UNESP - Universidade Estadual Paulista Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado Elainy Mota Pereira A CERÂMICA NA ARTETERAPIA: Projetos e ações socioculturais como antídoto à violência São Paulo – SP 2018 UNESP - Universidade Estadual Paulista Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Mestrado Elainy Mota Pereira A CERÂMICA NA ARTETERAPIA: Projetos e ações socioculturais como antídoto à violência Dissertação submetida à UNESP como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, área de concentração em Artes Visuais, linha de pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, sob a orientação da Profa. Dra. Geralda Mendes F. S. Dalglish (Lalada), para obtenção do título de Mestre em Artes. São Paulo – SP 2018 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP P436c Pereira, Elainy Mota, 1977-. A Cerâmica na Arteterapia : projetos e ações socioculturais como antídoto a violência / Elainy Mota Pereira. - São Paulo, 2018. 274 f. : il. color. Orientadora: Profª. Drª. Geralda Mendes Ferreira Silva Dalglish (Lalada Dalglish). Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Arte-terapia. 2. Cerâmica. 3. Adolescentes e violência. I. Dalglish, Geralda Mendes Ferreira Silva. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 738 (Mariana Borges Gasparino - CRB 8/7762) Elainy Mota Pereira A CERÂMICA NA ARTETERAPIA: Projetos e ações socioculturais como antídoto à violência Dissertação submetida à UNESP – Universidade Estadual Paulista – como requisito exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes na área de concentração em Artes Visuais, para a obtenção do título de Mestre em Artes. Banca: _____________________________________ Profa. Dra. Geralda Mendes F. S. Dalglish (Lalada) - Orientadora UNESP - Universidade Estadual Paulista – Instituto de Artes ________________________________________ Profa. Dra. Patrícia Pinna Bernardo UNIP - Universidade Paulista ________________________________________ Prof. Dr. Jean-Jacques Armand Vidal UNESP - Universidade Estadual Paulista – Instituto de Artes ________________________________________ Profa. Dra. Sonia Carbonell Alvares USP- FEUSP - Faculdade de Educação ________________________________________ Prof. Dr. Kleber José da Silva UFSJ - Universidade Federal de São João Del Rei Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles. A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém, não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja. A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado. A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes. A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo. PESSOA, 19341 1 Livro de Frederico Barbosa, que apresenta Fernando Pessoa e fala de sua obra de uma maneira simples e agradável de ser apreendida. À Profa. Dra. Lalada Dalglish, cuja maneira inspiradora de ensinar, no cíclico processo de ensino- aprendizagem, transmuta inenarráveis estados do eu que fluem em outra dimensão. Sua metodologia sem par introjeta o conhecimento, ultrapassa as fronteiras da sala de aula e chega à alma, trazendo à cerâmica um novo significado, o qual não é possível mensurar com palavras. Agradecimentos À Deus, por cada fração de centésimo de segundo da minha vida. O que Ele faz está além do que podemos ver ou tocar e, por isto, palavras de gratidão jamais poderiam mensurar um amor tão sublime, no qual me fortaleço todos os dias para lutar e, assim, seguir minha missão de ensinar, a qual sempre volta como aprendizado de vida através dos anjos que o Senhor coloca em meu caminho. À Profa. Dra. Patrícia Pinna Bernardo, por conduzir o curso de pós-graduação em Arteterapia e vislumbrar a possibilidade de o Projeto Ser Âmica virar uma matéria no curso Arteterapia Aplicada à Saúde, Educação e Organizações - A cerâmica como recurso terapêutico. Obrigada pelas suas contribuições valiosíssimas, sempre, sem as quais a Arteterapia certamente teria outro olhar entre logos e práxis para mim. Gratidão pela coorientação nesta dissertação. A Arteterapia não teria o lugar de destaque no projeto, não fosse você enxergar através da sua experiência e seu modo de ensinar como nós, arteterapeutas, devemos e podemos nos empoderar dos temas e trilhar no caminho dos atendidos as nossas próprias descobertas de autoconhecimento. Gratidão, gratidão, gratidão! À Panco, que nos patrocinou nas etapas para a realização desta pesquisa e sempre apoiou projetos sociais, pois reconhece neles uma importante ferramenta de transformação nas comunidades. À minha família, presença divina personificada em seres especiais que nos amam incondicionalmente: meu pai, João Humberto; minha mãe, Mariana; meu irmão, Frank Rogers; minha irmã, Diani; minha cunhada, Thais Gaspar; meu sobrinho, Bruno - amor sublime. Minha “ermã” Diani, aqui um adendo para agradecer por tantos socorros desde o início desta caminhada, ainda no processo seletivo. Não fosse você, certamente não teríamos chegado até aqui. Amor demais, inexplicável. Que Deus a ilumine sempre. Ao Roberto Santiago, meu companheiro, meu amor e porto seguro. Muito aprendizado na vida a dois, que mostra o quanto precisamos de alguém ao nosso lado para aprendermos a nos enxergar. Razão e emoção juntas, uma ensinando à outra a importância das diferenças. Gratidão pelo apoio ao processo, desde o início até a conclusão do trabalho. Ao Prof. Dr. Jean-Jacques Armand Vidal, por aceitar o desafio de ser membro de minha banca. Obrigada pelas contribuições no campo da cerâmica e cultura material. Ao Instituto Movere de Ações Comunitárias, representado pela sua presidente Vera Perino Barbosa por receber o projeto. Muitos obstáculos vencidos ou superados para que o Ser Âmica pudesse acontecer. A todos os jovens que participaram das etapas do Projeto Ser Âmica. Com profunda admiração por sua determinação, aprendi a entender as peculiaridades de cada um. O ateliê tornou-se espaço de aprendizagem e conhecimento mútuo; lugar sagrado de nossas extensões, onde, através da modelagem, mostraram-se fortes e incrivelmente amorosos. O amor, elemento fundamental para a realização de nosso trabalho, só é viável se tal sentimento puder crescer sem julgamentos ou formalidades, em momentos simples, mas cheios de beleza como os que vivemos e partilhamos, modelando a cada dia o melhor do nosso Ser. Ao Sergio Vinicius, Nayara Prado e a Joyce Rodrigues, nossos monitores, exemplos vivos de como as escolhas dependem de nós mesmos e que, hoje, com seus primeiros empregos viabilizados através do Projeto Ser Âmica, são modelos nos quais futuros jovens podem se espelhar para ter a mesma oportunidade de crescimento que eles tiveram. À Cleydinha, amiga e vizinha, que sempre me acolheu com sua sabedoria, apoiando-me sobremaneira para a escrita desta dissertação. Uma cadeirante que anda mais longe que muitos de nós. Ao Francisco Brennand, pela entrevista concedida com tanta generosidade e pelo seu olhar sensível que emoldurou lado a lado o projeto Ser Âmica com o trabalho da Dra. Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, e à sua assessora Cristiane Dantas, que mediou este encontro magnífico e inesquecível. À Megumi Yuasa e Naoko pelas palavras certas e confortáveis em um momento de incerteza, dúvidas e medo. Vez em quando os anjos aparecem em nossas vidas em formas humanas. O importante é a gente ter a sensibilidade de perceber e recebê-los de braços e coração abertos. À Dra. Sonia Carbonell Alvares e ao Prof. Dr. Kleber José da Silva, por se sensibilizarem com a minha pesquisa e me acolher com suas avaliações através de seus conhecimentos e vivências com a cerâmica. À Clara Custódio, minha terapeuta, pessoa absolutamente necessária para que eu pudesse me enxergar dentro de um processo onde só vislumbrava a transformação do outro. Ledo engano, pois nossas transformações são constantes, embora nem sempre as percebamos. Muitas vezes, precisamos de pontos de luz para iluminar nossos caminhos e “Clarita” foi um deles. À mestra Kimi Nii e sua humilde forma de ensinar. Após 21 anos de ter ouvido sobre o trabalho da artista, ainda na graduação, pude conhecê-la pessoalmente e ter a honra de ser sua aluna. Grande aprendizado que nenhum livro poderia conter. Mestres que ensinam na prática a paixão do manuseio pelo barro. Ao Prof. Dr. Percival Tirapeli, que me apresentou à minha orientadora Profa. Dra. Lalada Dalglish. Ainda como aluna especial da sua matéria, ouvi: “você precisa conhecer a Lalada! Está fazendo a matéria errada. Vou te apresentar a ela e aí é contigo”. À Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho e suas importantíssimas contribuições para a arte- educação dentro do projeto. As aulas foram ferramentas para entender a importância do ensino formal e não formal em comunidades. À Rosane Perrote, por abraçar nosso projeto e nos ensinar muito sobre a aromaterapia, dando, inclusive, seu nome à série de pingentes em sua homenagem. Às amigas de caminhada nesta jornada, Simone Garcia, Prila Paiva e, em especial, à Vanessa Lopo, por tantas conversas, WhatsApp e e-mails, por dar oficinas no Ser Âmica e contribuir muito com o projeto em 2017. Ao ateliê Terra Bela, pela gentileza e amorosidade de Ivone Shirahata e toda sua a equipe por nos receber de forma tão acolhedora. Os alunos puderam vivenciar momentos mágicos ao terem contato tanto com as suas obras como com as de nossa grande mestra Shoko Suzuki. Inesquecível!!! À Olaria Paulistana, que ao receber o projeto Ser Âmica, promoveu um diálogo com o Flavio Paixão, oleiro que trabalha com a Lucia Eid há 16 anos e tem uma história similar à de muitos adolescentes, pois também foi um morador de comunidade, e encontrou no barro o motivo para seguir o caminho modelado por ele, Ao Tácito Fernandes, que nos presenteou com um workshop maravilhoso em seu ateliê. Foi um dia muito especial cheio de trocas, conversas, risadas, comidinha feita por ele e de aprendizado através dos conhecimentos passados de forma tão didática e altruísta. À Lorena de Oliveira pelo “milagro 2016” e por estar presente no trabalho de forma única com seu olhar ortográfico e suas revisões e avaliações. Uma amiga que a dissertação me trouxe e veio para ficar. À Tania Lipas, eleita em 2017 como a nossa Sensei. Obrigada por tantos conhecimentos e técnicas passadas de maneira tão generosa. Gratidão pela forma amorosa com que trata cada jovem do projeto. Eles com certeza enxergam em você uma grande mestra e a respeitam muito, assim como eu. À Mariana de Araujo pela oportunidade de oferecer um curso de torno iniciante a alguns dos adolescentes do projeto. Foi uma experiência muito rica e que deu a eles confiança para manusear o equipamento sem medo de errar, pois como lhes explicou: torno é treino. Ao Julinho e toda a equipe do Restaurante Cachoeira Tropical pelo apoio ao projeto, seja para receber as exposições ou o grupo que se deliciou a cada visita com a melhor comida vegetariana de São Paulo. À Serena Fagerazzi e toda a equipe do Ristorante Don Camillo por nos receber de forma tão acolhedora e atender aos alunos majestosamente. Cada um deles ao ir ao restaurante se sentiu um rei ou rainha. A valorização humana e ao trabalho dos jovens fez muita diferença na vida deles. Ao nosso fotógrafo Fabio Queiroz, que fez registros importantes das oficinas e sempre tratou cada jovem com muito carinho. Apresentação Sou artista plástica, formada pela UFMS – Universidade Federal do Mato Grasso do Sul – e, desde a graduação, percorri um caminho na arte que foi na contramão de quem escolheu o curso de bacharelado. A ideia seria lançar-me como artista e galgar o reconhecimento dentro de um trabalho individual a ser desenvolvido para criar uma identidade própria. Mas, ao fazer um estágio na Prefeitura Municipal de Campo Grande em um projeto com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, entendi, no 4º ano da faculdade, o real motivo de ter sido escolhida pelo barro dentre tantas disciplinas cursadas. O projeto Bem Viver2 foi o embrião para a criação do projeto Ser Âmica3, sete anos mais tarde. Mas lá no Bem Viver, diferentemente do formato que o Ser Âmica possui, era dedicado somente um único dia ao manuseio da cerâmica. Hoje, 90% das atividades estão concentradas nas técnicas de livre modelagem, placa, torno e esmaltação, além das oficinas arteterapêuticas, cujo barro é o principal suporte. Foi dentro do projeto Bem Viver, no qual atuei por cinco anos, que percebi o quanto o barro era um elemento que me intrigava e, ao mesmo tempo, fascinava. Como uma recém- formada em um curso de artes, pouco entendia sobre a questão que vai além da estética e chega ao inconsciente, ou melhor, à alma. Mas ao longo do projeto, muitos jovens puderam ser resgatados, graças ao trabalho ligado à arte. Ao trabalhar com o barro, sentia uma diferença comportamental de cada criança ou adolescente ali presente. E isto se estendia às famílias, que consequentemente eram resgatadas juntamente com a autoestima dos atendidos. Comecei a recorrer a conhecimentos teóricos da Arteterapia junto aos autores Jung, Nise da Silveira, Sara Paín e Patrícia Pinna Bernardo, no intuito de buscar explicações mais palpáveis para tais fenômenos, visto que, na época, era ainda bem restrita a bibliografia no campo das possibilidades do trabalho com cerâmica em Arteterapia e sua relação com o resgate social que poderia promover. Entendi um pouco o percurso do gestual e o quão significativo era cada movimento dos alunos dentro do processo da transformação individual e coletiva. Em 2000, a Arteterapia era uma realidade distante da cidade onde eu morava e precisei buscar fora de lá por mais respostas. São Paulo foi o destino escolhido. O percurso foi longo para chegar ao Ser Âmica: dez anos até concretizar o primeiro projeto. 2 O projeto Bem Viver foi idealizado pela prefeitura de Campo Grande – MS, onde entrei com o ideal de tornar a cerâmica uma fonte de renda para os jovens moradores de rua entre os anos de 1996 a 2001. 3 O projeto Ser Âmica é uma idealização minha inspirada no que vivi no projeto Bem Viver. O principal diferencial entre os projetos é que, no Ser Âmica, o intuito foi de trabalhar integralmente com o suporte da cerâmica focando o resgate e transformação de vida de adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Para idealizá-lo com toda a sua estrutura física, recorri a cursos e buscas pessoais, às Leis de Incentivos Fiscais e me especializei na área de gestão cultural. Passei a elaborar não só os meus próprios projetos, ao tornar o sonho em realidade, como os de outros artistas e produtores, que através das minhas mãos tiveram seus sonhos também materializados. Projetos de livros, músicas, artes plásticas, saúde e esporte fizeram parte da minha trajetória. Embora não sejam o foco da pesquisa, as Leis de Incentivo serão brevemente abordadas neste trabalho, devido à sua importância para a realização de trabalhos similares. De 1996 a 2018 foram mais de 2.080 (dois mil e oitenta) alunos a ter contato com o barro. Entretanto, para fins de recorte, na presente pesquisa serão retratados relatos dos últimos três anos de atendimento. Então, posso dizer que não deixei de ser artista. Apenas abdiquei da carreira solo para me abrir e permitir que, através das mãos de tantos alunos com sensibilidade única, enxergasse a minha arte na transformação de vidas e de cada peça de barro produzida ou de cada projeto realizado. Abri-me ao barro para ser remodelada em corpo e alma por ceramistas aprendizes que surgem diariamente diante de mim. Estes jovens aprendizes sentem o amor que emito e o devolvem um amor maior. O resultado? Obras primas que palavras jamais poderão mensurar, simbolizadas nas produções, gestual e transformações de cada um. RESUMO Esta dissertação de mestrado visa buscar a compreensão de como a produção plástica, através de oficinas de cerâmica com recorte focado na Arteterapia, e projetos sociais inseridos em comunidades podem contribuir com o resgate de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Foi criado um projeto denominado Ser Âmica: A Modelagem de Um Novo Amanhã, localizado no Instituto Movere de Ações Comunitárias em Artur Alvim, zona leste da capital paulista, onde montou-se um ateliê para atender ao público alvo desta pesquisa, com idade entre sete e dezoito anos. Após realização de trezentas oficinas, num período de três anos não consecutivos, foram encontrados elementos que permitissem a reflexão sobre o potencial de oficinas culturais e seus desdobramentos para compreender o processo individual de cada aluno na formação de cidadãos mais conscientes da realidade em que vivem, possibilitando, desta maneira, o vislumbre de um futuro melhor através das contribuições que o diálogo com a arte e a cerâmica pode representar ao seu desenvolvimento pessoal e social. Em nenhum momento houve pretensão da pesquisadora de tornar os jovens atendidos em ceramistas profissionais. Buscou-se, antes, possibilitar aos atendidos um reencontro de si no resgate da autoestima e do autoconhecimento. A proposta de realizar um projeto de foco social com toda a estrutura de um ateliê de cerâmica profissional foi possível em virtude do fomento oferecido por meio das leis de incentivos fiscais, que também serão abordadas nesta pesquisa. Palavras-chave: Projeto Ser Âmica. Arteterapia. Cerâmica. Adolescentes. Violência. ABSTRACT This dissertation MFA thesis seeks to understand how plastic production, through a part of ceramic workshops which focuses only on art therapy, and social projects inserted in communities can contribute to the rescue of children and adolescents in social vulnerability situations. A project was created named Ser Âmica - A Modeling of a New Tomorrow - located at the Instituto Movere de Ações Comunitárias in Artur Alvim, east zone in São Paulo, where a workshop was set up to attend the target audience of this research, aged 7-18 years old. three hundred - 300 workshops were held in a period of 3 (three) non-consecutive years to find elements that allowed a reflection on the potential and consequences of cultural workshops in order to understand the individual process of each student in the construction of a citizen more aware of the reality that he lives in and how he can envisage a better future through the contributions that the dialogue, with art and ceramics, can represent in his personal and social development. At no moment, did the researcher have an intention to turn the young people into professional ceramists, but to enable them to recover their self-esteem and self-knowledge. The proposal to carry out a socially focused project with the entire structure of a professional ceramic workshop was possible due to the development of the tax incentive laws that will also be addressed in this research. Keywords: Ser Âmica Project. Art therapy. Ceramics. Adolescents. Violence. RESUMEN Esta disertación de maeztrago pretende buscar la comprensión de la producción plástica a través de talleres de cerámica con recorte enfocado en la Arteterapia y de cómo los proyectos sociales implantados en comunidades pueden contribuir en el rescate de niños y adolescentes en situación de vulnerabilidad social. Se creó un proyecto llamado Ser Âmica: El Modelado de Un Nuevo Mañana situado en el Instituto Movere de Ações Comunitárias en Artur Alvim (zona leste de la capital paulista), donde se montó un taller para atender al público que era el objetivo de esta investigación y cuyas edades comprendían desde los siete a los dieciocho años. Se abrieron trescientos talleres en un período de tres años no consecutivos para que se encontraran elementos que permitieran la reflexión sobre el potencial de talleres culturales y sus despliegues para comprender el proceso individual de cada alumno en la construcción de ciudadanos más conscientes de la realidad en la que viven y de maneras de vislumbrar un futuro mejor a través de contribuciones que el diálogo con el arte y la cerámica puede representar en su desarrollo personal y social. En ningún momento hubo la pretensión de convertir a los jóvenes en profesionales ceramistas, sino la de darles una oportunidad de encontrarse consigo mismos en un acto de rescate de su autoestima y del autoconocimiento. La propuesta de realizar un proyecto con un objetivo social con toda la estructura de un taller de cerámica profesional se hizo posible gracias al fomento de las leyes de incentivos fiscales que también serán abordadas en esta investigación. Palabras clave: Proyecto Ser Âmica. Arteterapia. Cerámica. Adolescentes. Violencia. LISTA DE FIGURAS Fig. 1 – Nayara Prado e Kauanne Silva – jovens atendidas pela ONG Instituto Movere – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 2 – Adolescentes visitam pela primeira vez o Museu Afro Brasil – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 3 – Adolescentes da comunidade Artur Alvim pela primeira vez no teatro para assistir à peça – O Reizinho Mandão – São Paulo, 2015. Foto: Marcos Henrique. Fig. 4 – Mãos dos alunos do Projeto Ser Âmica simbolizam os nossos Nós: encontro do Eu e Tu. São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota. Fig. 5 – Mãos dos alunos do Projeto Ser Âmica unidas para representar a coletividade e a solidariedade do trabalho das ONGs no Brasil, São Paulo, 2017. Fig. 6 – Hermann Gmeiner em reunião com as colaboradoras, Áustria, 1949. Foto: Livro 45 anos de Aldeias Infantis SOS no Brasil (BRASIL, 2013). Fig. 7 – Mapa com os locais de atendimento da Aldeias Infantis SOS no Brasil, 2013. Foto: Livro 45 anos de Aldeias Infantis SOS no Brasil (Ibdi). Fig. 8 – Crianças atendidas pelas Aldeias Infantis – São Paulo, 2010. Foto: Balanço Social da Aldeias Infantis SOS. Fig. 9 – Crianças e adolescentes no projeto Brincando na Cozinha do Instituto Movere aprendem a cozinhar de forma saudável, São Paulo, 2016. Foto: Tatiana Damasceno. Fig. 10 – Crianças e adolescentes no projeto Brincando na Cozinha do Instituto Movere aprendem a cozinhar de forma saudável, São Paulo, 2016. Foto: Tatiana Damasceno. Figs. 11 e 12 – Peça Teatral Nutri Ventures para conscientizar pais e alunos atendidos pelo Instituto Movere sobre a importância da alimentação saudável e consciente – São Paulo, 2015. Foto: Elainy Mota. Figs. 13 e 14 – Oficina de cerâmica realizada como prevenção e tratamento da violência oferecida aos adolescentes atendidos pelo Instituto Movere - São Paulo, 2017. Fotos: Fabio Queiroz. Fig. 15 – Atividades esportivas oferecidas aos atendidos realizadas 2 vezes por semana no Instituto Movere – São Paulo, 2016. Foto: Ivo Mortani. Fig. 16 – Atividades esportivas oferecidas aos atendidos realizadas 2 vezes por semana no Instituto Movere – São Paulo, 2016. Foto: Ivo Mortani. Fig. 17 – Logotipo da Lei Rouanet e do Governo Federal utilizados na régua de divulgação do material gráfico ou outra forma de divulgação para o proponente que recebeu o apoio da lei – São Paulo, 2018. Foto: site www.cultura.gov.br Fig. 18 – Logotipo do Programa Estadual de Cultura e do Governo do Estado de São Paulo utilizados na régua de divulgação do material gráfico ou outra forma de divulgação para o proponente que recebeu o apoio da lei – São Paulo, 2018. Foto: site – www.cultura.sp.gov.br Fig. 19 – Logotipo da Programa Municipal de Apoio a Projetos Culturais e da Prefeitura de São Paulo utilizados na régua de divulgação do material gráfico ou outra forma de divulgação para o proponente que recebeu o apoio da lei – São Paulo, 2018. Foto: site – http://smcsistemas.prefeitura.sp.gov. br/promac/ Fig. 20 – Foto com parte dos adolescentes atendidos pelo projeto Ser Âmica em dia de oficina para produção focada na venda das peças – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Figs. 21 e 22 – Oficinas de cerâmica com produção de peças em placa e no torno – São Paulo, 2017. Fotos: Fabio Queiroz. Fig. 23 – Oficinas de cerâmica com produção de peças em placa e no torno – São Paulo, 2015. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 24 – Oficinas de cerâmica com produção de peças em placa e no torno – São Paulo, 2015. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 25 – Oficinas de Arteterapia: trabalho focado nas vivências com o tema http://www.cultura.gov.br/ http://www.cultura.sp.gov.br/ http://smcsistemas.prefeitura.sp.gov.br/promac/ http://smcsistemas.prefeitura.sp.gov.br/promac/ sobre a questão do pertencimento – São Paulo, 2015. Foto: Fabio Queiroz. Figs. 26 e 27 – Oficinas de Arteterapia: trabalho focado nas vivências com o tema sobre a questão do pertencimento – São Paulo, 2015. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 28 – Especificação do código da profissão do arteterapeuta na CBO - São Paulo, 2018. Foto: Site da CBO. Fig. 29 – Detalhe do código da profissão do arteterapeuta na CBO - São Paulo, 2018. Foto: Site da CBO. Fig. 30 – Mãos do aluno do Projeto Ser Âmica, Guilherme Justino torneando o mundo simbolicamente – São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota. Fig. 31– Entrevista realizada com o mestre do sonho Brennand, na Oficina Francisco Brennand, acompanhado por sua assessora, Cristiane Dantas, no dia 18/04/2017 – Recife-PE. Foto: Roberto Santiago. Fig. 32 – Visita dos alunos do Projeto Ser Âmica ao ateliê Terra Bela, de Ivone Shirahata, em frente ao forno Noborigama da artista – Cotia – SP, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 33 – Visita a Olaria Paulistana com Lucia Eid, equipe e alunos - São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Figs. 34 a 37 – Visita dos alunos do Projeto Ser Âmica a Livraria Cultura no projeto de incentivo à leitura criado pela pesquisadora – São Paulo, 2017. Fotos: Fabio Queiroz. Figs. 38 a 42 – Beijo e abraço na chegada e saída do projeto. A pesquisadora incentivava todos os jovens a se cumprimentarem para construir momentos de afeto, respeito ao próximo e às diferenças – São Paulo, 2017. Fotos: Fabio Queiroz. Fig. 43 – Montagem de peças biscoitadas com livro e pincel feita no ateliê Ser Âmica pelos alunos Daniel Leão, Isabel Simião e Kadu Rossi – São Paulo, 2018. Foto: Kadu Rossi. Figs. 44 e 45 – João Lopes com o sonho realizado de ir morar em Boston – EUA. Foto: arquivo pessoal – março de 2018. Fig. 46 – Sementes disponibilizadas aos alunos para a primeira vivência do Projeto Ser Âmica – São Paulo, 2015. Foto: Fabio Queiroz. Figs. 47 a 49 – Trouxinhas construídas com as sementes para a sensibilização arteterapêutica no Projeto Ser Âmica – São Paulo, 2017. Fig. 50 – Oficina de Arteterapia – Pote modelado por uma das alunas na vivência “Qual é o meu lugar” realizada no Projeto Ser Âmica – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 51 – Prato paisagem da série Aldeia de Shoko Suzuki – Cotia - SP, 1995. Foto: www.acasa.org.br Fig. 52 - Escultura Aldeia de Shoko Suzuki – Cotia - SP, 2009. Foto: www.acasa.org.br Fig. 53 – Fragmento do documentário sobre Shoko Suzuki, Cerâmica e Tradição, exibido durante visita dos alunos do Projeto Ser Âmica ao ateliê Terra Bela de Ivone Shirahata. – Cotia – SP, 2017. Foto: Elainy Mota. Fig. 54 – Sensibilização com bexiga para a oficina de Arteterapia visando a percepção do corpo e suas formas – São Paulo, 2015. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 55 – Joyce Rodrigues na confecção de torso feminino, construído na oficina de Arteterapia “Quem me toca e o que eu toco?” – São Paulo, 2015. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 56 – Marcos Henrique e José Vinicius com torsos masculinos, construídos na oficina de Arteterapia “Quem me toca e o que eu toco?” – São Paulo, 2015. Foto: Elainy Mota. Figs. 57 a 59– Três momentos da construção da escultura Abraço de Mim – Autora: Nayara Prado na oficina de Arteterapia: “Quem me toca e o que eu toco?” – São Paulo, 2018. Fotos: Elainy Mota. Fig. 60 – O início da modelagem do mundo na vivência arteterapêutica: O barro como primordial – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 61 – Pote da vivência arteterapêutica – O barro como primordial – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 62 – Painel construído coletivamente pelos alunos do Projeto Ser Âmica: Daniel Leão, Guilherme Justino, Carlos Silva e Nayara Prado – São Paulo – 2017. Foto: Elainy Mota. Fig. 63 – Painel construído coletivamente pelos alunos do Projeto Ser Âmica: Daniel Leão, Guilherme Justino, Carlos Silva e Nayara Prado – São Paulo – 2017. Foto: Elainy Mota. Fig. 64 – Painel construído coletivamente pelos alunos do Projeto Ser Âmica, Sergio Vinicius, Maria Eduarda, Felipe Bento, Carlos Silva e João Pedro – São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota. Figs. 65 a 71 – Imagens extraídas do documentário “A Vitoria do Sonho” produzido por Lalada Dalglish na Vila de Icoaraci em Belém – PA, 1996. – Imagens: Lalada Dalglish. Fig. 72 – Detalhe do carimbo modelado e desenhado para a vivência da construção de mandalas – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 73 – Nayara Prado com carimbo modelado e desenhado para a vivência da construção de mandalas – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 74 e 75 – As irmãs Gabrieli e Nathalia desenham em seus carimbos modelados para a vivência da construção de mandalas – São Paulo, 2017. Fotos: Fabio Queiroz. Fig. 76 – Detalhe do carimbo modelado e desenhado para a vivência da construção de mandalas – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 77 – Nicole e a pesquisadora que desenha como demonstração à aluna nova – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz Figs. 78 a 80 – Movimento realizado com carimbo na placa de argila na vivência da construção de mandalas – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 81 – Mandala incrustrada na placa de cerâmica – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 82 – Detalhe de uma máscara onde o carimbo da vivência da construção de mandalas foi utilizado posteriormente para compor o desenho de uma peça– São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 83 – Painel biscoitado com todas as partes da bandeira do Brasil – São Paulo, 2018. Foto: Elainy Mota. Fig. 84– Painel da bandeira do Brasil em alta e baixa temperatura – São Paulo, 2018. Fig. 85– Ariane na construção das mãos e estrelas para a bandeira do Brasil – São Paulo, 2018. Foto: Elainy Mota. Fig. 86 – Mãos e placas de cerâmica em fase de acabamento para compor a bandeira do Brasil – São Paulo, 2018. Foto: Elainy Mota. Figs. 87 e 88 – Felipe e Amanda escreveram as palavras que trouxeram significados a eles na vivência Bandeira do Brasil. São Paulo, 2018. Foto: Elainy Mota Figs. 89 a 92 – Nayara, Emanuele, Isabel e Marina, algumas das participantes da oficina – Nayara, Emanuelle, Isabel e Marina com as mãos construídas para compor a bandeira do Brasil. São Paulo, 2018.Fotos: Kadu Rossi. Figs. 93 e 94 – D´jane e Daniel com seus nomes reproduzidos na argila. São Paulo, 2018. Fotos: Elainy Mota. Figs. 95 e 96 – Nome-crachá em fase de secagem para queima em biscoito. São Paulo, 2018. Fotos: Elainy Mota Figs. 97 e 98 – Nome-crachá em fase de secagem e queimado em alta temperatura com moldura em madeira de demolição. São Paulo, 2018. Fotos: Elainy Mota. Fig. 99 – A ceramista Alexandra Camillo em frente a plaqueira explicou sobre a retirada de bolhas aos alunos do Projeto Ser Âmica: Nayara Prado, Sergio Vinicius, Joyce Rodrigues, Carlos Silva, a pesquisadora Elainy Mota e Carlos Vinicius – São Paulo, 2016. Foto Fabio Queiroz. Figs. 100 a 102 – Conjunto de cisnes modelados da D´jane Thais. São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota Fig. 103 – Cobra modelada por Daniele Mazzoni. São Paulo, 2017. Fig. 104 – Montagem do forno na UNESP para queima primitiva com sal realizada pelo grupo de pesquisa Panorama da Cerâmica Latino Americana coordenado pela profa. Dra. Lalada Dalglish – São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota. Figs. 105 e 106 – Peças com o resultado da queima primitiva com sal, realizada na semana do ceramista pelo Grupo de Pesquisa Panorama da Cerâmica Latino Americana coordenado pela profa. Dra. Lalada Dalglish. São Paulo, 2017. Fotos: Elainy Mota. Fig. 107 – Painel modelado pelo aluno do projeto Ser Âmica, Thiago dos Santos e realizada a queima primitiva. Foto: Elainy Mota. Fig. 108 – Painel modelado pelas alunas do projeto Ser Âmica, Nayara Prado e Gabrieli dos Santos e realizada a queima primitiva. São Paulo, 2016. Foto: Elainy Mota. Fig. 109 – Alunos do Projeto Ser Âmica após explicação sobre o uso da plaqueira – São Paulo, 2017 Foto: Fabio Queiroz Figs. 110 a 112 – Alunos do Projeto Ser Âmica em uso da plaqueira, equipamento mais utilizado para produção das peças – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz Fig. 113 – Fruteira produzida por um dos alunos do Projeto Ser Âmica Felipe Bento com a técnica da placa e esmalte de baixa temperatura (1.050ºC) – São Paulo, 2016. Foto: Elainy Mota. Figs. 114 e 115 – Folhas esmaltadas em queimadas em baixa temperatura (1.050ºC) pelo aluno do projeto Ser Âmica, Sergio Campos – São Paulo, 2016. Foto: Elainy Mota. Fig. 116 – Aula de torno ministrada por Sergio Vinicius, monitor do projeto Ser Âmica, aos alunos – São Paulo, 2017. Foto: Fabio Queiroz. Fig. 117 – Aluno do projeto Ser Âmica, Marcos Henrique, recebe aula de torno do monitor Sergio Vinicius – São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota. Fig. 118 – Adolescentes do Projeto Ser Âmica, Nayara Prado, Isabel Simião e Daniel Leão em curso de torno no Laboratório de Cerâmica do Instituto de Artes da UNESP, ministrado por Mariana de Araujo – São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota. Figs. 119 e 120 – Workshop no ateliê do ceramista Tácito Fernandes ministrado aos alunos do Projeto Ser Âmica, Daniel Leão e Mayara Aline – Ibiúna, SP, 2017. Foto: Elainy Mota. Figs. 121 e 122 – Folhas esmaltadas em queimadas em baixa temperatura (1.050ºC) pelo aluno do projeto Ser Âmica, Sergio Campos – São Paulo, 2016. Foto: Elainy Mota. Fig. 123 – Folha esmaltadas em queimadas em baixa temperatura (1.050ºC) pelo aluno do projeto Ser Âmica, Carlos Vinicius – São Paulo, 2016. Foto: Elainy Mota. Figs. 124 e 125 – Folhas esmaltadas em queimadas em baixa temperatura (1.050ºC) pelo aluno do projeto Ser Âmica, Bruno Silva – São Paulo, 2017. Foto: Elainy Mota. LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS CBO – Classificação Brasileira de Ocupações CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas ILSI – International Life Sciences Institute MAC – Museu de Arte Contemporânea MINC – Ministério da Cultura OMS – Organização Mundial de Saúde ONG – Organização Não Governamental ONU – Organização das Nações Unidas PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais ProAC – Programa de Ação Cultural SECULT – Secretaria de Cultura SUS – Sistema Único de Saúde UBAAT – União Brasileira de Associações de Arteterapia UNESP – Universidade Estadual Paulista UNICEF – United Nations Children´s Fund USP – Universidade de São Paulo SUMÁRIO CAPÍTULO I ............................................................................................................................ 26 PROJETOS SOCIAIS EM COMUNIDADES NA ABORDAGEM DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL ....................... 26 1. A importância de projetos sociais para novas perspectivas em comunidades ........... 27 A formação das ONGs no Brasil e sua migração ao Terceiro Setor ........................... 31 Aldeias Infantis SOS – Fundação e história ................................................................ 36 Instituto Movere de Ações Comunitárias – Trajetória e reconhecimentos ................. 40 Projetos Socioculturais e as Leis De Incentivos Fiscais ............................................. 45 CAPÍTULO II ........................................................................................................................... 54 O PROJETO SOCIAL SER ÂMICA ..................................................................................... 54 2.1 O referencial arteterapêutico como instrumento de transformação no projeto Ser Âmica ................................................................................................................................. 72 2.2 Formação educacional em arte: estratégia para estimular o desenvolvimento social . 89 2.3 A arte e a educação podem salvar o mundo .............................................................. 102 CAPÍTULO III ....................................................................................................................... 112 A EXECUÇÃO DO PROJETO SER ÂMICA –PRÁXIS E LOGOS...................................... 112 3.1 Vivências arteterapêuticas ......................................................................................... 116 3.2 As oficinas arteterapêuticas ....................................................................................... 135 3.3 Técnicas – os processos e procedimentos ................................................................. 174 3.4 A venda das peças produzidas pelos adolescentes .................................................... 186 3.5 Metodologia das oficinas .......................................................................................... 203 BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 208 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 210 ANEXOS ................................................................................................................................ 218 20 INTRODUÇÃO Ao pensar nas relações entre o processo criativo e o educacional, traça-se um paralelo de que um só pode caminhar junto ao outro e, por isto, esta dissertação propõe uma reflexão sobre práxis e logos, abordados em Buber (2001), na arte e na Arteterapia, tendo como escopo a relação de projetos sociais em comunidades focados no atendimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O projeto social Ser Âmica: A Modelagem de Um Novo Amanhã foi criado em São Paulo – SP no ano de 2007, para estabelecer um diálogo entre culturas distintas, contribuir junto ao processo sócio educacional, ao conectar conhecimentos e saberes através do manuseio do barro para permitir a ampliação do entendimento da realidade vivida por cada jovem atendido e, assim, proporcionar opções para as transformações necessárias em aspectos que tangem a solidariedade, a tolerância, a luta pela igualdade e pelo respeito a si mesmo e às diferenças. Com o recorte a partir da sua dimensão social, as artes propiciaram os processos de experienciar e refletir socialmente, onde cada adolescente foi preparado para estabelecer a sua relação com o seu entorno (família, escola, sociedade) e, assim, ampliar a sua consciência acerca de suas potencialidades de atuação sobre o mundo. Com a possibilidade de ponderar sobre suas atitudes, comportamentos e valores, foram fornecidos oportunidades e recursos como forma de estímulos, através de vivências teórico-práticas – logos e práxis. O objetivo deste estudo foi desenvolver oficinas de cerâmica utilizadas como recurso arteterapêutico para resgatar a autoestima, autoconfiança e autoconhecimento através do empoderamento pessoal e desenvolvimento de habilidades com o público alvo, constituído por crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social em Artur Alvim, extremo leste da capital paulista. Basicamente, foi utilizado o delineamento quanti-qualitativo, cujos resultados práticos surgiram a partir das diversas vivências e técnicas utilizadas nas oficinas. Embora o projeto exista desde 2007, para esta pesquisa, foram considerados as três últimas etapas (2014 a 2017), nos quais foram realizadas trezentas oficinas práticas intercaladas em diversas técnicas da cerâmica, trabalhos onde práxis e logos estiveram empiricamente ligados um ao outro. As aulas ficaram divididas em turmas matutinas e vespertinas para atender ao contra turno escolar, com crianças de sete a onze anos e adolescentes a partir dos doze aos dezessete anos e onze meses, bem como alguns adultos de ambos os sexos (alunos que completaram a maioridade e quiseram continuar no projeto). O dia mais importante na realização das oficinas, apesar da resistência inicial por parte dos coordenadores da instituição, foi o sábado. Os jovens 21 queriam estar presentes em ambos os períodos para produzir mais peças. Portanto, em média, cada jovem participava de três oficinas na semana. Esta pesquisa está dividida em três capítulos: 1 – Projetos sociais em comunidades na abordagem de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social; 2 – O projeto social Ser Âmica; 3 – A execução do projeto Ser Âmica – práxis e logos. No primeiro capítulo, será possível entender a trajetória e o surgimento das ONGs no Brasil e a importância dos trabalhos sociais realizados por elas. Foi através das Organizações Não Governamentais que se iniciou o trabalho de movimentos sociais e lutas de classes que começaram a dar voz aos menos favorecidos. A ditadura militar excluiu muita gente, jogando- os à margem da sociedade e, através do trabalho efetivo das associações, posteriormente denominadas ONGs e atualmente conhecidas como Terceiro Setor, é que as comunidades puderam seguir com novos rumos no mundo globalizado no que tange ao trabalho humano. A formação e o desenvolvimento das ONGs têm ganhado importância cada vez maior nos países de primeiro mundo como EUA, Itália e Alemanha, mas também em países de terceiro mundo ou emergentes, como México, Argentina, Paraguai e Brasil. As ONGs tiveram apoio institucional de recursos advindos de fora do Brasil (EUA e Europa). Após o período do milagre econômico, no início da década de 1970 – cujo milagre, na verdade, foi sobreviver, uma vez que o cenário econômico era ruim e as perseguições políticas afetavam a vida de todos na época –, as ONGs entenderam o seu papel e força na sociedade, bem como nas comunidades. E, exatamente nesta contramão que caminhava o país, as ONGs cumpriram o papel de rumar para a sua sustentabilidade, assumindo inclusive o papel do Estado em muitos momentos. O primeiro capítulo terá como exemplo o trabalho de duas ONGs: as Aldeias Infantis SOS – maior ONG do Brasil, cuja atuação hoje se estende por 12 estados no país – e o Instituto Movere de Ações Comunitárias, localizado no bairro de Artur Alvim, zona leste da capital paulista, onde o projeto Ser Âmica está sediado desde 2011. Atualmente, as ONGs, associações e institutos, que estão se auto nominando Terceiro Setor, buscam cada vez mais a sustentabilidade através de projetos que possam ser fomentados por meio de recursos não advindos do Estado. Este por sua vez, deixou de olhar ao micro e concentra-se no macro. Com efeito, há cada vez mais a transferência das responsabilidades de atuação para as ONGs, a fim de solucionar os problemas nas comunidades ligados a setores essenciais tais como saúde, esporte, educação e cultura. 22 Os autores mais relevantes que trouxeram luz a este capítulo foram: Nadine Habert, Maria da Glória Gohn, Thereza Montenegro, Marly Cavalcanti, Hermann Gmeiner, fundador da Aldeias Infantis, e Vera Lúcia Perino Barbosa, coordenadora do Instituto Movere. O primeiro capítulo se encerra com a abordagem sobre as leis de incentivos, mais especificamente o ProAC – Programa de Ação Cultural, pelo qual o projeto Ser Âmica foi contemplado em suas três etapas para a realização desta pesquisa. Sobre este tema, será mostrado, em anexo, o passo a passo de como deve ser feita a inscrição de proponente e projeto, incluindo toda a parte documental e estrutural. Há pouca bibliografia sobre o assunto referente às leis de incentivos no Brasil e a maioria das consultas foram realizadas através das legislações vigentes, que determinam a aplicação de cada lei específica e sua atuação, seja com o terceiro setor, pessoa jurídica ou pessoa física. Nas três esferas: federal, estadual ou municipal, embora projetos esportivos, sociais ou de saúde só possam ser propostos por pessoas jurídicas sem fins lucrativos, é possível propor projetos culturais como pessoa física, como será mostrado no capítulo em questão. Pensar em um projeto, idealizá-lo ou sonhá-lo e escrevê-lo não é custoso. Se assim o fosse, este trabalho não estaria aqui para ser lido. Mas as ações concretas que cada um pode fazer para proporcionar a mudança a partir de si, estas sim, são complicadas. Fáceis de serem criticadas, mas difíceis de serem resolvidas. Esta dissertação, além de mostrar o caminho percorrido pelo Ser Âmica, propõe o desafio de que cada sonho pensado em prol da sociedade seja viabilizado, buscando, à maneira de Robin Hoods contemporâneos, recursos com o Estado para fazer aquilo que o Estado deveria fazer, mas não faz. O segundo capítulo trata diretamente do projeto Ser Âmica, desde a sua formação inicial ao formato que segue hoje. O escopo do atendimento sempre foi o de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Inicialmente, o projeto abordava somente a questão estética do barro, focada na produção para venda das peças. Após perceber as melhorias comportamentais, foi necessário recorrer a outros recursos para dar mais subsídios ao trabalho e, desde 2010, a Arteterapia foi inclusa como ferramenta nas oficinas de cerâmica. Neste capítulo, foi abordada também a importância da formação educacional em arte para o desenvolvimento social de crianças e adolescentes em vulnerabilidade. Pierre Bourdieu, Lalada Dalglish, Marie-Christine Josso, Gilberto Dimenstein e Ana Mae Barbosa, Martin Buber. Beatriz Gutierra, Leila Maria Salles, Isabel Frontana, algumas das referências consistentes utilizadas, ampliaram o debate sobre a importância da cultura, do 23 trabalho em comunidades, da construção de si e de como o ensino não formal pode contribuir positivamente para a melhoria do ensino formal. Para fechar o segundo capítulo, uma importante entrevista com Francisco Brennand e um depoimento emocionante sobre o trabalho com a Dra. Nise da Silveira e as analogias feitas ao Projeto Ser Âmica. O capítulo encerra-se com grandes nomes da Arteterapia, como Patrícia Pinna Bernardo, Contardo Calligaris e Viktor Salis; Fabio de Melo, Gabriel Chalita, Angela Philippini, Claudia Colagrande e Liomar Andradeque também deram grande contribuição ao trabalho in loco para a realização das oficinas arteterapêuticas. No terceiro capítulo serão descritas e ilustradas as vivências arteterapêuticas e tudo o que as práxis dos processos refletiram na vida dos jovens. Será possível verificar através dos depoimentos de alunos, ex-alunos e monitores os resultados palpáveis que mostraram a importância e o impacto de projetos socioculturais ao serem inseridos em comunidades com o objetivo de dirimir a violência. Tais projetos poderão propiciar experiências sensíveis sob os territórios infinitos de cada ser humano. A sociedade precisa acordar da letargia de cobrar do governo ações que podem ser realizadas por cada indivíduo, quando este se propuser pensar em como poderá mudar a realidade ao seu entorno. Como será visto em Dewey, a experiência é única e só pode ser vivenciada por cada um. Portanto, fazer o bem só dará retorno positivo a quem o faz. Como? Através de ações simples, pautadas na ética, com valores que as gerações contemporâneas têm perdido, tornando-se cada vez mais a geração da intolerância e do ódio. A sociedade atual não tem tolerância ao que é incomum. O novo é tratado com desprezo. Bullying nas escolas e nos ambientes de trabalho são recorrentes e infelizmente, pouco punidos ou repreendidos. Embora plural, o Brasil está longe de respeitar as diferentes raças, crenças e etnias que abriga em sua nação. Infelizmente, além de questões políticas que atrasam os países de terceiro mundo, o preconceito atrasa as pessoas que neles vivem e o Brasil tem disparidades ímpares neste quesito. Por isso a importância de tentar tratar estes valores distorcidos através de formas de educação, sejam elas formais ou não, que possam introjetar valores para a construção de uma sociedade e de uma nação mais igualitária, democrática e consciente. O desenvolvimento de um país, depende do desenvolvimento de cada ser humano que nele habita. O bloqueio advindo através da violência reprime o encontro natural dos sujeitos entre si e tem a força de sufocar as possibilidades humanas, o que tem formado cada vez mais uma 24 sociedade que é controlada pela desconfiança, pelo medo, pela falta de generosidade, pela intolerância, pelo preconceito, pelo racismo, pela falta de diálogo e tantas outras situações. Por isso, as vivências realizadas dentro do projeto Ser Âmica buscaram trabalhar com valores que aproximassem o ser humano de sua mais importante missão: valorizar a sua própria vida e a do outro, pautado em sentimentos unos que integrassem consciente e inconsciente através das oficinas arteterapêuticas. Autores como Claudia Colagrande, Patricia Pinna Bernardo, Pierre Bourdieu, Sara Païn e Gladys Jarreau, Paulo Saldiva, Leonardo Boff, Sumaya Mattar, Gaston Bachelard, Lalada Dalglish, Gloria Maria Garcia Pereira, Cecília Minayo, Luiz Paulo Grinberg, dentre outros, ajudaram a ilustrar pontos importantes para a questão da arte e Arteterapia dentro do recorte da cerâmica, utilizando-a como suporte para a realização de parte das oficinas nesta pesquisa. Foram escolhidas algumas das vivências realizadas com os jovens para ilustrar o poder de transformação através da arte e dos elementos contidos em cada atividade, bem como o resultado das propostas trazidas ao ateliê, com o intuito de levar aos jovens, novas possibilidades para despertar a consciência e trabalhar suas histórias de vida de forma lúdica e com a magia da transformação, simbolizada pelos elementos contidos no trabalho com a cerâmica. Além do trabalho para buscar a história de vida dos jovens atendidos, foram realizadas atividades ligadas à venda das peças produzidas pelos adolescentes. Dentro deste escopo, foram concretizadas atividades para que os jovens entendessem que o valor revertido com a venda não era apenas o dinheiro pelo dinheiro, mas que estava atrelado aos sonhos e vocações de cada um. Práxis e logos se complementaram e trouxeram luz à vida de tantos jovens desacreditados pela sociedade. Será possível observar neste capítulo o retorno das práxis através dos depoimentos dados por alguns dos jovens atendidos no projeto, que iluminaram as atividades através de relatos humildes e sinceros e carregados de sentimentos e emoções. Compreende-se que alguns fatores podem ajudar os jovens a se reconhecerem como cidadãos e, assim, reconhecerem a sua capacidade de pertencimento no mundo, o que proporcionará o fortalecimento no resgate da autoestima e do autoconhecimento, para levar naturalmente a uma contribuição positiva nas suas escolhas futuras. O Ser Âmica buscou reafirmar os benefícios da atuação de projetos culturais em que a cerâmica foi utilizada como instrumento da arte e da Arteterapia, com a influência da modelagem do barro no processo socioeducacional. 25 O nome do projeto sintetiza exatamente isso: Ser Âmica. Através da cerâmica, cada adolescente pode remodelar-se como um novo “Ser” e/ou moldar-se em bases legitimadas e exitosas historicamente. Com isso, objetivou-se o comprometimento de transformar arte em responsabilidade social, visando o desenvolvimento sócio-histórico-cultural dos adolescentes e da comunidade à qual estão inseridos e galgando transpor os umbrais do gueto. 26 CAPÍTULO I PROJETOS SOCIAIS EM COMUNIDADES NA ABORDAGEM DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL Figura 1 – Nayara Prado e Kauanne Silva – jovens atendidas pela ONG Instituto Movere – São Paulo, 2017. 27 Neste capítulo será traçado um histórico sobre a formação das ONGs no Brasil e como elas se consolidaram e seguiram para suas próprias sustentabilidades, cada vez mais independentes do Estado. Serão pontuadas em números as instituições ou fundações que atuam no Brasil e fazem importantes trabalhos, principalmente nas comunidades e periferias do país. Há pouca bibliografia sobre o assunto e muitos dados precisaram ser buscados nos sites ou plataformas do Governo Federal, em estudos publicados pela ONU – Organização das Nações Unidas, OMS – Organização Mundial de Saúde, Ministério da Educação ou Ministério da Saúde. Por isso é importante ampliar este debate e entender o surgimento das ONGS, suas consolidações e o termo recente do qual algumas já se utilizam para se definirem: Terceiro Setor. Será importante entender historicamente como estas instituições têm contribuído com o diálogo mais politizado e participativo junto aos processos de decisões sobre os diversos temas afeitos às responsabilidades do governo, onde a luta estará sempre na retórica pela redução das desigualdades sociais e sobre direitos que possam permear o interesse público, garantindo uma maior participação de cada cidadão. “Os estudos empíricos sobre as ONGs são importantes, mas não suficientes para o crescimento de um novo campo de conhecimento”. (ALBUQUERQUE, 2006, p. 17)4. 1. A importância de projetos sociais para novas perspectivas em comunidades Projetos sociais podem ser instrumentos facilitadores de transformação social ao proporcionar a possibilidade de mudanças em muitas comunidades. Grande parte destes, hoje, são absorvidos ou realizados por ONGs e partem de iniciativas particulares, cujo propósito é contribuir com a mudança e melhoria de vida das pessoas menos favorecidas. As iniciativas das ONGs interferem na parcela da sociedade dita carente e partem de uma ideia originada da necessidade de melhoria de vida dos brasileiros. As diferenças sociais nas quais a população brasileira vive, com altos índices de analfabetismo, extrema pobreza, predomínio da fome, violência e desemprego, realidade cada vez mais presente na vida dos brasileiros, sugerem que projetos sociais através das ONGs podem atuar positivamente e abranger diversos setores carentes em comunidades, por exemplo, para melhoria de vida de muitas pessoas. Tais projetos vêm, cada vez mais, assumindo um papel que deveria ser desempenhado pelo Estado a fim de 4 ALBUQUERQUE, A. C. C. Terceiro Setor: história e gestão de organizações. São Paulo: Summus, 2006. 28 tentar minimizar o problema que as comunidades nas periferias vivem, com realidade mais próxima de seu cotidiano, como pontua Montenegro (1994). Um dos motivos do crescente interesse das agências nas ONGs é que estas são vistas como a solução do problema da malversação das verbas do Estado. Este fato suscita uma ambiguidade? De um lado o incentivo à formação de ONGs promete trazer benefícios como uma alternativa para as políticas estatais; do outro também tem sido ressaltado que essa alternativa não pode ser entendida como se as ONGs fossem capazes de substituir o Estado, ou mesmo amenizar as desigualdades sociais. (MONTENEGRO, 1994, p. 28)5. A atuação das organizações para a realização de projetos sociais tem ampliado o debate sobre o papel do cidadão comum na mudança que se deseja promover em seu meio, sem depositar no Estado a total responsabilidade pelas melhorias esperadas e necessárias. A partir do micro, chega-se ao macro, e não o contrário, como Gohn (1999)6 demonstra. Hoje, são inúmeros os tipos de projetos que podem ser realizados com atendimento a públicos distintos, como crianças e adolescentes, adultos e idosos. Dentro dos escopos de cada projeto social é possível oferecer gratuitamente à população educação, formação artística, profissionalização, recreação, prevenção / tratamento e até recursos e encaminhamentos médicos para tratamentos de saúde. Figura 2 - Adolescentes da comunidade Artur Alvim visitam pela primeira vez um Museu - São Paulo, 2017. 5 MONTENEGRO, T. O que é ONG. São Paulo: Brasiliense, 1994. 6 GOHN, M. G. Educação não formal e cultura política. São Paulo: Cortez, 1999. 29 Figura 3 - Adolescentes da comunidade Artur Alvim pela primeira vez no teatro para assistir à peça O Reizinho Mandão – São Paulo, 2015. Nem sempre é possível concretizar a ideia de realizar um projeto social, pois muitas ONGs ou instituições têm recursos precários. Portanto, não basta querer fazer o bem, mas conseguir, por intermédio das parcerias público privadas, efetivar ações que, infelizmente, o poder público no Brasil não consegue absorver e resolver. As leis de incentivos através do fomento por meio de impostos tornaram-se uma alternativa viável à muitas instituições, fundações e associações que necessitam manter suas atividades com qualidade e dignidade a quem recebe o atendimento por elas prestado. Os recursos para apoiar projetos habilitados através de determinada lei não oneram o caixa das empresas, pois são advindos de impostos, que já são devidos ao governo e, em países de terceiro mundo como o Brasil, infelizmente não se vê tais recursos empregados em segurança pública, saneamento, educação ou saúde. Se há um momento no qual o imposto é devidamente fiscalizado, é na utilização de um projeto fomentado através das leis de incentivos. Este assunto será mais aprofundado em um dos próximos capítulos. O trabalho dentro das ONGs precisa ser alimentado por vontade de fazer e buscar o bem comum, resultado da dedicação de quem se propõe a atender pessoas menos favorecidas. Trata- se de aprender a se reinventar para ajudar novas realidades a se modificarem ou a serem 30 recriadas. É uma base que precisa ser alimentada por várias fontes para que os resultados não façam nenhum idealizador de projeto desistir de seu propósito no meio do caminho. Buber, (2001) corrobora a ideia anteriormente expressa ao trazer uma reflexão muito importante: ter a consciência de que para formar uma terceira ontologia, o Nós, é necessário haver o eu e tu. É como se houvesse uma fundição de identidades através do amor pela causa, que é maior. Cada um, com suas particularidades e peculiaridades, juntos, se transformam em uma terceira pessoa. O encontro do eu com o tu cria uma realidade outra que pode ser entendida, a priori, como simpatia. Depois transforma-se em paixão e aprimora-se com o amor. São estas realidades que as causas de quem atua nas comunidades propulsionam e fazem seus atores estarem grávidos de esperança para lutar por um dia melhor, um amanhã com mais perspectiva, por um país que urge por mudanças. Entretanto, tal transformação não pode jamais ser pensada em âmbito macro, e sim no micro, a partir do próximo passo que cada um pode dar. O nosso conhecimento a respeito da dualidade silencia diante do paradoxo do mistério originário. São três as esferas nas quais o mundo da relação se constrói. A primeira é a vida com a natureza onde a relação permanece no limiar da linguagem. A segunda esfera é a vida com os homens onde a relação toma forma de linguagem. A terceira é a vida com os seres espirituais onde a relação embora sem linguagem gera a linguagem. Em cada uma destas esferas, em cada ato de relação, através de tudo o que se nos torna presentes [...]. Porém, quando o encontro perfeito deve realizar-se, estas três portas se reúnem em um portal que é o da vida atual, e então não sabes mais por qual delas entraste. (BUBER, 2001, p. 103-104)7. Figura 4 - Mãos dos alunos do Projeto Ser Âmica simbolizam os nossos Nós: encontro do Eu e Tu. São Paulo, 2017. 7 BUBER, M. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuber. São Paulo, 2001. 31 Através de ações constatadas com a realização de projetos sociais no Brasil, muitas realidades tristes ou infelizes já puderam ser revertidas em belas histórias de vida e exemplos a serem seguidos. A desigualdade está presente e não parece haver perspectivas de mudança para minimizar os contrates sociais. Então, como reverter tantas injustiças? Focar em projetos com perfis de sustentabilidade, empreendedorismo social e geração de renda podem ser boas estratégias para obter sucesso nos resultados pretendidos. Os projetos sociais podem, a priori, mudar a realidade de poucas pessoas. Mas certamente eles são importantes ferramentas para a construção de um Brasil melhor, no qual possamos acreditar e pelo qual devemos lutar. A formação das ONGs no Brasil e sua migração ao Terceiro Setor Figura 5 – Mãos dos alunos do Projeto Ser Âmica unidas para representar a coletividade e a solidariedade do trabalho das ONGs no Brasil, São Paulo, 2017. O termo ONG – Organização Não Governamental, segundo Montenegro (1994), surgiu em 1945, documentado pela ONU, e é definido como uma entidade que não foi estruturada através de acordos governamentais, ou seja, não depende economicamente do Estado. Segundo a autora, a amplitude que engloba o contexto pode gerar confusão em virtude de se tratar de um termo abrangente ao qual não cabe apenas uma definição, uma vez que as tarefas atribuídas às ONGs são diversificadas, podendo englobar fundações privadas e associações civis que tenham objetivos comuns e não tenham fins lucrativos. Para falar sobre a conceituação destas organizações, partirei de uma definição: ONGs são um tipo particular de organizações que não dependem nem econômica nem 32 institucionalmente do Estado, que se dedicam a tarefas de promoção social, educação, comunicação e investigação/experimentação, sem fins de lucro, e cujo objetivo é a melhoria da qualidade de vida dos setores mais oprimidos. (MONTENEGRO, 1994, p. 10 - 11). Estudos realizados pelo IBASE demonstram que na década de 1950 surgem os primeiros registros das ONGs no Brasil. Na década de 60, vinculam-se com a Igreja dentro de um trabalho educacional de base e, após os anos 70 e 80, começam a expandir-se, embora as lutas sociais datem bem antes disto – a partir do fim da escravidão, marcada pelo início do capitalismo. Segundo os autores, a questão social é um processo de desenvolvimento formado pela classe operária que exige reconhecimento do Estado e da sociedade, a partir do que se passa a ingressar no cenário político. O reconhecimento exigido manifesta-se em contradições de proletários e burgueses que não aceitam simplesmente a caridade através do cenário repressor. Cabe aqui um adendo de Habert (1992), que corrobora Gohn (1999), intensificando o diálogo ao dizer que o início da década de 1970 foi o período mais repressor que vivenciou o país, reflexo da ditadura à época do golpe de 1964, consolidada pelo governo do general Médici. No decorrer da segunda metade da década de 70, foram se multiplicando atos de contestação e de protesto, passeatas e manifestações amplas de oposição; as ruas foram tomadas pelos movimentos estudantil, popular, operário, de mulheres, alargando o espaço da abertura e revelando que havia não só uma crescente opinião pública contrária ao regime em geral, como também uma diversidade de interesses e reinvindicações específicas, de forma de expressão e de organização dos vários setores da sociedade. (HABERT, 1992, p. 51)8. Não obstante ao que se vê hoje, os movimentos pela luta de igualdade marcaram época e imprimiram na sociedade o signo que iria perdurar por gerações, sem grandes mudanças apesar das décadas passadas e históricos similares. A desigualdade é uma realidade que precisa minimizar-se drasticamente para que se crie uma sociedade mais justa e democrática às gerações futuras. A conta jamais será fechada tal qual fosse uma fórmula matemática. Neste sentido, cabe a cada um lutar pela defesa de direitos e não só apresentar deveres ao estado. Naqueles anos, multiplicaram-se movimentos populares que nasceram e se desenvolveram a partir dos bairros da periferia das grandes cidades [...] Estes movimentos refletiam não só os efeitos do crescimento caótico das cidades, o sufocamento da participação e do debate político e a piora das condições de vida e de trabalho da população, como também expressaram profundas transformações nos seus valores, no seu comportamento, nas formas criativas de se organizarem, de agirem coletivamente e de forma independente. O mundo do bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam, para ser o lugar onde elas também viviam, se encontravam, conversam, desenvolviam relações de união e solidariedade, e onde 8 HABERT, N. A década de 70 – Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1992. 33 acumulavam experiências de vivência comunitária e de resistência coletiva. (HABERT, 1992, p. 55). A ditadura militar marca um período para defesa dos direitos humanos, pois a censura, tortura e perseguição silenciaram os direitos humanos e movimentos sociais, de maneira que a luta pela democracia crescia onde cresciam simultaneamente os movimentos das ONGs, que cunham parte da história do Brasil sobre a reinvindicação pela redemocratização, como pontua Gohn (1999). No Brasil, nos anos 70-80, as ONGs cidadãs e militantes estiveram por detrás da maioria dos movimentos sociais populares urbanos que delinearam um cenário de participação na sociedade civil, trazendo para a cena pública novos personagens, contribuindo decisivamente para a queda do regime militar e para a transição democrática no país. As ONGs contribuíram para a reconstrução do conceito de “sociedade civil”, termo originário do liberalismo, que adquire novos significados, menos centrado na questão do indivíduo e mais direcionado para os direitos de grupos. (GOHN, 1999, p. 76). O IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, publicou em 2002 um importante estudo sobre a quantidade de entidades, fundações e associações sem fins lucrativos e o número, que atualmente é bem maior, à época contabilizou 276 mil ONGs, sendo que quase 50% destas entidades estavam estabelecidas na região Sudoeste, com destaque aos estados de São Paulo e Minas Gerais. Pires (2011)9, em artigo publicado ao Mistério da Justiça, contabilizou atualmente mais de 300 mil ONGs / Terceiro setor no Brasil. No Brasil, em tese, convivem duas realidades distintas no que se convencionou designar por terceiro setor: de um lado a filantropia caritativa e de outro uma atuação mais politizada e transformadora. A primeira marcada pela tradição das Santas Casas de Caridade, orfanatos e lares de idosos e a segunda de atuação complementar (e, até mesmo, substitutiva) ao Estado, representada por entidades de garantia de direitos, capacitação e educação não-formal, ecológicas, de assistência social, entre outras. (PIRES, 2011, p. 2). Ainda segundo o IPEA, 62% das ONGs surgiram nos anos 90. Os estudos revelam que as entidades cresceram 175% entre os anos de 1996 e 2002, ou seja, de 105 para 276 mil. Estes números podem mostrar uma questão importante: as ONGs estariam tomando para si responsabilidades que seriam do Estado. Muitas entidades atuam para realizar o que o poder público não conseguiria suprir. As entidades com atendimento a crianças e adolescentes são as 9 PIRES, D. U. B. S. O cadastro nacional de entidades do ministério da justiça, uma ferramenta a serviço do público. Ministério da Justiça: Brasília, 2011. 34 mais numerosas. Apesar disso, 77% destas não possui nenhum empregado, ou seja, são de pequeno porte e contam com o trabalho de voluntários, que podem chegar ao número de 20 milhões. Mas as ONGs sempre enfrentaram grandes problemas para manter suas atividades, de modo que muitas delas fecharam as suas portas, pondo fim ao trabalho social realizado, abdicado pela atuação do Estado. Nos anos 90, houve tanto crescimento das entidades como rupturas drásticas, como explica Gohn (1999). Nos anos 90, o cenário das ONGs cidadãs latino-americanas se altera completamente. As atenções das agências patrocinadoras de fundos de apoio financeiro e de pessoal para o trabalho de base, articuladas às Igrejas, voltaram-se para os processos de redemocratização do Leste europeu. Os movimentos e as ONGs latinas passaram a viver a mais grave crise econômico-financeira desde que foram criadas. A mudança na forma de financiamento alterou a atuação das ONGs. A escassez de recursos das agências de cooperação internacional e a mudança interna em seus critérios e diretrizes – de assessoria técnica para geradora de fundos financeiros – criou um cenário que levou à necessidade de elas gerarem recursos próprios e lutarem pelo acesso aos fundos públicos [...]. Passaram a buscar a autossuficiência financeira. Tiveram que encontrar/construir ou incrementar caminhos no setor de produção. A economia informal – então floresce e estimulada pelo novo modelo da globalização – passou a ser uma das principais saídas, pois a crise gerada pelo desemprego crescente transferiu para a economia informal o grande peso de demandas antes localizado no setor formal. (GOHN, 1999, p. 76 - 77). É importante observar, a partir do elucidado por Ghon (1999), que, apesar dos modelos de economia encontrados como solução pelas ONGs, o estudo do IPEA revelou ainda que a maioria das fundações privadas e associações sem fins lucrativos são de tamanho muito pequeno, já que 77% delas não possui nenhum empregado. Enquanto organizações contam com a ajuda de milhões de voluntários, apenas 1% destas instituições possuem empregados e o número de assalariados chega a apenas um milhão e meio. Em virtude da crise, foi necessário que as ONGs se especializassem nas gestões de projetos sociais, o que exigiu que profissionais especializados em elaboração ocupassem lugar da militância como maior causa a ser conquistada, segundo Gohn (1999). Junto com a crise das ONGs cidadãs militantes dos anos 80, emergiram nos anos 90, no cenário nacional, outros tipos de entidades, próximas dos modelo norte-americano non-profits, articuladas às políticas sociais neoliberais, dentro do espírito da filantropia empresarial, atuando em problemas cruciais da realidade nacional, como as crianças em situações de risco, alfabetização de jovens e adultos etc. Essas entidades não se colocaram contra o Estado, como as da fase anterior, originárias dos movimentos e mobilizações populares. Elas querem e buscam parceria com o Estado. As novas entidades autodenominam-se como terceiro setor, pois procura definir-se pelo que são e não pelo que não são. (GOHN, 1999, p. 78). 35 Uma das características que o terceiro setor criou hoje é a construção de uma imagem para se firmar positivamente a fim de seguir caminhos pautados em sua sustentabilidade, diferente do que era visto no cenário das ONGs dos anos 80. Muitas entidades hoje se expandem para um desenvolvimento como empresas cidadãs, pois atuam diretamente nas questões sociais para contribuir e minimizar problemas, como salienta Montenegro (1994). Desse modo, ser não-governamental acaba significando tão-somente não pertencer ao Estado. Isto não quer dizer, obrigatoriamente, que façam sistematicamente oposição ao Estado. Ao contrário, muitas ONGs, em países maio ou menos democráticos, assumem objetivos de implantação de políticas públicas em parceria com o Estado. (MONTENEGRO, 1994, p. 11). É importante destacar que o final do milênio marcou um fenômeno mundial com o crescimento das ONGs e a migração de muitas delas para o terceiro setor, que hoje se caracteriza como um novo setor econômico ao gerar empregos e propor resultados palpáveis e positivos colhidos com as mudanças econômicas, ambientais, sociais, educacionais, de direito civil, na saúde, violência, setores que o Estado não alcança ou com os quais é negligente. Gohn (1999) destaca a atuação das ONGs junto aos menos favorecidos, formados hoje por uma população de rua como crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, índios, idosos, mulheres, negros, etc. [...] O fenômeno das ONGs nos anos 90 reafirma o poder das teses e discussões acerca da importância da sociedade civil atual [...] As ONGs estão mudando de nome para simplesmente terceiro setor. Para uns trata-se apenas de mais uma forma de exploração da força do trabalho, uma resposta das elites à organização e mobilização sindical e popular dos anos 80, bem como parte das estratégias neoliberais para desobrigar o Estado de atuar na área social [...] Para outros, o terceiro setor é algo realmente novo, pois o Estado não consegue mais penetrar nas microesferas da sociedade. Ele só saberia atuar no nível macro, e as políticas públicas necessitam de mediadores para serem efetivas. (GOHN, 1999, p. 82 - 83). Recentemente, o Brasil, um dos países conhecidos como mais corrupto do mundo ocidental, segundo BARBOSA (2018)10, se destacou também em relação a uma série de 10 BARBOSA, V. (21 de fev de 2018). https://exame.abril.com.br/mundo/os-20-paises-mais-corruptos-do- mundo-e-os-menos-desonestos/. Fonte: https://exame.abril.com.br/. 36 escândalos e denúncias que envolveram as ONGs e o repasse de recursos públicos à essas entidades. Houve uma comoção pública e muitas pessoas passaram a questionar o trabalho das ONGs, duvidando se a existência dessas fundações e associações seria realmente necessária. A seguir, listaremos exemplos quantitativos e qualitativos de projetos sociais realizados por ONGs que provam a importância de suas existências. Inclui-se aqui o projeto Ser Âmica, objeto desta pesquisa. Aldeias Infantis SOS – Fundação e história A maior ONG do país chama-se Aldeias Infantis SOS, localizada em diversas cidades brasileiras, incluindo São Paulo, capital, bem como em 12 estados e no Distrito Federal, embora sua origem não seja brasileira. Hoje, a ONG Aldeias Infantis SOS está sediada em 132 países. A organização surgiu no final da década de 40, na Áustria. Em 1949, com o término recente da II Guerra Mundial, o legado de danos irreversíveis, tanto materiais como emocionais, fazia-se sentir nos países envolvidos no conflito. Milhares de crianças perderam suas referências familiares, seus lares e a dignidade de suas vidas, expostas à falta de segurança que um lar pode trazer. Diante de um cenário de desolação, o fundador austríaco Hermann Gmeiner, aflito ao ver tanto desespero e tantas crianças órfãs à margem da sociedade, decidiu uni-las a mulheres viúvas para que aprendessem a cuidar umas das outras. As crianças teriam um novo lar e as mulheres aprenderiam a ser mães de filhos que não geraram biologicamente. Um aprenderia a amar através da dor do outro. Com auxílio dos sobreviventes, Gmeiner se propôs a construir uma aldeia que os abrigasse. Cada um ajudou com o que pôde e, assim, surgiu a primeira Aldeia Infantil SOS, localizada na cidade de Imst, próxima aos alpes austríacos. Ele chamou todas as pessoas que conhecia e disse: "Me dê um Chelim por mês, e eu construirei uma Aldeia para as crianças órfãs e abandonadas." (BRASIL, 2013, p. 9).11 11 BRASIL, A. I. S.O.S. 45 anos de Aldeias Infantis SOS no Brasil. São Paulo: Kanova Comunicação, 2013. 37 Figura 6 - Hermann Gmeiner em reunião com as colaboradoras, Áustria, 1949. A missão das Aldeias SOS é focada em apoiar crianças e famílias para que construam juntos o próprio futuro a partir do que é desenvolvido conjuntamente nas comunidades. Os números de atendimentos impressionam e dão exemplos a ONGs menores a seguir o seu trabalho, focado no objeto social que cada instituição é constituída. Em junho de 2007, 95 países já tinham programas para fortalecer famílias e comunidades: 39 em África, 17 na Ásia, 20 na Europa e 19 na América Latina, beneficiando um total de 97 mil pessoas. Mundialmente, mais de 5.000 mulheres trabalham como mãe sociais. Atualmente, mais de 73.000 crianças, adolescentes e jovens são acolhidos em todos os continentes. Cerca de 46.000 crianças, adolescentes e jovens das Aldeias Infantis SOS tornaram- se independentes até agora. (BRASIL, 2013, p. 9). Trata-se, portanto, de apoiar crianças, adolescentes e jovens que se encontram em condição de vulnerabilidade, impulsionando seu desenvolvimento e autonomia em um ambiente familiar e comunitário protetor. Dentro da visão da Aldeias, é preciso crescer inserido em uma família onde haja amor, respeito e segurança, ainda que esta família não seja a de sua origem biológica. Por isto, após 60 anos, a organização só cresce e tem grande reconhecimento da sociedade e do Estado. Para Brasil (2013), respeitar os princípios e valores que Gmeiner criou só consolida e solidifica o trabalho que tem preceitos assentes na pedra fundamental da instituição. Não é fácil manter uma associação, mas a responsabilidade, coragem, compromisso e confiança com que o trabalho é realizado no Brasil permitem que 12 estados e o Distrito Federal 38 possam dar assistência a mais de 5 mil crianças, adolescentes e jovens através dos seus 24 programas. A seguir, uma relação das cidades onde as Aldeias Infantis SOS estão sediadas no Brasil, juntamente com o seu ano de fundação: • RS: Porto Alegre (1967) e Santa Maria (1980); • DF: Brasília (1968); • PR: Goioerê (1978) e Foz do Iguaçu (2012); • RN: Natal (2010) e Caicó (1979); • AM: Manaus (1993); • RJ: Jacarepaguá (1980) e RJ: Pedra Bonita (1995); • SP: Poá (1968), São Bernardo do Campo (1971), Rio Bonito (1980), São Paulo (2001), Campinas (2009); • BA: Salvador (1980); Lauro de Freitas (1999); • MG: Juiz de Fora (1984); • PB: João Pessoa (1987); • PE: Recife (2007) e Igarassu (2007); • SE: Aracaju (2012). Figura 7 – Mapa com os locais de atendimento da Aldeias Infantis SOS no Brasil, 2013. 39 Hermann Gmeiner fundou a primeira Aldeias SOS na cidade de Porto Alegre, o que inauguraria no Brasil um importante trabalho a partir de 02 de abril de 1967. Desde o seu início, a ONG manteve-se fiel aos seus princípios de garantir o direto social, humanitário e familiar a milhares de atendidos ao atuar no desenvolvimento sociocomunitário. As práticas do Programa Aldeias Infantis SOS promovem os direitos das crianças, jovens e adolescentes numa perspectiva pautada no processo reflexivo e de permanente aprendizado para a transformação do mundo. O valor fundamental para essa transformação é a solidariedade radical, que para o educador Paulo Freire é o compromisso com o outro como ato de amor, não apenas por um dos que sofrem, mas pelo seu conjunto, exigindo ações de transformação não da condição de um ou dois, mas dos contextos geradores de situações indignas. O Programa Aldeias Infantis SOS tem como uma de suas diretrizes a percepção de que tanto sujeitos, quanto grupos, assim como os espaços sociais onde estão inseridos, representam um lugar de oportunidades. No circuito das relações que envolvem família, comunidade e sociedade, são percebidos enquanto sujeitos de desejos, necessidades e também de afetividade, direitos, sonhos, talentos e saberes. O cuidado é um paradigma porque estabelece uma matriz geradora de percepções, tomando como modelo a preservação da vida e a promoção da dignidade, em contraponto com práticas que contribuem para desumanização. (BRASIL, 2013, p. 15). Para a realização deste trabalho consistente, as Aldeias Infantis viabilizaram diversas fontes para entrada de seus recursos. Algumas delas são as doações diretas de pessoas físicas, que podem contribuir mensalmente com pequenas quantidades, e o apoio através das leis de incentivos fiscais, que permitem às empresas fazer doação através do abatimento de seus impostos. Além disso, como atua em grande parte do Brasil, a iniciativa desenvolveu parcerias com o poder público através de projetos vinculados aos fundos municipais ou convênios diretos. Figura 8 – Crianças atendidas pelas Aldeias Infantis, 2010. 40 A Federação responsável por auditorias e fiscalização de todas as Aldeias SOS está sediada em Innsbruck, na Áustria, e é nomeada SOS Kinderdorf International. Mesmo com todos os escândalos envolvendo ONGs no Brasil, a Aldeias Infantis SOS nunca teve problemas ou questionamentos sobre a gestão de sua missão e dos recursos por ela administrados. Instituto Movere de Ações Comunitárias – Trajetória e reconhecimentos O Instituto Movere de Ações Comunitárias, localizado em Artur Alvim, zona leste da capital paulista, é uma organização não governamental e foi fundado em 2004, com uma proposta diferenciada. Hoje, é referência dentro e fora do Brasil, por atender gratuitamente crianças e adolescentes de baixa renda com histórico de sobrepeso ou obesidade, sendo o suporte estendido às famílias, com estudos científicos inovadores ao longo de 13 anos nas técnicas de prevenção dos problemas acarretados pelo excesso de peso e sedentarismo bem como tratamento de hábitos prejudiciais, proporcionando uma vida mais ativa e saudável aos atendidos. Tendo sido selecionado entre os dez melhores projetos brasileiros, pela Pepsico do Brasil, para compor o Programa Crescer, o Instituto Movere coleciona alguns prêmios que o tornam referência para lidar com os problemas ocasionados pela obesidade e sobrepeso ao público pediátrico. Um dos prêmios conquistados foi da Brazil Foudation, além de ter ficado entre os 3 melhores projetos do Brasil e América Latina em ranking elaborado pela ILSI, o que lhe permitiu conhecer o CDC (Centro de Doenças do Estados Unidos), em Atlanta, para apresentação da metodologia utilizada no projeto. Com apenas um ano de atuação, o projeto já ganhou expressiva projeção junto às mídias impressas e eletrônicas. A exemplo, foram divulgadas diversas matérias em jornais de grande circulação ou alcance de mídia, como Folha de São Paulo, Diário de São Paulo, Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, SPTV 2ª Edição, Jornal da Band, Jornal Fala Brasil, dentre alguns jornais internacionais impressos e, recentemente, compôs uma matéria da BBC que em breve será divulgada ao mundo, o que dará ao Instituto Movere uma projeção maior e, certamente, favorecerá e ampliará ações e atendimentos futuros. Como se trata de uma organização sem fins lucrativos, é de extrema e fundamental importância estabelecer parcerias externas para conseguir manter, de forma gratuita e com qualidade, os atendimentos. Algumas destas parcerias são nomes conceituados como as Universidades UNESP, USP e UNIFESP, bem como a University Of California, Berkeley - USA. Estas referências possibilitaram ao Instituto Movere a participação em congressos 41 nacionais e internacionais e a realização de trabalhos de pesquisa de mestrado e doutorado da coordenadora e presidente, Vera Lucia Perino Barbosa. Quando uma instituição tem à frente do trabalho pessoas sérias e comprometidas com os objetivos de atender e realizar o que propôs em seu objeto social, não há possibilidade de desvios de recursos ou mal-uso das verbas advindas de parcerias de empresas, Estado ou doações de pessoas físicas. Neste quesito, o Instituto Movere é exemplo, pois desde o início de suas atividades, coleciona prêmios por mérito e reconhecimento através das ações concretizadas. Vera Lucia Perino elencou em entrevista alguns dos prêmios recebidos pela instituição ao longo dos 13 anos de sua constituição. A partir de 2006 o projeto começou a ser replicado em parceria com a escola pública. As ações que atenderam 1.000 crianças contaram com a realização de exames de colesterol, glicemia e avaliação da composição corporal para diagnóstico nutricional. Esta iniciativa classificou o projeto com status de Tecnologia Social, concedido pela Pepsico Crescer no final de 2006. Em novembro 2007 a editora Abril entrega ao projeto do Instituto Movere o Prêmio Saúde na categoria Saúde e Obesidade. No mesmo ano a Câmara Municipal de São Paulo confere ao Movere Menção Honrosa de Reconhecimento Público. Em 2008 lança a Campanha contra a Obesidade Infantil que teve publicação em revistas científicas e grande repercussão na mídia. Em 2011 o Instituto Movere apresentou na França o seu projeto, no evento Changemakers Week no painel “Sustainable, affordable and health food all: an illusion?”, onde reuniu mais de mil empreendedores sociais. A Rede Ashoka é uma associação global de empreendedores (as) sociais, em reconhecimento a sua visão, seu compromisso e suas soluções inovadoras a alguns dos maiores desafios da sociedade. Em 2012 ficou entre as 10 organizações selecionadas para participar do Projeto Dom do Grupo Fleury e 2012, e foi a única ONG escolhida pela Artemisia para participar de seu programa de Aceleradora de Impacto. Em 2014 fechou parceria com a Nutri Ventures, primeira marca de entretenimento infantil que promove exclusivamente hábitos alimentares saudáveis e produtora da série animada Nutri Ventures – Em Busca dos Sete Reinos. Em 2016 o nome da presidente foi selecionado dentro de uma pré-seleção que incluiu Fellows do mundo inteiro, para concorrer ao prêmio da Bayer Cares Foundation pelo trabalho relevante que o Instituto Movere vem desenvolvendo durante estes anos em saúde e nutrição. (BARBOSA, 2017)12. Um dos grandes destaques que Barbosa (2017) pontua é a atuação do Instituto Movere por meio de advocacy - que são estratégias e planejamentos para influenciar políticas públicas e suas atuações e execuções constituídas no trabalho que mobiliza redes, mídias e outros espaços ou equipamentos, públicos ou privados, para atingir as áreas sociais, culturais ou ambientais. Em treze anos de constituição, o Instituto Movere já atendeu mais de 2.500 crianças e adolescentes diretamente e, indiretamente, um número aproximado de 10.000 pessoas. Também 12 BARBOSA, V. P. Instituto Movere. Dados fornecidos em entrevista concedida a Elainy Mota Pereira em 11 de outubro de 2017. 42 foi feito um trabalho de capacitação de 1800 profissionais da área de saúde e afins, que hoje atendem às demandas em suas comunidades, impactando um número tão expressivo de crianças e adolescentes que é praticamente possível ter acesso às cifras precisas. Os efeitos medidos através das ações do Instituto Movere são avaliados por meio dos tratamentos, da capacitação e da prevenção. Os tratamentos repercutem socialmente na comunidade, pois através deles as crianças e adolescentes aprendem junto às famílias a como adotar um estilo de vida mais saudável por meio das práticas de educação nutricional e da cozinha experimental, onde é necessário reaprender a se planejar nas compras de maneira consciente e moderada, desenvolvendo, inclusive, maior consciência sobre o desperdício de alimentos, que no Brasil chega à impressionante cifra de 39 mil toneladas, ou seja, 20% da comida produzida no país vai para o lixo diariamente, segundo a OMS. Esse desperdício diário alimentaria nada menos que 19 milhões de pessoas. Figura 9 – Crianças e adolescentes no projeto Brincando na Cozinha do Instituto Movere aprendem a cozinhar de forma saudável, São Paulo, 2016. 43 Figura 10 – Crianças e adolescentes no projeto Brincando na Cozinha do Instituto Movere aprendem a cozinhar de forma saudável, São Paulo 2014. Os exercícios físicos são importantes aliados no trabalho do Movere. São desenvolvidos exercícios aeróbicos e jogos a fim de proporcionar a liberação da endorfina, que muitas vezes, no caso da obesidade, é suprida no consumo excessivo de alimentos e, principalmente, doces. O Movere realiza ainda um importante trabalho de acompanhamento psicológico. Os atendimentos são tanto individualizados como em grupos. O cerne do nosso programa consiste em, a partir do processo educacional, descortinar possibilidades que venham a gerar escolhas individuais e conscientes, pois acreditamos que só assim ela passa a se preocupar com o próximo e com o ambiente onde ela vive. Além disso, são oferecidas também no projeto, teatro, artesanato e oficina de cerâmica. Desta forma o Instituto se transforma em referência para a comunidade atendida. (BARBOSA, 2017)13. Figuras 11 e 12 – Peça Teatral Nutri Ventures para conscientizar pais e alunos atendidos pelo Instituto Movere sobre a importância da alimentação saudável e consciente – São Paulo, 2015. 13 BARBOSA, V. P. Instituto Movere. Dados fornecidos em entrevista concedida a Elainy Mota Pereira em 11 de outubro de 2017. 44 Figuras 13 e 14 – Oficina de cerâmica realizadas como prevenção e tratamento oferecida aos adolescentes atendidos pelo Instituto Movere - São Paulo, 2017. A capacitação dos professores, realizada pelo Instituto Movere, tem gerado grandes impactos sociais, pois é possível ampliar o debate ao entender que a obesidade é uma doença e, assim, os educadores, coordenadores e professores passam a interagir de forma interdisciplinar com alunos, pais e comunidade. Com professores capacitados, já foi possível construir um importante trabalho em rede na construção coletiva de tecnologias sociais. Através do debate, planejamento, mobilização e sensibilização, já foi possível conscientizar um número expressivos de pessoas sobre a importância de dialogar a respeito da prevenção e tratamento da obesidade e promover, desta forma, mudanças em padrões de comportamento, inclusão social, desenvolvimento humano e de cidadania. O trabalho do Movere com a prevenção será um dos pilares fortes para que políticas públicas adotem programas de combate à obesidade. Através de palestras e informações acessíveis, é possível refletir sobre o consumo consciente dos alimentos. Quando a criança e o adolescente mudam seu comportamento em relação à alimentação e atividade física, eles levam para sua vida estas mudanças e consequentemente para a próxima geração. Nasce então uma geração mais saudável. Em curto prazo (3 meses) a estratégia usada pela organização permite atingir mudanças nos aspectos físicos, neuromotores, nutricionais e psicológicos, em médio prazo (6 meses) ocorrem mudanças expressivas nos exames laboratoriais e em longo prazo mudanças significativas de comportamento. Quando mencionamos gerações, queremos apontar que as mudanças alcançadas possibilitam benefícios perpetuados em todo um ciclo de vida. (BARBOSA, 2017). 45 Figura 15 – Atividades esportivas oferecidas aos atendidos realizadas 2 vezes por semana no Instituto Movere – São Paulo, 2016. Figura 16 – Atividades esportivas oferecidas aos atendidos realizadas 2 vezes por semana no Instituto Movere – São Paulo, 2016. Projetos Socioculturais e as Leis De Incentivos Fiscais Com o surgimento das leis de incentivos fiscais no Brasil, foram viabilizadas novas possibilidades para produção cultural, o que contribuiu significativamente com questões expressivas acerca da elevação social brasileira. Queiroz (2014)14 pontua os projetos culturais como maior ferramenta para obtenção de patrocínio associado a alguma lei que incentive a cultura, como destaca a autora. 14 QUEIROZ, I. A. Projeto cultural: as especificidades de um novo gênero do discurso. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014. 46 Mas não só a cultura pode ser beneficiada com as leis de incentivos fiscais. Há possibilidades dentro das deliberações legais que abrangem projetos nos seguintes segmentos: esportivos, sociais, de saúde ou sustentabilidade. Queiroz (2014) enxerga os projetos culturais como constituintes da “esfera político- cultural no Brasil”. Dentro das leis de incentivo fiscais é possível observar que os projetos podem ser aprovados em três âmbitos: federal, estadual e municipal. É uma forma de o estado, segundo Queiroz (2014), se relacionar, ou ainda, dialogar com a cultura. “A relativa estabilidade do gênero ‘projeto cultural’ reflete e refrata as influências dos discursos das esferas cultural, política, econômica, estatal, legislativa, corporativa, publicitária, midiática e artística, que em seu conjunto, formam a esfera político-cultural brasileira na atualidade”. (QUEIROZ, 2014, p. 3). O projeto sobre o qual esta pesquisa foi realizada é cultural, aprovado via lei de incentivo estadual, intitulado: ProAC – Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo. O ProAC foi criado em 2006, sob a lei 12.268. Após a sua criação, surgiram novas portarias e decretos para aprimorar a aplicação da legislação. Pela vivência da pesquisadora com projetos culturais e sociais, trata-se hoje da melhor lei de incentivo existente no Brasil. O entendimento e aplicação quanto ao seu uso e transparência são fáceis, seja para o proponente (pessoa física ou jurídica), seja para o patrocinador. Vimos anteriormente que se iniciou, na década de 1980, um novo cenário político, social e econômico, marcado pelo final da ditadura, como corrobora Habert (1992). Nessa nova fase, novas ideologias políticas e sociais clamavam pela melhor distribuição de verbas públicas e um maior desenvolvimento regional. Uma das vertentes a impulsionar esse novo Brasil, se observado de baixo para cima, isto é, das relações de povo para o Estado, foi o surgimento de diversas entidades culturais que se multiplicaram por todo o país a partir dos anos 1980. [...] O crescimento da produção cultural no final dos anos 1980 mostrava um novo Brasil que surgia, através da redemocratização política e o fim da censura, e trouxe ao Estado a necessidade de organizar a distribuição de investimentos, boa parte deles relacionada a iniciativa privada, principalmente em relação a atividades ligadas à área social e cultural. (QUEIROZ, 2014, p. 10). Como afirma Habert (1992), se por um lado a produção cultural sofreu o terror ao viver a autocensura, situação colocada pela autora como “vazio cultural”, por outro apresentaram-se nesta mesma época manifestações de resistências que possibilitaram novas criações e formas de linguagem. Originou-se uma nova forma de arte e artistas se relacionarem com o Estado. 47 Uma marca característica destes anos foi a existência e a proliferação de um grande número de trabalhos alternativos produzidos por pessoas ou grupos amadores com diversas origens e propostas. [...] Muitas destas experiências manifestavam não só a tentativa de fazer chegar ao público sua produção, mas e principalmente, expressavam opções de novas concepções de resistência política e ideológica, a presença de novas concepções na forma e no conteúdo, a busca de novas práticas coletivas num tempo de mudanças. [...] Entretanto, sem apresentarem uma característica única ou unificadora do processo cultural, estas experiências formaram um mosaico que refletiu as transformações da sociedade brasileira no período deum intenso esforço de resistência, de criatividade, de inovação em contraposição ao obscurantismo do regime e aos padrões ideológicos e institucionais dominantes. (HABERT, 1992, p. 76- 77-78).