UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL JULIANO ANTONIO CAMPOS COAÇÃO ADMINISTRATIVA: limites e responsabilidades FRANCA 2008 JULIANO ANTONIO CAMPOS COAÇÃO ADMINISTRATIVA: limites e responsabilidades Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca, para obtenção do título de Mestre em Direito (Área de Concentração: Direito Obrigacional Público). Orientador: Prof. Dr. José Carlos de Oliveira FRANCA 2008 JULIANO ANTONIO CAMPOS COAÇÃO ADMINISTRATIVA: limites e responsabilidades Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca, para obtenção do título de Mestre em Direito (Área de Concentração: Direito Obrigacional Público). BANCA EXAMINADORA: Presidente: _________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos de Oliveira Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” 1º Examinador(a): ____________________________________________________ Prof. Dr. Augusto Martinez Perez Unaerp 2º Examinador(a): ____________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Elisabete Maniglia Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Franca, 06 de março de 2008. Dedico à Antônia, mulher forte como uma guerreira; anjo dócil que tenho a felicidade de possuir como mãe, alguém de muito valor que com sua vida põe mais vida em minha vida; ao amigo e companheiro Laurindo, um ser humano fabuloso que sempre está ao meu lado em dias escuros ou de sol; à amiga e colega de profissão Bel. Dora Isilda Lopes Badoco, que com a bondade de seu olhar ilumina mais a minha estrada. AGRADECIMENTOS Muitos foram os que me ajudaram na feitura do trabalho. Sobretudo com estímulo e incentivo. Tanto dentro da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca, como aqui fora; Em especial a minha admiração para os nobres professores: Dr. José Carlos de Oliveira, meu dedicado Orientador; Dr. Christiano José Andrade, mais do que mestre, um amigo; Aprendi com eles que a única forma de conhecer é descobrir e que fazer descobrir é única forma de ensinar. “Uma sociedade não se constrói sobre a virtude dos homens, ou sobre as conquistas financeiras, mas sim, sobre a solidez das instituições”. Montesquieu RESUMO A presente pesquisa aborda o tema da coação administrativa, sob o enfoque da segurança pública. Qualquer ato de compulsão praticado por agente público devidamente autorizado a tal, para condicionar direito ou a liberdade das pessoas, dá-se o nome de coação administrativa. O Estado de Direito é fundado em uma premissa basilar: dar condições para um convívio harmônico entre o exercício do poder político e a liberdade individual do cidadão. Assim, o exercício do poder estatal não pode eliminar o espaço da liberdade individual. Aqui impera o princípio do sacrifício mínimo dos direitos e liberdades fundamentais, já que o poder estatal existe e fundamenta-se justamente para preservá-los na vivência em sociedade. É através do poder de polícia que o Estado legitima-se ao uso da coação, impondo limitações ao indivíduo e à propriedade para assegurar os fins gerais da sociedade, como a segurança, a ordem pública, a saúde, a paz. Os direitos e liberdades individuais são conquistas que a humanidade vem realizando e é dever do Estado garantir o seu exercício. Os limites ao exercício do poder de polícia e ao uso de coação administrativa são os direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição Federal. Através dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade aufere-se a justa medida para a atuação do poder de polícia e, em segundo momento, para orientar a autoridade na escolha de medida que importará o menor sacrifício possível aos direitos do cidadão. A dignidade humana é acolhida no sistema normativo brasileiro como princípio jurídico autônomo, dotada de força de eficácia superior, pois é um dos fundamentos da República, como se observa na leitura do artigo 1º da Carta Magna. Como tal, o princípio da dignidade da pessoa vincula o próprio poder de polícia, posto que qualquer ato ou medida que cause ao cidadão uma lesão desnecessária e excessiva em sua dignidade, caracterizar-se-á como ato ilícito e abusivo, ensejando pronta reparação. O princípio da responsabilidade estatal é garantia primordial do indivíduo perante o Poder Público e, ao lado dos demais princípios, como o da legalidade, da igualdade de tratamento, entre outros, embasam o sistema jurídico democrático e contribuem para a realização da Justiça material do cidadão, resguardando-o ante as investidas abusivas do Poder Público. Palavras chave: administração pública; poder de polícia; coação administrativa; limites; direitos fundamentais. ABSTRACT This research approaches the administrative coercion, under the focus of public security. Any act of compulsion practiced by any public agent properly authorized to do so, to condition people’s right or liberty is called administrative coercion. The State of Right is founded on a basic premise: giving conditions to a harmonious situation between the political power performance and the citizen’s individual liberty. So the state power performance can not eliminate the individual liberty’s place. Here the principle of fundamental rights and liberty minimum sacrifice prevails since state power exists fundamentally to preserve their living together in society. It is through police power that the State has legal capacity to perform the use of coercion imposing restrictions to the individual and to the property to assure society’s general purposes, such as security, public order, health and peace. Humanity has been achieving individual rights and liberties, thus it is State’s duty to assure its performance. The limits to the performance of the police power and to the use of administrative coercion are the fundamental rights and securities expressed at the Federal Constitution. Through reasonableness and proportionality principles it is obtained the fair measure to the police power performance and, at a second step, to orient the authority when choosing the right procedure that will imply the smallest possible sacrifice to citizen’s rights. Human dignity is received in Brazilian statute’s system as an independent juridical principle, endowed with superior efficacy act, since it is one of Republic’s grounds, as it is observed in the Magna Charta’s first section. Thus, the person’s dignity principle binds the police power itself, seen that any act or procedure that causes to the citizen and unnecessary and excessive lesion on his dignity, will be characterized as an unlawful and abusive act, occasioning immediate reparation. The state responsibility principle is the individual’s primordial security towards Public Power and, beside other principles, as legality, equal protection of law, among others, are the ground for the democratic legal system and contribute to accomplishment of the citizen’s material justice, protecting him from the abusive Public Power thrusts. Key words: public administration, police power, administrative coercion, limits, fundamental rights. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..........................................................................................................11 CAPÍTULO 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA – PODER E FUNÇÃO DE POLÍCIA ..............................................................................................17 1.1 Poder do Estado ................................................................................................17 1.2 Poder de Polícia e Segurança Pública.............................................................20 1.3 Função de Polícia ..............................................................................................29 1.4 Atributos dos Atos de Polícia...........................................................................31 1.5 Princípios Constitucionais Relevantes à Coação Administrativa .................39 1.5.1 Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade .......................................40 1.5.2 Princípio da legalidade .....................................................................................46 1.5.3 Princípio da moralidade ....................................................................................48 CAPÍTULO 2 COAÇÃO ADMINISTRATIVA.............................................................53 2.1 As Competências da Administração para o uso da Coação Administrativa ....................................................................................................54 2.1.1 Impor Condicionamentos..................................................................................54 2.1.2 O Ato de Fiscalizar ...........................................................................................58 2.1.3 O Ato de Reprimir .............................................................................................59 2.1.4 O Ato de Executar ............................................................................................61 2.2 Coação Direta ....................................................................................................63 CAPÍTULO 3 LIMITES À COAÇÃO ADMINISTRATIVA ..........................................67 3.1 A Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais ......................71 3.2 Situações de Confronto – Limiar entre Coação Legítima e Ilegítima............76 3.2.1 Identificação Criminal .......................................................................................77 3.2.2 Superlotação Carcerária...................................................................................79 3.2.3 Ações de Combate ao Terrorismo ....................................................................81 CAPÍTULO 4 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELA COAÇÃO ADMINISTRATIVA ILEGAL ................................................................85 4.1 Discricionariedade e Controle Judicial............................................................86 4.1.1 Discricionariedade não é Arbitrariedade: a Discricionariedade e seus Limites ...............................................................................................................88 4.2 Mecanismos de Controle Popular dos Atos da Administração.....................93 4.2.1 Abuso de Autoridade e Desvio de Poder..........................................................93 4.2.2 Meios Instrumentais de Garantia do Cidadão Contra os Abusos do Poder Público...............................................................................................................97 4.2.2.1 Habeas Corpus..............................................................................................97 4.2.2.2 Mandado de Segurança ................................................................................98 4.2.2.3 Ação Popular .................................................................................................99 4.2.2.4 Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental ...........................100 4.3 Responsabilidade Civil do Estado nos Atos de Coação Administrativa ....104 CONCLUSÕES .......................................................................................................110 REFERÊNCIAS .......................................................................................................119 11 INTRODUÇÃO Este estudo é o resultado de longos anos de profissão na área do Direito, primeiramente como bacharel e depois como acadêmico do curso de Pós- Graduação. Na condição de militante na advocacia, foi possível estabelecermos contato íntimo com a parte operacional do poder de polícia do Estado e as atividades privadas nocivas à sociedade. A vivência no meio enriqueceu nosso cabedal de informações e permitiu que aprofundássemos a visão institucional. Gradativamente fomos mergulhando na concepção verídica dos acontecimentos, na prática das normas vigentes, na solidificação da estrutura, no mecanismo das operações e na arquitetura que dá invólucro ao esquema. Logo se percebe que esta dissertação não está sendo escrita por um teórico que extraiu conclusões no mundo dos tratados simplesmente. Muito se comenta sobre a atuação da polícia administrativa no Brasil. Ao compulsar o histórico esbarramos em uma grande lacuna: a ausência de exames aprofundados, o que obriga os investigadores a buscarem consultas em doutrinas estrangeiras. Procuramos reunir documentos escritos, pinçando dados em arquivos e até manuais de legislação. Nosso objetivo primordial levou-nos a usar técnicas da pesquisa de campo para coligar o maior número de subsídios. Coletamos entrevistas orais e anotações iconográficas na tentativa de resgatar os aspectos da realidade, registrados de acordo com os fatos. A investigação verbal nos ofereceu a oportunidade de compilarmos o que não foi redigido, fazendo-nos compreender esse quadro através de enfoques diferentes, apesar de sabermos que as fontes orais nem sempre expressam o real. A opção de ouvir pessoas de classe e níveis culturais diversificados, revelou-nos a textura interna do complexo administrativo policial no contexto fenomênico da atualidade. Na varredura encontramos caminhantes, transeuntes, pedestres, conhecidos e itinerantes de múltiplos lugares. 12 Mesclando homens e mulheres de origens, culturas e etnias distintas, residentes em bairros progressistas ou periféricos, montamos um universo. Cingindo as impressões comuns apreendidas das inúmeras conversas erguemos um painel de mosaicos que nos trouxe à luz imagens do entorno que descreveram. A propósito, achamos de bom alvitre levar em conta a afirmação de Unamuno: “Cada parecer individual é um ponto de vista sobre a opinião coletiva, e este ponto de vista muda conforme o lugar que ali se ocupa, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantém com outros meios”.1 Temos consciência de que a historiografia nos leva a interpretações diferentes de um mesmo acontecimento e de uma só realidade. A amplitude dos conhecimentos nos empurra para a versatilidade e facilita nossa tarefa. Desde a elaboração de um esboço embrionário, planificando o roteiro, tivemos a idéia de fazer um trabalho sério, sem o intento de atingir a perfeição. No capítulo inicial apresentamos uma abordagem detalhada sobre o poder de polícia e segurança pública, já que o exercício do primeiro garante a manutenção da segunda, que constitui um dos interesses públicos mais proeminentes na sociedade. Destaque especial será dado aos princípios constitucionais relevantes à coação administrativa: a razoabilidade, a proporcionalidade, a legalidade e a moralidade como freio à atividade coativa do Estado e para equilibrá-la aos direitos e liberdades dos cidadãos, já que a coação deve sacrificar o mínimo possível os direitos fundamentais expressos na Constituição Federal. O capítulo seguinte será reservado para análise mais densa do instituto da coação administrativa. O uso da força pelos agentes administrativos para condicionar direito ou liberdade das pessoas ora se faz através da execução forçada, também chamada execução coercitiva, ora se processa através de uma compulsão sumária, ou coação direta, onde a atuação da força policial é imediata, a fim de restabelecer uma situação contrária à ordem pública. No próximo capítulo serão abordados os limites à coação administrativa. Limita-se a ação de polícia pelo sistema constitucional vigente. Pelo Brasil ter feito a opção política de Estado Democrático de Direito, os direitos e garantias fundamentais são o centro gravitacional de todo o sistema normativo. Além 1 UNAMUNO, Miguel de. A opinião pública. São Paulo: Vértice, 2003. p. 117. 13 do mais, a dignidade da pessoa humana é princípio estrutural do Estado, donde se conclui que o poder estatal e, em especial, o poder de polícia, deve nele buscar fundamento e validade. Iremos mais adiante ao divulgar que os direitos individuais são conquistas que a humanidade vem realizando e é dever do Estado garantir o exercício dessas liberdades. Com a ressalva de que esses direitos não podem constituir uma causa de subversão da ordem e do equilíbrio jurídico. O capítulo final abarcará a responsabilidade do Estado pela atividade policial no plano das medidas coativas e também de controle judicial. A doutrina brasileira aponta três requisitos necessários para que a Administração faça uso das providências executórias. São eles: autorização expressa na lei: urgência da medida; inexistência de outra via de direito capaz de assegurar a satisfação de interesse público que a Administração está obrigada a defender. Calou fundo em nosso juízo o parecer de Cavalcante em livro notável: “É importante que a polícia e o Supremo Tribunal Federal e demais órgãos dessa envergadura se preocupem com a imagem pública. Para que a sociedade não veja seus militantes a favor do poder e contra os mais pobres”.2 Cada vez mais se fortifica uma corrente humanista que bate de frente com abuso e falcatruas cometidos nos bastidores das instituições policiais. Os luminares que integram essa cruzada combatem ações arbitrárias e atitudes que arranhem os direitos dos cidadãos. O direito é posto em primeiro plano, sendo que o direito à vida é o principal. Em seguida se levantam o direito à liberdade, o direito à dignidade humana, o direito à sobrevivência, o direito à defesa e o direito à paz de espírito. Com efeito, não se pode redigir um estudo como este, valendo-se simplesmente de dados técnicos e deixando de lado a visão caleidoscópica do aspecto social. Queremos apurar como a proposta de atuação é trabalhada nas instituições policiais num momento em que expoentes arcaicos insistem em manter uma postura conservadora. 2 CAVALCANTE, Themóstecles Bastos. Tratado de direito administrativo. São Paulo: Moderna, 1995. p. 115. 14 É necessário erigir um perfil fiel e verdadeiro sobre as condições que iguais diques tentam bloquear e avanço das reformas. Se formos enfileirar as desigualdades que ocorrem neste país imenso e heterogêneo ficaremos abismados. São muitas as cidades existentes no território que ultrapassam os limites acanhados de vilarejos e arraiais. Especialmente no noroeste do Mato Grosso e no sertão do Ceará temos exemplos típicos. São lugares que já receberam luz elétrica, mas não possuem delegacia, juizado e polícia permanente. Lá os mais humildes seguem as leis dos poderosos, fazendeiros, usineiros e comerciantes. Os abonados decidem tudo, inclusive quem fica ou deve se mudar. Os teimosos, que se recusam a obedecer, são ameaçados. É contra esses desmandos que um punhado de bravos inovadores, como foi relatado na página anterior, procura implantar a justiça social. É a tentativa do Poder Público de intervir em áreas onde a vida humana parece valer menos que uma tora de madeira ou um veio de água. Os conflitos agrários e as disputas por lençóis de garimpos reclamam por interferência oficial. A ausência do Estado fica patente nessas localidades esquecidas. Em que a milícia de destacamentos vizinhos, delegados de distritos maiores e juízes de comarcas afastadas são incumbidos de organizar a ordem à distância. A implantação de delegacias e fóruns estão mudando o panorama. Quando o Estado não consegue cobrir certas regiões, a União e o Exército são chamados a colaborar. Gaspari é rígido: “Passou da hora do Estado cuidar melhor dos marginalizados do progresso, tendo um discurso de proteção à Amazônia como preocupação máxima”.3 Outro fator preponderante que vamos incluir neste levantamento é quase um expurgo com vistas para a redenção. É impossível pleitear educação, segurança e bem-estar social sem a abertura de cabeças. A metamorfose deve ser estrutural. Gregotti também é drástico ao tecer uma crítica acerba à posição do Governo: “Um país não pode alcançar autonomia financeira legítima tendo boa parte da população4 e de representantes públicos mergulhados na ignorância cultural”. 3 GASPARI, Élio. Despertar de gigante. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 92. 4 GREGOTTI, Victorio. O desnível das classes. São Paulo: Nacional, 2000. p. 85. 15 Podemos argumentar que com segurança e educação principalmente gastam-se quilômetros de papel e uma eternidade em falação. Se fôssemos um país mais educado, menos rigor haveria no uso da coação administrativa. Porque diminuiria bastante o número de cidadãos assaltantes, violentados e mortos. Cairia a porcentagem de jovens propensos a se tornarem malfeitores. A força dos narcotraficantes seria mínima. Pequena soma de motorista se mataria nas estradas. E quase não se ouviria falar em comércio amador de drogas nas escolas ou nos bares. O problema, o dilema, a tragédia é saber por onde começar. Vem do fundo dos tempos a sugestão de que o ensino principia em casa. Ocorre que na reviravolta que o mundo globalizado deu, os meninos problemáticos não possuem pai e mãe no lar e têm poucos modelos bons para seguir. Nas escolas, professores são mal pagos, desestimulados, sobrecarregados e destituídos da vontade de instruir. Nesse caso, pensamos nós, a educação deveria começar pelo alto. Pelas autoridades, pelos políticos, pelos líderes. Infelizmente não se pode alardear que o Brasil está sendo brindado com extensa parcela de comandantes modelares, de líderes positivos, de autoridades de atitude impecável. Estamos diante de um dilema triste: começar por baixo, pela faixa estaria menor, aplicando educação em casa e nos colégios, ou começar a reformar a mentalidade dos altos escalões, nos quais lideranças são pobres de autoridade moral e elevada postura? Cientistas comportamentais e analistas sociais permanecem indecisos perante a indagação. Quem tiver a resposta deve sugeri-la aos governantes, aos pais, aos educadores. De momento, parece-nos que estamos somente despertando para essa questão crucial, sem a qual nada de importante se fará neste país das utopias. Na presente conjuntura, a qualidade total precisa fazer parte das rotinas de empresas, autarquias, instituições. Indubitavelmente o Estado administrativo almeja um futuro promissor em especial para o correto e bom uso do poder de polícia. A expectativa é de crescimento e fortalecimento no cenário nacional. 16 O crescimento evolutivo de amanhã é um reflexo das ações tomadas pelo organismo hoje. O melhor marketing para uma entidade ou instituição é a pujança motriz com que o progresso se alavanca. Isso envolve entrosamento corporativo e a junção dos ideais uníssonos é um impulso considerável. Sem sombra de dúvida uma hierarquia voltada para a excentricidade e o hedonismo acaba por barrar a homogeneidade entre as categorias, gerando atraso. Atrevemos a considerar que dos ícones que ocupam o patamar de cima e os grupos anônimos da serra laboral surge o liame de esforços para que ações ordinárias sejam cumpridas e todos atinjam resultados plenos. Completando na etapa preliminar nossas considerações a respeito do empolgante e intrincado tema, cremos que pode ser ponte de passagem para debates pesquisadores politizados. Excelente fonte de discussão para investigações e conversas de blogs ou diários da internet. Que esta dissertação seja um trabalho instigante, capaz de induzir o surgimento de muitos outros exploratórios sobre o assunto. Aptos a registrarem as particularidades que distinguem os serviços operacionais que nos âmbitos policiais são praticados e suas respectivas rotinas daqueles que são exercitados no resto do mundo. O que planejamos com esses apontamentos será deixar um testemunho de que, apesar dos contrastes, acreditamos na vitória das instituições administrativas, desde que as gentes que nelas atuam, sejam socialmente responsáveis e desenvolvam cada vez mais serviços e projetos que beneficiam a coletividade, expurgando-se o mau uso da máquina e a corrupção, que são as grandes chagas da Administração Pública. O caminho que vamos percorrer para arquitetar e cumprir esta tarefa não será fácil. Se depois de concluí-la, começaríamos tudo de novo? Certamente. Com a única condição de que nossa família e as pessoas que na área de Pós-Graduação da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” nos incentivaram a fazê- la… estivessem ao nosso lado. 17 CAPÍTULO 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA – PODER E FUNÇÃO DE POLÍCIA 1.1 Poder do Estado O Estado, como uma entidade de direito público, tem direitos e obrigações próprios que, muitas vezes, são contrários aos dos administrados, compete a ele a manutenção da ordem e dos serviços públicos e a distribuição da justiça. Por isso pode exigir, em presença da soberania, obediência dos administrados. O poder é a manifestação da organização do Estado e tem por finalidade a proteção do próprio Estado, defendendo os interesses coletivos contra os de natureza privada, que são também assegurados. Bonavides1 pondera ser o poder o elemento essencial constitutivo do Estado, pois representa “sumariamente aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade humana num determinado território, conservando-a unida, coesa e solidária”. Já Hely Lopes Meirelles2, adverte que poder é a capacidade de decidir e impor a decisão aos seus destinatários. Nesse sentido, Afonso Arinos, citado por Bonavides3, também define este elemento como a faculdade de tomar decisões em nome da coletividade. Por fim, é certo, que este se manifesta em todos os grupos e comunidades, desde a família - menor grupo social - que se apóia no poder familiar, até o Estado, que se sustenta no poder político, emanado da vontade popular, que é a baliza da soberania estatal. Do significado axiológico da palavra ‘poder’, entrelaçam-se a força e a competência, compreendida esta última como a legitimidade oriunda do consentimento. Legitimidade é um termo que exige contextualização de fundo, 1 BONAVIDES. Paulo. Ciência política. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 106. 2 MEIRELLES, Hely Lopes. Poder de polícia e segurança nacional. Revista dos Tribunais, v. 61, n. 445, p. 287-298, nov. 1972. 3 BONAVIDES, op. cit., p. 106. 18 acerca da justificação e dos valores do poder legal. Assim, a legitimidade é a legalidade acrescida de seu contexto axiológico4. Além da força, para um poder legítimo, é preciso ter sido precedido de consentimento dos governados. Bonavides explica que, se o poder resultar unicamente da força, e a sociedade, onde ele se exerce, o vislumbrar apenas sob o enfoque coercitivo, pelo uso freqüente da violência para impor a obediência, esse poder, não importando a aparência sólida ou estável, será sempre um poder de fato. Se o poder se exterioriza buscando apoio menos na força do que na competência, ou seja, menos na coerção e mais no consentimento dos administrados, será este um poder de direito. Tal processo se verifica nos Estados modernos, com a passagem do poder pessoal do soberano, para um poder de instituições - despersonalização do poder -, ou do poder imposto pela força a um poder calçado no consentimento grupal. Resumidamente, trata-se da passagem de um poder de fato a um poder de direito. Esse é o enfoque que se almeja para considerar a idéia de poder: poder de direito, fundado na competência, ou seja, na autoridade. Pois, de onde vem a autoridade do governante? Justamente da vontade popular, na medida em que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” - sustentáculo da soberania nacional, afirmada no artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal. Por esta razão que se afirma, corroborado pela visão de Paulo Bonavides5, que a força não pode ser confundida com poder, e nem com autoridade, na medida em que poder tem seu fundamento primordial na vontade popular, e por sua vez, disciplina e organiza o emprego da força, e a autoridade, esta se legitima na aceitação. Quanto maior a legitimidade, maior será seu reconhecimento, e, conseqüentemente, sua autoridade. Assim, quanto menos for a contestação e maior for a base de consentimento e adesão do grupo, mais estável será a manifestação do poder estatal, com um ordenamento normativo capaz de unir a força ao poder e o poder à autoridade. Como apregoa o parágrafo único do primeiro artigo do texto constitucional acima mencionado, o poder estatal é uno e indivisível, porque tem um 4 Ibidem, p. 112. 5 BONAVIDES, op. cit., p. 107. 19 só titular: o povo6. Ocorre que, para o exercício do poder, é necessário fazer distinções, de acordo com a necessidade da atuação estatal. Conseqüentemente, existem os chamados poderes instrumentais do Estado, isto é, aqueles utilizados para a boa condução e consecução das atividades administrativas, como os chamados: poder vinculado, poder discricionário7, poder hierárquico, poder disciplinar - ou regulamentar -, e o poder de polícia. Apesar do poder estatal ser uno e indivisível, porque tem o mesmo titular; não significa que, para o exercício desse mesmo poder, não pode haver outros sujeitos. Titulares do exercício do poder estatal são aquelas pessoas cuja vontade se toma como vontade superior. Essa vontade, que expressa o poder do Estado, se manifesta através dos órgãos estatais, que determinam e orientam – com seus atos e decisões – o caráter e os fins do ordenamento político8. No caso de um Estado Democrático de Direito, como o Brasil, a titularidade do poder estatal pertence ao povo; porém, o seu exercício é tarefa dos órgãos através dos quais o poder se concretiza, órgãos estes pertencentes à Administração Pública, como o Parlamento, ministérios, chefe do Executivo dentre outros. Vale lembrar que o preenchimento de tais órgãos é subordinado – para uns, de forma direta, para outros, indiretamente – mediante o sufrágio popular, legitimando, dessa forma, todo o exercício do poder. Não há contradição entre o postulado da unidade do poder com o princípio da separação de poderes consagrado notadamente através da teoria formulada por Montesquieu em sua obra Do Espírito das Leis, de 1748. Não existe essa contradição porque a indivisibilidade do poder do Estado é devido ao seu titular, que é uno, e a divisão se opera apenas quanto ao exercício do poder, de 6 De acordo com a constituição moderna de Estado, como no caso do Brasil, aliás, em qualquer Estado que se professa como “Democrático de Direito”. 7 Existe corrente doutrinária (como a defendida por Maria Sylvia Zanella di Pietro) que não reconhece a existência de “poder vinculado e poder discricionário”, entendendo serem apenas características do poder da ação administrativa: quando a lei disponibiliza ao administrador mais de uma opção de apreciar o caso concreto, dando uma decisão ou solução apta a solucionar o caso, estaremos de um ato discricionário; porém, quando inexistir margem de opção na lei, estaremos diante de ato vinculado, ou seja, o administrador não terá liberdade de decisão. Contudo, a própria Maria Sylvia pondera que a discricionariedade “é indispensável para permitir o poder de iniciativa da Administração, necessário para atender às infinitas, complexas e sempre crescentes necessidades coletivas. A dinâmica do interesse público exige flexibilidade de atuação com a qual pode revelar-se incompatível o moroso procedimento de elaboração das leis. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 67- 68). 8 BONAVIDES, op. cit., p. 109. 20 modo a atender às formas básicas da atividade estatal. Está explicado porque muitas vezes se fala em funções do poder: função legislativa, função executiva e função judiciária. Aliás, o propósito dessa visão tripartidária do poder também encontra o mesmo fundamento do princípio da unidade e da indivisibilidade do poder: despersonalizá-lo do poder pessoal do governante, no sentido de evitar a concentração de seu exercício em uma só pessoa. 1.2 Poder de Polícia e Segurança Pública Sob o aspecto do poder, tem-se que, no tocante à relação entre Administração e particulares, o poder da primeira sobre os segundos acarreta a imposição de condutas, ônus, encargos, sanções e a restrição ao exercício de direitos e atividades, sempre com fundamento na lei. Na função administrativa há intrínseca ligação com a finalidade, o exercício do poder é preordenado a um fim específico, fim esse que, em sentido precípuo, deve almejar o bem comum e amparar o interesse público. O termo bem-comum ora utilizado, apesar de bastante amplo, é um termo ligado, em linhas gerais, à busca por condições mínimas de desenvolvimento da personalidade humana, conforme lição de Roberto Ferraz9. Uma definição de bem comum aceita com bastante generalidade entre autores e em diversos sistemas constitucionais é a que vem expressa na encíclica Pacem in Terris de João XXXIII, consistindo no conjunto de todas as condições de vida social, que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana. Esse conteúdo, muito aceito, remete à idéia de que, superadas as necessidades básicas [...] todas as condições de vida social que consintam [...], trata-se de buscar favorecer valores espirituais, e não materiais [...] favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana. 9 FERRAZ, Roberto. Liberdade e tributação: a questão do bem comum. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2007. 21 Nesse contexto, tem-se que o bem comum limita e, ao mesmo tempo, fundamenta o poder político. Fundamenta, porque o poder se constitui para atingir o bem comum. Limita, porque sendo seu objetivo o bem da pessoa humana, o Estado só deve intervir na esfera da liberdade individual, atendendo ao princípio da subsidiariedade, respeitando o equilíbrio entre a liberdade do indivíduo e a autoridade do Estado10. Ao representar anseios gerais de uma coletividade, o bem comum pode ser identificado com interesse público, já que têm características axiológicas semelhantes e visam, em última análise, à dignidade da pessoa humana. Porém, não é tarefa fácil conceituar interesse público. Sendo este conceito vago, de intensa carga valorativa, dependerá muito do ponto de vista pelo qual é vislumbrado. Di Pietro11, referindo-se ao pensamento de Gerhard Colm, indica quatro enfoques sob os quais se pode analisar o interesse público: o metassociológico, o sociológico, o judicial ou legal e o econômico. A fim de padronizar a linha de raciocínio da pesquisa, opta-se pela abordagem do interesse público sob o ponto de vista legal ou judicial. Nesse prisma, como sugere Mayer, é sobreposto ao interesse particular, fazendo-se remissão à supremacia do interesse público sobre o particular, que por muitos estudiosos é o fundamento do poder de polícia, já que é fonte de validade das medidas restritivas e sancionatórias das atividades dos administrados12. Por sua vez, Bandeira de Mello13, pondera que a noção jurídica de interesse público integra sim os interesses individuais, porém em uma dimensão pública, ou seja, o interesse dito público deve constituir-se em veículo de realização dos interesses de todos os membros da coletividade, do presente e também de todos os membros do futuro. Encerra o jurista conceituando o interesse público 10 DI PIETRO, op. cit., p. 214. 11 Ibidem, p. 221. 12 Para Otto Mayer, o fundamento do poder de polícia é o direito natural, posto que é dever natural do Estado atuar contra uma perturbação da ‘ordem da coisa pública’. (MAYER, Otto. Derecho administrativo alemán. Buenos Aires: Editorial De Palma: 1950. p. 31; GRAU, Eros Roberto. Poder de polícia: função administrativa e princípio da legalidade: o chamado direito alternativo. In: Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo: Malheiros, n. 1/93, p. 95, 1993.). Todavia, com a adoção de Estado de Direito e a consagração do princípio da legalidade como informador de toda atividade do estatal, o ponto de sustentação do poder de polícia migrou do direito natural para o direito positivo. 13 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 22. ed. Malheiros: São Paulo, 2007. p. 58. 22 como: “o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”. 14 Porquanto, interesse público e interesse do Estado não se equivalem, pois o Estado também é sujeito e partícipe do universo jurídico onde convivem os demais sujeitos de direito. Evidente que o Estado e demais pessoas de Direito Público têm interesses próprios, similares aos interesses de qualquer outro sujeito, contribuindo também para a formação do interesse público. Todavia, enquanto que todas as demais pessoas podem defender seus interesses individuais, o Estado fora concebido justamente para realizar os interesses públicos. Para tal, o chamado poder de polícia torna-se um dos grandes instrumentos conferidos para viabilizar essa missão do Estado, que é a de atender os interesses públicos. Este, também referido como poder de vigilância, pode ser entendido como a atribuição inerente ao Estado de conter os abusos, zelando pela manutenção da paz social e do bem estar do país. Cretella Júnior15 pondera ser a segurança condição necessária para que o homem possa viver, trabalhar e produzir em sociedade. De fato, a segurança é um direito fundamental, pois está consagrada desde a Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, Revolução Francesa, em seu artigo 2º, ao lado de outros direitos como liberdade, propriedade e o da resistência à opressão, chegando até nossos dias, com expressa previsão constitucional (artigo 5º, caput). A respeito, Ferreira Filho16 citando Montesquieu, que definia segurança como “tranqüilidade do espírito”, realça a importância da segurança para o indivíduo, daí, a sua condição fundamental. São Tomás de Aquino, também citado por Ferreira Filho 17, considerava a segurança em seu aspecto coletivo ou comunitário, chegando a afirmar ser a 14 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 58. Interessante conceito, já que revela a idéia de que o interesse público nada mais é do que uma faceta dos interesses individuais, e não apenas um interesse abstrato e desvinculado dos interesses pessoais de cada um. 15 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 1. p. 4. 16 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 147. 17 Ibid., p. 148. 23 segurança condição do bem comum, porque é garantidora da paz, da tranqüilidade da ordem, necessária à vivencia em comunidade. Chega-se a exaltar a extrema importância da segurança como razão de ser do próprio Estado, já que este existe para zelar e garantir a segurança da sociedade e do indivíduo, visto que não existe segurança de um sem a do outro, evidentemente não haverá segurança da comunidade sem segurança individual e vice-versa. Daí falar de segurança nacional como função essencial do Estado. No plano externo, a segurança nacional engloba a preservação da soberania, anulando qualquer risco de eliminação ou subjugação por outro Estado. Já no plano interno, visa zelar pela tranqüilidade da ordem, condição do bem comum e também da segurança individual. Ferreira Filho ensina ainda a distinção de segurança nacional de segurança pública. Esta última, tem como finalidade propiciar condições para a vida humana digna, essência do bem comum18. Daí a criação da polícia, que age com fundamento no denominado poder de polícia, para a proteção das pessoas. Nas sociedades organizadas deve haver limites na atuação do cidadão, fixados pelo Poder Público, que os assinala definindo em lei as garantias fundamentais conferidas aos cidadãos para o exercício de suas liberdades. No Estado contemporâneo, estruturado segundo a separação de poderes, a segurança é tarefa que incumbe aos três poderes institucionalizados, mas a atuação de cada um está adstrita a sua competência. Ao Poder Executivo cabe a maior parcela de responsabilidade quanto à segurança. No plano externo, ou seja, de segurança externa, é o Executivo – sob controle do Legislativo – quem dela cuida, seja por meio de articulações internacionais - através da diplomacia -, seja pelo eventual emprego das forças armadas. É o aspecto da segurança, sob o ponto de vista interno que interessa à presente pesquisa. No plano interno, o Executivo depende do Legislativo para coordenar, disciplinar e impor restrições, e sanções à conduta dos indivíduos e dos grupos. A esse poder denomina-se poder de polícia. Em relação a isto, incumbe ao Legislativo fixar, por lei, os limites das liberdades dos indivíduos, editando regras que irão direcionar a atuação do Executivo. 18 FERREIRA FILHO, op. cit., p. 148-149. 24 Diante da repressão à desordem, que viola ou ameaça a segurança pública, reclama-se a pronta atuação do poder executivo. Porém, num Estado de Direito, a segurança se completa somente com a aplicação de sanção aos infratores, tarefa essa concernente ao Poder Judiciário. Daí a existência das polícias administrativa e judiciária, que são distintas uma da outra. Ambas representam atividades de gestão de interesse público, sendo, por isso, inseridas dentre as funções administrativas. Na polícia administrativa a atividade estatal se inicia e se completa dentro do âmbito da função administrativa, na atividade de polícia judiciária, embora seja atividade estatal, esta apenas tem função preparatória à atuação da função jurisdicional do Estado, no âmbito do Poder Judiciário, na função penal, sendo esta regulada pelo Código de Processo Penal e executada pelos órgãos de segurança pública. Nesse ínterim, através do denominado poder de polícia, o Estado “desenvolve uma série de providências que recaem sobre os administrados, garantindo-lhes o bem-estar, mediante o policiamento de toda conduta exorbitante e danosa de cada um dos componentes do grupo”19. O conceito jurídico de polícia é bastante amplo, pois dita expressão é muito aberta, podendo ser empregada em vários sentidos. Da lição de Otto Mayer consta-se uma oportuna revelação. Definiu o administrativista a capacidade de polícia, como sendo: "A eficácia da conjuntura que visa defender, pelos meios da capacidade do chefe, a adequada ordem do fato público ‘versus’ a inquietação que os fatos subjetivos tenham habilidade de trazer”20. Ao conceito de polícia, o jurista alemão correlaciona as idéias de conjuntura, autoridade, ordem, adequada, fatores esses intrinsecamente necessários à noção de polícia. Devido à relevância do termo, a noção de ordem pública mereceu muitos debates doutrinários, podendo ser entendida como uma situação de fato contrária à desordem, compreendendo um conjunto de princípios políticos, econômicos, morais e até religiosos, essenciais à existência e mantença de uma sociedade organizadamente constituída21. 19 CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 4. 20 MAYER, op. cit., p. 5. 21 Neste sentido, José Cretella Júnior (“Polícia e poder de polícia”, in: Revista Forense, vol. 299, ano 83, São Paulo, 1987, p. 12), ensina que “o conceito de polícia administrativa é indissociável da noção 25 É pela atividade de polícia que a Administração Pública garante a ordem pública, fiscalizando as limitações impostas pela lei a bens jurídicos individuais. Considerando a própria elasticidade conceitual de polícia, rica é a doutrina em expor conceitos, sob diferentes aspectos. No entanto, ressalta-se a presença de três elementos que são indissociáveis ao conceito de polícia. Primeiro, o Estado, necessariamente a fonte da qual provém a polícia, sendo o exercício do seu poder indelegável, pois representa faceta da própria soberania estatal. Segundo, a finalidade, que deve necessariamente, em última análise, ter em vista assegurar a paz, a tranqüilidade, a boa ordem pública. Mister, portanto, que o poder de polícia tenha a finalidade de garantir o interesse coletivo. Terceiro, o meio do seu exercício, que em concreto, traduz-se nas limitações legais às liberdades que representem perturbações à ordem pública. Diante disso, merece destaque a definição de polícia de José Cretella Júnior, que a identifica como sendo um “conjunto de poderes coercitivos sobre as atividades dos cidadãos”22. Mais uma vez, recorrendo ao jurista Otto Mayer, o mesmo anota que: “O poder de polícia incide na atuação da autoridade para executar, desempenhar o dever, que se supõe comum, de não perturbar de jeito algum a benévola ordem da ocorrência pública”23. Assim, se a capacidade do chefe, como ensina o alemão, dá a eficácia da conjuntura que o Estado detém para defender a ordem pública, tem-se então que essa capacidade, a atuação da autoridade, torna-se um dever, considerando que o Estado deve garantir a ordem pública. Nessa revelação, de ordem pública e não de infração, pois àquela cabe a manutenção da ordem pública, que não depende da repressão das infrações as quais porventura a polícia administrativa não pode evitar”. 22 CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 10, 1987. No mesmo artigo, Cretella Júnior ensina que a expressão ‘poder de polícia’ teve origem na jurisprudência norte-americana, a qual foi inicialmente utilizada em 1824 pelo então Ministro John Marshall, que na oportunidade presidia a Suprema Corte norte- americana, no julgamento do processo Brown versus Estado de Maryland, que tratava de limitações tributárias ao poder do Estado. Mas, naquela ocasião a referência foi feita de forma fragmentada, pois vários vocábulos foram interpostos entre as duas palavras (“police” e “power”). Aos poucos, a partir desse julgado, foi se aprimorando a noção até tomar a forma atual – “police power”. A razão dessa busca de fundamento para julgar, aliado ao fato de que os Estados Unidos não dispunham de um instrumento legal que lhes conferissem poderes de intervenção na esfera dos direitos da sociedade civil, fez com que a Suprema Corte americana buscasse na noção de poder de polícia a faculdade (legitimidade) de o Estado intervir na esfera dos direitos civis, desde que houvesse a necessidade para garantir a saúde, a segurança, a moral, o bem estar do povo e, de forma geral, todas as grandes necessidades públicas. 23 MAYER, op. cit., p. 3. 26 capacidade é dever. Nesse ponto, faz-se necessário um breve ponderamento. Mayer – em sua definição – assevera que o poder de polícia surge para realizar o “dever geral, que incumbe ao súdito, de não perturbar a ordem da coisa pública”24. Por esse enfoque, o poder de polícia manifesta-se como correlato do dever, dos administrados, de não perturbar a ordem da coisa pública. Atente-se que tal dever, dos administrados, é geral, no sentido que prescinde de definição em lei, porque suposto, como ressalta Grau25. Na definição delineada por Mayer, o poder de polícia tem sustentáculo na obrigação da Administração Pública de zelar pela ordem pública. Por essa razão, trata-se de um poder efetivo, pelo menos enquanto competência (de zelar pela ordem da coisa pública), comportando poderes em si que não se impõem estejam necessariamente previstos em lei. Parece que seguidamente, no período pós-Estado de Direito, e democrático, com a consagração do princípio da legalidade como fundador e norteador da atividade pública, a concepção do poder de polícia sofreu um deslocamento em seu ponto de sustentação, do jusnatural, para o direito positivado26. Há quem discorde até mesmo de que poder de polícia seja ‘poder’. Eros Grau, por exemplo, com fulcro na concepção de que o ‘Poder’ do Estado é único, explica que o que existe, de fato, é divisão de funções. Então, o jurista nega a existência de um ‘poder’ de polícia, porque essa atividade é antes um dever-poder da Administração, função dela, por isso, a atividade de polícia é sublegal27. O jurista Sundfeld chega mesmo a sugerir a eliminação do termo poder de polícia, porque diz ser perigoso e inconveniente, propondo a substituição para “Administração Ordenadora”, congregando as atividades estatais de regulação do setor privado (neste enfoque ligadas à aquisição, exercício e sacrifício de direitos privados), com o emprego do poder de autoridade. Sundfeld explica que enquanto a noção do poder de polícia surgiu para realçar e explicar o suposto poder estatal de interferir na liberdade e propriedade 24 MAYER, op. cit., p. 11. 25 GRAU, Eros Roberto. Poder de polícia: função administrativa e princípio da legalidade: o chamado ‘direito alternativo’. In: Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 1, p. 95, 1993. 26 Ibidem, p. 95. 27 Ibidem, p. 95. 27 individual, regulando-as em nome da boa ordem da coisa pública; o conceito de Administração Ordenadora nasceu justamente para negar tal poder, deixando bem evidente a negativa28. O mesmo doutrinador, Sundfeld, resume a inconveniência do termo poder, ainda que seja correlacionado com dever, porque afirma contextualmente que a atividade policial, como qualquer outra atividade administrativa, é de mera aplicação de lei, e que, na concepção originária de Mayer, de dever-geral, entende Sundfeld, faz acreditar que a Administração dispõe de todos os instrumentos necessários, a seu critério, para garantir a “boa ordem da coisa pública”, o que seria incorreto, face ao princípio da legalidade administrativa29. Ora, não menos perigoso esse pensamento, de que a atividade administrativa resume-se em mera aplicação da norma, pois pode remeter a uma visão positivista-legalista; o que, certamente não se verifica, principalmente em face dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que, como será abordado, servem justamente para operacionalizar a norma e adequá-la ao caso concreto. Ressalve-se, também, que o próprio Sundfeld considera que – para o Estado de Direito – não basta a simples submissão das autoridades públicas à lei, pois, senão a submissão à lei seria um fim em si, o que não é verdade30. Sendo assim, impropriedades à parte, por ora, adotar-se-á a expressão poder de polícia, porque é assim que esta veicula a idéia de competência da Administração, não livre, mas como dever, ‘poder-dever’ da Administração Pública. O poder de polícia, enquanto competência do Estado, existe para garantir a ordem pública, e seu exercício se dá mediante função administrativa31, através das autoridades legalmente investidas. A despeito das inúmeras conceituações doutrinárias, o Brasil possui uma conceituação legal sobre poder de polícia contida no Código Tributário Nacional, que, em seu artigo 78, em texto amplo e explicativo dispõe: 28 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 18. 29 Ibidem, p. 11. 30 Ibidem, p. 68. O sistema legal serve justamente para garantir os direitos fundamentais e as liberdades individuais, nessa vertente, mesmo a lei não pode “tudo”. 31 GORDILLO, Augustín. Tratado de derecho administrativo. Buenos Aires: Ediciones Macchi, 1982. v. 5. p. 44. Augustín Gordillo conceitua função administrativa como “qualquer atividade realizada pelos órgãos administrativos, bem como as atividades realizadas pelos órgãos legislativos e jurisdicionais, excluídos aqueles atos materialmente típicos da função legislativa e jurisdicional”. 28 Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a 'Prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. No seu parágrafo único, o legislador conceitua como sendo exercício regular de direito, “quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”. O artigo 144 da Constituição Federal, outrossim, trata de uma das funções primeiras do poder de polícia: assegurar a segurança pública, sendo este um dos deveres do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercido para a preservação da ordem pública, incolumidade das pessoas e do patrimônio. Fica assim evidenciado que o poder de polícia é um poder-dever que o Estado de Direito dispensa à Administração Pública permissão de agir em concreto, com vista a assegurar a ordem pública, sempre dentro dos limites da lei32. Face aos crescentes e imperiosos avanços da sociedade e, por conseguinte, das áreas de interesse do homem e do controle estatal, comunga-se 32 A propósito, recentemente, teve-se um interessante julgado que chegou até o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a afixação de publicidade em área urbana do município de São Paulo. Este município aprovou lei (Lei Municipal n.º 14.223/06), que trata da eliminação da poluição visual na cidade, instituindo o programa “Cidade Limpa”. A norma determinava a retirada dos anúncios publicitários até 31 de dezembro passado (2006). Então, constituiu-se um litígio: de um lado, o direito da Municipalidade de impor restrições à atividade que considere nociva ou prejudicial ao interesse coletivo, exercendo regularmente o poder de polícia; e, do outro lado, a parcela interessada e que foi diretamente atingida com aquela proibição. Nota-se que a Municipalidade agiu legitimamente ao aprovar lei para limitar a atividade de publicidade. Apesar do sindicato que representa os empresários do setor ter conseguido liminar junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo para suspender os efeitos da lei até o julgamento definitivo de mérito da ação, o STF, por meio de seu Ministro Gilmar Mendes, suspendeu os efeitos daquela liminar, até o julgamento definitivo da ação. Em suas considerações, o ministro julgador considerou que a situação verificada (liminar obtida), “põe em xeque ato normativo que, até o presente momento, goza de plena presunção de constitucionalidade e que possui manifesto e elevadíssimo grau de interesse”. Nesse caso, entende-se que o exercício do poder de polícia por parte daquela municipalidade foi legítimo e atendeu aos ditames necessários, quer pela legalidade, inclusive pelo meio empregado (a limitação deu-se por meio de lei), quer pela finalidade do ato, que, evidentemente, é o interesse público: proteção da população contra a poluição visual. Este anseio foi expresso naquela lei, que instituiu o programa “Cidade Limpa”, “para combater a poluição visual e assegurar o bem-estar estético, cultural e ambiental da população, a segurança das edificações, e a preservação da memória cultural”32. Portanto, a municipalidade atendeu, em última análise, o artigo 144 da Constituição Federal, porque procurou preservar a ordem pública, a incolumidade das pessoas e também o patrimônio público e cultural da cidade, controlando a atividade publicitária em vias, parques, praças, muros e em outros logradouros públicos. . 29 da idéia de que a noção de poder de polícia não pode ser estagnada, presa no tempo, pois, como meio de atuação do Estado, tal concepção deve ser constantemente revista, a fim de estar sempre apta às novas exigências da sociedade civil. A conceituação do poder de polícia não pode, de forma alguma, limitar ou restringir a sua abrangência, com vistas a assegurar, sempre, a ordem pública e o bem comum. Dessa forma, o poder de polícia deve ser um instrumento sempre renovado, haja vista o alargamento dos objetivos do Estado, tal como estabelecido no preâmbulo da Constituição Federal, onde estão consignados, dentre outros fins do Estado, a garantia da segurança, do desenvolvimento e do bem-estar. 1.3 Função de Polícia O campo da atividade policial estatal é muito amplo, indo desde a segurança das pessoas, bens, saúde e tranqüilidade pública até a manutenção da qualidade do meio ambiente, combate ao poder econômico, e outros. Em outras palavras, a atividade policial visa garantir a ordem pública, assegurando o bem comum e os interesses coletivos. Para que o Estado possa garantir a manutenção da ordem pública, vale-se do poder de polícia, apto a preservar o interesse público perante os interesses privados, exercendo o controle dos direitos e liberdades individuais, preservando a paz e segurança públicas. O Estado deve ter uma forma de gerir esse controle, para condicionar a atividade dos cidadãos, impondo-lhes o cumprimento dos seus deveres, o qual é garantido pelo poder de coação sob a forma característica da administração. À materialização desses recursos para exercer o controle dá-se o nome de polícia. Não divergente, Cretella Júnior entende polícia como o aparelhamento estatal para o exercício desse poder33. O jurista desenvolve seu raciocínio ponderando ser o poder de polícia a possibilidade atuante da polícia, ou seja, “é a 33 Neste sentido, cita-se: CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 18, e MAYER, op. cit., p. 14. 30 polícia quando age”34. Com fulcro no poder de polícia, o poder ‘da’ polícia é utilizado pela ‘polícia’, para preservar o bem-estar público ameaçado. Conforme a finalidade almejada pela atividade policial, existem dois tipos de denominações para ‘polícia’: a administrativa e a judiciária, que não é objeto direto deste estudo, como já visto. Apesar da distinção que se costuma encerrar acerca da polícia administrativa e polícia judiciária, cabe anotar que ambas representam atividades de gestão de interesse público, inserindo-se dentre as funções administrativas. Pois, conforme pondera Bandeira de Mello: “quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem”, existe função35. Outra distinção entre as duas funções policiais - administrativa e judiciária - advertida por Carvalho Filho36 explica que a polícia administrativa é a que incide sobre bens, direitos ou atividades, ao passo que a polícia judiciária incide sobre as pessoas. A função de polícia judiciária é privativa dos órgãos auxiliares da Justiça - Ministério Público e Polícia em geral - enquanto que a função de polícia administrativa se difunde por todos os órgãos administrativos, de todos os Poderes e entidades públicas. Exemplificando: quando a autoridade apreende uma carta de motorista por infração de trânsito, pratica ato de polícia administrativa; quando prende o motorista por infração penal, pratica ato de polícia judiciária. A despeito do caráter preponderantemente preventivo da polícia administrativa, sua atividade não se esgota nesta circunstância, pois não são raras as situações em que esta atua repressivamente, como na interdição de um estabelecimento comercial ou na apreensão de bens obtidos por meios ilícitos37. Em face dessa característica, acima noticiada, alguns doutrinadores entendem que a melhor denominação para os órgãos de polícia brasileiros é de polícia mista, pois com grande freqüência o mesmo agente é investido de poderes para a atividade policial com traços de polícia administrativa e judiciária, exercendo, assim, de forma simultânea ou sucessiva, funções de natureza preventiva e repressiva. 34 CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 11. 35 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 68. 36 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999. p. 49. 37 Neste sentido: DI PIETRO, op. cit., p. 96 e CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 13. Maior abordagem no capítulo ‘2’. 31 Como exemplo, cita-se o agente policial que, enquanto coordena e dirige o trânsito de veículos, exerce atividade típica de polícia administrativa. Entretanto, quando este mesmo agente lavra um auto de contravenção, exerce atividade de polícia judiciária. O próprio chefe do órgão fiscalizador de trânsito, CIRETRAN, é agente policial detentor do cargo de delegado de polícia, quem dirige a polícia judiciária. A justificativa que se tem por razoável para a atuação repressiva em casos análogos ao exemplificado acima, é que a repressão representa um meio para conferir eficácia à própria prevenção, pois não se poderia evitar os danos sociais se o agente administrativo não pudesse, ele próprio, reprimir os atos de perturbadores à ordem e segurança públicas, ou seja, que não observem as ordens, as proibições, normas e os regulamentos administrativos, tal como ocorre quando da infração de trânsito. Nestas hipóteses, o Poder Público pode agir diretamente contra o infrator, bem como punir os atos ilícitos praticados, o que não afasta posterior avaliação e apreciação pelo Poder Judiciário, caso instado a tal. 1.4 Atributos dos Atos de Polícia Os atos que expressam o exercício do poder de polícia, além dos atributos inerentes aos demais atos administrativos, têm outros atributos específicos e peculiares ao seu exercício. Cumpre elencar quais seriam esses. Em linhas gerais, os doutrinadores atribuem ao ato administrativo os atributos da presunção de legitimidade (ou legalidade), imperatividade (ou coercibilidade) e auto-executoriedade38. O primeiro deles, a presunção de legitimidade, refere-se à presunção relativa de que o ato administrativo nasceu em conformidade com as devidas normas legais, contudo, tal presunção ‘iuris tantum’ pode ceder à prova de que o ato 38 Neste sentido: MEDAUAR, Odette. Direito administrativo moderno. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 142; DI PIETRO, op. cit., p. 163; MEIRELLES, op. cit., p. 140. 32 não se conformou às regras legais. Di Pietro39, contudo, divide esse atributo em dois: presunção de legitimidade, que diz respeito à conformidade do ato com a lei, e presunção de veracidade, da qual decorre a presunção de serem verdadeiros os fatos alegados pela Administração - a chamada fé pública. É da presunção de veracidade que decorre a inversão do ônus da prova, pois a presunção de legitimidade apenas diz respeito à conformação do ato com a lei, não havendo, nesse enfoque, que se produzir matéria fática. Considerando que a presunção de legitimidade não é instrumento de bloqueio da atuação jurisdicional, o Judiciário poderá rever o ato administrativo - se instado pela parte interessada - e a interpretação dada pela Administração. Observe- se que o presente atributo não libera a Administração de provar a sua verdade, ao contrário, em muitos casos, verbi gratia, em mandado de segurança, a própria lei prevê a possibilidade do juiz requisitar do Poder Público documentos e informações necessárias para comprovar a legitimidade do ato atacado, para a instrução processual e formação da convicção do julgador40. Quanto à coercibilidade ou imperatividade, esta é de fundamental importância, já que não existe ato de polícia facultativo para o particular. O administrado deve obedecê-lo, sob pena da Administração, de forma direta, inclusive, recorrer à força policial para garantir a sua execução. Tal característica decorre da condição de serem os atos administrativos cogentes, ou seja, obrigam a todos que se encontrem em seu círculo de incidência, ainda que contrarie interesses privados, porquanto o seu único alvo é o atendimento do interesse coletivo. A imperatividade não existe em todos os atos administrativos, mas apenas naqueles que impõem obrigações, como no caso dos atos de polícia, que contém sempre uma obrigação implícita de não-fazer41. Quando se tratar, portanto, de ato que confira direitos solicitados pelo administrado - como na licença, autorização, permissão, admissão - ou de ato apenas de conteúdo declarativo - como em certidões, atestados e pareceres -, obviamente inexiste imperatividade nesses casos. 39 DI PIETRO, op. cit., p. 165. 40 Vide artigo 1º, letra ‘a’, da Lei n.º 4.348/1964 (que estabelece normas processuais relativas ao mandado de segurança, previsto no inciso LXIX, do artigo 5º da Constituição Federal): “a) é de dez dias o prazo para a prestação de informações de autoridade apontada como coatora”. 41 Outro atributo do poder de polícia, denominado pelos doutrinadores como “atitude negativa”, que será abordado logo mais abaixo. 33 Sendo ato coercitivo, importando restrições ou limitações ou ainda obrigações, deve passar pelo crivo da proporcionalidade, não sendo legítimo o uso de força desproporcional e desnecessária à resistência empregada, sendo os excessos puníveis. A auto-executoriedade, outro atributo do ato administrativo, consiste na prerrogativa conferida à Administração Pública de executar seus próprios atos, sem necessidade de socorrer-se ao Judiciário. Este é um atributo também presente no poder de polícia, visto que representa a faculdade conferida à Administração Pública, de decidir e executar diretamente as suas decisões por seus próprios meios, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário. Negá-la, como pondera Júlio César Luciano42, representaria negar o próprio poder de polícia da Administração Pública, que necessita ser executado por meio de ato sumário, direto e imediato43. A autorização por lei conferida à Administração de auto-executar seus atos não elide a possibilidade daquele que se sinta lesado buscar junto ao Poder Judiciário a correção de eventual ilegalidade ou concessão de indenização cabível, tal como estabelece o artigo 5º, inciso XXXV de nossa Carta Magna. Todavia, ressalva-se que estão destituídas deste atributo as multas administrativas e todas as prestações pecuniárias devidas ao Poder Público, pois nesses casos, a autoridade dispõe apenas da via judicial para executar tais imposições44. 42 LUCIANO, Júlio César. O conceito de polícia; a polícia e o poder de polícia no direito brasileiro; a polícia de segurança no direito brasileiro. In: Estudos de Direito de Polícia. Seminário de Direito Administrativo e 2001/2002, sob a regência de Jorge Miranda. Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa: Lisboa, 2003. vol. 1. p. 38. 43 Neste sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, por sua 1ª Turma, em REsp. n.º 265253- SP, em 20/11/2000, tendo como relator o Ministro José Delgado, que é legítimo à Prefeitura Municipal determinar a demolição de obra clandestina, pois realizada sem a prévia licença de construção conferida pela autoridade competente, mesmo que essa se encontre inteiramente situada dentro da propriedade particular, pois tal medida está em harmonia com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade do poder de polícia. 44 Neste sentido, temos um julgado do STJ (1ª Turma, em REsp. n.º 330.703-RS. J. 16/10/2001. Relator Min. Garcia Vieira), onde foi decidido que os valores devidos à Administração, após a apuração na forma prevista na legislação aplicável, inscritos no setor administrativo competente, que não tem natureza tributária mas são decorrentes do exercício do poder de império, exercido na modalidade de poder de polícia do Estado e, portanto, inerentes à atividade da autarquia, representam dívida ativa da fazenda pública. Somente à estes e aos critérios de natureza tributária é cabível a utilização da via de inscrição na dívida ativa, para a propositura do executivo fiscal, excluindo as hipóteses em que o Estado, por um de seus órgãos, vise buscar o ressarcimento do dano que teve de suportar, como é o caso de um acidente de trânsito que resulte em dano ao patrimônio público, demonstrando, assim, que nestas hipóteses, dever-se-á recorrer às vias ordinárias, ou seja, processo judicial comum de ressarcimento de danos, e não execução fiscal de dívida ativa. 34 A auto-executoriedade, a exemplo da imperatividade, não é comum em todos os atos administrativos, ao contrário, só é permitido em casos expressamente previstos em lei. Para Justen Filho45, a execução pela própria Administração só deve ser admitida em situações excepcionais e observados os princípios da legalidade e da proporcionalidade. Como se observa, não há auto-executoriedade sem lei que a preveja, e ainda assim, só deve ser utilizada quando não existir alternativa menos lesiva. Em matéria de polícia administrativa, por exemplo, a lei prevê medidas de cunho executório pela própria Administração, como a apreensão de mercadorias, documentos e veículos; o fechamento de casas noturnas; a cassação de licença para dirigir, entre outras. Por outro lado, é possível a utilização desse atributo em situação de urgência para ser resguardado o interesse público ameaçado, como nos exemplos: em caso de prédio condenado, sob ameaça iminente de ruir, o Poder Público pode proceder à sua demolição; internação de pessoa contaminada por doença infecto- contagiosa; o impedimento ou a dissolução de reunião que ponha em risco a segurança de pessoas ou de coisas. Há corrente doutrinária que desdobra o atributo da auto-executoriedade em dois: a exigibilidade, pela qual a Administração toma decisões executórias criando obrigação para o particular, sem precisar de provimento judicial; e a executoriedade propriamente dita, que permite a execução forçada por parte da Administração Pública. Di Pietro, a seu turno, distingue as duas situações apenas pelo meio coercitivo utilizado: na exigibilidade, há o emprego de meios indiretos de coerção; enquanto que na executoriedade, existe o uso direto de coerção. Um exemplo citado pela autora, no primeiro caso, seria a imposição de multa e outras penalidades previstas, todas no âmbito administrativo. Já no segundo caso, há o emprego de força, para compelir materialmente o administrado a fazer alguma coisa46. Vale frisar que no primeiro caso, da exigibilidade, os meios indiretos de coerção devem ser previstos expressamente pela legislação; enquanto que no caso da executoriedade, podem ser empregados independentemente de previsão legal; 45 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 205. 46 DI PIETRO, op. cit., p. 167. 35 entretanto, devem ser utilizados com cautela e ponderação, sob a pálea, portanto, dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade. Rememore-se que mesmo nos atos administrativos os quais é permitida a sua auto-execução diretamente pela Administração Pública, não fica afastado o controle judicial, posterior e mediante provocação da parte interessada, a exemplo do comentário do atributo da imperatividade, porquanto que, como manda o inciso XXXV do aclamado artigo 5º da Constituição Federal, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. No caso de medidas coercitivas consideradas ilícitas, a vítima poderá pedir reparação, incidindo a regra da responsabilidade objetiva do Estado, com fulcro no artigo 37, §6º da Lei Maior47. Outro elemento que é próprio do poder de polícia é o fato dele representar uma atividade negativa, que o distingue de outra atividade da Administração Pública, o serviço público, que seria uma atividade positiva. A atividade positiva é a que vai trazer um benefício, uma utilidade aos cidadãos, como exemplo, tem-se o serviço de energia elétrica, de distribuição de água e de gás, de transporte, entre outros. Assim, dentre as atividades administrativas, há a atividade que corresponde à prestação de serviço público, e outra, completamente distinta, que corresponde a do poder de polícia. Di Pietro, ao desenvolver o assunto, explica a distinção entre atividade jurídica e atividade de cunho social. Para isso, recorre à lição de Caio Tácito, que menciona ser atividade jurídica aquela que compreende a atividade do poder de polícia, visando atender “a preservação do direito objetivo, a ordem pública, a paz e a segurança coletivas”. Já na atividade social, no entanto, por meio dos serviços públicos, “a Administração cuida de assuntos de interesse coletivo, visando ao bem- estar e ao progresso social, mediante o fornecimento de serviços aos particulares”48. 47 “§6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. (artigo 37, §6º da Constituição Federal). Vide também capítulo ‘4’. 48 TÁCITO, Caio apud DI PIETRO, op. cit., p. 81. 36 A atividade de polícia, pois, reclama uma atitude negativa, ou seja, nela, a Administração apenas impede a prática pelos administrados de determinados atos contrários ao interesse público, ou nocivos à ordem e à segurança públicas; impondo limitação às condutas individuais. Corroborando para elucidar a diferença entre atividade de serviço público da policial, Bandeira de Mello, explica que, no poder de polícia, a Administração espera sempre uma atitude negativa do cidadão, uma abstenção, uma obrigação de não-fazer. Quando o Poder Público impõe, aparentemente, uma obrigação de fazer, como licença para construir, necessidade de exames para obtenção de habilitação para motorista, a Administração: “Não quer estes atos. Quer, sim, evitar que as atividades ou situações pretendidas pelos particulares sejam efetuadas de maneira perigosa ou nociva, o que ocorreria se realizadas fora destas condições”49. Na prática, o ato de polícia visa fiscalizar as atividades dos administrados, coibindo e sancionando o mau uso do direito individual. É verdade que a imposição de multa por infração de trânsito, por exemplo, não tem cunho retributivo, como a tarifa no caso de serviço de transporte público; nem a Administração Pública quer receber aquela multa, como finalidade da imposição; mas tão-somente, com a imposição e cobrança da multa, o Poder Público tem por finalidade resguardar a incolumidade de pessoas e de coisas nas vias públicas, coibindo o motorista de agir de maneira imprudente e perigosa. Outro atributo do poder de polícia, apesar de não existir em todo ato de polícia, igualmente como ocorre com os atributos da auto-executoriedade e da imperatividade, porém, elencado por grande parte dos doutrinadores, é a discricionariedade50. Aliás, como foi discutido anteriormente, no caso de medidas de coação direta, a força pode ser utilizada pela polícia segundo critérios de bom-senso e ponderação, assim, o agente não está adstrito à previsão legal, pois, tal medida encontra respaldo no campo discricionário, que, por sua vez, encontra seus contornos no Direito. 49 BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 798. 50 Neste sentido, de que a discricionariedade é tida como atributo do poder de polícia: Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Hely Lopes Meirelles, José Cretella Júnior, entre outros. 37 A respeito, Cretella Júnior51, salienta que a atividade da polícia administrativa é “multiforme, imprevisível, não podendo estar limitada em todos os setores em que deve desdobrar-se”. A polícia precisa intervir sem restrições, diante das infinitas situações provocadas pelo agir humano, sempre no momento oportuno; daí a impossibilidade de aprisionar os atos de polícia em fórmulas legais52. Neste sentido, Agirreazkuenaga ensina que a força material da atividade policial se impõe em uma multiplicidade de circunstâncias, aplicando sanções, tanto de cunho administrativas como penais, e também em execução de ordens judiciais. Essa coação, utilizada sem intervenção do judiciário, opõe-se diretamente sobre os particulares, seus bens ou suas atividades. Por essa razão, o espanhol entende a polícia como o instrumento principal da coação administrativa, pois à ela corresponde, em sua maioria, a execução da função coativa consubstancial do Estado53. É evidente que existem atos de polícia de caráter inteiramente vinculado, ou seja, para os quais a Administração terá que adotar solução previamente estabelecida pela lei, sem qualquer possibilidade de opção. Exemplo de ato de polícia vinculado, tem-se a licença54. Contudo, na maior parte das situações possíveis de atuação do poder de polícia, o ato é discricionário. Por todos esses fatores, adota-se do entendimento que o poder de polícia tem como atributo, em grande extensão, a discricionariedade, que fica adstrita e subordinada ao limites intransponíveis da lei. A discricionariedade representa a livre escolha pela Administração Pública da oportunidade e conveniência de exercer seu poder de polícia, aplicando e graduando sanções, empregando os meios necessários para atingir os fins pretendidos, que deverão ser em prol do interesse público, sempre dentro dos limites estabelecidos pela lei, pois fora desse limite, restará caracterizada a arbitrariedade. 51 CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 45. 52 Neste sentido: CASTRO, Viveiros de; CARREIRO, Porto apud CRETELLA JÚNIOR, op. cit., p. 45. 53 AGIRREAZKUENAGA, Inãki. La coaccion administrativa directa. Madri: Civitas, 1990. p. 30-31. 54 Licença é um ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado preencheu todos os requisitos legais, outorga-lhe a faculdade de desempenhar certas atividades, como por exemplo: licença para dirigir, para o exercício de certa profissão, para construção de um edifício em terreno próprio dentre outros. 38 A discricionariedade também encontra limites na competência, na forma (caso haja norma que a regulamente) e na finalidade (que sempre deve ser o interesse público), pois quanto a estes elementos, o poder de polícia é sempre vinculado. O ato de polícia, que a princípio é discricionário, passará a ser vinculado caso exista norma jurídica que regulamente a forma e o modo da sua realização. Como se vê, poder de polícia e discricionariedade são institutos diversos, pois, como enuncia Pereira da Costa, poder de polícia: É a atividade do estado que visa conformar e restringir direitos e liberdades tendo em vista o interesse público. A discricionariedade será a abertura da norma legal à administração, que passará a ter maior liberdade de atuação, permitindo-lhe que, em certo número de situações, escolha o seu próprio trilho de atuação, na oportunidade que lhe convenha, pelos motivos que entender relevantes e, mesmo, autorizando-a a abster-se de agir”55. A discricionariedade não se confunde com a arbitrariedade, pois enquanto aquela representa a faculdade do Poder Público agir dentro dos limites da lei, esta se caracteriza pela ação fora ou além dos limites legais, o que denota verdadeiro desvio de poder. A discricionariedade é, portanto, intralegal. Outro importante elemento intrínseco ao poder de polícia é a observância do devido processo legal, tal como expressamente consignado no artigo 78, parágrafo único do Código Tributário Nacional56. Como todo ato da Administração, para ser válido, será preciso haver legítima motivação e fundamentação, ainda que de maneira sumária. E para que haja o atendimento desses requisitos, um procedimento deve ser observado, pois, ainda que sucinto, ele existe: para que o poder de polícia, geral e abstrato, materialize-se, o agente deve percorrer certos ‘passos’, chamados de fases do poder de polícia, ou ciclos de polícia57. 55 COSTA, José Antonio Vilhena Pereira. A privatização dos serviços de polícia administrativa. In: Estudos de Direito de Polícia. Seminário de Direito Administrativo e 2001/2002, sob a regência de Jorge Miranda. Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa: Lisboa, 2003. vol. 2. p. 325-357. 56 Aliás, a garantia ao ‘devido processo legal’ é direito fundamental, previsto e consagrado no inciso LIV do artigo 5º de nossa Constituição Federal. Como tal, se impõe inclusive perante o Estado, e, conseqüentemente, ao exercício do poder de polícia. 57 O assunto será analisado no capítulo ‘2’. 39 1.5 Princípios Constitucionais Relevantes à Coação Administrativa Cretella Júnior58 pondera que os princípios são os alicerces da ciência, proposições básicas, fundamentais e típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Hierarquicamente, tem-se o princípio jurídico como norma superior à lei, que a informa e lhe determina o alcance e o sentido. Devido à sua característica de dar unidade e harmonia ao conjunto normativo, o princípio permite que o aplicador do Direito resolva um problema de lacuna na lei, apoiando-se, obviamente, nos princípios gerais, havendo na própria lei autorização expressa para isto59. A importância dos princípios, em qualquer ciência, evidencia-se no fato de ser irrealizável fazer ciência desconsiderando os mesmos, afinal, nenhum conhecimento é possível sem sustentáculo em princípios, sem pressupostos que se admitem como verdades, independentemente da experiência. Nesta pesquisa, abordar-se-á tão-somente os princípios relevantes à coação administrativa, notadamente os que delimitam a atuação legítima do poder de polícia. São eles: os princípios da razoabilidade e o da proporcionalidade, instrumentais balizados no Estado moderno de Direito que se prestam à função de sopesar outros princípios e atos da Administração, além de exercerem importante função limitadora do próprio poder estatal; além dos princípios da legalidade e o da moralidade. Devido a sua grande importância ao tema do presente trabalho, começar-se-á a análise dos princípios norteadores da atividade administrativa por eles. 58 CRETELA JÚNIOR, op. cit., p. 5-52. 59 De fato, o artigo 4º da Lei de introdução ao código civil, prevê que, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. 40 1.5.1 Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade A razoabilidade e a proporcionalidade são princípios estruturadores de um ordenamento jurídico-administrativo democrático60. Por terem função múltipla, participam das instituições criadas e estruturadas pela Constituição Federal e têm a finalidade de formar e conformar a atuação administrativa legítima, com vistas a firmar o projeto de cidadania, cristalizando a idéia de Direito presente nos comandos constitucionais. Pimenta Oliveira61 garante que o exercício da função administrativa tem por finalidade o atendimento ao interesse público, respeitando a Constituição e as Leis. Pois bem, a tarefa pressupõe a atuação administrativa ante as mais diversas e imprevisíveis situações fáticas, as quais, na maioria das vezes, a legislação não prevê a solução a ser adotada. É função dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade delinear, operacionalizar e procedimentalizar a tarefa do Poder Público, exercendo a sua função administrativa, de maneira legítima. A razoabilidade e a proporcionalidade têm as mais diversificadas funções principiológicas com sua integração ao regime jurídico-administrativo, assumindo um papel de fundamental importância dentro do direito público. Parte da doutrina62 costuma referir-se ao princípio da proporcionalidade, conceito em linhas gerais fungível com o da razoabilidade. Tal fungibilidade, contudo, parece levar a certa confusão entre a razoabilidade e a proporcionalidade, o que não é verdade; porém, considerando que ambos os princípios buscam finalidade comum, nota-se que no direito brasileiro a tendência é de não haver preocupação com distinções, mas sim com o entendimento e visão clara do campo de atuação da matéria63. 60 DELGADO, José Augusto apud: OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 33. 61 OLIVEIRA, op. cit., p. 33. 62 José Roberto Pimenta Oliveira pondera existir fungibilidade material e funcional na ordem jurídica, visto serem ambas as noções “capazes de fundamentar o conteúdo do ‘dever-ser’ requerido pela persecução, sob o ponto de vista jurídico-sistemático, da finalidade pública inerente ao manejo de cada competência administrativa ‘in abstrato’ e ‘in concreto’. (Ibid., p. 544). 63 A análise da distinção será feita logo abaixo. 41 Prova disso, o jurista e ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, escreveu: Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar de rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito)64. O princípio da proporcionalidade surgiu ligado à idéia de limitação do Poder no Século XVIII. O cânon da proporcionalidade compreende, nessa época, a área administrativa e a área penal. Nesse sentido, é detentor de raízes iluministas, sendo mencionado por Montesquieu e por Beccaria – ambos tratavam sobre a proporcionalidade das penas em relação aos delitos65. O referido princípio sempre teve seu campo de incidência mais tradicional no âmbito da atuação do Poder Executivo. Estudado precipuamente na área do Direito Administrativo, funcionava ele como medida de legitimidade do exercício do poder de polícia e da interferência dos entes públicos na vida privada. O princípio da proporcionalidade foi teorizado no bojo da transformação do Estado de Polícia para o Estado de Direito, com a finalidade de controlar o poder coativo dos governantes, denominado poder de polícia, a fim de que o seu exercício ficasse limitado pela justa proporção entre os fins objetivados pela atuação do poder público e os meios utilizáveis para o seu atingimento. Pode-se afirmar que tal princípio foi cunhado no Direito Administrativo, ao tempo do florescimento do jusnaturalismo, como idéia de limitação do poder de polícia, exatamente para coibir medidas excessivamente gravosas aos direitos do cidadão. Nessa vertente, na lição de Gordillo66 fica estabelecido: A decisão ‘discricionária’ do funcionário será ilegítima, apesar de não transgredir nenhuma norma concreta e expressa, se é ‘irrazoável’, o que pode ocorrer, principalmente, quando: a) não dê os fundamentos de fato ou de direito que a sustentam; ou b) não leve em conta os fatos constantes do expediente ou públicos e notórios; ou se funde em fatos ou provas 64 MENDES, Gilmar Ferreira. A proporcionalidade na jurisprudência do supremo tribunal federal In: Repertório IOB de Jurisprudência, Rio de janeiro, n. 23/94. p. 475-469, 1994. 65 PENALVA, Ernesto Pedraz apud STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 78. 66 GORDILLO, Augustín. Princípios gerais de direito público. Tradução de Marco Aurélio Greco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 183-184. 42 inexistentes; ou c) não guarde uma proporção adequada entre os meios que emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se trate de uma medida desproporcionada, excessiva em relação ao que se quer alcançar. O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respeito ao problema da limitação do Poder Executivo, sendo considerado como medida para as restrições administrativas da liberdade individual. É com esse sentido que a teoria do Estado o considera, já no século XVIII, como máxima suprapositiva, e é com esse sentido que ele foi introduzido a partir do século XIX no Direito Administrativo, como princípio geral do direito de polícia, sendo posteriormente erigido ao posto de princípio constitucional67. No Brasil, tal princípio detém ‘status’ de princípio constitucional porque – em se tratando de restrição de determinados direitos – a própria Corte Constitucional brasileira (Supremo Tribunal Federal), tem assentado entendimento de que se deve indagar não apenas sobre a admissibilidade legal da restrição eventualmente fixada - reserva legal -, mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade. Na lição de Mendes68, diante dessa nova orientação, houve uma complementação ao princípio da reserva legal: agora, é pertinente denominá-lo por “princípio da reserva legal proporcional”, pois pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização. Nestes termos, haverá violação ao princípio da proporcionalidade, com ocorrência de arbítrio, sempre que os meios destinados a realizar um fim não sejam por si mesmos apropriados e/ou quando a desproporção entre meios e fim seja particularmente evidente (manifesta). Segundo Barroso69, o princípio da razoabilidade surgiu e evolui associado à garantia do devido processo legal, instituto ancestral do direito anglo- saxão. O desenvolvimento doutrinário da cláusula do due process of law, passou por duas fases distintas: na primeira, detinha caráter puramente processual, regulando 67 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 265-266. 68 MENDES, op. cit., p. 475-469. 69 BARROSO, Luís Roberto. Razoabilidade e isonomia no direito brasileiro. In: Temas de direito constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 153-164. 43 direitos intrínsecos ao processo penal. Foi em segundo momento que ganhou contornos supralegais, de alcance substantivo, ensejando ao juiz o exame de determinados aspectos das leis e dos atos administrativos que antes lhe era defeso, segundo a doutrina clássica da separação de poderes. Tais aspectos podiam ser resumidos à noção do razoável, do adequado, por isso que a razoabilidade e o conceito do devido processo legal são fundamentais nos Estados Democráticos e passaram a repercutir nos seus ordenamentos jurídicos como medida de valor para a busca do equilíbrio entre o exercício do poder e a preservação dos direitos do cidadão. Mais fácil de ser sentido do que ser conceituado, pode-se ter por razoável o que seja conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário nem caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. Como sugere Barroso, existem juristas que recorrem até mesmo ao direito natural como fundamento para a aplicação da razoabilidade, “embora possa ela radicar perfeitamente nos princípios gerais da hermenêutica”70. Na opinião de Sundfeld71, o princípio da razoabilidade é inspirado diretamente da noção de racionalidade, incorporando valores éticos ao universo jurídico, invalidando as opções legislativas que destoem desses padrões. Padecerá de vício de inconstitucionalidade, portanto, a restrição imposta por norma legal aos direitos dos cidadãos quando, ao se indagar a razão pela qual foi instituída, ou sobre a intensidade de determinada restrição, a resposta for – “porque o legislador assim quis”. Isso se explica porque é justamente a partir dos padrões de razoabilidade, que se identifica o interesse público e o proveito social implícitos em determinada norma, única justificativa legítima para os atos do Estado. O Estado de Direito deve compatibilizar o exercício do poder político sem prejudicar o necessário espaço das liberdades individuais, sendo a grande finalidade estatal: manter o equilíbrio dessa dualidade. Por isso que, para o Estado de Direito, não basta a simples submissão dos agentes públicos à lei, sob pena de 70 BARROSO, op. cit., p. 155. 71 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros:, 2003. p. 69. 44 se considerar a lei um fim em si, o que é um despropósito, já que o sistema legal deve resguardar a liberdade. A lei não pode tudo, como assevera o jurista Sundfeld, posto que a preocupação central do ordenamento jurídico em um Estado Democrático de Direito é a proteção dos direitos e garantias individuais. Desta forma, uma restrição a direitos somente será admitida quando vinculada a claro e bem identificado interesse público real. Daí o princípio correlato – da intervenção mínima na vida privada, porque a regra é a liberdade, e toda restrição será exceção72. E é justamente com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que se afere se a finalidade de determinada restrição ou condicionamento de direito ou liberdade individual está devidamente orientada por robusto interesse público. O conjunto axiológico da razoabilidade e da proporcionalidade e sua crescente sistematização no direito brasileiro projetaram novas luzes à questão do tratamento da isonomia. Tratar “igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam”, a máxima aristotélica só terá realmente êxito se for conhecida a medida: saber quem são os iguais e os desiguais, e definir em que circunstâncias é lícito o tratamento desigual. Com a idéia de razoabilidade se molda a medida, a régua para a isonomia ou para o tratamento desigual. Assim, para que haja legítimo tratamento desigual, é preciso que o fundamento seja razoável e que a finalidade seja legítima. Sobre a diferenciação entre as noções de razoabilidade e proporcionalidade, Pimenta Oliveira acredita que o que as noções têm de próximas é “o fundamento normativo comum, na medida em que razoabilidade e proporcionalidade surgem junto com a idéia geral de Estado de Direito”73. Essa base normativa comum não elide as diferenças, que devem ser consideradas em razão de que existem situações onde não comportam a aplicação da proporcionalidade, entretanto, permanece possível a incidência da razoabilidade. Para o autor, a aplicação da proporcionalidade enseja duas variáveis: a verificação dos meios e dos objetivos perseguidos, em relação à situação fática em 72 A restrição à liberdade, pois, significa condicioná-la, ou seja, constrangê-la. Em sendo a liberdade, pois, um valor protegido pelo Direito, só pode ser condicionada quando imprescindível à concretização de um interesse público. (A propósito: SUNDFELD, op. cit., p. 68). 73 OLIVEIRA, op. cit., p. 63. 45 concreto. Assim, a análise da proporcionalidade exige a comparação entre meio e fim perseguido. Já para a aferição da razoabilidade, não é necessário essa correlação. A razoabilidade serve para a verificação da exigibilidade do dever imposto frente às circunstâncias pessoais do envolvido. A noção de razoabilidade tem ligação direta com a noção de Justiça individualmente considerada: mesmo havendo adequação meio-fim utilizado, ou seja, guardando proporcionalidade na medida, será que a mesma é ‘razoável’ para aquela determinada pessoa? Será justa a medida para aquela pessoa? Do exposto, enquanto que na proporcionalidade se afere abstratamente a Justiça na medida adotada, na relação entre o meio e o objeto perseguido, a razoabilidade traduz uma condição material para a aplicação individual da justiça. No direito brasileiro, mesmo antes da Emenda Constitucional n.º 45, de 2004, os princípios da razoabilidade e proporcionalidade eram implícitos e de decorrência natural do Estado Democrático de Direito e do princípio do devido processo legal. Isto, porque como apregoa Barroso: A razoabilidade, contudo, abre ao Judiciário uma estratégia de ação construtiva para produzir o melhor resultado, ainda quando não seja o único possível ou mesmo aquele que, de maneira mais óbvia, resultaria da aplicação acrítica da lei”74. Igualmente, Mendes certifica que a visão hodierna do Supremo Tribunal Federal consolida o desenvolvimento do princípio da proporcionalidade – razoabilidade, como postulado constitucional autônomo, tendo sua sedes materiae na disposição constitucional que disciplina o devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal)75. Através da Emenda Constitucional n.º 45/2004, o princípio da razoabilidade ganha, finalmente, abordagem constitucional expressa, haja vista a inclusão do inciso LXXVIII no artigo 5º: “LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celerida