica). 4 Referimo-nos aqui ao uso que M. Foucault faz do termo Razão de Estado, trata-se de uma racionalidade própria da governamentalidade do Estado. 25 Essa biopolítica não implica, entretanto, não somente uma gestão da população, mas um controle das estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em relação a eles mesmos e uns em relação aos outros (REVEL, 2005, p. 55, grifo do autor). Por fim, podemos simplificadamente, afirmar que governamentalidade é o conjunto de instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos e táticas que permitem ao Estado exercer essa forma minuciosa, capilar e complexa de poder, que tem por alvo a população e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008a, p. 291). 1.3 População Quando enunciamos o surgimento do problema da população, numa análise que faz uso de parte da trajetória conceitual de Foucault, torna-se fundamental aprofundar seus significados. Enquanto novo objeto principal sobre o qual o poder estatal se exerce, Revel afirma que: A população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam traços biológicos e patológicos particulares e cuja própria vida é suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor gestão da força de trabalho (REVEL, 2005, p. 27). No entanto, seu conceito pode ser estendido a outros campos: particularmente para, Foucault, interessa o binômio população-povo. Na aula de 18 de janeiro de 1978, ele distingue população de povo (FOUCAULT, 2008b, p. 56-58). O grupo de indivíduos cujos comportamentos são os esperados pela gestão constituem a população. Seus membros são, ao mesmo tempo, objeto sobre os quais os mecanismos de poder são dirigidos e sujeitos que operam de modo pertinente. Já o povo é composto por aqueles grupos que agem como se não pertencessem realmente à população, suas reações não condizem com o esperado na relação sujeito-objeto e, muitas vezes, elas suscitam revoltas, desajustando o sistema. A população é o objetivo final de governo e todos os indivíduos que a compõem devem comportar-se como membros desse conjunto que se pretende administrar da melhor forma possível. Por sua vez, o povo é constituído pelos indivíduos que deveriam pertencer ao conjunto da população, mas colocam-se às margens do sistema, recusam-se a ser população por seus atos desviantes, tornam-se estrangeiros dentro de seu próprio país, resistindo à regulação. A descoberta da população traz consigo ciências para operar sua regulação, enquanto corpo coletivo e ocorre quando se descobre o indivíduo e o corpo adestrável sobre o qual é possível minuciosamente exercer o biopoder (FOUCAULT, 2006, p. 193). Assim, a busca pela inclusão dos corpos deficientes nos espaços escolares, sociais e no mundo do trabalho promovem meios 26 para que esses sujeitos excluídos e/ou marginalizados – povo5 – passem a pertencer a população, garantindo-lhes direitos, alguma segurança e participação, contanto que se sujeitem a serem enquadrados na norma, submetendo-se à correção, talvez abrindo mão, para tanto, de seus modos de existência. Segundo Foucault (2008a) instituiu-se no período, da passagem do século XVIII ao XIX, a noção de uma regra natural: a norma. Diferente da sociedade medieval, jurídica, cuja regra era entendida como a aplicação da vontade soberana; a regra disciplinar embasa-se em um arsenal teórico que se afasta do domínio do direito e aproxima-se das ciências humanas e tem como respaldo um saber clínico (REVEL, 2005, p. 65; FOUCAULT, 2008a, p. 189). Pode- se dizer que de um modelo jurídico de sociedade passou-se a ter, nesse período, um modelo médico, cujos saberes são fundamentais para o exercício do biopoder através do estabelecimento da normalização. 1.4 Norma O estabelecimento de um aparelho de medicalização coletiva que gere as “populações” por meio da instituição de mecanismos de administração médica, de controle da saúde, da demografia, da higiene ou da alimentação, permite aplicar à sociedade toda uma distinção permanente entre o normal e o patológico e impor um sistema de normalização dos comportamentos e das existências, dos trabalhos e dos afetos (REVEL, 2005, p. 65, grifo do autor). A gestão da vida nessa nova governamentalidade conta com um aparelho apoiado na normalização. Por meio da medicina social, é possível aplicar os biopoderes na existência dos indivíduos, ela enquanto ciência, através da norma, define os padrões, as médias, a linha que diferencia o normal do anormal em um sistema em que se busca mais a correção que a punição, se comparado ao sistema jurídico da soberania, cuja distinção ficava no campo do legal e do ilegal (REVEL, 2005, p. 66). Percebe-se, com Foucault, que o poder no estado moderno é exercido no campo da norma de modo tão capilarizado, que é tido como natural e torna-se capaz de definir individualidades - podemos chamar esses corpos sociais de sociedades de normalização. A norma tem por objetivo conduzir os indivíduos aos padrões, homogeneizar; tudo que lhe é externo é visto como anormal. Como ferramenta ela permanentemente classifica e hierarquiza os indivíduos sendo a medicina seu principal aparato teórico. “O conceito de normalização refere-se a esse processo de regulação da vida dos indivíduos e das populações” 5 Pode-se utilizar também aqui, e talvez de modo mais apropriado, o conceito de multidão. Ver Multidão: Guerra e Democracia na era do Império (HARDT; NEGRI, 2005). 27 (CASTRO, 2016, p. 309). O poder é exercido sobre o corpo pelo próprio indivíduo, pela família, pela mídia das mais diversas formas, na medida em que essa sociedade medicalizada e normalizadora traça as regras a serem seguidas, alcançadas ou almejadas. O indivíduo, na busca por ser aceito, por fazer parte, deseja seguir a norma e é cobrado para tomar sobre sua vida e sobre seu corpo as decisões mais acertadas no campo da saúde, da higiene, do sexo ou da segurança. Nas escolas, os estudantes que hoje tem acesso ao ensino regular graças às políticas de inclusão, em regra não fogem desse modelo. Essa foi uma das questões que nos intrigou na experiência anteriormente relatada, no caso observado, que provocou esta pesquisa. Não obstante já estarmos, em termos político-educacionais, sendo regidos por Plano Nacional de Educação Especial, deliberadamente numa Perspectiva da Educação Inclusiva, publicado em 2008, a pergunta que fazia era: por que essa escola, sua direção, professores, pais e especialistas, relutavam em implementar práticas que não fossem aquelas ainda marcadas pela distribuição das crianças com necessidades educacionais especiais em Classe Especial, segregando-as parcialmente da convivência com os demais alunos e pelo apoio a certa normalização, procedimentos de exame diagnóstico e acompanhamento diferenciado, dentro das normas médicas? Para responder a essa questão me parece ser necessário enfocar três dimensões importantes. A primeira delas relacionadas à forma como a ótica das políticas inclusivas se materializou em documentos ,como a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, publicada em 2008, que passou a regulamentar a obrigatoriedade da matrícula e das práticas das pessoas com deficiência nas escolas.6 A segunda, relativa ao desenvolvimento desses saberes no Brasil e as práticas que mesmo se designando inclusivas, apoiou-se num paradigma médico-científico que aspirou corrigir o desvio, aproximando-o o máximo possível da norma, com intuito de normalizar para incluir, mesmo reconhecendo, por vezes, o seu princípio segregador. A terceira, relacionada à circulação dessas práticas num modelo de escola, ainda marcada pela homogeneização, disciplinarização e normalização, criando um dispositivo de inclusão numa instituição excludente, voltada mais ao poder 6 Embora essa pesquisa detenha-se a um período anterior, cabe-nos destacar que desde setembro de 2020 encontra- se em vigor nova Política Nacional de Educação Especial, cujo texto é considerado por muitos especialistas, e por esta pesquisa, um retrocesso se comparado a PNEEPEI de 2008. O Decreto nº 10.502 que Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida reverte as iniciativas mais recentes que almejavam uma inclusão total, o documento autoriza a existência de classes e escolas especializadas. E sua publicação fomenta o debate entre especialistas e reações do corpo social que demonstram não haver consenso por parte de pais, professores e pesquisadores acerca da oferta dessas modalidades de ensino (BRASIL, 2020). 28 disciplinar, à capacitação e à comunicação, antes do que a vida comum e a relação com as diferenças. São esses três aspectos que iremos explorar nos capítulos subsequentes, pois, de um modo geral, a nossa hipótese era a de que, os saberes e técnicas dos médicos, terapeutas e professores ou mesmo uso de fármacos ocorrem constantemente sob a influência de poderes que buscam a regulação dos corpos e condutas para que se aproximem da normalidade e componham um grupo o mais homogêneo que forem capazes. Quanto mais próximas desse modelo de agrupamento dócil e uniforme as populações forem, mais facilmente elas podem ser governadas e quanto maior o número de indivíduos incluídos no âmbito regulável da população, mais eficaz se torna a governamentalidade neoliberal. Não obstante sua presença no neoliberalismo, ela nos remete genealogicamente a um efeito do que se denominou do vocábulo foucaultiano de “racismo de Estado”, com destaque particular para a racionalidade que o constitui, no âmbito da biopolítica da população. Se, por um lado, essa forma de racionalidade governamental se encontra, genealogicamente, na base da governamentalidade neoliberal, por outro, o desdobramento da anátomo-política do corpo tem seu apoio na medicalização, como veremos a seguir. Esses dois polos sustentam a hipótese de nossa dissertação. 1.5 Racismo de Estado Uma consequência do desenvolvimento do biopoder foi a crescente importância do papel da norma e uma ferramenta essencial a ser regulada por essa tecnologia é o sexo. Tanto no que diz respeito ao desenvolvimento das disciplinas do corpo, quanto à regulação da população, governar o sexo é um mecanismo central na gestão da vida nos limites do corpo e da espécie. Normalizar o sexo atua na gestão das descendências, regula a saúde coletiva, o corpo da mulher, a saúde dos filhos, a família, operando no direcionamento do modelo biológico que se deseja de sociedade (FOUCAULT, 1999). Na organização do corpo social moderno, o dispositivo da sexualidade torna-se fundamental na medida em que consegue agir tanto no controle dos corpos, quanto na regulação das populações, principalmente estabelecendo normas para casamentos, para a constituição de famílias, de vigor e aperfeiçoamento da espécie, de controle da saúde coletiva, da virilidade do corpo social, de melhoria da raça. Nesse cenário, estabelecem-se os primeiros eugenistas e, junto a eles, ideias de aperfeiçoamento da espécie baseadas na boa gestão do sexo. Nesse sentido, “o corpo das mulheres, a vida das crianças, e as relações familiares e toda uma ampla rede de relações sociais foram sexualizadas” (FOUCAULT, 1999, p. 141). O controle da 29 sexualidade, para Foucault, atua como um dispositivo de governamentalidade da população; através da regulação dos casamentos, do sexo, da procriação, das medidas de higiene dos corpos, busca-se melhorar a espécie, selecionar os indivíduos e aprimorar a população que está por vir. Em suas análises das relações de poder, ele percebe um anseio recorrente por justificar as dominações, a princípio através de narrativas históricas e mitos de origem, posteriormente buscou-se na ciência a validação da superioridade de um grupo sobre outro. Esse jogo incessante de dominação e submissão sancionado provoca uma divisão binária da sociedade e dos homens “os injustos e os justos, os senhores e aqueles que lhe são submissos, os ricos e os pobres” a isso se pode chamar de guerra ou luta de raças (FOUCAULT, 2005, p. 86). A partir da segunda metade do século XIX destaca-se o uso da ciência - da biologia e do evolucionismo - na tentativa de atestar a superioridade de uma raça sobre a outra e de justificar a defesa da busca pela pureza da raça, “quando o tema da pureza da raça toma o lugar da luta das raças, eu acho que nasce o racismo”. A transformação sofrida por esse discurso atua na conservação da soberania do poder do Estado, antes assegurado por “rituais mágico-jurídicos” e agora por “técnicas médico-normalizadoras” (FOUCAULT, 2005, p. 95-96). O Estado tornar-se-ia dessa forma responsável pela proteção biológica da raça, pela manutenção de sua superioridade, pelo seu melhoramento, pela higiene da sociedade, é o chamado racismo de Estado ou racismo biológico. Esse dispositivo tornou-se importante ao longo do século XX na garantia da governamentalidade do Estado, através dele justificaram-se guerras, marginalizações, segregações e o próprio biopoder. Esse racismo de Estado hierarquiza as raças, define quais merecem viver e quais devem morrer; aniquilar a raça inferior. O degenerado, o anormal fazem parte de um mecanismo de fortalecimento da raça superior, tornando-a mais saudável e mais pura (FOUCAULT, 2005). Historicamente, a passagem do século XIX para o XX foi marcada pelo cientificismo e pelo fortalecimento de movimentos eugênicos por todo o ocidente. Para Negri (2007), a eugenia está presente por toda a história do ocidente, tendo como apoio a ciência. Ela atuou justificando as diversas relações de poder, legitimando os racismos e atuando como um dispositivo do biopoder. “A eugenia deve impedir fundamentalmente que a posição ordinária do poder seja colocada em discussão” (NEGRI, 2007, p. 114). Através dela, o poder encontra respaldo em uma regressão temporal infinita, que justifica as relações de dominação no presente. O dispositivo eugenia amparou os genocídios da era dos colonialismos, as guerras e extermínios do século XX, a segregação dos anormais e evidencia-se nos dias atuais - a partir dos avanços na ciência e suas novas tecnologias – por meio da engenharia genética. Desse modo, o poder sobre a vida atinge um refinamento excepcional, modificando corpos e manipulando-os de 30 modo a adequarem-se à norma, à ordem eugênica, ao controle do poder, numa tentativa de dissolver o biopolítico em biológico (NEGRI, 2007). Quando as políticas inclusivas estimulam modelos ambíguos que promovem a exclusão de alguns indivíduos, justificada em suas incapacidades inatas, apoiadas nas ineficiências de seu corpo biológico e justificadas por paradigmas científicos, que comparam e hierarquizam indivíduos - como demonstraremos subsequentemente - essas políticas colocam em prática uma espécie de racismo de Estado, que reafirma a inferioridade do sujeito classificado como anormal legitimando privilégios e investimentos nos grupos mais promissores. Observamos hoje, muitas vezes, o quanto esse princípio é devedor de preceitos eugênicos, travestidos sob o verniz da meritocracia, que busca justificar resultados e desempenhos de grupos sociais privilegiados através de esforços individuais. De outro lado, oculta desses processos, uma série de obstáculos que outros grupos marginalizados por vezes necessitam transpor antes de atingirem condições competitivas de igualdade. 1.6 Medicalização A sociedade, normalizada, organiza-se a partir do saber médico definindo constantemente o que é normal do que é patológico. “O termo ‘medicalização’ faz referência a esse processo que se caracteriza pela função política da medicina e pela extensão indefinida e sem limites da intervenção do saber médico” (CASTRO, 2016, p. 299, grifo do autor). Segundo Foucault, as necessidades de se atingir uma gestão mais aperfeiçoada da população, motivadas pelo capitalismo, levaram à passagem de uma medicina privada – característica do mundo medieval – para uma medicina coletiva, voltada tanto para o corpo individual quanto para o corpo social (FOUCAULT, 2008a). O capitalismo socializou o corpo enquanto objeto por ter em si a força de trabalho e de produção. Países como Alemanha, França e Inglaterra desenvolveram entre os séculos XVIII e XIX suas medicinas sociais de acordo com os processos históricos que vivenciavam, atreladas ao desenvolvimento da ciência do Estado. Como ferramenta de aplicação desse poder, desenvolveu-se a polícia médica, um completo sistema de observação da morbidade através do levantamento de dados de epidemias e endemias, de modo centralizado e controlado pelo Estado, que também passa a controlar a prática do saber médico, seus programas de ensino, emissão de diplomas, bem como a própria atividade dos médicos. “A medicina e o médico são, portanto, o primeiro objeto da normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se começa por aplicá-la ao médico. O médico foi o primeiro indivíduo normalizado na Alemanha” (FOUCAULT, 2008a, p. 83). 31 Outra tecnologia desenvolvida pela medicina social foi a higiene pública, responsável por analisar e gerir o meio e seus efeitos sobre os organismos, forjando a noção de salubridade. A urbanização da modernidade trouxe a necessidade de maior cuidado com os espaços por promover diversas zonas de aglomeração como as fábricas e áreas propícias à proliferação de infecções como cemitérios e esgotos (FOUCAULT, 2008a). A higiene pública era o campo da medicina responsável por ditar as normas quanto a melhor localização desses espaços de risco e os padrões adequados para a construção de edifícios, de modo que fossem o mais salubre possível. Na medida em que a medicina preventiva torna-se regra para população e, muitas vezes, ela é imposta de modo autoritário com medidas de controle. O papel da higiene ganha destaque com o objetivo de reduzir epidemias, baixar taxas de mortalidade e aumentar a duração média da vida da população. Em decorrência desse processo, os médicos adquirem cada vez mais espaços administrativos, ganhando maior voz na sociedade. Passam a ser abundantemente consultados por prescrições sobre saúde, comportamento, alimentação, sexualidade, maneira de vestir, habitat. Esse excesso de poder leva à crescente presença do médico nas academias e sociedades científicas, enquanto conselheiros, representantes de poder e peritos. O Estado, de modo centralizado, gerenciava através da medicina e de práticas de vigilância os espaços públicos, os privados e as condutas dos corpos. Os indivíduos passaram a ter suas vidas esquadrinhadas; na busca por garantir a prevenção de doenças, a manutenção da saúde e a longevidade da população; o Estado concentrava cada vez mais informações sobre os grupos sujeitados ao mesmo tempo em que determinava as normas de condutas e fiscalizava sua aplicação. Esse gerenciamento minucioso da população, na busca por garantir a obtenção do melhor desempenho possível dos indivíduos, tinha como peça chave o papel da família. Sua estrutura, além de permitir um sistema privilegiado de vigilância de seus membros, também possuía o controle sobre as crianças, indivíduos de fundamental importância na construção do futuro da população. Percebe-se que, para o bom gerenciamento da infância, pelo qual argumentaremos, tem destaque a medicalização nesta etapa da vida, a fim de garantir sua sobrevivência até a idade adulta, seu bom desenvolvimento e saúde. Os principais agentes da medicalização da infância constituíam-se na família, que passa a receber novos deveres e cuidados do Estado a serem observados quanto à higiene das crianças, limpeza, amamentação, vestuário, práticas de atividades físicas. Esse aspecto fomenta no século XIX uma vasta literatura voltada para as classes populares com o objetivo de coordenar esse empreendimento (FOUCAULT, 2008a). Enquanto sociedade de normalização medicalizada temos, no presente, de modo ainda mais refinado, o saber médico na qualidade de principal gestor de condutas e a infância como 32 objeto crucial da governamentalidade do Estado. Escola e família são as instituições responsáveis por garantir que as crianças se ajustem à norma estabelecida. A escola atua nos corpos infantis enquanto dispositivo disciplinar, o que lhe confere atribuição fundamental dentro da organização da biopolítica da população. Por essa razão, escolhemos essa matriz teórica para analisar as práticas de inclusão disparadas pelo caso da escola, em tela nesta pesquisa, uma vez que este caso pode nos auxiliar a compreender os paradoxos desses dispositivos na educação infantil. Afinal, é como uma espécie de governo da infância, com vistas a formar o cidadão adulto, governado e autogovernado se possível, que a escola atua, mobilizando as artes pedagógicas e outras tecnologias de si que, para além de disciplinar, normalizam e, quanto aos anormais, tentam corrigir seus desvios realinhando-os em direção ao mais próximo possível do normal. Nesse caso, como veremos, muitas posturas por parte dos atores da equipe escolar, que nos serviu de inspiração para esta dissertação, podem ser compreendidas como reflexos da consolidação dessa forma de correção no senso comum social, assim como um modo mais radical de sua configuração presente marcada pela medicalização, antecedida por um diagnóstico médico. Além disso, o aperfeiçoamento da governamentalidade biopolítica gerencia essas tecnologias, as leis que regulam e as políticas aplicadas ao ambiente escolar, determinantes no desenho do quadro desse caso como objeto de nossa problematização. 33 2. PNEEPEI, SEUS REFLEXOS NAS PRÁTICAS DE INCLUSÃO ESCOLAR E ALGUNS RETRATOS EMPÍRICO-FICCIONAIS A promulgação da PNEEPEI em 2008 marcou uma tentativa de regulamentar práticas de inclusão escolar no Brasil, seguindo os moldes dos debates mundiais mais recentes acerca da democratização da educação. Este capítulo pretende analisar a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, conforme enunciado na introdução, contrastando-a com os relatos do caso literário indicado anteriormente e sob o olhar da biopolítica. Tal escolha deveu-se ao fato desse documento representar um marco regulador das demais políticas nessa área e de sua busca por nortear e reger a construção de um modelo de escola inclusiva no Brasil. Essa opção também se justifica pelo período em que ocorreu a experiência retratada ficcionalmente, nove anos após sua publicação. Pretendemos observar quais as implicações que sua promulgação trouxe ou deveriam ter gerado nas práticas escolares ilustradas. Para contrastá-las utilizamos notas pessoais e memórias das vivências obtidas na experiência de estágio em 2017, enunciada anteriormente, que foram retratadas de modo ficcional. Essa vivência foi o elemento disparador dessa dissertação e nos inspirou na construção do caso paradigmático, que será problematizado. 2.1 Transversalidade A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva foi publicada em 2008 num contexto de intensos debates e produções internacionais acerca da inclusão, o Brasil tentou acompanhar esse movimento. Ela pretendia traçar diretrizes para a construção de um sistema educacional que viabilizasse práticas escolares inclusivas e que valorizasse a diferença e garantisse o acesso irrestrito à educação por toda a população, independentemente de suas particularidades físicas, sociais, étnicas ou de gênero. O Brasil vinha seguindo, a exemplo de outros países e de convenções internacionais, um caminho que almejava instituir a universalidade do acesso à educação na perspectiva inclusiva. Os anos 2000 foram marcados por políticas públicas na busca por esse ideal. O próprio documento publicado da PNEEPEI traz uma breve síntese das principais características dos planos e leis que a antecedem. Um ano antes da publicação dessa Política, o Plano de Desenvolvimento da Educação: razões, princípios e programas de 2007, tinha “como eixos a acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares, a implantação de salas de recursos e a formação docente para o atendimento educacional especializado” (BRASIL, 2008, p. 11) e apontava para a 34 importância de superar a oposição histórica existente entre Educação Regular e Educação Especial. Retrato ficcional 1 Propomos então, como retrato empírico-ficcional, a projeção do seguinte cenário: o ano é 2018, o espaço uma escola de educação infantil tradicional e respeitada em seu município. Essa escola, caracterizada como inclusiva, tem por hábito recepcionar inúmeros estagiários do campo da Educação Especial, devido ao reconhecimento de seu trabalho e apresenta simultaneamente estudantes incluídos em turmas regulares e matriculados em uma Classe Especial. Em suas práticas internas de relações subjetivas de poder existe uma concentração de responsabilidades, uma profissional especialista em Educação Especial forjou-se ao longo de anos de trabalho como professora da referida classe nessa instituição enquanto referência primeira dessa área. O restante do corpo docente a pergunta todo o tempo sobre condutas e sugestões de ideais para desenvolver ações com seus estudantes e qualquer consulta relativa a esse campo ou à inclusão é encaminhada a essa profissional. Mesmo sem possuir um cargo específico que a intitule como responsável pela Educação Especial naquela escola, ela parece possuir um posto simbólico de poder que evidencia uma organização paralela, um subsistema interno de ensino sob sua tutela. Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora. Diante dessa cena, que aponta uma responsável específica para os assuntos de Educação Especial, percebemos a nítida separação entre Educação Especial e regular, como se dois sistemas coexistissem nesse lócus. De uma escola inclusiva ideal, esperamos que respire diferença e que todos os seus atores convivam com ela e estejam aptos a apresentá-la e a descrever seu funcionamento a um visitante. No espaço narrado, as categorias são distintas, as crianças público alvo da Educação Especial tem o direito ao acesso, encontram acessibilidade arquitetônica, mobiliário adaptado, cuidadoras, profissionais especializados, mas situam-se em meio a dois sistemas educacionais funcionando paralelamente no mesmo espaço-tempo. Sob este aspecto é notável a contradição. A PNEEPEI “tem como objetivo assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência [...] orientando os sistemas de ensino para garantir [...] transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil até a educação superior [...]” (BRASIL, 2008, p. 14). Por sua vez, a prática que narramos nessa cena apresenta um paradigma anterior aos debates sobre educação inclusiva, que tomaram corpo após a Constituição de 1988, um paradigma que distingue os aptos a receberem Educação 35 Regular dos não aptos que necessitam de correção, do uso de outros recursos, do intermédio de um profissional especializado, de um outro sistema de ensino. Algo que pode se justificar historicamente, mas que parece encarnar nas escolas um paradoxo que refrata as próprias ambiguidades de um Plano Nacional de Educação Especial que, não obstante a Perspectiva Inclusiva, reflete os embates desse campo. O modelo especializado orientou a Educação Especial no Brasil desde meados do século XX quando a LDB7 de 1961 (BRASIL, 1961) introduziu o direito a educação dos deficientes, sempre que possível na sala regular, desde que os indivíduos fossem capazes de acompanhar o desenvolvimento do restante da turma, buscando a homogeneidade dos sujeitos, excluindo o diferente, o inapto, o anormal para um espaço apropriado onde se pretendia corrigi-lo e se possível, aproximá-lo da média. “A educação de excepcionais, deve, no que for possível, enquadrar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade” (BRASIL, 1961, Art. 88). Esse modelo chamado integracionista trouxe avanços ao paradigma que o antecedeu, segregativo, que excluía por completo do ensino regular os corpos deficientes, pois eram vistos como incapazes de aprender nesse espaço devido às suas características intrínsecas, esse paradigma foi predominante desde o fim do Período Imperial, nas primeiras experiências com educação dos deficientes no Brasil. Porém, nesse avanço obtido pós LDB de 1961, foram mantidas certas formas de exclusão dentro dos muros da escola. O paradigma da integração, que perdurou por toda a segunda metade do século XX na descrição das políticas para Educação Especial, permanece ainda hoje com seus resquícios em muitas práticas escolares, mesmo após a tentativa da PNEEPEI de abolir esse modelo. Se, de um lado, aquele documento garantiu o acesso às escolas regulares, de outro, como no caso narrado, os sujeitos estão submetidos a um sistema à parte, que se integra à Educação Regular em alguns momentos, mas possui um gerenciamento próprio. 2.2 Os efeitos da PNEEPEI numa escola de Educação infantil: um caso paradigmático Em seu texto de apresentação, a PNEEPEI aponta a existência de dificuldades nos sistemas de ensino que evidenciam a necessidade de enfrentamento às práticas discriminatórias. A formulação da educação inclusiva ampara-se no paradigma proveniente dos direitos humanos pelo qual diferença e igualdade são valores indissociáveis. O documento aponta para o papel central da escola na superação da lógica da exclusão. Para a construção de sistemas 7Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 36 educacionais inclusivos, ele afirma a necessidade de se repensar a existência das classes especiais e a necessidade da promoção de uma mudança estrutural e cultural na escola (BRASIL, 2008, p. 5). Por muito tempo perdurou o entendimento de que a educação especial organizada de forma paralela à educação comum seria mais apropriada para a aprendizagem dos alunos que apresentavam deficiência, problemas de saúde, ou qualquer inadequação com relação à estrutura organizada pelos sistemas de ensino. Essa concepção exerceu impacto duradouro na história da educação especial, resultando em práticas que enfatizavam os aspectos relacionados à deficiência, em contraposição à dimensão pedagógica (BRASIL, 2008, p. 14). Retomando o caso que pretendemos esboçar, destacamos nele a remanescência de uma Classe Especial no interior de uma instituição escolar, dez anos após a promulgação da PNEEPEI. Além disso, essa escola que ilustramos, permitiu a matricula de estudantes Público Alvo da Educação Especial em turmas regulares somente 8 anos após a implementação dessa política. Desse modo, no espaço-tempo que propomos, essa instituição oferecia simultaneamente a opção por matrículas em turmas regulares, na categoria inclusão, assim como na Classe Especial. Seus atores conduzem com naturalidade essa estrutura anacrônica e híbrida, tanto pais quanto educadores não questionam seu modo de organização e demonstram considerar adequada essa distinção. Além disso, a existência dessa opção é reforçada pela postura dos pais que, por vezes, procuram essa escola justamente no intuito de matricularem seus filhos na referida classe. Ademais o principal critério que regulamenta a definição do público da Classe Especial se faz pela vontade dos pais. Nos chama atenção na PNEEPEI em seu capítulo Diagnóstico da Educação Especial, alguns números que apontam a evolução da inclusão formal a partir do censo escolar no intervalo de 1998 a 2006. Nesse período podemos observar uma expressiva taxa de crescimento no número de matrículas na Educação Especial na modalidade inclusão, pois 640% ocorriam em escolas comuns e somente 28% dessas matrículas davam-se em escolas ou classes especiais. O capítulo também demonstra que: No âmbito da educação infantil, as matrículas concentram-se nas escolas/classes especiais que registram 89.083 alunos, enquanto apenas 24.005 estão matriculados em turmas comuns, contrariando os estudos nesta área que afirmam os benefícios da convivência e aprendizagem entre crianças com e sem deficiência desde os primeiros anos de vida para o seu desenvolvimento (BRASIL, 2008, p. 13). 37 Além disso, esse registro aponta a evolução das matriculas em Educação Especial no âmbito dos municípios. Enquanto em 1996 somente 49,7% dos municípios registravam matriculas nessa modalidade de ensino, em 2006 esse número atinge 89% dos municípios. Quanto às escolas o censo demonstra que no período estudado houve um crescimento de 730% no número de escolas que apresentavam matrículas de alunos na Educação Especial. “Destas escolas com matrícula em 2006, 2.724 são escolas especiais, 4.325 são escolas comuns com Classe Especial e 50.259 são escolas comuns com inclusão nas turmas de ensino regular” (BRASIL, 2008, p. 13). Nosso caso ilustra uma experiência que aparenta, por sua vez, repetir um comportamento que antecede a promulgação da PNEEPEI, ao menos em escolas de educação infantil havia uma tendência em priorizar as classes ou escolas especiais, ainda que houvesse um movimento oposto nas demais instituições de ensino. Ademais, destaca-se que o estabelecimento de ensino concebido não aderiu à educação inclusiva até o ano de 2015. Talvez a existência da Classe Especial, a tradição dessa instituição e o conservadorismo dos pais que a procuravam tenham propiciado esse comportamento. Contudo, devemos nos atentar ao fato de que essa conduta representativa não seria tão atípica para educação infantil. Mesmo após a PNEEPEI em 2008 determinando as matrículas no ensino regular, a estrutura dessa instituição manteve-se inalterada. Talvez os atores, habituados a um sistema que a seu ver funcionava, além de satisfazer aos anseios dos pais, decidiram por conservá-lo. Decerto a experiência da docente responsável pela Classe Especial oferecesse confiança a toda equipe para prorrogar esse modelo, ao mesmo tempo em que despertava insegurança na implementação de mudanças. O legado dessa Classe Especial, sua capacidade de absorver um público com maior grau de comprometimento e a autoridade conferida à educadora responsável, em razão de sua experiência, podem ter contribuído para a adoção dessa postura. Em 2015, quando ela passou a ofertar vagas para esse público nas turmas regulares, abrindo-se para a inclusão, não conseguiu desprender-se de suas heranças oriundas do contexto de integração, no qual o processo de ensino e aprendizagem buscava constituir ambientes homogêneos. Somam-se a esse cenário da escola algumas lacunas deixadas no texto da referida política, uma vez que não se encontram explicitas em sua redação estratégias para a educação do público com alto comprometimento. Isso, sem contar que, à proposta publicada com o PNEEPEI se contrapuseram também parte dos pesquisadores e professores da Educação Especial, assim como algumas comunidades, especialmente, de pais de pessoas com deficiência, que viam certa radicalidade nessa forma de inclusão de seus filhos em Escolas Regulares. 38 Tais movimentos de enfrentamento à proposta denominada por eles de “inclusão radical” foram comuns em quase todo o país e buscavam garantir aos pais a manutenção do direito de escolha por classes ou escolas especiais. Somaram-se a esses grupos categorias interessadas em manter em funcionamento instituições tradicionais particulares e/ou filantrópicas especializadas no atendimento desse público. Parece ter havido e não ter se encerrado, uma certa disputa territorial pelo público alvo da Educação Especial e pela manutenção da autoridade adquirida por esse campo ao longo da história8. Como podemos observar no debate abaixo que aponta a existência de uma crise em torno da Educação Especial: Sob o comando da Secadi, há o risco de se tratar a inclusão escolar de alunos com deficiência cada vez mais pelo viés da demagogia liberal e da pedagogia “multiculturalista”; isso com o abandono das discussões mais concretas sobre a educação especial, na medida em que se priorizam os motes genéricos e homogeneizantes da diversidade e da inclusão. Diante desse quadro político, a ênfase em princípios inclusivistas põe em xeque a legitimidade da educação especial, posto ficar secundarizada na pauta do ministério [...]. O fechamento da Seesp, efetivado como uma decisão técnica da equipe de governo, sugere a intensificação dessa crise em torno da educação especial, cada vez mais negada enquanto campo de conhecimentos teórico-prático fundamental para mediar os encaminhamentos da inclusão escolar (BEZERRA 2013, p. 7, aspas do autor).9 Portanto, manter um espaço exclusivo que receba esse público simboliza uma ruptura a menos a ser implementada pelos atores da escola de nossa narrativa. Estendendo esse raciocínio para a incidência que movimentos nesse mesmo sentido possam ter em escolas reais, esclarecemos que não pretendemos questionar as decisões tomadas pelas equipes escolares bem como o caminho por elas traçado culpabilizando os sujeitos, compreendemos que se encontram inseridos num universo social e cultural que estimula determinadas condutas. Os debates e projetos que pretendem construir uma escola inclusiva estão sempre atrelados às heranças da Educação Especial e aos saberes por ela constituídos, apesar de buscarem em sua enunciação transformá-la de sistema paralelo para sistema transversal, seu legado permanece presente. Por décadas a própria legislação preconizava que o professor regular não estava apto a educar o aluno deficiente, que essa tarefa requeria conhecimentos específicos. Esse atributo perdurou e acentuou o poder do professor especialista, enquanto coibiu nos demais educadores a 8(TINÔCO, 2018) Elabora nesta tese um levantamento dos consensos e dissensos entre os pesquisadores brasileiros sobre políticas e práticas de inclusão. 9 Secadi - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - MEC. Seesp – Secretaria de Educação Especial – MEC. 39 perspectiva de sentirem-se aptos a educar o indivíduo, independentemente de suas diferenças ou, simplesmente, com elas. 2.3 O apoio em um paradigma científico As primeiras instituições de educação voltadas para o público deficiente distinguiam-se por categorias, institutos para cegos, surdos, deficientes físicos ou mentais - como eram denominados - e foi nesse sentido que se desenvolveram os estudos em Educação Especial, aprofundando os conhecimentos específicos de cada tipo de deficiência, categorizando e classificando-as. As ações oficiais nacionais e a criação de órgãos centrais para gestão desse subsistema educacional possuíam forte caráter técnico-científico, requeriam para a definição do público-alvo da Educação Especial a avaliação clínica. Deparamo-nos hoje com esse legado tanto na formação docente, quanto nas pesquisas em Educação Especial que mantém, enquanto um de seus pilares, a classificação, descrição e aprofundamento das particularidades de cada deficiência. A Educação Especial segmenta os indivíduos de acordo com seu quadro clínico a fim de homogeneizar e de aprofundar seus saberes, os planos de inclusão não conseguem se distanciar dessas marcas. A própria PNEEPEI que pretendia traçar os caminhos para a construção da escola inclusiva que valorizasse as diferenças e a convivência num meio heterogêneo, mantém sua redação apoiada nesse paradigma científico ao redefinir o público-alvo do Atendimento Educacional Especializado. Consideram-se alunos com deficiência àqueles que têm impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que em interação com diversas barreiras podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade. Os alunos com transtornos globais do desenvolvimento são aqueles que apresentam alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Incluem-se nesse grupo alunos com autismo, síndromes do espectro do autismo e psicose infantil. Alunos com altas habilidades/superdotação demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. Também apresentam elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse. Dentre os transtornos funcionais específicos estão: dislexia, disortografia, disgrafia, discalculia, transtorno de atenção e hiperatividade, entre outros (BRASIL, 2008, p. 15). Por outro lado, esse plano procurou relativizar tais conceitos afirmando em seguida que essas definições não deveriam se esgotar em mera categorização, reafirmando a positividade de 40 ambientes heterogêneos e o potencial de transformação mútua que a convivência com a diferença pode proporcionar. Enquanto documento condutor, essa postura torna-o ambíguo e reforça velhas práticas a nosso juízo. Percebemos uma aparente dependência do diagnóstico e busca por patologias para a orientação do trabalho pedagógico, uma clara dificuldade de romper com o modelo médico- pedagógico e fortalecer o educacional-escolar. Aquele modelo, escorado na ciência, pressupõe a definição do sujeito a partir de seu diagnóstico, de uma patologia, resume o indivíduo num laudo e acaba por priorizar condições distintivas e aceitas como inerentes ao sujeito devido ao seu diagnóstico, em detrimento às suas individualidades e potências singulares. Enquanto que esse sistema educacional-escolar nos reporta às dificuldades da escola, nos seus diferentes níveis, superar a um exercício de poder disciplinar e, particularmente, a um modelo normativo em que a homogeneização de todos pela média dá a tônica de suas práticas, mesmo quando se fala de um eventual dispositivo de inclusão em seu seio. Parece-nos que essa visão, herdada de certo limiar da Educação Especial, atrelada aos signos específicos de cada deficiência, sobre a qual a PNEEPEI foi elaborada, foi insuficiente para que essa atingisse seus objetivos com a inclusão. Como afirmou Pagni (2019a) em sua análise sobre o referido documento. Durante o período de elaboração da PNEEPEI, a estratégia utilizada foi a de filtrar esses demais signos para tratar a deficiência como parte de um signo especializado, que se aplica a determinados sujeitos para que possam ser tratados por tecnologias específicas de atendimento ou de educação especial destinadas a esse público em torno do qual se aglutinam. É possível ponderar ainda que, se considerarmos as condições de sua elaboração e a composição da comissão de especialistas, os signos que aglutinam esse público ainda são demarcados pelas especialidades de cada deficiência, pelos saberes e tecnologias produzidas e acumuladas pela Educação Especial, destinadas ao atendimento de deficientes intelectuais, físicos, auditivos e visuais, repartidos nessas modalidades. Por sua vez, tal repartição e, algumas vezes, os cruzamentos dessas modalidades significaram sujeitos específicos, filtrados seus demais signos e traços constitutivos, para serem objetos de seu atendimento, durante a implementação da PNEEEPEI, neutralizando sua eventual ameaça para torná-los sujeitados socialmente a uma série de dispositivos que, ao governarem-nos, enquadra-os a determinadas condutas e comportamentos (PAGNI, 2019a, p. 6). Esse modelo científico, biológico e fragmentalizante, do qual nem a PNEEPEI nem as práticas de inclusão conseguiram se desvencilhar, pretendeu normalizar e corrigir os sujeitos a partir de sua organização em subgrupos homogêneos, caracterizados por cada tipo de deficiência e seus saberes acumulados. Tal estratégia atuou como um dispositivo de governo 41 desses corpos incorporando-os, desse modo, à rede de governamentalidade estatal, permitindo- lhes, por estarem formalmente incluídos, que pertencessem ao jogo de consumo e produção do mercado. Assim, podemos afirmar que a inclusão que conhecemos encontra-se de algum modo subordinada ao mercado, como uma exigência da biopolítica neoliberal e a uma escola cujo bloco de poder, capacidades e comunicação pende para o empresariamento da vida individual, para uma tentativa de contemplar a diferença, atribuindo-lhes normas próprias, que no fundo gera indiferença e relativiza tudo que emerge pela afirmação da diferença (PAGNI, 2020). O mesmo autor ainda argumenta que o preço cobrado desses sujeitos em troca dessa participação, para que se encaixem, exige que se deixem de fora algo de si “[...] para que sejam incluídas e, muitas vezes dependendo do que fique de fora, alguns modos de existência acabam por serem lançadas à deriva, à margem, deixadas à própria sorte” (PAGNI, 2019a, p. 9). E, a despeito da positividade promovida pela inclusão que foi impulsionada pela PNEEPEI, graças a ela percebemos por meio da observação das práticas, a existência de limitações nesse paradigma científico da Educação Especial, no qual essa prática de inclusão se fundamenta. Nesse esquadro, tal modelo conserva a busca pela homogeneidade. Primeiro ele observa, identifica, nomeia e classifica os sujeitos de acordo com seus diagnósticos. Depois, a partir dos saberes reunidos sobre cada categoria de deficiência procura, através de protocolos organizados por especialistas, aplicá-los em cada grupo ou em cada tipo de sujeito, conforme sua identificação, a partir de seu laudo. Esse paradigma também implica na defesa do uso de fármacos, sempre no sentido de correção, de tornar esses sujeitos mais próximos ao retrato da normalidade. Nesse trajeto por vezes, professores, pais e outros atores do processo educacional impõem a esses corpos desviantes cobranças, expectativas, técnicas e medicamentos que buscam aproximá-los da norma, consequentemente afastando-os de sua natureza e, por vezes, de suas potências. Não obstante, essa inclusão lhes traz elementos que permitem sua participação no mercado, tornando-os mais facilmente aceitos e adaptados às exigências do mundo do trabalho, mais facilmente governáveis e mais próximos do que se convencionou considerar como normal. Retrato ficcional 2 Noutra cena, ilustramos um diálogo informal na escola no qual duas professoras conversam durante o intervalo para o café. Uma delas relatava à outra a evolução de sua aluna “de inclusão” (como ela dizia), afirmava sobre a estudante que costumava ser tranquila, não dar trabalho algum além do habitual para a turma, somente apresentava um ritmo próprio de aprendizado ou mesmo de interesse pelas atividades propostas. Porém, nas últimas semanas, 42 essa aluna encontrava-se mais agitada, mais dispersa das atividades. A professora então pretendia solicitar aos pais que revissem junto ao médico a dose de sua medicação. Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora. Nesse cenário escolar que concebemos, no qual dois paradigmas de inclusão parecem coexistir, o que remete ao modelo da integração – simbolizado pela existência da classe especial e o que se pretende alinhado à inclusão total enunciada pela PNEEPEI, às práticas normalizadoras e as referências a padrões corretivos herdados da Educação Especial, encontram-se marcados em ambos os modelos. Observamos traços desse modo de conceber e praticar a inclusão desses alunos tanto nas turmas regulares, como o exemplo retratado acima, quanto na classe especial. Com algumas exceções, esse parece ser o modo mais aceito de compreender a inclusão por parte dos atores da escola, talvez como uma marca de suas formações enquanto educadores e também de suas constituições enquanto sujeitos. Não estamos isentos do meio cultural no qual somos