UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS – RIO CLARO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA EDENISMO E IDEOLOGIA ESPACIAL NO IMAGINÁRIO BRASILEIRO (1930-1986) GILVAN CHARLES CERQUEIRA DE ARAÚJO Rio Claro - SP 2016 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Instituto de Geociências e Ciências Exatas Câmpus de Rio Claro GILVAN CHARLES CERQUEIRA DE ARAÚJO EDENISMO E IDEOLOGIA ESPACIAL NO IMAGINÁRIO BRASILEIRO (1930-1986) Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Geografia, na área de Organização do Espaço. Linha de Pesquisa: Espaço, Cultura e Sociedade. Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto Teixeira de Godoy Rio Claro - SP 2016 GILVAN CHARLES CERQUEIRA DE ARAÚJO EDENISMO E IDEOLOGIA ESPACIAL NO IMAGINÁRIO BRASILEIRO (1930-1986) Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Geografia, na área de Organização do Espaço. Linha de Pesquisa: Espaço, Cultura e Sociedade. Comissão Examinadora ___________________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Teixeira de Godoy Orientador (UNESP – Rio Claro\SP) ___________________________________________________________ Profa. Dra. Bernadete Castro Oliveira Membro Interno (UNESP – Rio Claro\SP) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Julio Cesar Suzuki Membro Externo (USP – São Paulo) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Manoel Fernandes de Sousa Neto Membro Externo (USP – São Paulo) ___________________________________________________________ Prof. Dr. Dante Flávio da Costa Reis Júnior Membro Externo (UnB – Brasília) Rio Claro-SP, 17 de outubro de 2016 A eles novamente... Agradecimentos Ao professor Paulo Godoy, orientador desta Tese de doutoramento, agradeço pelo acolhimento, contribuições, discussões e inestimável colaboração no constructo de minha trajetória universitária, e por ser o melhor mentor intelectual que um estudante de Geografia poderia ter. Ao professor Dante, um mestre que tive, e ainda terei, ao longo de toda minha passagem pelos meandros do pensamento geográfico, agradeço pelos diálogos e discussões. Aos professores Júlio Suzuki, Manoel Fernandes de Sousa Neto e Bernadete Castro Oliveira, agradeço por comporem a banca de defesa, e especialmente, ao professor Júlio e Fabrício Gallo, pelas essenciais contribuições na mesa de qualificação. Ao Departamento de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista, Unesp campus de Rio Claro\SP, agradeço pela recepção da minha pesquisa e pela bolsa de estudos nos primeiros meses de trabalho. Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie (Blaise Pascal) Resumo: o edenismo como ufania nacional é um fenômeno secular no continente americano, cuja origem se deu ainda nas fases iniciais das expedições de colonização do Novo Mundo. Com o Estado nacional brasileiro não seria diferente, e o espaço geográfico receberia igual carga canônica do imaginário ufanista sobre suas características naturais como advento para o orgulho de seu povo. Com o passar dos anos, governos e olhares sobre esta carga mítica fundacional surgiram, novas interpretações foram somando-se ao substrato maior da ufania telúrica, ganhando direções diversificadas, seja do ponto de vista econômico, político, imaginário ou cultural, sempre tendo o espaço geográfico como principal aporte para a reificação do edenismo secular, mantendo-o como ideologia espacial basilar, independente dos acréscimos e releituras que se faziam do mesmo. Por estas razões, a especificidade do Brasil neste cenário de ufanismo telúrico, inerentemente associado às características de seu território, por sua extensão e diversidade natural e social, faz com que a Geografia e o pensamento geográfico apresentem amplas possibilidades de análise e discussão dos significados atribuídos à natureza, ao território, à nação e à identidade no interior do discurso canônico da mística do paraíso terreal, através de uma ideologia geográfica que inventa e reinventa a história de sua formação econômica e territorial calcada em tais valorações edênicas. O objetivo central deste estudo é o desenvolvimento da análise geográfica das ideologias do mito fundador da identidade nacional no Brasil, a partir da identificação histórica, política, econômica, espacial e social da permanência do ufanismo em relação ao território brasileiro, em específico no que tange ao recorte temporal estabelecido, qual seja, a extensão do século XX. Em conjunto com este objetivo geral, elencam-se os objetivos específicos os quais serão buscados ao longo do desenvolvimento da pesquisa, como analisar a historicidade e espacialidade da canonização do discurso edênico em relação ao Brasil, em específico no recorte temporal estabelecido para a realização desta proposta, ou seja, de 1930 a 1986; elaborar um arcabouço teórico e conceitual de sustentação dos argumentos que compõem o núcleo da premissa do trabalho, como território, ufanismo, edenismo, identidade, imaginário, nação e Estado nacional; identificar, na historiografia da formação e dinâmica do território brasileiro, os elementos que justificam a afirmativa da premissa do trabalho, qual seja, a da ufania edênica como fonte para identidade nacional; apresentar as principais ideologias geográficas vinculadas à valorização dos aspectos espaciais da nação como fundamento do seu potencial identitário, e, em particular, o caso brasileiro em relação a este processo; analisar as representações, em termos de sua aceitação, contestação ou negação, deste fundamento ideológico edênico, e a expressividade discursiva dessas representações no imaginário canônico em suas manifestações singulares. Considerando que, para a conformação do argumento analítico de um trabalho acadêmico são necessárias bases fundamentais que sustentem tal aparato teórico e metodológico, bem como que os materiais e a metodologia caminham lado a lado desde os passos de captação e organização das informações, até a interpretação deste aparato bibliográfico e das demais fontes da pesquisa, procura-se assentar um fundamento multíplice, teórica e metodologicamente amparado pela ciência geográfica, sem abdicar das correlações e contribuições das demais áreas do conhecimento neste processo. Nestas condições é que se vinculam elementos teóricos com vistas a garantir as pretensões da premissa do estudo, tais como a ideologia espacial e a historicidade e espacialidade do pensar e fazer Geografia. Em concordância com este substrato categórico e conceitual, que permeia todo o núcleo analítico da pesquisa, somam-se os instrumentos de análise, que auxiliam na construção do agrupamento, seleção, exposição e confrontação dos resultados apurados no decurso do trabalho desenvolvido. Espera-se, portanto, com a presente Tese, oferecer ao campo das pesquisas geográficas um acréscimo de referências, reflexões, fontes e associações que permitam colocar em evidência a intensa e perene presença da ufania edênica na constituição do Estado nacional brasileiro, em meio às suas complexidades, aberturas temáticas e articulações teóricas e metodológicas. Palavras-chave: Ufanismo Edênico; Imaginário; Pensamento Geográfico; Ideologia Espacial; Território Abstract: edenism as national pride is a secular phenomenon in the American continent, also initiated in the early stages of the New World colonization expeditions. And, with the Brazilian national state would be no different, receiving an equal canonical burden of vainglorious imagery of its natural features as coming to the pride for population. Over the years, governments and point of views about this foundational mythic emerged, new interpretations were adding to the larger substrate telluric pride, winning diverse directions is economically, politically, imaginary or cultural, always having the geographical space as main contribution to the reification of the secular edenism, keeping it as a basic spatial ideology, regardless of additions and reinterpretations that did the same. For these reasons, the specificity of Brazil in this telluric jingoism scenario is inherently associated with the characteristics of its territory, by its size and natural and social diversity, makes geography and geographic thought present huge opportunities for analysis and discussion of the meanings attributed to nature, territory, nation and identity within the canonical discourse of the earthly paradise, through a geographic ideology that invents and reinvents the history of its economic and territorial formation modeled on such edenics valuations. The main objective of this study is to develop the geographical analysis of the ideologies involving the founding myth of national identity in Brazil, from the historical identification, political, economic, spatial and social jingoism of permanence in relation to Brazil, in particular with respect the established time frame, the extension of the twentieth century. And together with this larger goal we list up particularities which will be sought throughout the development of research to analyze the historicity and spatiality of the edenic canonization discourse in relation to Brazil, in particular the time frame set for the completion of this proposal, between 1930 to 1986; develop a theoretical and conceptual framework at support of the arguments that make up the core of the working premise, as a territory, jingoism, edenism, identity, imagination, nation and nation state; identify the historiography of formation and dynamics of the Brazil documentation justifying the assertion of the working assumption on the edenic pride as a source for national identity; present the main geographical ideologies linked to the appreciation of the spatial nation’s aspects in support of its identity potential, and in particular the case of Brazil in relation to this process; analyze the representations in terms of its acceptance, challenge or denial of this edenic ideological foundation and discursive expressiveness in these canonical imagery in their singular manifestations. And for the conformation of the analytical argument of an academic work are necessary fundamentals to support this theoretical and methodological basement. Materials and methods are side by side since the steps of collection and organization of information to the interpretation of bibliographic apparatus and other sources of research. then sought, thus, become one theoretical foundation manifold and methodologically supported by the geographical science, without giving up the correlations and contributions from other areas of knowledge in this process. Under these conditions it is that link theoretical elements in order to ensure such claims of the study premise, they are: the spatial ideology and historicity and spatiality of thinking and doing geography. In accordance with this categorical and conceptual substrate, which permeates the entire analytical core of the research, add to the analytical tools that help in the construction of the grouping, selection, display and comparison of results obtained in the course of their work. It is expected, therefore, with this thesis, provide the field of geographical surveys an increase of references, reflections, sources and associations that allow to highlight the strong and enduring presence of the edenic pride in the constitution of the Brazilian national state, among of its complexities, thematic gaps and theoretical and methodological joints. Keywords: Jingoism Edenic; Imaginary; Geographical Thought; Space Ideology; Territory LISTA DE FIGURAS Figura 01: Representação da Ilha Brasil (a oeste da Irlanda) de Abraham Ortelius , 1571 ....... 4 Figura 02: Jan Brueghel, Peter Paul Rubens, Het aardse paradijs met de zondeval van Adam en Eva,c. 1615 .......................................................................................................................... 10 Figura 03: Jan Brueghel de Jonge, Het paradijs met de zondeval van Adam en Eva,c. 1630 .. 10 Figura 04: Mapa de Giovanni Battista Ramusio, Primo volume dele navigationi et viaggio in molti, 1552. ............................................................................................................................... 23 Figura 05: Fragmento do mapa de 1513. Piri Reis (Muhiddin Piri), Istambul. ........................ 23 Figura 06: Pierre Descelliers (original: 59,5x77,5cm), 1546. .................................................. 24 Figura 07: The eastern Pacific Ocean with Central America and parts of North and South America, 1558 de Diego Homem. ............................................................................................ 24 Figura 08: Abraham Govaerts, Boslandschap met zigeunerinnen ,1612 ..................... 29 Figura 09: Delle Navigationi et Viaggi, 1556 de Giacomo Gastaldi e Giovanni Battista Ramusio .................................................................................................................................... 30 Figura 10: Descrittione di tutto il mondo secondo la prattica de marinari de 1597-8 de Giovanni Antonio Magini e Girolamo Porro ............................................................................ 36 Figura 11: Nova Totius Americae Descriptio, 1660 de Frederick de Wit ................................ 36 Figura 12: Propaganda Política de Getúlio Vargas ................................................................ 109 Figura 13: Leo Hollandicus, de Claes Jansz. Visscher, 1648. ................................................ 118 Figura 14: Carte Symbolique De L’Europe de 1915 .............................................................. 118 Figura 15: Statue Regum Europaeoru P.C.M. Nomina Continents, 1728, de Matthaus Seutter ................................................................................................................................................ 119 Figura 16: Diploma do Correligionário .................................................................................. 133 Figura 17: Mapa estado de São Paulo, Revolução de 1932.................................................... 133 Figura 18: Publicações relacionadas à Era Vargas e ao DIP .................................................. 141 Figura 19: Mapa da República dos Estados Unidos do Brasil de 1889. ................................. 145 Figura 20: Mapa do Brasil 1940 ............................................................................................. 146 Figura 21: República dos Estados Unidos do Brasil, 1950 .................................................... 147 Figura 22: 4º Período do Sistema Ferroviário Brasileiro, 1911-1930. ................................... 149 Figura 23: Evolução da Malha Municipal, 1940. ................................................................... 150 Figura 24: Claudio e Orlando Villas-Bôas no início da Expedição Roncador-Xingu, em contato com os indígenas ........................................................................................................ 162 Figura 25: Presidente Jânio Quadros e Orlando Villas-Bôas no Parque Nacional do Xingu . 162 Figura 26: no sentido horário, Vai também para a Amazônia, protegido pelo SEMTA; Vida Nova na Amazônia; Rumo à Amazônia, a Terra de Fartura; Mais borracha para a vitória. .. 179 Figura 27: Quantidade de Imigrantes ..................................................................................... 186 Figura 28: Juscelino Kubitschek em sua primeira visita ao Planalto Central, 1956. ............. 213 Figura 29: Distribuição das vias de circulação estaduais e federais, 1960 ............................. 227 Figura 30: Distribuição das Rodovias Federais em 1960. ...................................................... 228 Figura 31: Capa dos planos Salte e Programa de Metas de JK .............................................. 230 Figura 32: Receitas e Despesas da União ............................................................................... 231 Figura 33: PIB a custo de fatores, segundo a atividade econômica, de 1955-2008 ............... 232 Figura 34: Capa da edição de 1956 de Tipos e aspectos do Brasil, do CNG. ........................ 240 Figura 35: Região Norte, gravura de Percy Lau ..................................................................... 241 Figura 36: representação do mercado Vero-Peso em Belém/Pará 1954-57 de Percy Lau. .... 241 Figura 37: Os tipos brasileiros expostos na edição de 1956 da Revista Brasileira de Geografia. ................................................................................................................................................ 242 Figura 38: propaganda para sucessão Lott no governo (detalhe para a imagem do Vargas) . 248 Figura 39: Ex-presidete Juscelin Kubitschek ......................................................................... 250 Figura 40: Juscelino com Lúcio Costa na futura Brasília e na capa da Time ......................... 252 Figura 41: Kubitscheck explicando seu Plano de Metas ........................................................ 254 Figura 42: Mapas mostrando a localização do Distrito Federal em relação às capitais brasileiras, ao continente americano e ao potencial hidrelétrico brasileiro. Entre 1953-1956. ................................................................................................................................................ 256 Figura 43: República dos Estados Unidos do Brasil de 1960................................................. 257 Figura 44: cena do programa Clube do Lar extinga TV Paulista em 1963 ............................ 280 Figura 45: Anuncio de moda, Década de 50, TV Record....................................................... 281 Figura 46: Entrevista do ex-presidente Kubitschek ao jornal O Cruzeiro, 2 de abril de 1960. ................................................................................................................................................ 281 Figura 47: Propagandas comerciais da década de 1960 (1).................................................... 284 Figura 48: Propagandas comerciais da década de 1960 (2).................................................... 284 Figura 49: Congresso Nacional .............................................................................................. 269 Figura 50: Torre de TV Digital em Sobradinho e 000 ........................................................... 269 Figura 51: Proposta Original do Relatório do Plano Piloto de Lúcio Costa, 1956................. 272 Figura 52: Trabalhador da “Cidade Livre”, atual Núcleo Bandeirante - DF .......................... 272 Figura 53: Sol Nascente no DF, maior favela da América Latina. ......................................... 276 Figura 54: Itapoã no DF ......................................................................................................... 276 Figura 55: Mapa da Excursão nº 1, realizada em 1954, na região Central do Brasil ............. 294 Figura 56: Excursão 2 - zona metalúrgica de Minas Gerais e Vale do Rio Doce .................. 295 Figura 57: Parâmetros de valoração Regional ........................................................................ 297 Figura 58: Hanking das zonas valoradas por poscionamento................................................. 297 Figura 59: Mapa do Sudeste do Planalto Central Brasileiro .................................................. 298 Figura 60: Colônia agrícola em Corumbá .............................................................................. 300 Figura 61: Boiada nas proximidades de São Gotardo/MG ..................................................... 300 Figura 62: Mapeamento Vale do São Francisco ..................................................................... 304 Figura 63: Termo Geral de Valoração do Grau de Centralidade ............................................ 313 Figura 64: Diretrizes de valoração em áreas centrais ............................................................. 314 Figura 65: Fatores e formas das paisagens naturais e culturais segundo Carl Sauer.............. 318 Figura 66: soldado em guarda à frente do congresso em 1968, imagem de Orlando Brito. .. 323 Figura 67: Imposto Inflacionário de 1964 a 1985 .................................................................. 329 Figura 68: PIB do Brasil entre 1948-2010, sobreposto às “ondas jovens” na população ...... 331 Figura 69: Construção da Usina de Itaipu em 1982 ............................................................... 338 Figura 70: Construção de Angra 1, 1971. ............................................................................... 338 Figura 71: Regiões Metropolitanas – População Total na Periferia (1970-1980) .................. 341 Figura 72: Rodovias federais brasileiras em 1980. ................................................................ 349 Figura 73: Evolução da malha municipal, 1980. .................................................................... 350 Figura 74: Regiões metropolitanas, 1974. .............................................................................. 351 Figura 75: A Segurança Nacional ........................................................................................... 364 Figura 76: Proposta de Divisão da Antártida. ........................................................................ 374 Figura 77: Estratégia, Geopolítica e Geoestratégia ................................................................ 375 Figura 78: A área pivô mundial. ............................................................................................. 377 Figura 79: Proposta de Equilíbrio Regional. .......................................................................... 378 Figura 80: Representação da Transmazônica, em 1972. Desenho de Percy Lau em 1975. ... 382 Figura 81: República Federativa do Brasil - 1970 .................................................................. 386 Figura 82: República Federativa do Brasil - 1980 .................................................................. 388 Figura 83: Complexos Regionais de Pedro Geiger de 1967 ................................................... 389 Figura 84: Domínios Morfoclimáticos, de 1965 .................................................................... 393 Figura 85: Unidades Morfo-Esculturais do Brasil .................................................................. 394 Figura 86: Selo comemorativo conquista Copa de 1970 ........................................................ 401 Figura 87: Jogadores brasileiros são recebidos com festa em Brasília, 1970. ....................... 401 Figura 88: Médici cumprimenta atletas da seleção brasileira de futebol, em 1970................ 403 Figura 89: Usina Presidente Bernardes .................................................................................. 403 Figura 90: Evolução das Bandeiras do Brasil ......................................................................... 413 Figura 91: Composição das proibições de publicar, 1970-1978. ........................................... 419 Figura 92: Unidades inspecionadas e censuradas pela Divisão de Censura e Divisões Públicas do Departamento de Censura Federal, 1976. .......................................................................... 420 Figura 93: Onda repressiva do governo Médici. Desaparecido e ordens de não publicar. .... 421 Figura 94: Conteúdo das proibições de publicar, 1970-1978 ................................................. 422 Figura 95: Divisão regional do Brasil, 1988........................................................................... 451 Figura 96: Divisão Regional proposta por Milton Santos e Maria L. Silveira ....................... 452 LISTA DE QUADROS Quadro 01: Organizações e Instituições criadas durante os anos de governo Vargas ............ 169 Quadro 02: Evolução da população brasileira ........................................................................ 186 Quadro 03: Os pioneiros do IBGE ......................................................................................... 207 Quadro 04: Superintendências de Desenvovimento ............................................................... 220 Quadro 05: Expedições geográficas, início do período militar. ............................................. 333 Quadro 06: Empreendimentos de grande porte durante a Ditadura Militar ........................... 335 Quadro 07: Programas governamentais do período ............................................................... 339 Quadro 08: Os Planos Nacionais de Desenvolvimento .......................................................... 340 Quadro 09: Os Atos Institucionais (Colocar na discussão sobre a segurança nacional) ........ 356 Quadro 10: Obras de Therezinha de Castro............................................................................ 373 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1 CAPÍTULO 1: EDENISMO, IMAGINÁRIO E IDEOLOGIA ........................................... 4 1.1 ANTECEDENTES DO EDENISMO NAS AMÉRICAS .................................................... 5 1.1.1 O mito fundacional ............................................................................................................ 6 1.1.2 Exploração das riquezas das terras .................................................................................. 27 1.1.3 A conquista do paraíso em suas fronteiras e sertões ....................................................... 41 1.2 O IMAGINÁRIO CANÔNICO E OS SÍMBOLOS EDÊNICOS ...................................... 50 1.2.1 O cânone .......................................................................................................................... 51 1.2.2 A imagem, o Imaginário e a Imaginação ......................................................................... 57 1.2.3 As representações dos símbolos edênicos ....................................................................... 65 1.3 A IDEOLOGIA ESPACIAL .............................................................................................. 74 1.3.1 Sobre a ideologia ............................................................................................................. 75 1.3.2 O ideologismo científico ................................................................................................. 82 1.3.3 A ideologia pelo viés espacial ......................................................................................... 90 1.3.4 As geografias e suas ideologias ....................................................................................... 95 1.3.4.1 As ideologias geográficas e o edenismo ..................................................................... 104 CAPÍTULO 2: PERÍODO GETULISTA [1930-1945] – O TERRITÓRIO COMO (RE) INVENÇÃO DO BRASIL ................................................................................................... 109 2.1 PRERROGATIVAS IDEOLÓGICAS DO PROJETO NACIONAL: O PODER SIMBÓLICO E A TERRITORIALIDADE DO ESTADO .................................................... 110 2.1.1 A corporeidade territorial do Leviatã ............................................................................ 111 2.1.2 O nacional pelo seu território simbolizado .................................................................... 120 2.2 GETÚLIO VARGAS: OS ANOS 1930, A PROPAGANDA POLÍTICA E O SALVACIONISMO PÁTRIO ................................................................................................ 127 2.2.1 A centralização do poder estatal e a propaganda política .............................................. 128 2.2.2 Modernização do território ............................................................................................ 142 2.2.3 A busca pelo fundamento simbólico da identidade nacional brasileira......................... 154 2.3 O LABOR GEOGRÁFICO COMO PRERROGATIVA AO PROJETO NACIONAL (E IDEOLÓGICO) GETULISTA ............................................................................................... 171 2.3.1 A decifração espacial em projeto................................................................................... 172 2.3.2 O pensamento geográfico brasileiro institucionalizado................................................. 189 2.3.2.1 Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB) ............................................................. 195 2.3.2.2 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) .......................................... 202 CAPÍTULO 3: O DESENVOLVIMENTISMO [1946-1964] – A CONTINUIDADE DO PROGRESSO TERRITORIALIZADO ............................................................................. 213 3.1 AS BASES DO DESENVOLVIMENTISMO NACIONALISTA .................................. 214 3.1.1 Sobre o desenvolvimentismo ......................................................................................... 215 3.1.2 A base econômica para a (re)invenção do edenismo racionalizado .............................. 234 3.2 A ERA JK E SUA LEITURA SOBRE O UFANISMO TELÚRICO SECULAR BRASILEIRO ......................................................................................................................... 245 3.2.1 O personagem político por trás do homem público ....................................................... 246 3.3.2 Brasília: a metasíntese de um contexto.......................................................................... 260 3.2.3 Os meios de comunicação e seu papel central no período desenvolvimentista ............ 278 3.3 A MATURAÇÃO DO SABER GEOGRÁFICO EM MEIO À TRANSIÇÃO POLÍTICA DOS ANOS DE 1960 ............................................................................................................. 288 3.3.1Planificaçõess, parâmetros e a organização do espaço geográfico brasileiro ................. 289 3.3.2 A alvorada epistêmica da Geografia no Brasil .............................................................. 306 3.3.2.1 A ordenação do espaço urbano para o desenvolvimento ........................................... 311 3.3.2.2 Da Geografia Ativa às significações morfológicas da paisagem e do lugar ............. 314 CAPÍTULO 4: OS MILITARES NO PODER [1964-1986] – A NAÇÃO VISTA PELA FORÇA DO SEU FIRMAMENTO..................................................................................... 323 4.1 O GOLPE E A REVOLUÇÃO: CONTORNOS E IDIOSSINCRASIAS DE UM CONTEXTO ........................................................................................................................... 324 4.1.1 A ditadura entre a força e o velamento de sua estrutura econômica ............................. 325 4.1.1.1 pesquisa científica e a infraestrutura nacional .......................................................... 332 4.1.1.2 O ônus do milagre ...................................................................................................... 345 4.1.2 A segurança nacional do regime militarista .................................................................. 353 4.1.2.1 A defesa e integração do território nacional ............................................................. 359 4.2 A GEOESTRATÉGIA E O APELO VERDEAMARELISTA ........................................ 368 4.2.1 Geopolítica e Geoestratégia ........................................................................................... 369 4.2.1.1 O geoestrategismo ...................................................................................................... 372 4.2.1.2 Regionalizar para integrar ......................................................................................... 384 4.2.1.3 A regionalizaão: do político ao físico ........................................................................ 392 4.2.2 A potência espetacular do verdemaralismo na ditadura ............................................... 397 4.2.2.1 O verdeamerelismo ..................................................................................................... 409 4.2.2.2 A censura .................................................................................................................... 417 4.3 DO CONTROLE DA FORMAÇÃO GEOGRÁFICA AOS NOVOS HORIZONTES DA ATUALIDADE ...................................................................................................................... 426 4.3.1 A formação discente e o ambiente escolar: alvos do nacionalismo militar ................... 427 4.3.2 As novas tendências e perspectivas para a Geografia brasileira ................................... 442 4.3.2.1 O futuro do presente: a quantificação, a crítica e a cultura ...................................... 449 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 463 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 466 1 INTRODUÇÃO A efetivação de um projeto de estudo com vistas a se adequar às exigências para composição de doutoramento requer um tema capaz de assegurar a empunhadura desta responsabilidade. O desafio posto no debate a ser desenvolvido concentra-se na questão do imaginário e ideologias edênicos, principalmente em se tratando de sua relação com o pensamento geográfico, que, de um modo ora mais indireto ora mais proximal, possuiu e ainda possui conexões com a mitologia fundacional do paraíso terreno. Deste modo, o edenismo se coloca como uma destas possibilidades, por se tratar de um centro de multiplicidade temática, com uma abrangência imensurável. Por esta razão, entra em cena a necessidade de um recorte, científico do ponto de vista sintético e cronológico (ou corológico) em termos analíticos. No primeiro caso, agrupar-se-ão elementos mediatos e correlatos pertinentes ao tema estudado, utilizando-se, para isto, uma fonte científica, que, no caso do presente estudo, é representada pela ciência geográfica. Já o recorte temporal tem como principal objetivo estabelecer uma delimitação que contribua no engendramento da coleta e seleção de dados específicos, com base nestes limites, a fim de favorecer a busca pelas respostas que se almeja alcançar na construção dos questionamentos deste estudo em específico. Portanto, é imprescindível uma dialogia teórica e metodológica, em conjunto com um aprofundamento epistemológico, quando os objetivos das inquirições voltam-se à própria historicidade e geograficidade da produção do conhecimento, pois, ao falar em edenismo, tanto um como outro aspecto surgem como necessários para o alcance de algumas das principais idiossincrasias. Se se analisa, por exemplo, a discursividade edênica, alinhada em seu potencial ideológico, prático e imaginativo no e pelo espaço geográfico, então é necessária tanto uma retomada dos acontecimentos históricos que a fundamentaram, como também da abrangência e receptividade geográfica que a caracterizou, devido ao amparo territorial componente do escopo teórico e metodológico da Geografia. No que se refere à delimitação temporal, conforme a titulação da Tese atesta, está contida no período de 1930 a 1986, em função, principalmente, de dois motivos. O primeiro diz respeito a uma continuidade de estudos, advindo de uma prévia de pesquisa, ocorrida durante desenvolvimento da Dissertação de Mestrado do autor, intitulada “Do Ufanismo Edênico ao Saudosismo Heróico: ideologia e discurso geográfico no ideário nacional brasileiro”, defendida na Universidade de Brasília, em 2013; apesar de elencar, em sua 2 finalização, elementos correspondentes a fatos contemporâneos do ufanismo edênico e territorial, a pesquisa realizada foca os períodos colonial, imperial e republicano (pré- getulista) de nossa historiografia. O segundo motivo é a riqueza política, ideológica, simbólica e econômica deste período, que possibilita colocar em pauta as linhas gerais do questionamento a respeito da permanência do mito fundacional edênico na atualidade, especificamente em relação ao Estado nacional brasileiro. Esta especificidade se dá pela representação histórica e geográfica na projeção da concretude do Paraíso Terreal no Brasil, voltada com mais intensidade à sua vertente econômica erigida a partir das simbologias seculares do edenismo. E, em sendo um mito, o edenismo sofre um contínuo movimento de reificação, intepretação, representação e manifestação de suas características, observáveis, por exemplo, nas diferentes escolas de pensamento (ideologias) geográfico brasileiro. O território brasileiro abarcou muitos destes aspectos num direcionamento do imaginário edênico em suas dimensões continentais, riqueza faunística e florística, histórico particular em meio ao movimento de exploração marítima do século XVI, dentre outros. Desta forma, analisar o processo de desenvolvimento nacional, territorial, simbólico e político do Estado nacional requer uma angariação de fatores, vetores e selecionadas variáveis. No que se refere especificamente ao cenário brasileiro, observa-se, ainda, uma diversidade de variáveis – como as citadas – que, juntas, compõem uma particularidade especial, a saber, a relação proximal e inerente que edenismo teve com sua territorialidade, permanecendo em diferentes escalas e representações ao longo do tempo. Há, então, as objetivações, justificativas, recorte temático, escolha científica e repartição temporal para a composição do constructo a ser estudado. Conforme será exposto no decorrer do trabalho, a ciência geográfica possui um protagonismo em meio ao edenismo em sua temporalidade e espacialidade. Essa especialidade da Geografia se dá pelo fato de a mitologia edênica, fundada no imaginário do Paraíso Terreal, estar intimamente, senão inevitavelmente, relacionada ao espaço, por este compor o seu fundamento de concretude do qual e pelo qual emanam seus principais elementos imagéticos, a depender do lugar e época, transmutados em possibilidades de exploração ideológica, política e econômica. Atualmente, a perenidade do uso do discurso edênico no âmbito econômico,, diretamente ligado a sua potência territorial, é perceptível em diferentes formas de manifestação, na contínua reinterpretação e uso do mito fundacional edênico direcionado às Américas na chegada dos europeus. A exaltação das riquezas naturais como fonte simbólica 3 acaba por ganhar força conforme suas potencialidades imagéticas encontram recursos de expansão da força discursiva, como meios de comunicação, aumento das produções históricas e geográficas específicas dos países latinos e, talvez o mais importante, o alcance social do edenismo, temporal e espacialmente. Seguindo estas premissas apresentadas para a presente pesquisa, temos, em resumo, a divisão temática dos capítulos ao longo da Tese. A entrada do estudo dá-se por uma recapitulação do edenismo secular americano, e conceitos-chave como cânone, imaginário e ideologia espacial são explanados com maior profundidade teórica, justamente por serem basilares nas análises posteriores, dos demais capítulos. O segundo capítulo é voltado ao período de Getúlio Vargas no poder executivo brasileiro, de maneira a direcionar o olhar geográfico aos anos getulistas, sua exploração simbólica e geográfica da ufania telúrica, seguido dos discursos de racionalização, modernização e busca pelo progresso do Brasil, sempre tendo como apoio e suporte o conhecimento científico e geográfico em suas empreitadas. Em continuidade com o cenário getulista, o terceiro capítulo volta-se aos anos desenvolvimentistas e, em especial, oo período em que Juscelino Kubitschek esteve à frente do poder central nacional. Em seus 50 anos em 5, o ex-presidente mineiro promoveu a maior corrida de modernização do território brasileiro, aproveitando-se de muitas das bases políticas populistas de Vargas, mas expandindo seu discurso e intervenção em um nível nunca visto anteriormente, ousadia esta simbolizada na construção da nova capital nos sertões planálticos do país, como monumento máximo de conquista das benesses naturais aludidas reincidentemente no discurso edenista do mito fundacional brasileiro. Por fim, a abordagem do período da ditadura militar fecha o presente estudo. Os anos do regime ditatorial foram os que mais se aproveitaram do discurso secular edênico como fonte para sua ufania telúrica. Em meio a políticas coercitivas, ações econômicas de velamento social da realidade demográfica, bem como o uso explícito e incisivo dos temas e símbolos nacionalistas sintetizaram as marcas deixadas pelos governos miltiares brasileiros até os dias atuais. O pensamento geográfico passou por profundas transformações ao findar do regime, pois, se nos idos de 1970, nos anos mais duros dos generais presidentes, havia uma orientação de maior rigor estatístico e quantitativo, com a chegada da redemocratização novos rumos foram apontados para o futuro, e atual presente, da ciência geográfica no Brasil. 4 CAPÍTULO 1: EDENISMO, IMAGINÁRIO E IDEOLOGIA Figura 01: Representação da Ilha Brasil (a oeste da Irlanda) de Abraham Ortelius , 1571 Fonte: http://www.orteliusmaps.com/ Quando da bela vista e doce riso, tomando estão meus olhos mantimento, tão enlevado sinto o pensamento que me faz ver na terra o Paraíso. Tanto do bem humano estou diviso, que qualquer outro bem julgo por vento; assi, que em caso tal, segundo sento, assaz de pouco faz quem perde o siso. Em vos louvar, Senhora, não me fundo, porque quem vossas cousas claro sente, sentirá que não pode merecê-las. Que de tanta estranheza sois ao mundo, que não é de estranhar, Dama excelente, que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas. (Luís Vaz de Camões, 1595) 5 1.1 ANTECEDENTES DO EDENISMO NAS AMÉRICAS O edenismo é um fenômeno histórico que ultrapassou as fronteiras entre os meios pelos quais seu alcance pode ser visto, analisado e compreendido. Ao longo de mais de quinhentos anos, desde as primeiras investidas ultramarítimas europeias no início do Renascimento, simbologias foram construídas, objetivações espacialistas modificaram-se e interesses econômicos foram direcionados à ideação do Éden terreno, identificando-o, principalmente, com as novas terras a Oeste do Oceano Atlântico, de maneira a constituir o mito fundador desta região, como sugere o poema de Camões, e a já cartografada Ilha Brasil, ainda em meio às ilhotas britânicas. As novas terras americanas receberam de imediato toda a carga mítica do Paraíso Terral, por suas características naturais, antrópicas e, principalmente, por se ajustarem ao ideário secular europeu sobre este tema. Mesmo quando não encontraram de imediato as referências paradisíacas em concordância com suas expectativas, como foi o caso do ouro na parcela leste do subcontinente sul-americano, outras simbologias atrelaram-se ao mito, de forma a fornecer a justificativa, razão e motivação para sua exploração; a busca pelas riquezas nos “sertões” (existentes até o nosso passado republicano recente) são o melhor exemplo desta adaptabilidade e reificação do mito fundacional. Neste primeiro capítulo, procuraremos abordar alguns conceitos, categorias e fundamentos que nos ajudarão a compreender a profundidade e complexidade da temática edênica. Neste percurso, encontraremos desde a base mitológica e mística até a racionalização, exploração e profanação do escopo imagético e do ideário edênico secular, aspectos estes encontrados até os dias atuais em novas leituras, reificações, potencialização ou refutação do simbolismo em torno do Paraíso Terreal americano. Este embasamento histórico é fundamental e imprescindível para a coesão temática do presente estudo. O ideário edênico, ao longo dos séculos e nas décadas do recorte temporal desta Tese, foi transmutado em ufania telúrica, engendrado como uma ideologia espacial envolta em interesses econômicos e intencionalidades políticas. Este movimento ocorreu devido à perenidade e força do discurso edênico na sociedade, sendo objeto de exploração constante das forças estatais e comerciais que serão expostas no decorrer do desenvolvimento deste estudo. 6 1.1.1 O mito fundacional De início, é importante ressaltar que, na abertura deste estudo, não será possível expor em poucas páginas todos os elementos que compõem a complexidade da temática do Paraíso Terreal projetado no continente americano. No entanto, é exequível elencar alguns destes aspectos, que se configuram como principais para a estruturação argumentativa e analítica proposta neste trabalho, entre os quais figura a questão da relação do espaço geográfico com o discurso e prática edenista, sua presença nas ideologias geográficas, juntamente com a questão da identidade nacional, e sua infiltração histórica e geográfica no território brasileiro. Para que este objetivo principal seja alcançado, é necessária uma retomada da principal fonte de emanação da mitologia edênica, e sua influência tanto no imaginário social como na composição de uma ideologia espacial, que fortalecem e fundamentam o próprio edenismo. Como ponto de partida, é preciso remetermo-nos à origem na qual surgiram as ideações edênicas, antes de receberem sua diáspora discursiva no continente europeu, exponenciado no final da Idade Média durante as grandes navegações. O medievo esteve, desde o seu início, imbricado com uma forte e pujante influência da fé católica, tanto a apostólica romana como a ortodoxa grega, e é a partir desta presença religiosa que o mito edênico é erigido, ganha força no imaginário social europeu, e, posteriormente, em sua transposição pelos mitos de conquista americanos. Para efeito de recorte direto, e para posterior análise da mitologia, vejamos o que podemos chamar “ponto de origem” do edenismo, conforme exposto no Gênesis bíblico: Gênesis 2 1 Assim foram acabados os céus e a terra, com todo o seu exército. 2 Ora, havendo Deus completado no dia sétimo a obra que tinha feito, descansou nesse dia de toda a obra que fizera. 3 Abençoou Deus o sétimo dia, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra que criara e fizera. 4 Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados. No dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus 5 não havia ainda nenhuma planta do campo na terra, pois nenhuma erva do campo tinha ainda brotado; porque o Senhor Deus não tinha feito chover sobre a terra, nem havia homem para lavrar a terra. 6 Um vapor, porém, subia da terra, e regava toda a face da terra. 7 E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida; e o homem tornou- se alma vivente. 8 Então plantou o Senhor Deus um jardim, da banda do oriente, no Éden; e pôs ali o homem que tinha formado. 9 E o Senhor Deus fez brotar da terra toda qualidade de árvores agradáveis à vista e boas para comida, bem como a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. (A BÍBLIA SAGRADA, 2014, p. 1-2). 7 No trecho citado já é possível destacar algumas características sobre a ideação do Éden. Percebe-se que a origem do ser humano, segundo a Bíblia, está diretamente ligada à terra, a partir da qual o homem será criado e da qual tirará seu sustento. A menção à árvore do conhecimento (do bem e do mal), por sua vez, constitui o símbolo que se tornará reincidente em todas as metáforas, mensagens, contos, sermões e desenvolvimentos do texto bíblico. Aliada a esses dois aspectos há, ainda, a criação do jardim sagrado, o Éden, cuja expressão provém do hebraico Gam Eden, que significa, literalmente, grande planície, campo ou estepe paradisíacos. Já o uso do termo “paraíso” vem de uma das traduções do termo de origem hebraica paradeisos, que possui relação com os “céus” dos gregos παράδεισος, os campos elísios, Ἠλύσιον πέδιον. Em sentido lato, portanto, o jardim do Éden seria o lugar ideal, no qual o pecado não existe, assim como guerras, morte e enfermidades, e onde há todo tipo de riqueza natural disponível para aqueles que o habitam (BULFINCH, 2002). O segundo trecho do Gênesis, que complementa o primeiro, faz as referências mais diretas ao jardim do Éden, responsáveis por boa parte do embasamento discursivo do mito edênico europeu transferido para as Américas séculos atrás. Do versículo 10 ao 16 são incorporados os elementos físicos do edenismo, que permearão o ideário religioso, como os rios do Éden Pisom, Giom, Tigre e Eufrates; a presença do ouro no solo também é frisada com uma das riquezas do paraíso; e a terra, lavrada e guardada para prover toda necessidade de alimento do homem: 10 E saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços. 11 O nome do primeiro é Pisom: este é o que rodeia toda a terra de Havilá, onde há ouro; 12 E o ouro dessa terra é bom: ali há o bdélio, e a pedra de berilo. 13 O nome do segundo rio é Giom: este é o que rodeia toda a terra de Cuche. 14 O nome do terceiro rio é Tigre: este é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto rio é o Eufrates. 15 Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e guardar. 16 Ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda árvore do jardim podes comer livremente; 17 mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás. 18 Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora que lhe seja idônea. 19 Da terra formou, pois, o Senhor Deus todos os animais o campo e todas as aves do céu, e os trouxe ao homem, para ver como lhes chamaria; e tudo o que o homem chamou a todo ser vivente, isso foi o seu nome. 20 Assim o homem deu nomes a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais do campo; mas para o homem não se achava ajudadora idônea. 8 21 Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre o homem, e este adormeceu; tomou-lhe, então, uma das costelas, e fechou a carne em seu lugar; 22 e da costela que o senhor Deus lhe tomara, formou a mulher e a trouxe ao homem. 23 Então disse o homem: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; ela será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada. 24 Portanto deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão uma só carne. 25 E ambos estavam nus, o homem e sua mulher; e não se envergonhavam. (A BÍBLIA SAGRADA, 2014, p. 1-2). A partir do versículo 19, acrescentam-se os animais, a mulher como companhia do homem, assim como a naturalização do corpo nu, que não provoca vergonha, situação presenciada nos nativos americanos e identificada como elemento edênico pelos exploradores marítimos. Outro ponto aspecto a ser identificado como uma das bases do edenismo é o domínio humano sobre os bens naturais, vegetais, animais e minerais, conforme desenvolveremos no decorrer do trabalho, principalmente em relação a estas riquezas, e sua presença em abundância por toda a extensão do continente americano. Conforme já demonstrado na etimologia da palavra paraíso, a origem de toda a mitologia edênica, ao se buscar os elementos que a mesma manifesta e representa, volta-se o olhar para a Idade Clássica Grega, em sua idealidade do mundo e do ser humano, buscando a perfeição de ambos. O termo utopia é originado nesta concepção helênica de um reduto terrestre no qual não haveria conflitos ou necessidades, e influenciou diretamente nas ideações imaginárias europeias de um lugar sagrado e sem imperfeições (BULFINCH, 2002). Esta é a ideia do lugar que não há, ou existe apenas na dimensão imaginária e fantasiosa: o “ou” e “topos”, o lugar em nenhum lugar, ουτοπία. O Paraíso Terreal não deixa de ser uma projeção utópica, presente no livro sagrado do cristianismo. E este é um dos principais temas tratados por Sandro Costa (2001), em seu trabalho América Portuguesa: Paraíso Terral, do qual o seguinte trecho sintetiza esta ideia do paraíso terreno: A freqüência com que surgem imagens e menções descritivas da paisagem edênica em mapas e itinerários, faz crer que a idéia da existência do Paraíso Terreal pertencia a um sentir geral, nascida de tradições anteriores e alheias ao cristianismo. Assim, o ponto de partida para as visões medievais do Paraíso encontram-se nos registros bíblicos. (COSTA, 2002, p. 121). Conforme os trechos selecionados da Bíblia, a própria localização do Paraíso Terreal é colocada em xeque com as grandes descobertas marítimas dos séculos XV e XVI, pois o seu topos seria nalgum lugar à Leste, no atual Oriente Médio. Este pode ser um dos motivos de 9 tantas demonstrações de espanto por parte dos colonizadores ao descobrirem uma localização com as características edênicas no sentido oposto de onde se acreditava estar: A harmonia perfeita entre todas as criaturas, a isenção do castigo e da fadiga, a ausência da dor física e da morte são os elementos constitutivos da concepção primeira do homem, que é abolida com o Pecado e a conseqüente negação ao Paraíso. Sobre este núcleo inicial que pertence ao Gênesis, se manifestam traços oriundos do Apocalipse e sucessivos atributos tomados às crenças do paganismo. Todavia, as interpretações bíblicas elaboradas pelos pensadores e teólogos cristãos assumiram grande importância na formação da idéia medieval de Paraíso Terrestre. Os registros bíblicos apontam a existência física do Paraíso em alguma parte da Terra, no Oriente. (COSTA, 2001, p. 122). O mundo recém-encontrado emulava-se com as características edênicas, secularizadas pela religião católica, e, ao longo de várias décadas, a comparação entre o Éden e a América tornar-se-ia inevitável , nos relatos, mapas, obras artísticas, etc.: “O Novo Mundo apresentava-se aos primeiros conquistadores como milagre divino. A maravilha, o encanto e a bem-aventurança eram características inerentes à América, que refletia o Paraíso Terreal descrito na Bíblia” (COSTA, 2001, p. 129). Sobre a temática da transferência dos elementos constituintes do Jardim do Éden para as Américas, o autor afirma que Os mesmos elementos que durante toda a Idade Média apresentavam-se como distintivos da paisagem bíblica do Éden ou que anunciavam sua proximidade imediata: primavera perene, bosques verdejantes, cortados por rios caudalosos, encontrariam os europeus ao aportarem na América. Presos a concepções medievais, pode-se inferir que, em face das terras recém-descobertas, os europeus reconheceram com os próprios olhos o que em sua memória estampara das paisagens de sonhos descritos em livros e relatos e que pertencia a uma fantasia coletiva. (COSTA, 2001, p. 128). A seguir, reproduzimos duas imagens, elaboradas no período de transição do Medievo para o Esclarecimento, que retratam a força destes elementos do imaginário edênico no continente europeu, que, inevitavelmente, foram levados para as Índias americanas. A primeira imagem é uma clássica representação paisagística do Éden, pela parceria entre Jan Brueghel de Oude e Peter Paul Rubens, de 1615. A segunda, por sua vez, representa também o paraíso, mas sem a presença de Adão e Eva, em decorrência da sua expulsão dos Elísios bíblicos. 10 Figura 02: Jan Brueghel, Peter Paul Rubens, Het aardse paradijs met de zondeval van Adam en Eva,c. 1615 Fonte: Coleção da Casa de Mauricio, Haia, Holanda. Disponível em http:www.mauritshuis.nl/collection Figura 03: Jan Brueghel de Jonge, Het paradijs met de zondeval van Adam en Eva,c. 1630 Fonte: Coleção da Casa de Mauricio, Haia, Holanda. Disponível em http:www.mauritshuis.nl/collection 11 As legendas, que estão em holandês devido à sua locação atual em Haia, Holanda, significam, respectivamente, em tradução literal: Paraíso pela queda de Adão e Eva, e O Paraíso da Queda de Adão e Eva. Ambas as figuras demonstram já, como uma rica e detalhada representação dos elementos bíblicos do Gênesis, o que acabaria não necessariamente buscado, mas encontrado nas terras além-mar. Assim, temos os elementos que compõem a origem do mito edênico, ou seja, o imaginário do Éden, que comporá, por transposição imagética, imaginária e ideológica os mitos de origem das colônias americanas estabelecidas pelos exploradores europeus. Faz-se necessário, aqui, portanto, elucidarmos alguns dos desdobramentos do significado e importância do conceito de mito. De acordo com Lima (2006), O termo grego mytos significa dizer, falar, contar. Do apogeu do racionalismo grego até o início deste século, mito tinha o sentido de fábula ou conto, uma fantasia das camadas mais ingênuas ou menos esclarecidas da sociedade. O mito é uma resposta à tentativa arcaica e perene de responder às questões sobre a origem do mundo, dos elementos, dos fenômenos e outros. Desde o início dos tempos teve essa função: expressar a indagação do ser humano sobre o universo e sobre o próprio ser. A perplexidade sempre esteve presente, faz parte da História desde a aurora da pré- história. Na linguagem comum, mítico queria dizer falso. Mito significava mentira. Com a penetração do positivismo no pensamento do final do século XIX, essa conotação parecia definitiva. As pesquisas em Etnologia e Religião Comparada, no início do século XX, devolveram à palavra mito o sentido que ela sempre teve nas sociedades primitivas, estendendo-o agora também ao uso do vocábulo nas civilizações antigas. Na visão antropológica, mito significa verdade, contrapondo-se ao original grego, mais do que isso: a verdade mais profunda e perene. Significa história verdadeira, tão mais verdadeira quanto é revelação primordial, modelo das atividades e instituições humanas. É exemplar e sagrada: só pode ser recitada, cantada ou dançada em ocasião solene, o que lhe dá o caráter de santidade. O acesso a seu relato é reservado aos que já se submeteram a uma iniciação. (OLIVEIRA; LIMA, 2006, p. 1-2). O papel do mito é, além o de trazer a carga de projeção imaginária para realidade, também o de fornecer um escopo de enredo para o mundo, seus fatos e fenômenos. Não por acaso, mitos, lendas e ritos foram e ainda são fonte de muitas explicações sobre situações adversas à compreensão humana, mesmo que estas já estejam na seara de explanação do discurso científico: “Os mitos explicam a origem, e proporcionam ao indivíduo reviver o tempo primordial, através das narrativas, lendas e repetição de rituais sagrados, para não perder a sua validade e possibilitar o reencontro com os entes sobrenaturais e suas ações fantásticas numa dimensão criadora da realidade.” (OLIVERIRA; LIMA, 2006, p. 10). Esta definição prévia relaciona-se diretamente ao processo de engendramento do mito aqui 12 analisado, o do Paraíso Terreal, por este advir de tempos longínquos e perdurar com desdobramentos interpelativos e representativos específicos em diferentes situações. Por esta razão, a mitologia e seu processo cultural de construção devem ser colocados com uma unidade narrativa de explicação do mundo, até porque, nestes termos, a própria racionalidade e ciência são compostas por aparatos narrativos de interpretação da realidade. O monomito (ou o ciclo do heroi), recurso discursivo e narrativo comum em epopeias e contos ocidentais, faz uso deste aspecto rico e de múltiplas modulações dos mitos (VLOGER, 2006). Muitos dos embasamentos científicos e filosóficos da atualidade tiveram seu nascedouro no ínterim mitológico1, que, ao ser especificado e aprofundado, gerou uma roupagem mais crítica, analítica ou experimental dos fenômenos antes explicados apenas por uma oratória fantástica ou cercada de mistérios e velamentos: Para a razão, o mito, na acepção que aqui é adotada, não é ficção, engano e falsidade; é, isto sim, um modo de falar, ver e sentir dimensões da realidade, inatingíveis racionalmente, dando-lhes significado e consistência. Nesse sentido, o pensamento mítico põe limites à reflexão filosófica, que é de ordem estritamente racional, está aí toda a tradição milenar para constatá-lo. [...] O mito, portanto, é a tentativa de dizer o indizível [...]. O mito se revela como sendo a base de uma cosmogonia do pensamento humano: no mesmo esforço foram gerados os gêmeos mito e linguagem. Esse par, como os outros pares de irmãos na mitologia, gerou outro par de gêmeos: a atitude religiosa que é pensamento racional. A emoção de temor, de deslumbramento diante dos fenômenos, elevou o ser humano a balbuciar seus primeiros sons, que se tornaram vocábulos que, repetidos, vieram a ser nomes de deuses. (OLIVEIRA; LIMA, 2006, p. 2-3). A carga mítica do Éden na Terra, trazida pelos europeus, encontrou nos descobrimentos uma força de concretude e magnificência, em extensão e beleza, passíveis de “verificação” de existência do paraíso bíblico não vista antes. Foi desta complexidade situacional que emergiram os mitos de origem, ou fundacionais, destas regiões, com base no contexto de encontro com o Paraíso Terreal, no resgate bíblico do Gênesis: “Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.” (CHAUÍ, 2005, p. 9). Desta maneira, repetiu-se nas Américas uma carga mítica e imaginária preexistente, mas com uma força simbólica muito 1 “Só se compreende o mito pelo próprio mito. Quando as investidas não o destroem, no mínimo seu crivo de análise passa despercebido por ele. Pois, muito mais que a razão e a ciência, o mito está encarregado de conter, por uma espécie de “razão engajada”, aquilo que deve ser encarado como o plenamente humano. O mito é a maneira de vida que a ciência, embora almeje, jamais será. E se a ciência pretende transformar-se num modo de vida, como pode bem nos parecer na civilização altamente tecnicista de hoje, só o será miticamente. A ciência só destrói um mito criado por outro: o de si mesma. E, como por um paradoxo inesperado, vemo-nos hoje diante de uma tarefa cada vez mais inadiável: a de desmascarar o mito da ciência.” (OLIVEIRA; LIMA, 2006, p. 2) 13 maior, devido à concretude dos aspectos de comparação com mito presenciados pelos exploradores europeus. É também o posicionamento de Carvalho (2001), quando diz que “o descobrimento de novas terras trouxe uma nova imagem do mundo e novas formas de representa-lo, e muitas vezes esta imagem foi criada como uma utopia.” Neste caso, a repetição é já o processo de transferência do referencial mítico de um continente a outro, para posterior transformação dessa narrativa nos mitos de origem dos novos paraísos naturais encontrados, com seus medos, monstros e riquezas: “Pouco a pouco, mas não de uma vez por todas, os monstros e os povos estranhos deixaram de povoar os mapas, mas não sem antes serem transferidos de um continente para outro.” (CARVALHO, 2001, p. 104). O mito de origem surge como a explicação de algo novo para um contexto, situação, local ou temporalidade específicos. Não foi diferente no caso americano, e brasileiro em particular, já que, aqui, foram encontrados os habitantes e a própria terra acreditada sagrada, de maneira que a ideia de Paraiso Terreal serviu como suporte narrativo para a explicação da nova realidade, por meio dos mitos de origem, fundacionais e de conquista: “Portanto, todo mito de origem conta e justifica uma situação nova, quando, por exemplo, o homem se deparou pela primeira com o fogo, se recorreu a narrativas míticas para explicar esse acontecimento.” (OLIVEIRA; LIMA, 2006, p. 5). Há, desta forma, a origem do mito bíblico cristão, e o mito de origem paradisíaco americano que abarca em grande parte os elementos do sagrado e profano da crença cristã europeia da época. O melhor exemplo desta capacidade de adaptação do mito à realidade que o choca, comprova ou refuta é o processo de “deslocamento” da localização de seus rios, habitantes e riquezas de uma porção oriental bíblica para o agora atual e desconhecido ocidente atlântico: “Colombo ignorou soberbamente a sua própria descoberta, porque ela não condizia com a imagem do mundo que herdara. O Paraíso que premeditou ter alcançado só podia localizar-se ao Oriente, nunca a Ocidente.” (ARAÚJO, A. 2001, p. 174). Sobrea temática da localização do Éden, Holanda (2010) também aponta que: Ao majestoso de tal espetáculo imprimia ainda um cunho de mistério a versão de que as águas do mesmo rio vinham da região das nascentes do Nilo. Alcançando o lugar em 1445 por Denis Fernandes, dez anos depois um navegante veneziano a serviço do infante D. Henrique imagina-se, escudado no parecer “homens sábios”, em face de um dos muitos ramos do Gion, que nasce no Éden: outro ramo seria o Nilo. [...] Por incrível que possa parecer, a ideia continuou a ter crédito durante muitos séculos, e saiu mesmo fortalecida com o advento do cristianismo. Pois não está no Gênesis que manava do Paraíso Terreal um rio para o regá-lo, e dali se tornava em quatro ramos, o Fison, o Gion, o Heidequel e o Eufrates? Desde que os 14 três primeiros passaram a ser identificados como o Ganges, o Nilo e o Tigre, respectivamente, restava todavia um problema de difícil solução: onde e como chegariam suas correntes a confluir? Flávio Josefo dissera do Éden que era regado por um só rio, cuja corrente circunda a Terra, subdividida em quatro braços. A dificuldade foi por alguns resolvida com a sugestão de que as águas desse rio iam unir-se, na sua maior parte, por baixo da terra. (HOLANDA, 2010, p. 44-45). A questão dos “deslocamentos” da localização do paraíso, abordada pelo exemplo dos rios do Éden de Holanda (2010), também é mencionada por Carvalho (2001), segundo quem esses “deslocamentos” foram feitos para que a força do mito não interferisse na nova descoberta da fantasia tornada realidade no além-mar: “O que há de interessante e intrigante no Atlas Catalão c. 1450 (Anônimo) é o fato do Paraíso Terrestre ter sido deslocado da Ásia para a África, abaixo do Mar Vermelho, na Abissínia.” A autora ainda complementa que: “Mais do que as cartas marítimas, este Atlas apresenta não só novidades como o Cabo Verde na Costa africana, descoberto pelos portugueses em 1444, mas elementos da narrativa de Marco Polo sobre a Ásia de duzentos anos antes.” (CARVALHO, 2001, p. 5). Este processo duraria ao menos três séculos, até a afirmação territorial do Brasil, após a retomada do controle territorial português ao fim da União Ibérica em 1640 (HOLANDA, 2010). O processo histórico do deslocamento das riquezas paradisíacas chegaria, assim, até o século XX, sendo constatado, por exemplo, nas sucessivas campanhas expedicionárias em busca dos “sertões”, guardadores das benesses naturais. No Brasil, em governos como o de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e no período da ditadura militar, este discurso possuiu alto grau de perenidade e força política e simbólica. Assim, esses elementos de deslocamento, juntamente com a carga dos aspectos naturais inerentes das Américas, é que fez com que se evoluísse até o ponto de constatação o ideário de descoberta do Paraíso Terral. Este, por sinal, é o argumento de Arnaldo Barreto (2010) em uma pesquisa sobre livros, crônicas e postulados históricos e filosóficos que contribuíram para a construção do mito edênico. O autor cita cinco pontos que foram fundamentais para que a ideia de Paraíso Terral se fixasse como tal no imaginário europeu pós-descobertas continentais: 1ª) Localização incerta, abaixo da linha do Equador e longe do Velho; 2ª) Muito verde; 3ª) Clima nem frio e nem quente; 4ª) Abundância de água (primavera perene) 5ª) Habitantes terem a morte retardada. (BARRETO, 2010, p. 3-4). 15 Para efeito de ilustração e fortalecimento argumentativo, as falas dos navegantes em relação às terras americanas são, em conjunto, o melhor e mais importante documento de reverberação do discurso edênico no impacto de encontro destes explorados com o novo continente, para a formação dos mitos fundacionais e de origem destas localizações. Desse modo, apresentamos alguns exemplos com fim dialógico, do passado do mito fundacional do paraíso terrestre, até sua adaptação contemporânea, a começar pela Carta de Colón a los Reyes Católicos, de Cristóvão Colombo, que, em certo momento, diz: Yo siempre creí que la Tierra era esférica; las autoridades y las experiencias de Ptolomeo y todos los demás que han escrito sobre este tema daban y mostraban como ejemplo de ello los eclipses de luna y otras demostraciones que hacen de Oriente a Occidente, como el hecho de la elevación del Polo de Septentrión en Austro. Mas ahora he visto tanta deformidad que, puesto a pensar en ello, hallo que el mundo no es redondo en la forma que han descrito, sino que tiene forma de una pera que fuese muy redonda, salvo allí donde tiene el pezón o punto más alto; o como una pelota redonda que tuviere puesta en ella como una teta de mujer, en cuya parte es más alta la tierra y más próxima al cielo. Es en esta región, debajo de la línea equinoccial, en el Mar Océano, el fin del Oriente, donde acaban todas las tierras e islas... Torno a mi propósito referente a la Tierra de Gracia, al río y lago que allí hallé, tan grande que más se le puede llamar mar que lago, porque lago es lugar de agua, y em siendo grande se le llama mar, por lo que se les llama de esta manera al de Galilea y al Muerto. Y digo que si este río no procede del Paraíso Terrenal, viene y procede de tierra infinita, del Continente Austral, del cual hasta ahora no se ha tenido noticia; mas yo muy asentado tengo en mi ánima que allí donde dije, en Tierra de Gracia, se halla el Paraíso Terrenal. (COLÓN, 2014a, p. 4). Nesta carta, Colombo faz uma afirmação interessante, a de que é preciso rever a localização dos quatro rios edênicos, tendo em vista que o lugar onde chegara é o mais próximo do paraíso terreal que qualquer relato de exploração até aquela época tenha verificado. As características de imensidão dos rios da América central levam o genovês a dizer que se trata de uma origem infinita da parte austral do globo, terminando sua audição sobre os elementos edênicos, afirmando estar na Terra da Graça, o Paraíso Terreal (COLÓN, 2014b). Outro dos relatos de Colombo que contribui para a verificação da transposição imagética do Éden às Américas é o documento La llegada de Colón a la isla de Guanahaní (en las Bahamas), sobre sua chegada às Bahamas em 1492. Percebe-se o deslumbramento com a natureza, a riqueza faunística e florística, as constantes comparações com o imaginário edênico, e, o mais importante, a presença dos metais preciosos tão caros para as coroas europeias naquele período da Idade Média, o que, certamente, aumentou em grande escala o interesse econômico das cortes em suas recém-descobertas americanas: 16 Yo entendía harto de otros idios, que ia tenía tomados, cómo continuamente esta tierra era isla, e así seguí la costa della al oriente ciento i siete leguas fasta donde fazía fin, del qual cabo vi otra isla al oriente, distincta de ésta diez o ocho leguas, a la qual luego puse nombre la Spañola; y fui allí, y seguí la parte del setentrión, así como de la iuana al oriente CLXXVIII grandes leguas por línia recta del oriente así como de la Iuana, la qual y todas las otras son fortíssimas en demasiado grado, y ésta en estremo; en ella ay muchos puertos en la costa de la mar sin comparación de otros que yo sepa en cristianos y fartos rríos y buenos y grandes que es maravilla; las tierras della son altas y en ella muy muchas sierras y montañas altíssimas, sin comparación de la isla de centre frei, todas fermosíssimas, de mil fechuras, y todas andábiles y llenas de árboles de mil maneras i altas i parecen que llegan al cielo, i tengo por dicho que iamás pierden la foia, según lo puede comprehender, que los vi tan verdes i tan hermosos como son por mayo en Spaña, i dellos estauan floridos, dellos con fruto, i dellos en otro término, según es su calidad. I cantaua el ruiseñor i otros paxaricos de mil maneras en el mes de nouiembre por allí donde yo andaua; ay palmas de seis o de ocho maneras, que es admiración verlas, por la diformidad fermosa dellas, mas así como los otros árboles y frutos e ieruas. En ella ay pinares a marauilla, e ay canpiñas grandíssimas, e ay miel, i de muchas maneras de aues y frutas muy diuersas. En las tierras ay muchas minas de metales e ay gente instimabile número. (COLÓN, 2014b, p. 2). Também a exposição de um relato lusitano de chegada às Américas se nos apresenta igualmente relevante, a fim de compararmos alguns aspectos que diferenciam os dois contatos dos povos ibéricos. A seguir, um breve recorte da Carta de Caminha, escrita nos idos de 1500 para Portugal, na qual, após demonstrar alguma surpresa com o modo de vida dos nativos e sua cristianização2, logo volta a atenção aos bens naturais passíveis de exploração econômica imediata, devido ao bulionismo da época: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim! [...]E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. (CAMINHA, 2012, p. 8- 9). 2 “Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!” (CAMINHA, 2012, p. 8). 17 Outro ponto ressaltado por Caminha que merece destaque diz respeito à extensão das novas terras, pois ele deixa claro, já de antemão, a necessidade de um esforço de controle territorial muito maior para que a empreitada colonizadora se tornasse possível. Utilizando como unidade de comparação as regiões lusas, a carta expõe ao rei Do Manuel I – diferente do que ocorrera na porção espanhola das Américas – a ausência de ouro e prata, tendo como contrapartida a riqueza da terra, por sua fertilidade: Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa. Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-eMinho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! (CAMINHA, 2012, p. 10-11). Esta exaltação, tanto da extensão como das qualidades da terra para os seus moradores e visitantes, também é feita por Pero de Magalhães Gândavo, em seu relato intitulado Tratado da Terra do Brasil, editado em 1576, mas escrito muito antes: Os ares de pela manhã são mui frescos e sadios; muitas pessoas se costumam alevantar cedo porque se aproveitem deles em quanto tem esta virtude. A terra em si é lassa e deleixada; acham-se nela os homens algum tanto fracos e minguados das forças que possuem cá neste Reino por respeito da quentura e dos mantimentos que nela usam, isto e em quanto as pessoas são novas na terra, mas depois que por tempo se acostumam ficam tão rijos e bem dispostos como se aquela terra fora sua mesma patria. Manda-se dar nesta terra aos enfermos carne de porco, para qualquer doença e proveitosa, e não faz mal a nenhuma pessoa; o peixe também tem a mesma qualidade e põe muita sustância aos doentes. Esta terra e mui fértil e viçosa, toda coberta de altíssimos e frondosos arvoredos, permanece sempre a verdura nela inverno e verão; isto causa chover-lhe muitas vezes e não haver frio que ofenda ao que produz a terra. Há por baixo destes arvoredos grande mato e mui vasto e de tal maneira está escuro e serrado em partes que nunca participa o chão da quentura nem da claridade do Sol, e assim está sempre úmido e manando água de si. As águas que na terra se bebem são mui sadias e saborosas, por muita que se beba não prejudica a saúde da pessoa, a mais dela se torna logo a suar e fica o corpo desaliviado e são. Finalmente que esta terra tão deleitosa e temperada que nunca nela se sente frio nem quentura sobeja. (GÂNDAVO, 2014, p. 10) Uma característica comum a estas crônicas é o uso das descrições hiperbólicas para os aspectos naturais das terras americanas – igualmente nas cartas e descrições lusas e 18 espanholas –, para os vegetais e animais principalmente, conforme esmiuçado em outro trecho do relato de Gândavo: Há nestas partes muitos bichos mui feros e peçonhentos, principalmente cobras de muitas castas e de nomes diversos. Há muitos lagartos e grandes pelos rios d’água doce e pelos matos, cujos testículos serão melhor que almiscre. E a qualquer roupa que o cegam fica o cheiro pegado por muitos dias. Os bichos mais feroz e mais danosos que há na terra são tigres, e estes animais são deles tamanhos como bezerros, vão-se aos currais do gado dos moradores e matam muito dele e são tão ferozes e forçosos que uma mão que lança a uma vitela ou novilho lhe fazem botar os miolos fora e levam-no arrasto pela o mato. Também pela terra dentro matam e comem alguns indios quando se acham famintos. Sobem pelas árvores como gatos, e dali espreitam a caça que por baixo passa e remetem de salto a ela, e desta maneira não lhes escapa nada: alguns destes animais matam em fojos os moradores da terra. Toda esta terra do Brasil e coberta de formigas pequenas e grandes, estas fazem algum dano as parreiras dos moradores, e as laranjeiras que têm nos quintais; e se não forram estas formigas houvera porventura muitas vinhas no Brasil ainda que lá são pouco necessárias porque deste Reino vai tanto vinho que sempre a terra dele está provida. [...] Há também muitos lobos marinhos e porcos marinhos que se criam no mar e na terra. Outros muitos bichos há nestas partes pela terra dentro que será improvisei poderem se conhecer nem escrever tanta multidão, porque assim como a terra e grandíssima, assim são muitas as qualidades e feições das criaturas que Deus nela criou. (GÂNDAVO, 2014, p. 17). Há uma diferenciação entre as manifestações dos exploradores portugueses e dos espanhóis; enquanto os últimos são considerados os verdadeiros responsáveis pela criação e reverberação dos mitos edênicos (HOLANDA, 2010), percebe-se nos escritos portugueses a preocupação com o uso da Terra, como o exemplo dos metais preciosos, diferenciando-se, também, das comparações com o Paraíso Terral efetuadas, por exemplo, por Cristóvão Colombo em sua chegada às Antilhas. Sobre este tema, Lima (2011), com o auxílio dos escritos de Buarque de Holanda (2010), afirma que: Apesar das diversas semelhanças que possuíam os ibéricos, Sergio Buarque notava que entre os portugueses o vislumbramento da descoberta de novas terras era mais ameno, se comparado com o espanhol. Enorme era o contraste entre os relatos sóbrios dos cronistas portugueses e as fantasias e delírios em torno da natureza descoberta tão bem desenhada pelos castelhanos. Para os últimos, fatores como a amenidade das condições climáticas, a abundância de recursos naturais e a inexistência de doenças seriam fortes indicativos de que ali, aos redores da América, se encontrava o Paraíso. Os portugueses, em contrapartida, pareciam preferir descrições mais límpidas e limitadas ao campo do visível, muito provavelmente em função de seu pioneirismo na expansão marítima e de sua tradição, recém-iniciada, mercantil. As experiências adquiridas nas navegações e negociações pela costa do continente africano desde meados do século XV certamente corroboraram para uma visão mais utilitária, que tomasse mais cuidado com as sedutoras descobertas. Sergio Buarque de Holanda aponta que a maior parte dos mitos edênicos difundidos durante a conquista ibérica foram criações castelhanas. Quando alastrados entre os portugueses, tais mitos geralmente iam perdendo seu vigor, deturpando-se logo em seguida. (LIMA, 2011, p. 14). 19 Deste modo, a base mítica do Paraíso Terreal, como exposto, despertou nos navegantes europeus o senso de comparação de sua fonte mística originária, ou seja, as escrituras sagradas com o que era visto no contato com o Novo Mundo. Neste sentido, os nativos representaram o principal ponto de impacto na experiência do fantástico (em sua relação com Adão e Eva, por exemplo) tornada real nas Américas, como lembra Araújo (2001): “Símbolo ambíguo e obliterado pela distância do olhar que surpreende o gentio de outras latitudes, o homem silvestre presta-se a várias leituras.” A autora ainda complementa: “Por um lado, recorda o “homem primigênio”, bestial, entregue ao ciclo da natureza, por outro projecta no presente a face obscura da humanidade perdida desde o tempo da mítica Idade de Ouro da era cristã.” (ARAÚJO A., 2001, p. 173). Aqueles nativos seriam, então, os guardadores das terras de afloramento do ouro, presentes nas máximas do Gênesis bíblico, referência maior da projeção edênica americana. Ao contrário do que poderia se supor, o encontro com as novas terras não provocou um abalo na fundamentação mítica do Éden, mas acabou por reforçá-lo, dando-lhe novas interpretações, leituras e alcance. A Geografia Fantástica, como denomina Holanda (2010), é o resultado do processo de crescimento, fortalecimento e perenidade do mito de origem do Paraíso Terreal em relação às Américas. Houve uma adaptação do escopo racional, técnico e científico para a chegada desta nova base simbólica edênica: A parte que cabe aos portugueses nas origens da geografia fantástica do Renascimento acha-se, realmente, em nítida desproporção com a multíplice atividade de seus navegadores. Sensíveis, muito embora, às louçanias e gentilizas dos mundos remotos que a eles se vão desvendando, pode dizer-se, no entanto, que ao menos no caso do Brasil escassamente contribuíram para a formação dos chamados mitos da conquista. A atmosfera mágica de que se envolvem para o europeu, desde o começo, as novas terras descobertas parece assim rarefazer-se à medida que penetramos a América lusitana. E é quando muito à guisa da metáfora, que o enlevo ante a vegetação sempre verde, o colorido, variedade e estranheza da fauna, a bondade dos ares, a simplicidade e inocência das gentes – tal lhes parece, a alguns, essa inocência que, dissera-o já Pero Vaz de Caminha, “a de Adão não seria maior quanto à vergonha” – pode sugerir-lhes a imagem do Paraíso Terrestre. (HOLANDA, 2010, p. 43 – grifo nosso). Em concordância com Holanda (2010), Araújo (2001) utiliza a expressão “Geografia Imaginária” ao dissertar sobre a mescla entre a racionalidade técnica em evolução na época, simbolizada principalmente pela cartografia, e a carga mítica do Éden e seus elementos concretos encontrados nas novas descobertas marítimas: Neste contexto, e dada a reiterada incidência do imaginário edênico na fixação discursiva da paisagem desta parcela do Novo Mundo, vale a pena analisar, em 20 breves traços, a história da ilusão do Paraíso para melhor se perceber a sua utilização. Não é demais sublinhar que o sonho acordado dos modernos descobridores do Novo Mundo foi genuinamente impulsionado pela geografia imaginária transmitida pela Antiguidade e incorporada pela tradição cristã medieval. (ARAÚJO, A. 2001, p. 174). Araújo (2001) faz referência ao Paraíso como um lugar especial, fantasioso, espetacular e imaginário, um lugar que não o era, a utopia concretizada frente aos olhos daqueles que o apreciavam – assim apresentava-sea América para os primeiros europeus que aqui chegaram. Esta geograficidade da fantasia e do imaginário, para além do próprio mito edênico bíblico, é uma construção histórica, que encontrou seu reduto na realidade nos séculos XV e XVI: A ideia de um lugar especial, protegido por deuses, onde a vida humana seria farta e livre de sofrimentos, reservada aos mais crentes e aos bons homens nos acompanha desde há muito. O dito “Paraíso”, com forte influência das religiões abraâmicas, sempre esteve no imaginário de reis a escravos, e, no momento das grandes descobertas, muitos navegadores relataram o Novo Continente como o local dos relatos do livro do Gênesis, das histórias de Marco Polo e mesmo de Dante Alighieri. O objetivo aqui foi, pois, verificar a influência destes textos existentes antes das grandes descobertas e, mais ainda, apresentar aos leitores como os navegadores estavam impressionados e embriagados com a beleza do Novo Continente e a ideia de terem achado o Paraíso com as descobertas. (BARRETO, 2010, p. 1) No mesmo debate sobre a Geografia imaginária trabalhado por Araújo (2001), Lima (2011) utiliza o termo “transposição da geografia do Éden”, que se alinha com a “repetição do mito” já expressa anteriormente, ou seja, ao alastrar-se temporal e espacialmente, o mito e seus elementos, neste caso edênicos, acabam por repetirem-se, mas não sem antes adaptarem- se à nova realidade que os incorpora: A possibilidade deste cenário ideal se localizar no mundo terreno havia sido muito difundida nas populações cristianizadas da Europa medieval, principalmente pela leitura e difusão das descrições do livro do Gênese do Velho Testamento. A transposição da geografia do Éden para o Novo Mundo facilitou-se, sobretudo, pelo livre trânsito da linguagem analógica, hoje em desuso frente à preeminência que alcançaram as ciências exatas. (LIMA, 2011, p. 11). Podemos utilizar a representação de Abraham Ortelius (figura 01) na abertura capitular como recurso ímpar do impacto simbólico da ideação mítica do Novo Mundo para os europeus. A Ilha Brasil foi sendo deslocada nos mapas até chegar a sua atual localização; nosso país reivindicava a nomenclatura, e por esta razão há menções à existência da ilha Brasil das ilhas britânicas, Islândia, Canárias, Ilha da Madeira, até chegar na Ilha de Vera Cruz em 1500 (BUARQUE, 2010; LIMA, 2011). 21 Essas representações cartográficas ou menções em descrições dos viajantes antigos hoje configuram-se como registros da materialização mítica do Paraíso Terreal americano, no qual seriam encontrados as paisagens bíblicas referidas no Gênesis e, mais importante do que isso, nas quais todo um escopo de intencionalidade interventiva, ideológica, comercial, histórica e geográfica seria firmada ao longo dos séculos de exploração do Novo Mundo. A realidade receptora desta transposição da geograficidade do Éden, que é fantástica, pode até mesmo alterar o cânone da origem do mito, na composição da origem dessa localidade, como no caso das ilhas Brasil – e muitos séculos depois, no bioma amazônico brasileiro, principalmente no período dos militares no poder, como será visto no capítulo 4 desta Tese –, da tradição Céltica ao atual Estado nacional brasileiro: A mitologia da omninsularidade, campo fértil para a reabilitação do imaginário edênico, remetia também para a tradição céltica, cristalizada, nomeadamente, no relato da viagem de S. Brandão (século VI) e na lenda da existência de uma ilha denominada Brasil, representada, em forma de arquipélago concêntrico, na cartografia catalã, italiana, e portuguesa dos séculos XIV, XV e até XVI. (ARAÚJO, A, 2001, p. 177). De certo modo, o Paraíso Terreal encontrado na América possibilitou um efeito geométrico na curva de crescimento e desenvolvimento técnico e tecnológico do período Medieval, fornecendo, inclusive, os primeiros passos para o processo hoje em dia denominado Modernidade – como a fala de Colombo em relação ao formato esférico do planeta, um enfrentamento clássico da passagem dos dogmas medievais para o início das Luzes, embora ainda em sua fase renascentista. O encontro do Éden, apesar do tom nostálgico, mítico e fantástico, trazia consigo um forte discurso e prática de exploração e uso das riquezas presentes neste ambiente ao qual o ser humano pertencera e ao qual agora retornava para usufruir, conforme as prerrogativas bíblicas já mencionadas: Guiados pelo numinoso rasto do medo, os navegadores não escapam à forte tensão escatológica que perpassa a aventura das grandes expedições oceânicas. Vive-se um tempo em que se reaviva a condição trágica da humanidade pecadora e em que a busca do Paraíso funciona como motivo de fuga e de libertação. Nunca como nos alvores da modernidade foi tão intensa a divulgação e a especulação em torno da ideia do Paraíso terreal. [...] Entre o céu e a terra, dois destinos absorveram a nostalgia do passado e a esperança do futuro, consumando, de diverso modo, o desejo de redenção e de glorificação do homem. No plano escatológico, o Paraíso ideal, o Paraíso perdido de Adão e Eva, localizado algures a Oriente, simboliza o retorno à mítica Idade de Ouro, à pureza dos tempos iniciais, plenos de abundância, beleza, amenidade e juventude. Ora, é justamente a mirifica atração exercida por este último motivo edênico que galvaniza o olhar deslumbrado do genovês Cristóvão Colombo, primeiro ao chegar às Antilhas, em 1492, e mais tarde, na sua terceira expedição, ao descrever a costa do Pária, movido ainda pelo pressentimento 22 de estar na antecâmara do Jardim do Éden. À vista novas terras de insuspeitável esplendor, a nostalgia do Jardim do Éden ressurge com motivos bem conhecidos e de há muito explorados. (ARAÚJO, A, 2001, p. 175). Assim, a realidade alterou a base mítica, a fim de abarcá-la enquanto comprovação da existência dos seus elementos fantásticos presentes nas escrituras sagradas. E o modo encontrado para a consumação deste embate entre o racional/técnico e o mítico/fantasioso, inevitável do ponto de vista econômico, foi o maior projeto intercontinental e ultramarítimo de empreendimento colonizador/explorador já visto na história da humanidade. Como fechamento desta etapa do trabalho, apresentamos quatro exemplos de mapas, dois dos quais constam na obra de Holanda (2010) como referência histórica, e podem contribuir para a noção de união entre os elementos geográficos da fantasia e mítica edênica e o processo de racionalização, imposto e inerente ao próprio desenvolvimento técnico e científico das grandes navegações. Na Carta Geográfica de Giovanni Battista Ramusio, de 1552, há duas características que precisam ser relevadas para que se possa compreender melhor seu papel no contexto edênico da mitologia imaginária europeia da época de sua elaboração, quais sejam, em primeiro lugar, a falta de uma base exata para projeção, verificada principalmente pela ausência de padronização das proporções, solucionável com meridianos e paralelos, não utilizados; e, em segundo, as várias figuras de grande porte nos mares, prelúdio dos ecos de Moby Dick. O segundo mapa é do cartógrafo árabe Piri Reis, e data de 1513, com foco no litoral da América Portuguesa; o principal aspecto a ser notado é a utilização de figurações imagéticas dentro das projeções cartográficas, prática que, conforme a técnica científica da cartografia avançava ao longo dos séculos, seria cada vez menos utilizada, à medida que as as representações das extensões espaciais, de forma mais direta e precisa, eram priorizadas. 23 Figura 04: Mapa de Giovanni Battista Ramusio, Primo volume dele navigationi et viaggio in molti, 1552. Fonte: Holanda (2010, p. 297). Figura 05: Fragmento do mapa de 1513. Piri Reis (Muhiddin Piri), Istambul. Fonte: Mapoteca do Itamaraty, Rio de Janeiro. (GUEDES, 2009, p. 99). 24 Figura 06: Pierre Descelliers (original: 59,5x77,5cm), 1546. Fonte: Mapoteca do Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores, Brasília, Brasil (Mapa 1993) Figura 07: The eastern Pacific Ocean with Central America and parts of North and South America, 1558 de Diego Homem. Fonte: http://www.vanderbilt.edu/esss/resources/maps.php https://www.flickr.com/photos/britishlibrary/12458925725/in/photolist-jYXfye-6kmcZm-6kgXPr-eehQWZ-aQMj4r-6km9js-6kmbWU-8czvSe-8cCPow-6kh2bi-6kmdVy-6kh3hP-6kmgRy-6km7NJ-6kh14Z-6kmfxC-6km95J-6km7Yy-6km9xY-6kgWnV-6kmaYf-6kgXv6-6kgY54-6kmawm-8TL5Kw-dtm5Fy-7vWBwJ-48JZXi-9k2YDj-nTqA9t-6km7w1-6kmbGW-6kmbpm-6km8T9-6kgYUc-6km73J-6kmg1f-6kh54F-6kh3An-4YqRtv-kBDWWn-vTKTD-989dE-dsYDEb-dt51ht-dmPr6c-dmPtUy-dmPr2H-dmPr9M-dmPtSL/ https://www.flickr.com/photos/britishlibrary/12458925725/in/photolist-jYXfye-6kmcZm-6kgXPr-eehQWZ-aQMj4r-6km9js-6kmbWU-8czvSe-8cCPow-6kh2bi-6kmdVy-6kh3hP-6kmgRy-6km7NJ-6kh14Z-6kmfxC-6km95J-6km7Yy-6km9xY-6kgWnV-6kmaYf-6kgXv6-6kgY54-6kmawm-8TL5Kw-dtm5Fy-7vWBwJ-48JZXi-9k2YDj-nTqA9t-6km7w1-6kmbGW-6kmbpm-6km8T9-6kgYUc-6km73J-6kmg1f-6kh54F-6kh3An-4YqRtv-kBDWWn-vTKTD-989dE-dsYDEb-dt51ht-dmPr6c-dmPtUy-dmPr2H-dmPr9M-dmPtSL/ 25 Nas outras duas projeções, a união dos elementos racionais e fantásticos ainda podem ser constatadas. No mapa de 1546 de Pierre Descelliers, é possível observar alguns seres fantásticos no mar, que podem ser leviatãs, e no interior da porção sul do continente americano, parece haver hipogrifos, apesara carga de técnica cartográfica considerável, que se pode constatar na tentativa de traços a partir de rosas dos ventos em suas extremidades. O mapa de Diego Homem, de 1558, cujo foco é a costa da porção sul da América, embora não apresente os mesmos elementos fantásticos que o anterior, apresenta, por outro lado, grande inexatidão na projeção, representação e dimensões continentais que a carta cartográfica propõe retratar. São estes aspectos comentados em relação aos dois últimos mapas que Araújo (2001) ressalta como passos de um longo processo de desenvolvimento da Cartografia, que, com o advento das grandes navegações, abrangeu cada vez mais vastos horizontes de complexidade e precisão: Com o tempo, a visão tripartida do mundo e a concepção hierárquica e fechada legada pela cosmografia antiga serão corrigidas, mas os elementos desse maravilhoso mundo perdido voltam a reencontrar-se no terreno dos mapas que mudam de aspecto e de configuração. A precisão invade o campo da cartografia mas o encantamento ou a repulsa resultante do contacto direto com gentes e espaços tão estranhos quanto inesperados não deixa de incitar à recriação do fabuloso e do fantástico. Quer isto dizer que as categorias do imaginário medieval europeu não só persistiram como se adaptam a um horizonte geográfico em transformação acelerada [...] (ARAÚJO, A. 2001, p. 175). O que a autora reforça em seus argumentos é a concretização, por meio destes mapas, das significações, simbologias, mitos, crenças e temores de toda uma sociedade, a europeia. Tanto do ponto de vista profano como do sagrado, é possível visualizar estes dois extremos nos mapas das Américas, o fictício trasladado para o real nas figuras,