unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara – SP JACOB DOS SANTOS BIZIAK ENTRE O CLARO E O ESCURO: UMA POÉTICA DA ANGÚSTIA EM SARAMAGO ARARAQUARA – S.P. 2015 JACOB DOS SANTOS BIZIAK ENTRE O CLARO E O ESCURO: UMA POÉTICA DA ANGÚSTIA EM SARAMAGO Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi ARARAQUARA – S.P. 2015 ______________________________________________________ _______________________________________________________________________ Biziak, Jacob dos Santos.
 Entre o claro e o escuro: uma poética da angústia em Saramago /Jacob dos Santos Biziak – 2015 135f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientadora: Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi l. romance contemporâneo. 2. angústia. 3. psicanálise.
 4. filosofia. 5. Saramago, José. I. Título. JACOB DOS SANTOS BIZIAK ENTRE O CLARO E O ESCURO: UMA POÉTICA DA ANGÚSTIA EM SARAMAGO Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientador: Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi Data da defesa: 29 de abril de 2015 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: _________________________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho _________________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Guiomar de Grammont – Universidade Federal de Ouro Preto _________________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Maria das Graças G. V. Silva - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho _________________________________________________________________________________________ Membro Titular: Profa. Dra. Marisa Gianechini - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho _________________________________________________________________________________________ Membro Titular: _________________________________________________________________________________________ Local: Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara AGRADECIMENTOS Toda restrição é problemática à medida que obriga-nos a tentar uma plenitude que dificilmente pode ser atingida. Dessa forma, naquilo que se pretende como agradecimentos, temos as restrições da palavra – que nem sempre traduz plenamente o pretendido –, do afeto – que nem sempre pode ser traduzido plenamente – e das pessoas com que convivemos – já que há o medo sempre presente de não se esquecer ninguém. À minha família, pela origem e pela minha narrativa existencial. Em especial, aos meus pais, Hélio e Maria, pelo cuidado em sempre querer nos deixar bem e, por meio de suas atitudes, me estimularem a sempre pensar no que eu sou e no que desejo. Ao meu irmão também, Juliano, que, por meio de nossa relação de identidade e de diferença, me ajuda a tentar entender minha constituição como sujeito. À minha orientadora, Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi. Muita coisa poderia ser dita, mas é importante deixar muito explícito, aqui, o fundamento que ela é para a minha trajetória dentro da UNESP. Ela, com certeza, exerce o sentido de “orientar”: tudo começou na iniciação científica, depois mestrado e, agora, doutorado. A amizade dela é muito importante. Acima de tudo, ela sempre me estimulou a fazer algo bem e bom: uma das maiores críticas do meu trabalho, pelos elogios sinceros e pelos “puxões de orelha” imprescindíveis. Qualquer “muito obrigado” não traduzira o sentido dela para mim. A todos os funcionários da UNESP, em especial os da Pós-graduação, agradeço por me ajudarem a tornar os caminhos da pesquisa mais fáceis. Às bancas examinadoras da qualificação e da defesa. Dirijo não só meu agradecimento pelas observações sempre requintadas sobre meu trabalho, mas, especialmente, por se disporem a ceder seu tempo ao meu texto. Especialmente, agradeço a professora Dra. Maria das Graças Gomes Villa da Silva, por ter me apresentado Freud e Lacan, e a professora Dra. Maria Gianecchini, por, mais de uma vez, ter me ouvido e opinado sobre minhas ideias. A todos os meus alunos. Com vocês aprendi a desenvolver uma paternidade do cuidar; além disso, quando estou com vocês – ensinando e aprendendo – sinto que estou um pouco mais vivo, e isso se reflete em quase toda a minha essência cotidiana e em meus motivos de pensar sobre as possibilidades de futuro. A meus amigos todos. Cada um é fundamental nesse meu processo de busca de significados para aquilo que só pode ser bordeado, nunca completamente preenchido, a existência. Queria colocar muitos nomes, mas acho que isso feriria o meu intento, já que dificilmente contemplaria a importância de todos. Sendo assim, deixo o silêncio. Como diz Drummond, com ele e nele dialogamos. Ele envolve-nos e permite que os sentidos passem de um a outro. Amo vocês. Nem toda palavra é Aquilo que o dicionário diz Nem todo pedaço de pedra Se parece com tijolo ou com pedra de giz Avião parece passarinho Que não sabe bater asa Passarinho voando longe Parece borboleta que fugiu de casa Borboleta parece flor Que o vento tirou pra dançar Flor parece a gente Pois somos semente do que ainda virá A gente parece formiga Lá de cima do avião O céu parece um chão de areia Parece descanso pra minha oração A nuvem parece fumaça Tem gente que acha que ela é algodão Algodão as vezes é doce Mas às vezes é doce não Sonho parece verdade Quando a gente esquece de acordar E o dia parece metade Quando a gente acorda e esquece de levantar Ah e o mundo é perfeito Hum e o mundo é perfeito E o mundo é perfeito Eu não pareço meu pai Nem pareço com meu irmão Sei que toda mãe é santa Sei que incerteza traz inspiração Tem beijo que parece mordida Tem mordida que parece carinho Tem carinho que parece briga Briga que aparece pra trazer sorriso Tem riso que parece choro Tem choro que é por alegria Tem dia que parece noite E a tristeza parece poesia Tem motivo pra viver de novo Tem o novo que quer ter motivo Tem a sede que morre no seio Nota que fermata quando desafino Descobrir o verdadeiro sentido das coisas É querer saber demais Querer saber demais Sonho parece verdade Quando a gente esquece de acordar E o dia parece metade Quando a gente acorda e esquece de levantar Mas o sonho Sonho parece verdade Quando a gente esquece de acordar E o dia parece metade Quando a gente acorda e esquece de levantar Ah e o mundo é perfeito Mas o mundo é perfeito O mundo é perfeito... (“Sonho de uma flauta”, Fernando Anitelli) RESUMO Pensando na especificidade da representação artística do ficcão romanesca contemporânea, entendemos que há uma nova postura diante do que seria a realidade e das suas possibilidades de ganhar contorno pela linguagem. Sendo assim, esta pesquisa busca articular a mimesis empreeendida pelo romance contemporåneo e o comportamento do narrador. Logo, ocorre um questionamento – muitas vezes, metalinguístico – do “real” criado pela diegese. O narrador promove mais um bordeamento do que um preenchimento de sentido; o que nos levou à ideia de que a narração do romance contemporâneo se estrutura como angústia. Então, acreditamos que o narrador é o elemento narrativo central para termos acesso à construção da realidade apresentada pela ficção romanesca contemporânea. Diante disso, elegemos a angústia como afeto majoritariamente presente dentro deste romance, não só enquanto tema, mas também como constituinte da estrutura diegética. Dada esta situação, escolhemos dois romances de Saramago – pertencentes a fases distintas da obra do escritor, História do cerco de Lisboa e Ensaio sobre a cegueira – como exercício de análise dentro da proposta descrita anteriormente. Por fim, esta pesquisa busca não somente contribuir com estudos a respeito do romance contemporâneo, mas também sobre o funcionamento do narrador diante da tarefa de representar uma realidade. A respeito da metodologia, sobre a mimesis, a obra de Luiz Costa Lima é fundamental ao trabalho; principalmente pelo percurso diacrônico que propõe, ao mesmo tempo em que revê suas próprias postulações sobre o assunto. A obra de Genette é a base que permitiu fazer os estudos sobre narrador evoluírem em nosso trabalho. Sobre a angústia, são centrais as obras de três pensadores: Kierkegaard, Freud e Lacan (além de obras de intepretação da arte a partir destes mesmo autores). PALAVRAS-CHAVE: ANGÚSTIA, FILOSOFIA, PSICANÁLISE, ROMANCE CONTEMPORÂNEO, JOSÉ SARAMAGO ABSTRACT By thinking about the artistic representation specificity of the contemporary novelistic fiction, we understand that there is a new attitude towards what reality and its possibilities of gaining an outline through language would be. Thus, this research aims at articulating the mimesis that is undertaken by contemporary novel and the narrator’s behavior. Therefore, a questioning occurs – which is, many times, a linguistic one – about the “reality” created by diegesis. The narrator promotes a bordering more than filling the meaning, which led us to the idea that the narration of the contemporary novel is structured as anguish. So, we believe that the narrator is the central narrative element for us to access the construction of the reality presented by the contemporary novelistic fiction. In view of that, we have chosen anguish as an affection mostly present inside this novel, not only as a theme, but also as component of the diegetic structure. Given this situation, we have chosen two novels by Saramago that belong to different phases of the writer’s work, História do Cerco de Lisboa and Ensaio sobre a cegueira – as an exercise of analysis within the previously described proposal. Finally, this research seeks not only to contribute with studies about the contemporary novel, but also about the functioning of the narrator in face of the task of representing a reality. To what concerns methodology, the work of Luiz Costa Lima is essential to our study about mimesis, mainly because of the diachronic trajectory he proposes at the same time he reviews his own postulations about the issue. The work of Genette is the basis that allowed us to evolve in our studies regarding the narrator. In relation to anguish, the work of three thinkers is central to us: Kierkegaard, Freud and Lacan (besides works about art interpretation by the same authors). KEYWORDS: ANGUISH, PHILOSOPHY, PSYCHOANALYSIS, CONTEMPORARY NOVEL, JOSÉ SARAMAGO. SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................. 9 Capítulo 1 – Em busca do sujeito perdido: angústia e ficção ............................................. 14 1.1. Romance e representação da realidade ...................................................... 14 1.2. A liquidez contemporânea e a permeabilidade da ficção ......................... 26 1.3. A angústia e suas (im)possibilidades de nomeação ................................... 30 1.3.1. O absurdo em Kierkegaard ..................................................................... 31 1.3.2. O desamparo freudiano ........................................................................... 37 1.4. Apertando o nó ............................................................................................. 47 Capítulo 2 - O escuro através do claro: a cegueira, a narração e a existência .................. 50 2.1. Considerações preliminares ......................................................................... 50 2.2. A narração iluminada de cegueira e a escuridão das personagens .......... 55 2.3. A existência como intervalo: entre o que vemos e o que nos olha ............ 79 Capítulo 3 - O sujeito perdido entre as sendas das histórias: a sua e a do mundo ........... 85 3.1. Considerações preliminares ......................................................................... 85 3.2. O narrador: sobre a (im)possibilidade do narrar ...................................... 90 3.3. As personagens em liberdade condicional ................................................ 101 Conclusão – uma poética do inconcluso ............................................................................. 116 Bibliografia ............................................................................................................................ 128 Bibliografia citada ............................................................................................. 128 Bibliografia consultada ..................................................................................... 132 9 Introdução Eu faço versos como quem chora De desalento , de desencanto Fecha meu livro se por agora Não tens motivo algum de pranto Meu verso é sangue , volúpia ardente Tristeza esparsa , remorso vão Dói-me nas veias amargo e quente Cai gota à gota do coração. E nesses versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre Deixando um acre sabor na boca Eu faço versos como quem morre. (Manuel Bandeira, “Desencanto”1) Esta pesquisa, que agora se consolida em tese, tem um longo período de gestação. Durante a graduação, realizando a pesquisa “O jogo dos tempos no Romantismo português: a narrativa histórica de Herculano”, tive a possibilidade de entrar em contato com o método de pesquisa acadêmico e iniciei – hoje sei disso – uma busca pelas formas, pelas maneiras do homem representar a realidade que pretende. Após o fim da graduação, em 2006, iniciei o mestrado em Estudos literários, defendendo, em 2009, a dissertação “Entre o mítico que dá a certeza e o questionamento que dá a dúvida: os olhares de Herculano e Saramago sobre a realidade histórica de Portugal. Em que(m) você crê?”. Nela, pude realizar uma análise comparativa entre a obra de temática histórica dos dois escritores lusitanos após fazer um levantamento, de base filosófica, das mudanças que afetam a concepção de sujeito e, logo, de realidade, bem como de sua representação artística. O texto que agora se apresenta faz parte desta reflexão que, na verdade, nunca perdeu seu foco: a moldagem, a construção da realidade por meio da ficção. É importante perceber 1 BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira – Antologia. São Paulo: Global Editora, 2013. 10 como, por meio das leituras feitas, das conversas com outros professores e das disciplinas cursadas, a pesquisa foi apontando para um novo alvo. Inicialmente, o projeto apresentado no processo de seleção para o Doutorado em Estudos literários envolvia a relação entre medo e espaço na obra de três escritores que teriam seus romances comparados. Primeiramente, descobri que, na verdade, o que procurava era algo um pouco mais complexo que o medo: a angústia. Em segundo lugar: o corpus precisava ser mais bem delimitado para que a pesquisa realmente rendesse análises mais profundas; vem daí a decisão por Saramago, o qual já vinha tendo seus livros estudados por mim há mais tempo. Finalmente, desloquei nossa visão para a construção do narrador e do percurso existencial das personagens ficcionais como categorias narrativas de sustentação da análise. O primeiro passo para a transformação que culminou no que é esta pesquisa hoje foi o contato com a obra do pensador dinamarquês Kierkegaard. Isso só foi possível graças a uma palestra, ministrada pelo professor André Bordini, e graças também à colaboração da Profa. Dra. Juliana Vendrusculo, especialista em fenomenologia existencialista. Ali, iniciou-se uma busca pelo pensamento, ideias e obras do pensador do “absurdo da existência”. Por meio de alguns livros dele2, pude começar a refletir sobre o conceito de angústia. Mais do que isso, foi necessário pensar em qual contexto, o século XIX, surgiram tais reflexões e como o papel de Kierkegaard foi decisivo para que estas passassem a existir. Em 2011, ainda, por meio da disciplina da Profa. Dra. Maria das Graças Gomes Villa da Silva, entrei em contato seguro com a obra de Freud. De novo, importante, também, foi entender o contexto em que as reflexões do “pai da psicanálise” surgiram, a fim de que se entendessem melhor as suas ideias. Apesar das diferenças de base epistemológica entre ambos os pensadores, acabei por entender que há muitos elementos que os aproximam na tentativa de compreender o que define a angústia. Dessa forma, nossa base teórica para discutirmos e analisarmos a presença da angústia na ficção contemporânea será a obra de Kierkegaard e de Freud. Importante frisar que ambos foram escolhidos não somente por terem abordado a questão da angústia, mas também porque o contexto histórico em que nascem suas obras coincide com o surgimento da chamada arte moderna, na qual os conceitos de real, de sujeito e de representação serão reavaliados. Mas, antes mesmo de esclarecermos o que, aqui, se entende por angústia, entendo ser necessário, de antemão, localizar a especificidade que envolve o romance contemporâneo. Afinal, que peculiaridades o definem e, acima de tudo, como sua estrutura acaba sendo 2 Os livros a que fazemos referência nesta “Introdução” serão apontados no primeiro capítulo. 11 trabalhada por alguns escritores de maneira a conseguir abordar o tema da angústia também a ponto de esta ser representada pelo plano da expressão do romance e não somente pelo conteúdo? Assim, preocupei-me, de início, em percorrer rapidamente o processo de desenvolvimento do romance enquanto gênero até o alvorecer do século presente. Aqui, serão importantes os olhares de Luiz Costa Lima, Catherine Gallagher, Marthe Robert e de Karlheinz Stierle, a fim refletir a respeito do estatuto da arte e, acima de tudo, da representação da realidade no romance. Feito isso, minha preocupação será a de conciliar estas ideias com o contexto histórico e social em que surge a ficção contemporânea, uma vez que este, em larga medida, nos ajuda a entender a condição em que o ser humano está inserido e como sua visão de realidade3 acaba sendo afetada. Para abordar a questão do contemporâneo, de suas possibilidades de significação, escolhi parte da obra de Zygmunt Bauman e do filósofo italiano Giorgio Agamben. Aqui, minha intenção é associar a evolução do romance enquanto gênero literário à modernidade histórica. A partir desta etapa preliminar, entrei, então, em um terreno mais complexo: a delimitação do que, nesta pesquisa, será entendido como angústia. Aqui, os desafios são mais de um: buscar mostrar os pontos em que as ideias de Kierkegaard e de Freud se encontram, ainda que tendo bases diferentes; conseguir deixar clara a importância do período histórico em que tais ideias surgiram para que as mesmas sejam melhor compreendidas; apontar para a peculiaridade da “angústia contemporânea” e das (im)possibilidades desta ser representada pela atividade artística. Como será apontado ao longo do trabalho e da bibliografia final, mais de cinquenta livros relativos ao tema da angústia foram estudados, a fim de que realmente a qualidade de minhas reflexões ficasse o menos comprometida possível. O resultado destas leituras constituem o primeiro capítulo da tese, em que firmamos o chão em que as análises transcorrerão. É importante deixar claro que tipo de leitura interpretativa pretendi fazer: não se trata de fazer filosofia a partir da literatura ou de fazer psicanálise a partir de literatura. Não queis partir de um em direção ao outro. O que pretendi foi ler um com ajuda do outro. Esta tese lida com autores, Kierkegaard e Freud, cujas obras assistiram ao nascimento de uma nova maneira de representação do real em arte, em ficção romanesca. O próprio Freud, em mais de um 3 Neste caso, entendo por “realidade” somente aquilo que estaria “fora” do sujeito: o mundo, as demais pessoas, as instituições. Esta definição, na verdade, acaba sendo um tanto pobre uma vez que é muito difícil separar o interno do externo, já que somente por meio da linguagem humana este é capaz de se fazer ouvir. 12 momento, apóia-se em textos literários para exemplificar conceitos ou situações. A visão de ser humano, de sujeito, que vemos em Saramago e no romance contemporâneo de forma geral, tem suas origens remontadas também a esses dois pensadores e suas ideias. Assim, trata-se de fazer uma leitura dos romances, levando em conta a porosidade que existe entre filosofia, psicanálise e literatura. Trata-se de pensar um com o outro para refletir sobre uma questão mais ampla: a representação artística da angústia. Assim, em seguida, passei ao estudo dos dois romances de José Saramago escolhidos para esta pesquisa. Em primeiro lugar, justifica-se a escolha: entendo que a obra deste autor, como um todo, conseguiu abarcar a contemporaneidade sem se esquecer de dois elementos: de discuti-la junto ao tecido ficcional e de buscar as origens do que seja nossa época hoje. O próprio Saramago, por meio das inúmeras entrevistas que concedeu, sempre deixou muito claro que a questão não é somente política ou econômica, mas, principalmente, de como aquilo que é humano acaba sendo moldado – e até prejudicado – por aquilo que o rodeia e que nos chega, inevitavelmente, por meio de um instrumento: a linguagem. Assim, entendo a obra deste autor como um representante perfeito de parte das características que adquiriu o romance na contemporaneidade. Escolhi, então, dois romances para serem estudados: História do cerco de Lisboa (1989) e Ensaio sobre a cegueira (1995). O primeiro já foi alvo de nossos estudos no mestrado; além disso, representa um momento específico da obra de Saramago: o da preocupação com a história e com a tensão existente entre o universo que rodeia o homem e a constituição do sujeito; esta, por sua vez, é a temática fundamental do segundo romance. Nele, mais do que a preocupação com a história e/ou o social, vê-se o intuito de se representar e de problematizar a constituição subjetiva do homem. Os dois romances, assim, constituem momentos distintos da obra de Saramago, como se, no primeiro, o homem fosse observado predominantemente mais por fora; no segundo, por dentro. Optei, escolhidas as obras e justificadas as escolhas, por primeiro apresentar a análise de Ensaio sobre a cegueira. Isso foi feito porque, nesta obra, os elementos temáticos que remetem à angústia são muitos mais nítidos do que os presentes no outro romance. Além disso, em História do cerco de Lisboa, a angústia como elemento organizador da estrutura narrativa é algo fundamental, mas mais difícil de ser percebido. Sendo assim, como uma espécie de gradação, optei por começar pela obra de 1995 não por ser mais fácil, mas, uma vez que os elementos temáticos de angústia nela são mais flagrantes que os estruturais, entendi, como estratégia, que seria mais conveniente iniciar por este romance, para, em seguida, passar à análise da obra de 1989. 13 Para a análise da presença da atmosfera de angústia nestes dois romances tomei como instrumento metodológico a obra de Gerard Genette (s.d.), por meio da qual pensarei a respeito da construção dos narradores. Sendo assim, em termos de estrutura narrativa, meu foco será de fato a análise dos enunciadores presentes em cada romance e as diversas relações construídas, por exemplo, com o ritmo narrativo, com o plano da enunciação e o do enunciado, com os personagens centrais. Em seguida, busquei um diálogo entre estas relações e a base teórica a respeito da angústia, enquanto afeto, escolhida para este trabalho. Por fim, o que busco na conclusão é, além de um estudo comparativo entre os dois romances e de sua representação da angústia, apontar para elementos variantes e invariantes em outros romances de Saramago, a fim de que seja avaliada a possibilidade de existir uma certa “poética da angústia” dentro da obra do autor português. Assim, esta pesquisa de doutorado possui, além da intenção de apontar novos caminhos interpretativos para a produção ficcional de Saramago, a de refletir sobre a constituição do sujeito contemporâneo – marcado pela falta e pela provisoriedade – em sua relação com as suas representações do “real”. Dessa forma, a ideia do título desta tese parte daquilo que acredito ser o movimento intervalar da angústia: sempre entre o velar (“escuro”) e o revelar (“claro”), permanecendo oculto aquilo que deveria ser sempre posto em cena. Quando ocorre o retorno do reprimido, o que se desencadeia é a angústia, sempre sob um efeito de estranhamento; é a iluminação da condição humana primordial sob uma “luz suja”4, opaca. Trata-se de um trabalho inédito no que diz respeito a dois aspectos fundamentais: primeiro, pela aproximação entre os dois romances já mencionados como corpus; segundo, pela articulação entre angústia e romance contemporâneo, principalmente no que tange a José Saramago. Além disso, acho importante encerrar esta introdução dizendo que o a ser lido aqui é fruto de uma síntese envolvendo mais que os livros consultados. Durante as pesquisas, leituras, disciplinas, pude ter o privilégio de conviver com muitas pessoas diferentes; graças, principalmente, ao meu trabalho-paixão de professor. Assim, minha atividade como crítico literário é extremamente devedora desse contato tão intraduzível com meus alunos, colegas de trabalho e familiares. Uma vez que minha matéria-prima é algo tão humano, pude contar com o que de mais instável existe para traduzir parte do que será lido nesta tese: o próprio ser humano. 4 Uma das expressões utilizadas, em Ensaio sobre a cegueira, como recurso descritivo da ambientação do manicômio. 14 Capítulo 1 – Em busca do sujeito perdido: angústia e ficção 1.1. Romance e representação da realidade Onde começo, onde acabo, se o que está fora está dentro como num círculo cuja periferia é o centro? (Ferreira Gullar, “Extravio”5) Falar sobre mímesis não é algo fácil 6 : o seu entendimento – por mais que seja sincrônico – deve ser encaixado numa sequência diacrônica para que, realmente, se tenha noção do fenômeno da representação artística. No Brasil, um dos maiores expoentes desse tipo de pesquisa é Luiz Costa Lima: vários são os trabalhos produzidos e publicados pelo pesquisador que, inclusive, assume que, de uma obra para outra, reformulou sua visão sobre o assunto. Em sua obra Mímesis: desafio ao pensamento (2000), tem-se um rico arcabouço de reflexões que muito foram úteis ao desenvolvimento deste trajeto. Nesse livro, Costa Lima faz um traçado que compreende, basicamente, o pensamento de Descartes, Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Foucault e Freud. Atravessando a obra dos diversos intelectuais acima citados, percebe-se como existe uma espécie de abertura de uma concepção de mundo em relação a outra. “Abertura”, aqui, é usada no sentido de dar espaço, de levar em conta novas concepções do real, da realidade. Na verdade, é imprescindível dar-se conta da importância de se rever o conceito de sujeito em cada uma das épocas e dos pensadores estudados para que se tenha real noção do quanto o conceito de mímesis se transformou a ponto de alterar a nossa própria definição do que é tido com real e como arte e/ou ficção. Costa Lima (1985) distingue dois tipos de representação artística possíveis e que comumente são confundidas entre si. A imitatio corresponderia àquela representação que pretende ser a cópia exata da realidade externa ao discurso literário, como desejavam os classicistas do século XVI. A mimeses, por outro lado, seria, como entende o próprio Aristóteles, a imitação não da realidade cotidiana, mas de uma realidade que seria possível dentro do contexto criado na obra artística segundo a verossimilhança. Além disso, o processo 5 GULLAR, Ferreira. Ossos e vozes – guaches, nanquins e gravuras de Gianguido Bonfati. Rio de Janeiro: Editora ContraCapa, 2010. 6 Este tópico tem a intenção de possuir um perfil diacrônico que localizem minhas reflexões sobre a mudança de paradigma no estatuto da representação artística na ficção. 15 de representação literária depende do sujeito que a cria e, consequentemente, do que este entende por realidade, por ser humano. Antes dos primeiros românticos, Descartes, ao louvar a capacidade cognoscitiva do ser humano, considerava a mímesis uma das potências a ser acusada e desbancada. Prova disso é a eleição da imitatio – espécie de cópia perfeita e literal da realidade – como princípio de orientação. O procedimento cartesiano é a construção de um modelo representativo da natureza que não estabelece com o mundo real nenhuma relação mimética de semelhança (Costa Lima, 2000, p. 85). A “imitatio”, não a mímesis, é meramente um guia, um auxiliar retórico subordinado à observação geométrica e ao cálculo matemático, sendo que os sentidos e a imaginação são alijados do homem cartesiano. Contra a insegurança dos sentidos, que enganam o homem com aparências, deve-se contar com uma constância, ou seja, ser “algo que pensa”. A certeza proposta passa pela suspeita do corpo, que só serviria para a ação da mente; logo, a clássica separação entre corpo e alma é reafirmada, mas com fim diverso daquele presente no telos religioso (ibidem, p. 88). Chegamos, então, ao conceito de representação para Descartes e seu sujeito solar. A mímesis cartesiana é o mesmo que a “imitatio”, em que o conhecimento ocorre sob uma via tão imperiosa que se imporia à vontade do próprio Deus, já que com ela se confundiria. A razão, mesmo pertencendo a um ser finito, possui em si a perfeição atribuída ao Criador. O cogito apresenta-se como entidade infinita peculiar, sendo materialidade imaterial dotada de uma certeza abrangente, dado que possui certeza de si e do que é claramente representado. Por outro lado, em Kant, a finitude do homem manifesta-se na desproporção entre sua razão e seu entendimento: esta dá conta do fenomênico, mas aquela não se satisfaz com as respostas dele retiradas. Na experiência empírica do sujeito, sua representação é um pensar, não um intuir. Pelo pensamento, o sujeito pensa-se somente como qualquer objeto em geral, cujo modo de intuição abstraímos. Assim, o sujeito kantiano é apenas lógico, condição formal, sem a suficiência do sujeito cartesiano. É dado mais um passo rumo ao sujeito fraturado que interessa a este trabalho. O cogito cartesiano ressalta o sujeito, o Ich denke – “Eu penso” – kantiano supõe o trabalho da consciência do sujeito. Enquanto isso, o sujeito cartesiano é uma coisa, não material, enquanto a consciência, espontânea, não confirma a realidade material, mas cumpre uma função transcendental, comum a todo sujeito, que só torna possível conhecer a matéria quando se acrescenta sobre ela. Já Kant não desmaterializa mais o sujeito, mas introduz a presença do simbólico, algo de natureza intelectual que se perfaz e se configura no material. 16 A teoria tradicional do sujeito perde ainda mais força na formulação kantiana. Descartes e Kant não oferecem uma visão unitária do sujeito. Em Kant, as representações, por consequência, não se dão naturalmente e nem possuem o caráter pontual que tinham no sistema do cogito. Faz-se diferença entre Representação (Vorstellung) e Apresentação (Darstellung). Qualquer objeto que receba um conceito precisa ser de algum modo dado, ou seja, ser apresentado imediatamente na intuição, sua representação deve estar ligada à experiência. (Costa Lima 2000, p. 110) Isso ocorre porque o entendimento opera juntamente com a imaginação, que, por sua vez, oferece aos conceitos do entendimento uma intuição correspondente. A imaginação, segundo a Primeira crítica (Costa Lima 2000, p. 110), é a faculdade de representar um objeto na intuição, ainda que sem a presença deste. A demonstração de conceitos, mesmo nas ciências mais exatas, opera logicamente pela auto- apresentação, não se supondo a simples atividade do entendimento. A fratura do sujeito kantiano não serviu só para que a experiência estética assumisse relevância e autonomia, mas também para dar importância à segunda acepção da representação. E, com ela, a indeterminação do objeto articulado ao juízo estético. Em Schopenhauer, o corpo converte-se em representação e, entre sujeito e representação, põe-se à sorte do conhecimento. (Costa Lima, 2000, p. 117) O sujeito é, agora, um ponto obscuro que não se salva pelo investimento cognoscitivo, por mais refinado que este seja. Sujeito e representação são categorias a serviço do entendimento, ou seja, são diminuídos porque só servem de esteio ao entendimento. Só funcionam como base para o sustento da ciência e da técnica com que o Ocidente tem se justificado há tempos. Agora, a arte deixa de exercer um papel meramente secundário. Percebe-se que, aqui, começa a reflexão que mais interessa tendo em vista, principalmente, a obra de Saramago. Procurar a existência do objeto fora da representação do sujeito é algo contraditório e sem sentido. Fora da representação, nada sobra de cognoscível no objeto. O mundo torna-se real na medida em que é representação do sujeito pela lei da causalidade, sendo que representação não significa falsidade. Não há representação sem sujeito, já que as propriedades do agente observador se incorporam à observação deste - daí o mundo se tornar um encadeamento de causalidades. A causalidade é a essência da matéria e acha no entendimento sua faculdade específica. A conclusão do processo de conhecimento é parcial. O mundo objetivo, como representação, não é a única versão do mundo, sendo a outra face a coisa em si e a vontade a objetivação mais imediata do mundo. As representações podem ser sensíveis (“só existem no espírito humano”) ou conceituais (“representações abstratas/representações de representações”). Nas sensíveis, o princípio racional faz relação 17 entre representações da mesma classe, enquanto as abstratas exigem relações entre representações de classes diferentes. (Costa Lima, 2000, p. 120) A obra de Nietzsche mostra, primordial e genericamente, como a razão desmerece as questões tidas como sublimes. A primeira acusada é a verdade: sua nobreza é convertida em questão de sobrevivência, caminho já aberto por Schopenhauer. O entendimento mascara a vontade, submetendo-a à razão e à individuação, tornando-a um meio oculto. Mas o mundo é dominado pelo entendimento, o que significa que descobrir o “ser íntimo das coisas” seria só tarefa de alguns capazes de se resignarem tranquilamente à contemplação desindividualizante da miséria comum. A coisa-em-si está desintelectualizada e desenobrecida, fazendo parte das ficções lógicas. Ataca-se o fato de que os filósofos não reconheçam a diferença de grau entre as vontades, o que permite que o mundo seja dominado pelas vontades fortes que formam e cercam o “bom gosto” (Costa Lima, 2000, p. 130). O mundo em si não é ficção, mas as explicações nobres com que o desfiguramos são. A representação, a que Schopenhauer se opusera, é desconsiderada por outro motivo: por ter o mesmo nível de realidade que a nossa própria paixão; a vontade de poder aponta para a irrisória secundariedade do sujeito e de suas representações. Cada um refugia-se na própria moral que adota, que é a linguagem mímica das paixões. Com Freud – por extensão, também em Lacan -, vemos um novo processo de descentramento do sujeito moderno, conforme expressão de Stuart Hall (2011). Freud, a partir de sua concepção de aparelho psíquico e da importância do campo do simbólico para o ser humano (como os sonhos, os atos falhos, os chistes), aponta para uma nova reacomodação do sujeito contemporâneo. Agora, grande parte das representações criadas por este possuem um significado que não está na superfície, mas em uma profundidade que só pode ser apreendida pelo rastro, nunca por completo. Em A interpretação dos sonhos (1999), por exemplo, para cada conteúdo manifesto do sonho existe uma significação que é latente. Para que esta ocorra, seja compreendida, é preciso ter em mente a certeza de que é preciso traduzir os caracteres e a sintaxe do sonho, o que só pode ser feito de forma individual. Ou seja, é impossível alcançar uma compreensão do ser humano que seja totalizante, global, válida para qualquer ser; afinal, cada mensagem – construída por processos de condensação e sobredeterminação7 – possui um conteúdo muito rico para ser apreendida em uma só leitura, até porque a mensagem de que tratamos é um produto do inconsciente. 7 Segundo Freud (1999), a condensação consiste no fato de uma mesma imagem conter mais de um significado possível concentrado. A sobredeterminação, por outro lado, consiste na sobreposição de uma imagem de forma a remeter a outro (por exemplo, luz remeter à ideia de descoberta). 18 Os trabalhos de Freud são importantes na medida em que reforçam que o sujeito contemporâneo não mais pode ser reduzido à concepção moderna, cartesiana, uma vez que ele se encontra fragmentado, inclusive em meio a outras formas de realidade que não são acessíveis em um primeiro contato. Além disso, existe uma influência do social na medida em que as regras e normas ditadas – pela imagem do PAI – são responsáveis por grande parte de nossos prazeres, que são recalcados e que interferem, mesmo que não percebamos, em nossa forma de representar o real. Além disso, como bem aponta Costa Lima (2000, p. 145), “[a] crítica a Freud dependeria pois de algo que se confunde com nossa própria meta: o entendimento da ‘mímesis’. Ela teria esse ‘status’ decisivo pois, como diz incisivamente o autor, seré preciso ligar o desejo à ‘mimesis” e não ao interdito [...].” O desejo não se relaciona a uma aquisição necessariamente, mas a um processo identificatório do sujeito, traduzindo-se em “ser”, não em “ter”. A partir deste desejo primordial de identificação, o sujeito, fraturado, empreende a “mimesis”, de forma que se deva “relacionar o desejo a ela, sem de imediato a subordinar a um objeto desejado” (ibidem, p. 146); logo, de acordo com a ajuda dos textos freudianos, a representação humana prescinde de uma satisfação concreta, de posse, sendo antes um processo que define, ao sujeito, aquilo que ele é ou poderia ser. Esta identificação é que proporciona que o sujeito venha a si próprio, “ao lugar de um outro (que, portanto, não é um ‘outro’); alienação originária (que, portanto, não é uma ‘alienação’) e engodo originário (que, portanto, não é um engodo)” (ibidem, p. 147). Vale a pena observar, ainda que em uma citação um pouco longa, as conclusões de Costa Lima a respeito da importância de Freud na reconsideração da representação artística. A “mimesis”, Irreflexiva, cega, produto de uma carência identificatória, em seu processo, contudo, ela se concretiza em um [...] produto que ‘efetua um sujeito para si mesmo’, de cuja fenda derivam “representações”, por certo não coincidentes com as que serão vistas por outros sujeitos, igualmente fraturados, em seu produto. [...] Não se originar a ‘mimesis’ de um real prévio, de não poder a ‘mimesis’ se definir como algo qualquer semelhante a ‘imitatio’ ou como forma que capta o real, conforme diria a tradição hegeliana, não significa confundi-la com uma modalidade de irrealização, de escape da realidade. A ‘mimesis’ tem uma relação paradoxal com a realidade: independente dela por impulsão, dela, entretanto, se aproxima e se alimenta, porque é nas formas sociais com que se mostra a realidade que a ‘mimesis’ encontra o meio em que sua dinâmica se atualiza. É essa relação paradoxal que explica o potencial crítico que, independente da intenção da ‘poietés’, ela guarda consigo. Assim entendida, a ‘mímesis’, em vez de afastar sujeito e representações, termina por configurá-los. É certo que não o sujeito unitário ou tampouco suas representações pontuais ou intencionadas. (2000, p. 148, grifos de autor) 19 Além disso, se acrescentarmos Lacan às ideias de Costa Lima, mais um elemento atua na descentralização do sujeito: a presença do Outro em todas as suas manifestações. Segundo Chaves (2005), em Lacan o sujeito é completamente atravessado pela imagem do Outro: a sociedade, os pais, a imagem de si mesmo que ele constrói, etc. Ou seja, A razão de ser da constituição do sujeito, desde então, é procurada por Lacan na relação do sujeito consigo mesmo, ou seja, o sujeito se torna social em razão de uma deficiência interna. Dessa maneira, não será o exterior que o determinará, o sujeito não será um efeito da exterioridade sobre si mesmo, mas a constituição do sujeito se dará por uma alteridade que o penetra, revelando a origem dessa natureza negativa, que, a princípio, só havia sido percebida em seu exterior. Isso só será possível, na totalidade, por meio de ‘determinações culturais’, na medida em que o sujeito já as porta dentro de si como essa alteridade, que é, enquanto tal, o efeito da presença desse campo no qual ele surge e que o cerca por todos os lados. (Chaves, 2005, p. 43) Logo, a constituição do simbólico como forma de representar a realidade, efetuada no e pelo sujeito, tem a sua significação mais problematizada ainda. O simbólico é o significante sempre em busca de significado, numa fuga contra a morte do sentido, que sempre falta. Assim, “fazer sentido”, representar o que quer que seja, é algo muito mais difícil e, ao mesmo tempo, é uma dificuldade inerente ao homem. As ideias dos pensadores acima citados – Descartes, Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Foucault, Freud e Lacan – vem em nosso socorro para demonstrar o seguinte ponto: sem dúvida, tem-se uma nova forma de entender o sujeito; consequentemente, temos uma nova interpretação para o real e suas representações. Não “faz sentido” somente o fotográfico, a representação realista, uma vez que, mesmo quando esta ocorre, deixa de ser uma simples transposição do real: trata-se de uma interpretação e, como tal, está sujeita a recortes, interesses, noções de verdade, poder, etc: “Aquelas pessoas que sustentam que as identidades modernas estão sendo fragmentadas argumentam que o que aconteceu à concepção do sujeito moderno, na modernidade tardia, não foi simplesmente sua desagregação, mas seu deslocamento” (Hall 2011, p. 34). Diante do quadro acima montado, complexo, é possível reavaliar a presença e a importância da ficção dentro destas transformações. Com o processo de deslocamento do sujeito acima visto, o papel da mímesis e da ficção será repensado. Segundo Karlheinz Stierle (2006), tradicionalmente ficção e fictício são postos como contrários ao real. Ou seja, a ficção era entendida como mentira, visão deturpada da realidade e, durante muito tempo, assim foi compreendida, colocada dentro da “casa de loucos” do imaginário. A mímesis, logo, deveria estar sujeita ao entendimento dominante do que era o real. No entanto, tal situação irá mudar. 20 O próprio Stierle (2006), ao longo de sua obra, demonstra e discute as etapas de reabilitação da ficção. A partir de textos como Dom Quixote, A divina comédia, Decameron, a ficção será posta de uma outra forma: ela passará a se questionar, a repensar limites e seu papel sobre o ser humano. Assim, o termo ‘ficção’ passa a ser considerado em duplo sentido: não somente como fingimento, mas também como modelação, criação de uma realidade. Com o atravessar da Idade Média, do Renascimento, do Iluminismo até a crise geral do ser humano e das representações no século XIX, a ficção torna-se importante como recriação, e não reprodução, do mundo externo ao homem. Até porque este, cada vez se vendo de forma mais cindida, alterará a maneira de atribuir significado ao real. De início, como ressalta Stierle (p. 31), ficção e romance não são sinônimos. O romance, antes, era tido como gênero inferior, uma vez que reproduzia o cotidiano dos homens, ao invés de tratar de assuntos como os deuses, as paixões, reservados, por sua vez, à poesia e às tragédias. No entanto, gradualmente, o romance se coloca mais em contato com a vida corrente, expondo-se mais à vida conflitiva do ser humano, tornando-se a forma épica dominante do mundo moderno, sendo, inclusive, difícil, agora, dissociar ficção de romance. Na verdade, como bem nos lembra Gallagher (2009), o romance – novel, na Inglaterra – vai se firmar como gênero legítimo em seguida à consolidação da burguesia como classe social dominante. Agora, esta anseia por se ver representada, bem como seus dramas, problemas, peculiaridades. Ou seja, ocorrerá um “ajuste ideal” entre ficção e romance, ambos considerados legítimos. Durante o século XVIII, grande parte da narrativa ficcional somente era aceita se fossem assegurados como verdadeiros os fatos ali registrados: reais, como os ocorridos no mundo externo à obra. Mas, com o correr dos anos, como vimos, os conceitos de mímesis e de ficção produziram transformações no público leitor e no romance como gênero. A verossimilhança passa a ser aceita como forma de verdade, não mais como fraude. Logo, a ficção romanesca passa a ser tida como uma manifestação da verdade. Daí por diante, vemos um aumento da porosidade das diversas manifestações humanas – história, psicanálise, literatura, filosofia, etc –, o que produz novas formas de ficção: romance psicológico, de fluxo de consciência, nouveau roman, a metaficção historiográfica, etc. O ser humano, vendo-se atravessado pela fragmentação, fragmenta também as maneiras de criar o real e as verdades. Assim, ao mesmo tempo em que o romance ficcional ganha novas formas, podemos pensar que isso se explica por outras fatores, pelo seguinte: aumentaram as tentativas de se 21 dar sentido a algo que falta ao ser humano sempre. Para explicar isso, podemos fazer uma analogia com o pensamento freudiano. Em “Inibição, sintoma e ansiedade” (2006), Freud retrabalhou o sentido de angústia: antes vista como tóxica, agora tem sua importância reconhecida. Ela é importante como elemento da nossa saúde psíquica. O ser humano é sempre marcado por um desamparo, uma sensação de vazio que, periodicamente, o visita: é o que chamamos de angústia. Esta é um afeto, logo sua sensação é sempre uma rememoração de algo já vivido por nós e que não fomos capazes de simbolizar, dar sentido, explicação. Sua situação prototípica é o nascimento, quando ocorre a separação de nosso corpo em relação ao corpo materno. Desde então, somos colocados no mundo de forma a sempre algo nos faltar. Quando sentimos esse desamparo da perda iminente de algo que nem sabemos o que é, a angústia nos adentra. No entanto, ela é importante: serve como sinal de alerta para procurarmos algo que preencha esse nosso vazio. Mas, qualquer elemento que usemos, é sempre provisório; como não sabemos exatamente o que procuramos, qualquer busca é sempre provisória e sempre fadada ao fracasso. O mesmo raciocínio pode ser usado para interpretarmos a criação do romance ficcional. Numa luta incessante da pulsão de morte contra a ausência de sentido, a escrita surge como forma de lutar contra o desamparo da angústia. No entanto, qualquer sentido e criação são provisórios, já que o vazio sempre se manifesta. Desta forma, o romance contemporâneo abriu-se e está aberto ao sentimento de angústia não somente como tema: a própria criação literária nasce daí. A estrutura dos romances registra a presença deste estranho tão familiar: os narradores sempre provisórios, mutantes, surpreendentes; o questionamento dos fatos antes tidos como verdades absolutas; a rarefação do enredo ao ponto de quase ou mesmo desaparecer. Tudo isso, junto, ajuda a dar nova expressão ao romance contemporâneo. E este encontra seu ancoradouro no público leitor, que se reconhece ou fica intrigado a ponto de ler mais de uma vez o mesmo livro no afã de lhe atribuir um sentido. Na perspectiva de que este trabalho se vale, podemos depreender uma espécie de diacronia dentro do desenvolvimento do romance e da ficção. O desenvolvimento de ambos depende, em larga escala, da forma de se praticar, entender e aceitar a mímesis. Antes, confundida com a imitativo – simples cópia a partir do que o senso comum acredita ser a realidade concreta do mundo externo ao texto literário –, com Kant percebe-se um deslocamento do trabalho de composição artístico para a esfera da interioridade humana, da subjetividade. Ou seja, o valor artístico não pode ser medido pela sua semelhança com o mundo que nos rodeia, mas pelo trabalho de uma subjetividade que opera entre processos de 22 representação – Vorstellung – e de apresentação – Darstellung – da forma de se significar o mundo. Este, então, não pode ser visto e interpretado tendo por base simplesmente uma possível imanência objetiva, já que só existe e ganha sentido a partir do trabalho de uma subjetividade. Tal renovação ganha ainda mais fôlego com os trabalhos de Schopenhauer – a ação da vontade humana sobre o objeto de seu desejo – e de Nietzsche, que, por sua vez, empreende a genealogia dos valores humanos. Ao fim, o que existe são valores que fazem com que os objetos, as pessoas, os fatos, enfim, o mundo, existam para nós, sujeitos. A verdade passa a ser uma esfinge que a todo momento nos interroga, nos questiona, de forma que o verdadeiro filósofo não seria o que impõe novas verdades, mas aquele capaz de questionar a origem dos significados que circulam em nossos meios sociais. Ao cabo, o que existe ao redor do ser humano seria uma espécie de grande ‘nada’ em que tentamos erguer nossa moral, nossos valores, de forma a nos conduzir e a nos permitir estabelecer uma existência. Nesse momento, é grande a contribuição de Freud e de Lacan. O ser humano está fadado e abandonado em um universo de representações que são sempre dadas pelo outro. Somente o trabalho da subjetividade – em confronto e construção constante com o social, com a exterioridade – pode nos constituir como sujeitos. Vivemos tentando nos inscrever no vazio que nos habita entre a necessidade de sentir prazer – o desejo – e de se obedecer a valores pré-existentes (o chamado princípio de realidade). Dessa forma, as pulsões do inconsciente podem ganhar uma representação, um significado e, caso permaneçam sem simbolização, amplia-se o vazio que nos constitui, uma vez que o sentido atribuído à pulsão é que determina o nosso proceder. Assim, muitos autores de obras literárias argumentam que escrever é uma tarefa sempre fadada ao fracasso, já que nunca se exprime por completo o que se deseja (o que não significa abandonar o trabalho da escrita, que é incessante). O trabalho de Freud deve ser interpretado à luz da época em que foi escrito, o fim do século XIX e o início do XX. Por isso, neste trabalho, realizar esse panorama filosófico culminando com o psicanalista é importante para lançar luz ao processo de reconsideração da mímesis e da ficção. Pretende-se deixar claro o quanto é importante não confundir ficção e romance. No correr do século XIX, no entanto, o romance consolidou-se como gênero principal na representação do universo em que a classe social burguesa – e, por extensão, nós, hoje – vivemos sempre presos à dialética entre o interno e o externo, a subjetividade e o interior, a “essência e a aparência”. Assim, temos um ser humano fragmentado – seja qual for a perspectiva adotada: freudiana, nietzscheniana, marxista – que não mais pode ser entendido a partir de um único centro. Com isso, o romance como ficção não precisa se prender a uma 23 simples e estéril reprodução do senso comum a respeito da realidade para ser considerado válido. Pelo contrário, os romances que hoje seguem nova perspectiva de representação do real não são mais entendidos como mentira, fingimento, mas como uma nova forma de se dizer as verdades que compõem o ser humano, sempre provisórias. A própria estrutura dos romances assume uma nova configuração: não mais a de um enredo linear, mas, de forma muito comum, marcada pelo fluxo psicológico, pelos narradores inconstantes e perdidos entre narrar a si e uma história, a história que se questiona, a memória que se revela, a metalinguagem constante. A angústia, no sentido que se lhe atribui aqui, como tentativa de simbolização das pulsões de forma a se evitar o desamparo, condição inerente a nós, passa a ser incorporada não só como tema, mas de forma a influenciar a estrutura dos romances ficcionais. Uma vez que não temos um ser humano centrado, mas um sujeito fragmentado entre diversas ideologias, imagens, formas de se conceber o real, há uma tentativa constante de simbolização do mundo, cujos significados passam a ser sazonais, não mais perenes. O romance, grande meio artístico de representação do humano na contemporaneidade, então, assume essa nova perspectiva sobre o real, sempre a oscilar entre o subjetivo e o objetivo. Aliás, muito chama a atenção a presença do romance de ficção em nossa cultura contemporânea ou pós-moderna, para alguns. Tal gênero tem apresentado, desde o século XIX, uma maleabilidade muito grande ao acomodar temas muito recorrentes no cotidiano comum, corriqueiro do ser humano. No entanto, do Romantismo até a época atual, como já dito, o romance acompanhou uma transformação que se processou, na verdade, no cerne do ser humano, na configuração deste como sujeito. Assim, o ato criativo do romance pode ser entendido como uma resposta à forma de lidar com a angústia abordada por Freud. Freud, ao longo de sua obra, passou a ver a angústia como um afeto necessário ao ser humano. Ou seja, por mais que a sensação seja ruim – e é ruim porque corresponde a um vazio que não pode ser simbolizado – , é algo necessário em nossa constituição como sujeitos. Aliás, a forma como lidamos com a angústia define muito da nossa representação da realidade. Afinal, existe um sentimento de desamparo, ligado a situações vivenciadas pela memória, que nos prepara para um perigo. Este pode ser definido como o perigo da ausência de sentido, de desejo, para a existência do sujeito. Então, precisamos encontrar formas de simbolizar, de dar sentido a essa vazio fragmentado que há em nós. Assim, não pretendemos afirmar o valor da angústia somente como fonte de incentivo à criação dos romances ficcionais. Mas, o que mais se deve destacar aqui é como, diante da reconsideração da mímesis, a configuração do romance como gênero sofreu mudanças 24 também de forma a falar, abordar, receber significantes desse novo sujeito, não mais solar e vivente em um mundo racionalizável, mas cindido e envolto nas mais diversas possibilidades de se significar parte expressiva da realidade. O “mal estar” da contemporaneidade – para caminhar, ainda, junto com Freud – revela-se nesta constatação do ser humano sobre a nova perspectiva angustiante de que tratamos. Mais do que isso, perde-se a crença na possibilidade de simbolização por meio da fé, da religião, dos mitos, da imaginação, da própria literatura. Tem-se um homem em meio a uma sociedade que tenta controlar-lhe o inconsciente, impondo um exagero na atividade do consciente, através do trabalho contínuo, já que tempo é dinheiro. Aos poucos, o ser humano contemporâneo se distanciou da sua subjetividade, entregando-se ao vazio da angústia que, impossível de ser simbolizada, se transforma em pântano onde naufragam os desejos. Nossa literatura contemporânea – os romances ficcionais notadamente –, de modo muito genérico, alia tema e estrutura narrativa, acomodando-se, paulatinamente, à nossa nova constituição psíquica e social. Para encerrarmos nossas considerações nesta parte, Marthe Robert, em Romance das origens, origens do romance (2007), propõe uma visão remodelada sobre a evolução do narrativo, especificamente o romanesco. Para a estudiosa, a narrativa que conhecemos hoje, principalmente pela forma do romance, constitui uma nova maneira do homem se posicionar diante da realidade8. Assim, a ficção romanesca se daria em etapas. A primeira seria a dos Märchen (os contos de fadas folclóricos): assiste-se a uma forte penetração na fantasia para se explicar o mundo e o ambiente familiar é o centro das narrativas, reproduzindo, em medida considerável, aquilo que era vivido pelos próprios homens de então. Os medos destes – motivo de desamparo – estão claramente retratados aí: a falta de comida, a grande taxa de mortalidade das mães durante o parto, o frio e a falta de proteção para este, e assim por diante. A segunda seria a etapa inaugurada pela publicação de Robinson Crusoé (1719) e de Dom Quixote (1605). Para Robert, aqui temos a representação pela arte, em especial a literatura, de uma nova postura diante do mundo. O homem agora é tido como aquele capaz de transformar a realidade, ele é um inconformado com as limitações do ambiente em que vive e, assim, parte de casa a fim de promover transformações ou a criação de um novo espaço. Empreendido isso, ele retorna transformado para casa. É o que aconteceria nos dois exemplos prototípicos elencados por Robert: Robinson cria uma sociedade em sua ilha; Dom 8 Entende-se realidade, neste momento, simplesmente como aquilo que está fora do ser humano, o mundo que nos rodeia, estando à disposição dos cinco sentidos para ser explorado. 25 Quixote atua em um mundo cujos valores da luta, da coragem, do comprometimento dos cavaleiros imaginados por ele existem. Em ambos os casos, o protagonista sai e volta para casa, mas não exatamente igual: Robinson retornará a sua ilha; Quixote cairá em desilusão ao se confrontar com o mundo cotidiano em que a maioria das pessoas vive. Temos, então e até o Romantismo, uma literatura que colabora para a consolidação da classe burguesa por meio do herói que é capaz de recriar o lugar onde vive. É importante, segundo Marthe Robert, ainda, ressaltar o modelo ficcional colocado pela narrativa de Robinson Crusoé. Esta obra institui uma situação típica de conflito que será o protótipo do romance de imaginação: há um choque do indivíduo com a sociedade, mas indo além do período de fantasia dos Märchen. A terceira fase compreenderia em grande parte aquilo que vemos a partir do Romantismo até a literatura contemporânea. Segundo a autora, a partir de então, teríamos uma busca do Absoluto. Assim, a ficção busca a representação de algo que escapa a uma visão de mundo utilitarista e dos significados estanques. Ao contrário, uma espécie de inconformismo também existe, mas, além da consolidação de uma nova sociedade, busca-se uma outra forma de se falar sobre o homem e o mundo, como sintoma de algo que, nitidamente, falta e subjaz ao ser humano. Por extensão, certos temas passam a ganhar tratamento diferenciado a fim de explorar a existência: é o que temos com o medo, a angústia, a solidão; o próprio ato de escrever aparece tematizado de maneira renovada. Há uma maneira atualizada de percepção do choque do indivíduo frente ao social, que agora aparece muito mais problematizado do ponto de vista da constituição da subjetividade, uma vez que, paulatinamente, o homem deixou de ser considerado como ser centrado em si, passando a ser entendido como elemento fragmentado, cindido por uma existência sempre a se dar, nunca previamente determinada, certa. Logo, o mais interessante é a percepção de que, entre as três fases elencadas pela autora, há algo que as une, estabelecendo coesão entre elas: existe uma espécie de “abertura” ocorrendo aos poucos. O homem estabelece suas representações a partir da maneira como compreende a realidade que o circunda e o que entende por si mesmo, por sujeito. O choque com o externo, com o social, então, passa a ganhar outro tom. Acredito que o desamparo constituinte do ser humano nesse contato com o universo que o rodeia é entendido de formas diferentes e que isso repercute na representação artística. Nos Märchen, a fonte de desamparo está na hostilidade da natureza e das condições de vida que esta oferece, com as quais e contra as quais o homem interage. A partir do paradigma de Robinson Crusoé e de Dom Quixote, há a percepção de que o choque, na verdade, se constitui entre a interioridade humana e a 26 sociedade, tida como responsável pela limitação das nossas capacidades criadoras, dado que somos “domesticados” para sermos aceitos pelo mundo. Por fim, a busca do Absoluto se traduz por uma nova forma de se interpretar nosso choque com o social: o problema é que somos seres inacabados na medida em que nos falta algo que nunca sabemos exatamente o que é. Assim, toda busca, todo desejo é o representar de uma falta permanente cujas formas de saciedade são sempre provisórias, porque a existência nunca está cumprida e somos inacabados; caso contrário, nossa vontade de agir sobre o mundo desapareceria. 1.2. A liquidez9 contemporânea e a permeabilidade da ficção Estou disperso nas coisas, nas pessoas, nas gavetas: de repente encontro ali partes de mim: risos, vértebras. (Ferreira Gullar, “Extravio”) As reflexões a respeito do estatuto da representação literária e da mudança de seu significado da mesma ao longo dos séculos refletem uma paulatina problematização daquilo que se entende por sujeito e por realidade. Dessa forma, tal estudo não pode ser desvinculado do contexto histórico a que está ligado. Segundo Agamben (2009), ser contemporâneo significa pertencer e se distanciar de forma intempestiva do seu tempo. Para explicar isso, recorre à metáfora do céu e das estrelas. É necessário ver o escuro de nosso tempo, dado que o presente é uma fratura a que pertencemos e de que nos distanciamos, sendo preciso, para o contemporâneo, reconhecer as trevas de seu tempo. Assim, é necessário coragem, já que o presente não pode nos alcançar. Metaforicamente: ao olharmos para o céu noturno, o cobertor negro que existe entre uma estrela é outra não é a ausência de luz, mas, sim, a luz de estrelas tão distantes de nós que ainda não nos chegou. Logo, esse é o verdadeiro contemporâneo: enxergar não o que já nos chegou, mas a luz que ainda virá. 9 Termo empregado comumente por Bauman ao longo de suas publicações. Os termos “modernidade líquida”, “liquidez contemporânea”, designam aquilo que ele acredita ser um traço dos dias atuais: a ausência de valores fixos, de ideais permanentes, etc. Nessa perspectiva, os significados que norteiam a existência acabam assumindo aspecto de instabilidade e influenciando a relação do homem com tudo aquilo que, de modo geral, o rodeia. Tais aspectos são retratados de modo corrente não só na literatura dita “contemporânea”, mas já em algumas obras do fim do século XIX e início do XX podem ser observados. 27 Isso é útil na medida em que nos ajuda a refletir a respeito do romance contemporâneo. Em outra época, como nas épicas gregas, abordar certos sentimentos, como o medo e a angústia, era algo muito delicado, uma vez que o herói, representante do povo, não poderia se “entregar” a tais afetos. O mesmo verificamos nos romances românticos, uma vez que o herói, representante da burguesia, poderia até se envolver em suas questões amorosas, o que até o valorizava, mas sempre deveria estar pronto para a melhor escolha, sem medo, sem vacilar. Já os romances escritos a partir do século XX, em grande parte, buscam uma outra visada a respeito daquilo que podemos e viemos a sentir. Os afetos começam a apontar exatamente para aquela luz que ainda não nos chegou e que tanto nos inquieta. Assim, levando em conta as ideias de Agamben, o romance contemporâneo ganha tal adjetivo especificador não por uma questão temporal, mas por uma mudança de atitude. Dessa forma, as próprias possibilidades de funcionamento da linguagem devem ser reavaliadas e novas experiências linguísticas serão feitas: tudo em busca desta luz que não nos chega mas nos cobre, já que pertencemos a este céu. O romance contemporâneo acaba refletindo, em larga medida, uma sensação de incômodo, de não pertencermos por completo ao ambiente em que vivemos, onde muitas luzes procuram exaltar parte do real, sem, no entanto, apontar para significados mais profundos daquilo que somos, desejamos e queremos ser: o anacronismo […] nos permite apreender o nosso tempo na forma de um ‘muito cedo’ que é, também, um ‘muito tarde’, de um ‘já’ que é, também, um ‘ainda não’. E, do mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós. (Agamben, 2009, p. 66) Parte da explicação deste sentimento de “ser estrangeiro em sua própria terra” pode ser encontrada na obra de Bauman. O sociólogo polonês desenvolve, no conjunto de sua obra, a ideia básica de que vivemos em uma era líquida. Caso nascêssemos na Idade Média, as possibilidades do “ser” seriam muito limitadas: se nascesse em família católica, seria católico; se nascesse em família pobre, seria pobre; se fosse mulher, teria o marido escolhido pelos pais; e assim por diante. O cenário que se monta a partir da modernidade histórica – inaugurada pela Revolução Industrial – trará consigo a ideia de liberdade e seu paradoxo: ao contrário de mais felicidade, mais insegurança, infelicidade. Afinal, qual caminho escolher? Qual luz do céu de Agamben seguir? Em “Arrivistas e párias: heróis e vítimas da modernidade” (1999), Bauman coloca que existe o imperativo social dos padrões, da esperança e da culpa. No entanto, interiormente, no ser humano, o que existe é a sensação de que a existência é algo como 28 um dever a cumprir, algo que nunca se realiza por completo, uma responsabilidade. Daí, surge a impossibilidade de se permanecer fixo, já que ser moderno depende do movimento. O autor, então, usa duas metáforas para ilustrar o caráter da modernidade. A primeira é a dos arrivistas, em que, para não nos sentirmos arrivistas precisamos de um outro: somos alguém ‘no’ mas não ‘do’ lugar, aspiramos à residência sem permissão a ela. Identidade, assim, consiste em nomadismo e resistência. A segunda é a dos párias, membros de casta mais baixa ou de nenhuma casta no sistema hindu: assim, a modernidade foi a esperança do pária, que poderia se tornar arrivista, apesar de viver sob a ameaça de voltar a sua origem. Se estamos em constante movimento, não estamos em lugar nenhum e sob a proteção de ninguém. Logo, a grande pergunta que fica é: existe lugar a chegar? Buscamos luzes que parecem que nunca nos chegam. Esse é o contexto social em que se instaura a chamada contemporaneidade, que, segundo Agamben, não é o mesmo que ser contemporâneo. Isso é importante na medida em que explica em parte o sentimento geral do homem de não pertencimento à sua época, de ser um arrivista com permanente medo de voltar a ser pária, se é que o deixou de ser. Um mal estar, então, agrega-se à atmosfera do nosso tempo; não que ele inexistisse antes, mas, hoje, ele surge de maneira muito mais carregada, uma vez que o modo de pensar a existência se tornou mais complexo, o que não significa que tenhamos mais respostas para ela. Tal ambiente acaba deixando sua marca na arte que começa a surgir no século XX. A noção de perspectiva é derrubada: não há mais um olhar que tudo observa, classifica e comanda. A maneira de sentir os afetos não é a mesma: uma inquietude permanente coloca ansiedade sobre uma vida que parece não se realizar por completo. A responsabilidade sobre a felicidade: ser feliz mais que ser bom é uma obrigação, um imperativo social. Os questionamentos do limite da linguagem: até que ponto é possível traduzir o que se sente, o que se quer fazer o outro sentir. Afeto é algo que depende de experiência pessoal: é possível, então, comunicar ao outro, realmente, o que sinto? Na obra O tempo e o cão (2009), Maria Rita Kehl tece uma série de considerações sobre o estatuto, a condição psíquica do homem contemporâneo, que muito nos interessa e muito nos chama a atenção: a profusão excessiva de imagens, a gama monstruosa de informações, o exagero no uso das capacidades conscientes do ser humano, o fim da tradição da transmissão oral da experiência, a sensação de aniquilamento do conteúdo da existência, o mal-estar advindo do fato de que somos pouco incitados a desenvolver nossa identidade em detrimento do coletivo, etc. - tudo isso culmina, inevitavelmente, como 29 viemos considerando até agora, em uma nova forma de se entender sujeito, realidade e ficção. Além disso, este processo de descentramento do sujeito cuja crise vivenciamos hoje constitui uma nova forma de individualismo, não mais baseada nas tradições. Segundo Stuart Hall (2011), com as contribuições iniciais das Reformas Religiosas, do Iluminismo e do Renascimento, percebemos um homem em que não há mais uma essência universal, unificada. Segundo ainda o autor, as maiores contribuições para o estilhaçamento do sujeito cartesiano foram: o marxismo (o homem age em função das condições históricas criadas por outros), Freud (a formação da identidade é algo inconsciente), Saussure (não somos autores dos significados que expressamos na língua; posicionamo-nos diante das regras da língua e dos sistemas de significado de nossa cultura; a língua é social e não individual; os significados das palavras não são dados, mas emergem numa relação de similaridade ou de diferença no interior do código da língua), Foucault (somos constantemente vigiados em diversos sentidos) e o movimento feminista (questionamento do “dentro” e “fora”; contestação e abertura de novas arenas de vida social; politização da subjetividade; discussão das identidades sexuais e de gênero). Qualquer pensamento sobre identidade, o sujeito e seu lugar no mundo não podem mais partir de uma ideia unificada, unilateral. O que temos, em grande parte, quando se trata de pensar o momento atual, é aquilo que a metáfora central de Bauman traduz: a liquidez; parece que a vida escorre pelas mãos, que, por sua vez, estão sempre em movimento, sempre trabalhando. A ficção contemporânea, apoiada na impossibilidade de se dizer tudo, mergulhará de maneira visceral nesse universo humano que se abre, produzindo obras, muitas vezes, tidas como herméticas ou “sem sentido”, como as de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Virginia Wolf, Marcel Proust, entre tantos outros, incluindo o próprio Saramago10. Questiona-se, então, não somente o que é a vida, o sujeito, o real, mas qual o limite da arte e da linguagem pelo viés daqueles que, por entre as estrelas, tentam enxergar a luz que ainda não nos chegou: por isso são de difícil compreensão e serão lidos por muito tempo, sendo produtos de sua época mas indo além dela. 10 Importante salientar que entende-se por “autor contemporâneo”, dentro da visão emprestada de Agamben, aquele que possui uma relação específica com seu tempo: reconhecer as fissuras dele, a escuridão existente por trás de tudo aquilo que já estaria muito claro. Desta forma, o artista estabelece uma relação paradoxal: pertencer ao seu tempo inclui, concomitantemente, estar distante dele. 30 1.3. A angústia e suas (im)possibilidades de nomeação Estou desfeito nas nuvens: vejo do alto a cidade e em cada esquina um menino, que sou eu mesmo, a chamar-me. (Ferreira Gullar, “Extravio”) “Angústia” é um termo muito incorporado pelo senso comum para, no cotidiano, referir-se a uma sensação que causa grande estranhamento: ela parece materializar-se no corpo – “uma sensação de enforcamento, de falta de ar”, “me sinto com um aperto no peito” – , ao mesmo tempo que não parece apontar claramente para uma origem. Ainda mais em um cotidiano visivelmente atribulado, em que o tempo falta e nada de novo parece acontecer, quando paramos, em um fim de semana, um feriado ou fim de dia, para descansar, usufruir do ócio, existe a sensação de perda de tempo. Quando estamos prestes a realizar um grande desejo, somos assaltados por uma sensação de insegurança. Estamos, então, em um terreno muito movediço dos afetos, em que damos um nome ao que sentimos, “angústia”, mas isso não é suficiente para delimitar o que ela significa, por que nos atinge: é uma sensação de que queremos nos livrar e que frequentemente nos visita, mostrando que algo, “ali” (não sabemos onde), vacila. A definição de “angústia” no dicionário Houaiss (2009) chama a atenção porque traz, junto com as acepções do senso comum, as da psicanálise e as de alguns filósofos (Kierkegaard, Heidegger e Sartre), ainda que de forma superficial. Neste momento, interessam-nos as do senso comum. Segundo o dicionário, então, “angústia” seria “estreiteza, redução de espaço ou de tempo; carência, falta”ou, ainda, “estado de ansiedade, inquietude; sofrimento, tormento”. Tanto em uma como em outra acepção, destaca-se o aspecto negativo que parece estar sempre ligado ao sentimento. Ou seja, sentir “angústia” é tido como algo ruim, que nos reduz, que aponta para algo que não está e cuja falta é muito dolorosa. Algumas definições adiante, o mesmo dicionário colocará que se trata de um “medo sem objeto determinado”. Deve-se atentar à quantidade de sentimentos a que o autor do verbete se refere para falar de um outro, a “angústia”: “carência”, “falta”, “ansiedade”, “inquietude”, “sofrimento”, “tormento”. Afinal, angústia é tudo isso? O perigo em que a definição cai, e junto com ela o senso comum, é de que, ao identificar a angústia com “tudo”, concomitante e paradoxalmente, ela se revela em nada. Afinal, o que seria a combinação de “falta” e “tormento”? “Sofrimento” que implica “inquietude”? 31 Para fugir de tautologias ou falácias, recorre-se, na sequência desta tese, à ajuda de dois pensadores, cuja justificativa para estarem aqui já foi feita na “Introdução”. Levando em conta o problema de sermos um sujeito esfacelado, sem um eixo central que nos oriente, começa-se por Kierkegaard para que se reflita com mais vagar sobre o que é “angústia”. 1.3.1. O absurdo em Kierkegaard Extraviei-me no tempo. Onde estarão meus pedaços? Muito se foi com os amigos que já não ouvem nem falam. (Ferreira Gullar, “Extravio”) A obra desse autor é fruto de uma época bem específica: a da crise do sujeito e da representação ocorrida no fim do século XIX. Pela quantidade de temas que aborda, Kierkegaard, por alguns, é tido como precursor existencialista, ou pensador religioso, ou filósofo, enfim. A verdade é que isso só ajuda a apontar para a riqueza e a profundidade do que foi deixado por ele. Por isso, vale a pena destacar alguns elementos que podem ajudar a dar a dimensão do quanto ele é cabível nesta reflexão sobre a literatura como representação da realidade. Kierkegaard produziu seus escritos durante parte do século XIX dentro de um contexto de questionamento do pensamento religioso que vigorava na Dinamarca. Ele acreditava que a interpretação do texto religioso feito nesse país não levava o ser humano a alcançar uma redenção, um entendimento mais profundo sobre sua própria existência. O mais interessante é saber que, enquanto no resto da Europa vigorava a moda do pensamento cientificista, representado pelo modelo do pensamento dialético hegeliano, Kierkegaard se voltava para uma visão mais subjetiva sobre o que nos rodeia, a “realidade”. Questiona-se, então, a visão racionalista e objetiva do mundo. O autor dinamarquês fará isso a partir de uma nova interpretação da existência, que, segundo ele, não pode ser racionalizável, dado que se pauta pelo absurdo. Para tentar falar de algo tão complexo, criou heterônimos, sendo cada um deles marcado por uma espécie de vida autônoma de pensamento. Eles chegam a dialogar entre si, concordando ou discordando a respeito de pontos fundamentais do existir humano, que nunca pode ser medido pelo externo, mas pelo interno ao homem. Isso deve ser levado em conta 32 uma vez que o indivíduo é sempre alguém a existir, em permanente estado de construção de si, através das escolhas que faz. Como aponta Farago (2009), a subjetividade é um canteiro de obras. Acostumado a nunca se apropriar do próprio processo existencial, a fazer as próprias escolhas, quando convocado a dizer algo por sua conta, o homem não responde e, mais uma vez, sofre a violência externa, do coletivo: ele está preso ao que Kierkegaard chama de estágio ético da existência. Diante do absurdo da existência, já que não há receita pronta para viver e que só podemos entendê-la a partir de paradoxos, o ser humano está em constante transição, movendo-se entre três níveis diferentes: o estético (em que estamos presos à vivência instantânea, fugidia, das pessoas, dos prazeres, dos momentos, como o mostra o mito de Don Juan), o ético (quando estamos presos a cumprir ordens, a seguir o coletivo, o que determina o alheio) e o religioso (seria o grau maior de liberdade que o homem pode atingir, quando se depara com a maior verdade nossa: o nada, e damos o salto em direção a ele). É importante lembrar que, para Kierkegaard, não existe uma progressão de uma esfera para outra; nós estamos em constante mudança, já que vivemos momentos diferentes a cada instante. O problema é quando não conseguimos nos movimentar do estético e do ético rumo ao religioso, vivendo presos ao que é fugidio ou a regras externas a nós. Por meio de obras capitais como Temor e tremor (2009) e O conceito de angústia (2010), Kierkegaard interpreta a existência como absurdo, uma vez que devemos assumir a responsabilidade por tudo que fazemos, já que tudo é escolha, mesmo quando nos reservamos o “direito” de não escolher. Escolhemos a todo instante, mas o mais doloroso é: nunca podemos contar com um resultado definido porque este não pode ser dado a priori. É necessária uma aposta que envolve uma responsabilidade pelo existir e que mostra o poder que temos sobre ele. Obedecer ou não ao que é instituído pelo social, pelo externo, nessa perspectiva, é, antes de tudo, uma opção. A escolha que realmente liberta não é aquele feita com vistas a um bem a ser alcançado – sendo que o “bom” e o “ruim” são sempre definições dadas culturalmente, socialmente – mas apostando na imprevisibilidade do resultado. Segundo Gouvêa (2009), é o que constitui o duplo movimento da fé: compreender que tudo pode ser escolhido, que o resultado é inapreensível de antemão, que se trata de um processo marcado pelo sofrimento. Porém, mesmo assim, quando aceitamos isso, desenvolvemos uma nova visão sobre o homem e a realidade. O processo de constituição da interioridade humana é algo sempre a se dar, sempre a se executar. Ao longo desse percurso, vivenciamos momentos e formas muito diferentes de lidar com o absurdo que não pode ser colocado em palavras, mas somente vivido 33 individualmente 11 . Para tanto, lembremos dos três estádios 12 existenciais apontados por Kierkegaard: o estético (a preocupação extrema com o efêmero, o imediato); o ético (a preocupação extrema com o social, com o ditado pelo externo); o religioso (quando empreendemos o “salto para a fé”, vivenciamos um instante de escolha legítima, aceitando que, aí sim, exercemos nossa subjetividade). Dentro do estádio estético da existência, o autor vislumbra três figuras que simbolizam as atitudes diante do existir: o Don Juan, o Fausto e o Judeu Errante. Guiomar de Grammont (2003) realizou um minucioso estudo sobre estas três figuras estéticas e que muito importam aqui. Como a autora bem alerta, deve-se compreender o estético, aqui, como atitude perante a existência e não como elemento ligado à arte, como outrora fez Adorno (2010). O Don Juan seria aquele que vive sempre no instante, sendo que seduzir é mais instigante do que possuir o que se almeja. O Fausto é o que vive insatisfeito com aquilo que sua realidade lhe oferece. Por fim, o Judeu Errante é aquele que se sente deslocado, sem lugar para se fixar, considerado um pária pelo grupo social em que está inserido. É usando dessas figuras estéticas que Kierkegaard fará sua crítica aos escritores românticos. Estes vivem presos entre as figuras do Fausto e do Judeu Errante: acreditam que o mundo burguês é desprezível, limitante, sentindo-se, então, sem lugar em que possam se fixar. É exatamente onde incide a crítica kierkegaardiana, uma vez que eles nunca atingiriam o absoluto existencial, o estádio religioso, a verdadeira apropriação da interioridade humana, já que assumem uma postura covarde diante do absurdo da vida, em geral marcada pela evasão através do suicídio, da loucura, das paixões extremas, da fantasia excessiva, o sentimento de morbidez, de abandono. Assim, os românticos, ao empreenderem sua representação do real, buscando atribuir- lhe sentido, estariam se distanciando da figura do cavaleiro da fé. Este, por oposição ao herói trágico, seria aquele que, sozinho em sua interioridade, acredita que a salvação só é possível por meio do absurdo. A figura religiosa (no sentido de estádio existencial) do cavaleiro da fé pode ser exemplificada por Abraão: ele entrega seu único filho, Isaac, fruto da providência divina, para um sacrifício exigido pelo mesmo Deus que lhe deu o primogênito. Abraão reluta, mas, acreditando no absurdo da existência, em que qualquer resultado é imprevisível, 11 É importante perceber como isso está em consonância com aquilo que já vem sendo discutido até aqui: é mais uma forma de interpretar e lidar com o sentimento de desamparo, de vazio que compreende o humano. 12 Deve-se, diante da lógica do pensamento kierkegaardiano, usar o termo “estádio”, e não “estágio”, uma vez que este daria a ideia de que exista uma hierarquia, quando, na verdade, os “estádios” coexistem: de um instante para outro seguinte podemos vivenciar a existência de maneiras diferentes. 34 contraria a ética do mundo externo – onde matar o próprio filho é tido como errado – e faz sua escolha de aceitar o sacrifício, o sofrimento colocado pela vida. A mesma atitude não é vista na trajetória do herói trágico. Este, por seu turno, busca a salvação pautando-se em uma verdade que não está nele, mas inscrita em uma moral fora dele. Tal atitude é exemplificada pela atitude de Édipo, que fura os próprios olhos ao se martirizar diante do que fez em relação aos pais: ele se condena a partir do que está no social, no externo a ele. Logo, na visão de Kierkegaard, Édipo não assume a responsabilidade por sua existência como fez Abraão. Como ainda bem salienta France Farago (2009, p. 128), na obra de Kierkegaard, fazer escolhas não significa optar pura e simplesmente por si mesmo, porque isso seria viver na insatisfação, seria a escolha do esteta, o que vive no estágio estético. É preciso mais, caminhar em direção ao absoluto, confrontando-se com verdadeiras questões, agindo de fato sobre si mesmo, evitando viver somente debaixo da sombra do possível, do nunca verdadeiramente vivido. Dessa forma, o que o dicionário Houaiss aponta como “sofrimento”, na verdade, é algo fundamental para que se dê o percurso existencial do ser humano. Na época em que escreveu sua obra, Kierkegaard apontava exatamente para este erro de interpretação da obra bíblica, inadequação que valorizava mais o coletivo do que o individual, do que a condição do ser humano que, a cada instante, não é o mesmo: a escolha de ontem não é a mesma de agora; a escolha do outro não é a que faz mais bem. Por analogia, é bem esta a situação da contemporaneidade. Kierkegaard foi um “contemporâneo”: soube apontar a escuridão entre a luz que os outros viam. Hoje, praticamos um individualismo muito falacioso: prega-se, há muito tempo, a liberdade do indivíduo de uma forma que esta quase nunca se dá, já que existe uma massificação do desejo, em que o desejo do outro também deve ser o do próprio sujeito; caso contrário, estou fora do coletivo. Ao mesmo tempo em que o sujeito identifica-se com o outro, isso não é suficiente para falar em “eu”. Abraão, na visão kierkegaardiana, foi capaz do salto da fé: aceitando o absurdo da existência, aceitou também o maior sacrifício a que poderia se impor, o sacrifício do filho, e, por isso, foi salvo – ainda que não sem sofrimento. Após esse feito, sua visão sobre o existir não será a mesma, já que houve a aceitação do absurdo, a aceitação de que a escolha, por mais programada que seja, não traz promessas de um futuro também programado, escolhido como queríamos. Hoje, somos Don Juans: vivemos à espera de sugar o momento, queremos usufruir de tudo que, por sua vez, deve chegar sempre o mais rapidamente possível. Passamos a ser insatisfeitos, em busca de um momento de completo prazer que nunca chega, que nunca sacia, já que não nos preenche por completo. Somos Faustos: insatisfeitos com o que nos rodeia, buscamos o pacto com a tecnologia, a medicina, que, no entanto, não são capazes de tirar-nos 35 da sensação de buraco estreito em que nos encontramos, onde cada escolha, a cada momento, transforma o existir, nos traz novas responsabilidades. Somos Judeus Errantes: assim como na metáfora dos arrivistas de Bauman, temos horror a sentirmos que não pertencemos a lugar algum, de não chegarmos a lugar algum. Oscilando entre estas figuras, permanecemos presos entre o estético e o ético, no sentido que Kierkegaard lhes atribui. Assistimos a uma profusão de novas religiões, de novos livros de auto-ajuda abarrotando livrarias. No entanto, o Absoluto parece cada vez mais distante. Mesmo que Kierkegaard seja tido como um pensador religioso, a imagem de Deus que ele constrói ao longo de sua obra não se restringe àquele bíblico somente. Mais que isso, quando fala em estádio religioso da existência, “religioso” e “Deus” remetem a uma interioridade, a um encontro com o próprio desejo, sem culpa e aceitando o imprevisível absurdo, do qual a contemporaneidade nos afasta. Não aceitando que viver é sofrer para ser, o homem se desvia da existência e somente passa a durar dentro de um espaço coletivo. A próprio atitude dos pais diante daquilo que cobram das escolas reflete essa crítica antecipada por Kierkegaard no século XIX. Há um medo generalizado de que os filhos sofram, de que tenham que lutar por algo, de que venham a perder ou, pior, nunca ter as “coisas”. Nisso, o processo educacional nas escolas, nas famílias, nas igrejas, nas instituições sociais, preocupa-se em evitar a “expiação dos pecados” dos mais novos. É inevitável: estes crescerão presos a uma lógica em que a falta persiste, entendendo-se como seres incompletos, esperando que algo aconteça. Não há o duplo movimento da fé (a crença em si) de que fala o dinamarquês: sofrer é algo de mão única, que nos empobrece – quando, na verdade, é pela ultrapassagem do sofrimento e pelo retorno seguido ao cotidiano que a existência de fato se dá. Caso contrário, somos imediatistas, inconformados, estrangeiros em nossas casas, cumpridores das ordens que vem de algum outro, o coletivo. De antemão, viver não é sinônimo de não sofrer. Não se deve cair no erro de entender isso como uma filosofia pessimista. Ao contrário: certos de que o que nos espera, ao fim, é a morte, o que nos caracteriza é o percurso que escolhemos fazer. Em O conceito de angústia (2010), Kierkegaard mobiliza a idéia de que a possibilidade de liberdade é assustadora. No fundo, todos nós somos livres para escolher em qualquer situação; inclusive não querer escolher é uma escolha. Isso é a grande verdade humana. No entanto, considerável parte de nós prende-se às falsas prisões e explicações da vida. Segundo o filósofo dinamarquês, tudo é escolha e é isso que nos colocará de frente para a verdade. Por isso, a verdade nunca é exata: para cada situação, para cada pessoa, a escolha e o salto são únicos; logo, a verdade de um momento não pode ser imposta a outro. 36 O conteúdo da liberdade, numa perspectiva intelectual, é verdade, e a verdade torna o ser humano livre. Mas justamente por isso a verdade é obra da liberdade, de modo que esta constantemente engendra a verdade. [...] a verdade só existe para o indivíduo na medida em que este a produz na ação. (Kierkegaard, 2009, p. 146) Atentemos, aqui, para o conceito de individualismo existente nesse pensamento. É um profundo mergulho na aceitação do mais desconhecido, um futuro que se abre a partir da escolha individual, mesmo quando acreditamos que esta seja um produto do acaso, da necessidade. Escolher, sofrer, ter prazer, poder voltar e escolher novamente, enfim, conduzir a própria existência é um processo que não pode ser colocado em palavras por completo: é sempre algo muito individual. Mesmo que se acredite ter conseguido comunicar o que se sente, não há garantias de que o outro receba e entenda o que foi transmitido; afinal, é algo que depende da experiência vivida por uma subjetividade específica. Logo, segundo Kierkegaard, o grande mistério do absurdo nunca poderá ser plenamente comunicado. Para tentar dizer o máximo, mesmo sem garantias de ser entendido, a opção do autor dinamarquês foi a de se desdobrar em heterônimos, cada um sujeito a identidades e experiências diferentes. Algo bem à moda do que Fernando Pessoa mais tarde faria. Além disso, temos a consolidação do instante, que, segundo Kierkegaard, é o momento em que eternidade e tempo devem se tocar; caso contrário, teríamos somente passado. A presença da angústia, pelo viés kierkegaardiano, prende-se fundamentalmente à problemática da escolha como exercício de liberdade, de verdade e da subjetividade humana. Só se é alguém de fato porque se escolhe de fato; aí, estamos mais próximos da nossa verdade, do nosso absoluto, de “Deus”. Escolher algo é assustador porque representa a possibilidade de qualquer mudança sobre o que se vive. Daí, a angústia. Nesse percurso, oscilamos entre diferentes maneiras de executar o viver; não existem garantias de nada, mas a responsabilidade é nossa. A angústia, assim, é a garantia de que podemos exercer a mudança, a possibilidade do novo. Está longe de ser um sofrimento gratuito e que nos rebaixa; pelo contrário, é o que nos marca como humanos que “aí” estamos. O “aperto no peito”, “a sensação de sufocamento” são a marca da falta que nunca vai deixar de estar presente, já que é ela que nos aproxima da busca, da “fé” kierkegaardiana. As personagens de Saramago, em diversos momentos e em mais de um romance, veem-se atropeladas pela necessidade e o “perigo”, o dilema representado pela possibilidade que cabe a cada um de modificar a própria vida, apropriando-se da existência a se desenrolar ali no mundo narrado. Interessante observar como a problemática – agora, sim, entendida como complexa – de escolher algo, mesmo em vista de um futuro imediatamente seguinte e desconhecido, ganha papel decisivo nas temáticas desenvolvidas pelo autor português, nutrindo a angústia representada pela atmosfera da obra. Além disso, a questão da escolha, do absurdo da existência, também é trabalhada de forma metalinguística e filosófica nos romances saramaguianos. 37 1.3.2. O desamparo freudiano Estou disperso nos vivos, em seu corpo, em seu olfato, onde durmo feito aroma ou voz que também não fala (Ferreira Gullar, “Extravio”) Acreditamos que um dos elementos mais interessantes para, ainda hoje, recorrermos à obra de Freud como fonte de reflexão e conhecimento é a sua visão a respeito do que seria o ser humano: um ser cindido que não exerce um controle totalmente consciente a respeito de suas representações da realidade que o envolve. Toda a sua obra, em larga medida, reflete aquilo que era o mundo social e intelectual de sua época. De um lado, o crescente questionamento da visão de sujeito cartesiano que a filosofia promovia; de outro, os abalos que a humanidade ainda iria presenciar, como a Primeira Guerra Mundial. O que Freud tentou fazer foi dar estatuto científico àquilo em que ele tanto acreditava, algo bem nítido principalmente em seus textos iniciais. Não se pretende discutir, aqui, se Freud foi bem ou mal sucedido em seu afã de provar a cientificidade da psicanálise; interessa ressaltar o quanto sua obra aponta para algo fundamental: o eterno conflito entre aquilo que é desejado por nós e os limites que nos são impostos, criando nossa estrutura como indivíduos e nossa forma de falar sobre o mundo. A época vivida por Freud, o fim do século XIX13, em muito fecundou seus trabalhos sobre o ser humano: diversas descobertas tecnológicas chamavam a atenção da população em geral e novas formas de se tratar doenças como a histeria representaram um marco para a época de então. No final desse século, Freud, ao ganhar uma bolsa de estudos, foi estudar na França e frequentou as aulas de Charcot, o qual advogava uma nova forma de tratamento a ser dispensado às histéricas: apesar dos sintomas serem corporais, a origem dos problemas deveria ser psíquica, o que demandaria outros tipos de tratamento, como a hipnose. Voltando de Paris, como bem aponta Renato Mezan (2009, p. 54), Freud vai se debruçar sobre a mesma questão da origem de certas moléstias que atingem o ser humano, publicando textos, entre 1895 e 1905, que provocarão reações muito eloquentes e diferentes por parte do público, como A interpretação do sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana e os Três ensaios para 13 Importante, aqui, lembrarmos que Kierkegaaard, apesar de morto em novembro de 1855, respirou o mesmo ar de mudanças de paradigmas que o século XIX representou no que diz respeito a: novas formas de se pensar a existência e o sujeito; os questionamentos sofridos pelo excesso de cientificismo; a sensação de “decadentismo” do fim de século; as mudanças significativas em diversas áreas das ciências, bem como as humanas. Ou seja, acreditamos que o século XX é um profundo devedor daquilo que o XIX, em diversos sentidos, representou. 38 uma teoria sexual, entre outros. Claro que as ideias de Freud – como defender que a criança também possui sexualidade – chocaram diversas pessoas e membros da academia, os quais zombaram e duvidaram da capacidade intelectual do pensador austríaco. No entanto, as pesquisas dele foram levadas adiante e sofreram novos desenvolvimentos. Em um primeiro momento dos estudos, Freud defendia a ideia de que o homem possuía uma série de representações sobre a realidade que o envolve – elaborações primárias – de forma que nem todas chegariam ao conhecimento consciente, uma vez que, pelo meio em que vive, não seriam aceitas. Logo, o “pai da psicanálise” acredita que o ser humano seria naturalmente barrado na medida em que nem tudo o que o constitui, nem tudo o que é vivido e/ou sentido, acaba sendo representado de forma totalmente interpretável, até porque isso significaria sofrimento para muitos de nós. Inicialmente, chamou-se a essa divisão de inconsciente, pré-consciente e consciente. Mais tarde, o próprio Freud irá retrabalhar esta terminologia: id (de maneira muito simplista, seria todo o universo de pulsões em que o sujeito está mergulhado, de maneira que boa parte delas permanece inconsciente), ego (o produto, digamos assim, entre as pulsões oriundas do ‘id’ e os recalques produzidos pela instância do ‘superego’; o que muitos chamam de “eu”) e superego (seria o responsável por “vetar” parte das pulsões, dos desejos que, socialmente, não seriam aceitos). Dessa forma, fica nítido o quanto qualquer teoria que pretenda abarcar as representações humanas não pode mais se dar de forma simplista, dado que o ser humano não se desenvolveria em linha reta, mas numa espécie de nó, em que uma instância, uma energia psíquica se desenvolveria a partir, sobre e com as demais. Em mais de um momento de sua obra, Freud começa a retrabalhar suas ideias a respeito do que seria a angústia sofrida e vivida pelo ser humano. Estudar a evolução do conceito de angústia dentro da obra de Sigmund Freud significa não perder de vista as diferentes conclusões a que o autor chegava. Segundo Ramos (2003), no início de seus estudos, Freud atribuía à angústia um papel tóxico, negativo para o aparelho psíquico humano14, porque a pulsão transformada, para muitos, torna-se intolerável e seria uma atitude geral da sociedade a neurose, a perversão (ibidem, p. 55). No entanto, essa visão negativa do papel da angústia irá se transformar até chegar-se aos textos mais maduros de Freud, em que 14 É muito importante aqui a observação seguinte: para o entendimento da obra freudiana é cabal o conceito de aparelho psíquico humano, dividido entre id, ego e superego, os quais, por sua vez, não devem ser compreendidos como “lugares” da mente, mas como energia psíquica sempre em movimento. No entanto, para Kierkegaard, esses são conceitos completamente alheios. Em nenhum momento a obra do pensador dinamarquês fala dessa constituição da mente, mas sempre do funcionamento do processo existencial, da angústia como escolha. 39 ele irá elaborar uma nova teoria da cultura. Essa parte mais recente da obra freudiana será a base deste estudo a partir de agora. Em primeiro lugar, é importante o destaque de que, para Freud, a angústia é um afeto, ou seja, é um sentimento ligado à me