UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Campus de Franca A FIGURA DO HERÓI ANTIGO NAS CRÔNICAS MEDIEVAIS DA PENÍNSULA IBÉRICA (SÉCULOS XIII E XIV) Simone Ferreira Gomes de Almeida FRANCA 2010 SIMONE FERREIRA GOMES DE ALMEIDA A FIGURA DO HERÓI ANTIGO NAS CRÔNICAS MEDIEVAIS DA PENÍNSULA IBÉRICA (SÉCULOS XIII E XIV) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para a obtenção do título de mestre em História. Área de concentração: História e Cultura. Linha de Pesquisa : História e Cultura Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Susani Silveira Lemos França. FRANCA 2010 SIMONE FERREIRA GOMES DE ALMEIDA A FIGURA DO HERÓI ANTIGO NAS CRÔNICAS MEDIEVAIS DA PENÍNSULA IBÉRICA (SÉCULOS XIII E XIV) Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca, como requisição para obtenção de título de mestre. Sob orientação do Prof.ª Dr.ª Susani Silveira Lemos França. Área de concentração: História e Cultura. Linha de Pesquisa : História e Cultura Social. BANCA EXAMINADORA _______________________________________ Presidente: Susani Silveira Lemos França _______________________________________ 1º Examinador _______________________________________ 2º Examinador Franca, de de 2011. Para a Susani. “Venera a memória dos heróis beneméritos”. Pitágoras AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Capes/Unesp – Franca pela bolsa concedida durante dois anos de pesquisa. À Susani Silveira Lemos França pela cuidadosa orientação e gentileza e ao Jean Marcel Carvalho França pela leitura e considerações iniciais ao trabalho. Às professoras que participaram da banca de qualificação Tânia da Costa Garcia e Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Seus apontamentos foram fundamentais para a reformulação do rumo desta pesquisa. À Kátia Brasilino Michelan pela grande ajuda em pensar os objetivos do trabalho, enquanto este era ainda um projeto. Aos meus amigos queridos e companheiros de república, que acompanharam de maneira mais “intensa” o desenvolvimento deste trabalho: Ana Carolina Viotti, responsável pela trabalhosa revisão, Michelle Tatiane Souza e Silva, por contribuir com os caminhos futuros para esta pesquisa, Rafael Afonso Gonçalves, por todas as pacientes explicações tecnológicas, e Tamara de Lima, minha leitora desde o início da graduação e entusiasta da pesquisa. A vocês minha gratidão, carinho e respeito. A minha família por oferecer suporte e conforto em todos os momentos: Eliana Ferreira Gomes de Almeida, José de Almeida e Vivian Ferreira Gomes de Almeida. Aos funcionários da Biblioteca da Unesp Franca: Frederico Coelho Goulart de Andrade, Márcio Augusto Garcia e Silvana Cristina Leôncio Cursi, prestativos e pacientes. E aos da Pós-graduação: Maísa Helena de Araujo e Vinícius Martins, sempre disponíveis e atenciosos. ALMEIDA, Simone Ferreira Gomes de. A figura do herói antigo nas crônicas medievais da Península Ibérica (séculos XIII e XIV). ___ 117 f. 2010. Dissertação (Mestrado em História e Cultura Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Franca. 2010. RESUMO O propósito deste trabalho é analisar a retomada da figura do Herói clássico, procedente das obras de Homero, nas crônicas ibéricas da baixa Idade Média. Especificamente, restringir-nos-emos aos séculos XIII e XIV, visto que as crônicas ibéricas produzidas nesse período se conduziram pelo desígnio comum de construir uma boa imagem de seus reis, além de se preocuparem em legitimar a reconquista da Península aos mouros. Tal construção historiográfica foi um dos recursos utilizados na tentativa de consolidação de um sentimento de nacionalidade ibérica, que não se confunde ainda nessa altura com consciência nacional, mas permite já notar o fortalecimento dos sentimentos regionalistas e dinásticos. Buscamos perceber a forma de retomada da imagem do herói grego, levando em conta o conceito de virtude cristianizado e alimentado pela moral cavaleiresca, então em voga. Nossa principal fonte de estudo é a Crônica Troiana, pois trata-se do escrito medieval que retoma e redefine de forma mais completa as histórias da mitologia e da épica antiga. Propomo-nos pensar sobre o que pode ter estimulado o interesse dos compiladores da corte de Afonso XI pela história troiana, as alterações valorativas no que diz respeito ao modo como a lenda passou a ser contada na Idade Média e como a figura heroica passou a ser identificada com os santos e os reis. A partir, pois, do exame da configuração dessa Crônica Troiana e das fontes de que fez uso, procuramos notar certa persistência de valores antigos na forma de afirmação do poder real nos referidos séculos medievais. Além desse relato originário da corte de Afonso XI de Castela, procuraremos interrogar a figura do herói na General Estoria de Afonso X e na Crônica Geral de Espanha de 1344, do conde Pedro de Barcelos, que apresentam histórias sobre as aventuras de seus antepassados, indicando- os como modelos a serem seguidos. Palavras chave: herói – crônicas – Península Ibérica – Idade Média ABSTRACT The purpose of this research is to analyze the resumption of the classic hero image, present in Homer’s texts, into the Iberian chronicles of low Middle Ages. Specifically, we will get focus into the XIIIth and XIVth centuries, in as much as the Iberian chronicles that have been made in this period had as identity the assign of building a good image of their kings. This movement delineates an attempt for the consolidation of Iberian nationality feelings – but, is important to highlight, it cannot be confused with the national knowingness of Absolutists States – it allows us to notice the reinforcement of the regionalist and dynastic feelings. We seek to perceive the meaning alteration from the Greek hero for the medieval hero, taking in account the concept of virtue considered in Middle Ages for the “men’s ideal type” in the chronicles, from the chivalrous moral in craze. For that, we will employ the Crónica Troiana, since this is the medieval write which better represents the histories of mythology and ancient epic. Our first interest consists of thinking about how the Crónica Troiana was made and from witch papers it could born. Beyond this one, produced in Alfonso’s XI court (in Castile) we intend to argue about the hero picture in General Estoria of Alfonso X and in La Crónica Geral de Espanha de 1334, written by Dom Pedro, Count of Barcelos. Those papers present us histories about their ancestors and bounces that they are models to be followed. We also propound to think about the reasons that encouraged the compilers from Alfonso’s XI court to write about Trojan history, the different moral values present in the way the legend was narrated in times and, in the end, the incidence in Middle Ages of other models that can correspond to a heroic figure, as the saints and the kings. Key words: heroes – chronicles – Iberian Peninsula – Middle Ages SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... pág. 09 CAPÍTULO 1: O HERÓI E A DINASTIA DOS REINOS DE PORTUGAL E CASTELA ............................................................................................................ pág. 16 1.1 A invenção dos reinados na Península Ibérica ........................................... pág. 16 1.2 O poder e a escrita ......................................................................................... pág. 27 1.3 A História Magistra Vitae e a figura do herói ............................................. pág. 38 CAPÍTULO 2: A HERANÇA ANTIGA ........................................................... pág. 47 2.1 O Roman Antique ........................................................................................... pág. 47 2.2 A propagação da Antiguidade e os novos valores ...................................... pág. 54 CAPÍTULO 3: DO REI AO CRISTÃO VIRTUOSO ..................................... pág. 78 3.1 O Santo ........................................................................................................... pág. 80 3.2 O rei ................................................................................................................ pág. 88 3.3 O herói ............................................................................................................ pág. 98 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ pág. 104 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ pág. 108 Introdução Um fragmento do texto antigo conhecido como Dialexeis (400 a. C.), que ensinava sobre a memória, apontou os deuses e os heróis como as melhores imagens para recordar certos vícios e virtudes. Assim, inserido na técnica antiga da mnemônica, onde certos símbolos deveriam ser usados para lembrar coisas ou palavras do discurso do orador, vemos os nomes de Marte, Aquiles, Vulcano e Epeu, evocados como símbolos das seguintes características: coragem, trabalho e covardia.1 Esses exemplos de imagens para recordar nos interessam, porque os antigos, embora preocupados com o exercício das virtudes, procuraram lembrar tudo o que estivesse relacionado às sete artes liberais – gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música, astronomia.2 A Idade Média, entretanto, retomou as figuras mitológicas antigas, para lembrar especificadamente o que fosse bom, virtuoso e verdadeiro, de forma que não poderia existir memória que não estivesse inserida na ética cristã assim, segundo os pensadores medievais da escolástica3 a retórica no medievo deveria transmitir as palavras divinas, o conhecimento que Deus deu aos homens. Essa forma de sabedoria configurou-se como aquela da salvação, da santidade, do resgate e da liberdade, enfim, da vida eterna.4 Assim, os cronistas medievais, que trataram das matérias antigas na Península Ibérica nos séculos XIII e XIV, tiveram um esforço para revitalizar escritos que, por muitas vezes, não correspondiam ao gosto do tempo,5 trabalhando com valores diversos dos seus e procurando, através da compilação, reformar o conhecimento antigo como fonte da verdade divina. Isso porque a certeza do futuro imortal bipartido entre salvação e danação tornou necessário que as coisas que fossem lembradas passassem a ser, especificamente, os vícios, caminho para o Inferno; e as virtudes, caminho para o Paraíso. Para alcançar tal fim, o homem do medievo teve de recorrer a várias figuras pertencentes à mitologia antiga. Alberto Magno afirma, por exemplo, que frades ingleses utilizaram-se da imagem do cúpido (com seu arco e flechas) para fixar um 1 YATES, Frances A. A arte da memória. Trad. Flavia Bancher.Campinas: Ed. Unicamp, 2007. p. 50- 51. 2 Ibid., p. 73. 3 Principalmente São Tomás de Aquino e Alberto Magno. 4 MARITAIN, Jacques. Filosofia Moral. Versão espanhola de Gonzalo Gonzalvo Mainar. Madrid: Ed. Morata, 1966. p.107. 5 Rebelo aponta a dificuldade da retomada dos textos clássicos na Idade média pois: “[...] cada época é sensível a certos aspectos particulares de forma, de conteúdo, de interpretação [...]”. REBELO, Luís de Sousa. A tradição clássica na literatura portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982. p. 179. discurso sobre a idolatria.6 No mesmo sentido, o cristianismo preocupou-se mais em superar os deuses antigos do que destruí-los, ou seja, depois que o único e verdadeiro Deus alcançou seu merecido reconhecimento, essas figuras antigas puderam ser retomadas no âmbito do fabuloso, o que levou Paul Veyne a afirmar que, “[...] mesmo lá onde os cristãos parecem atacar o paganismo sobre sua veracidade, eles não fazem nada disso”.7 Considerando a retomada de várias figuras da mitologia grega pelos medievais, nossa preocupação, neste trabalho, diz respeito propriamente à figura do herói, pois ele correspondeu à vontade dos escritores das cortes ibéricas de enaltecer o homem que deixasse sua marca não só na sua geração, mas nas posteriores. Tendo em vista, que assim como o herói clássico alcançou a sobrevivência através dos séculos da sua fama na memória coletiva,8 os cronistas dos séculos XIII e XIV desejaram, alcançar a mesma glória para sua dinastia através da construção de linhagens forjadas, que procurava-se afirmar ainda mais devido ao propósito da centralização do poder na Península Ibérica.9 Deste modo, as crônicas medievais, pretenderam guardar somente o que era digno de lembranças, ou melhor, as coisas memoráveis,10que eram o que acreditavam que mais se identificava com a verdade divina. Qual foi o papel do herói clássico nessa afirmação da moral cristã será uma das nossas interrogações fundamentais. Embora etimologicamente o termo herói tenha desaparecido,11 seu arquétipo permaneceu vivo, pois se escreveu e se leu no medievo sobre Aquiles, Hércules, Ulisses e muitos outros, não mais definidos como heróis, mas identificados como cavaleiros, reis ou bravos senhores. Diante dessa herança, mas ao mesmo tempo com essas novas configurações e novos papéis das figuras virtuosas dentro de uma sociedade, o que será desdobrado neste trabalho será, notadamente, como se deu o uso das figuras heroicas em alguns dos textos da Península Ibérica nos séculos XIII e XIV. Cumpre notar que, dada a ausência da designação “Herói” nas fontes medievais examinadas, referimo-nos a eles como “homens modelos” (nos séculos XIII e XIV) e “herói clássico”, para o herói homérico. Nosso interesse está justamente em perceber como esse herói clássico da Ilíada e da Odisséia foi retratado nas cortes de Portugal (D. 6 YATES, Frances A. A arte da memória. Trad. Flavia Bancher. Campinas: Ed. Unicamp, 2007. p. 132. 7 VEYNE. Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 128. 8 VEYNE, Paul; VERNANT, J.-P. Indivíduo e Poder. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 30 9 KRITSCH, Raquel. Soberania – a construção de um conceito, São Paulo: Humanita/, USP, 2002. p. 230. 10 VERGER, Jacques. Homens e Saber na Idade média. Bauru: Edusc, 1999. p. 49. 11 Cf. LE GOFF. Jacques. Heróis e maravilhas na Idade Média. Petrópolis: Ed Vozes, 2009. p.15. Afonso IV) e Castela (Afonso X e Afonso XI) como homem modelo, Em outras palavras, como um indivíduo especial foi construído nos textos para suprir algumas necessidades da sociedade à qual pertenceu. Tratando especificamente da Península Ibérica, focar-nos-emos nas seguintes crônicas: Crônica Troiana, bem como em suas contemporâneas Crônica Geral de Espanha de 1344 e General Estoria. A escolha dessas crônicas deveu-se ao fato de a primeira configurar-se como o escrito mais abrangente de textos de conteúdo antigo e as outras duas por, além de serem contemporâneas a essa, conterem grande incidência de imagens heroicas nas narrativas. Essas obras foram selecionadas pelo seu compromisso comum de enaltecimento das origens dos reinos da península Ibérica. Em outras palavras, por buscarem valorizar as figuras reais, elas se predispõem a buscar modelos elogiosos, entre os quais, as referências heroicas antigas ainda continuam a ter um peso significativo. Os escritos que trataram da Antiguidade, e até mesmo de Troia, formam um conjunto significativo na Península Ibérica, cujos principais são: El Libro de Alexandre,12 Historia Destructionis Troiae,13 Los doce trabajos de Hércules,14 Traducción y glosas de la Eneida15 e o Libro de Apolonio.16 Todos fazem parte do ciclo do Roman antique na Península Ibérica, responsável pela retomada das matérias antigas. A explicação sobre a versão da lenda Troiana utilizada no presente trabalho, bem como a justificativa para sua escolha, encontra-se no decorrer do texto, contudo, é bom adiantar que o Roman de Troie, obra que deu origem a praticamente todos os escritos medievais sobre Troia, escrito em versos, originou uma série de versões em prosa, sendo duas dessas ibéricas: uma versão em castelhano e uma em português. Além disso, a versão em versos foi provavelmente utilizada na elaboração da General Estoria de Afonso X, assim como na Crônica Geral de Espanha de 1344, de Pedro de Barcelos. Por esta razão essas crônicas, a espanhola e a portuguesa respectivamente, foram incluídas como fontes desta pesquisa sobre as formas como valores da História Troiana 12 ÁLVAREZ. María Rosa. Literatura portuguesa y literatura española: influencias y relaciones. Sellers, Cuadernos de Filología – Anejo XXI, Universitat de Valencia, 1999. p.18. 13 Atribuída a Guido de Columnis, é uma prosificação latina do Roman de Troie, de 1287. CRISTÓBAL, Vicente. Mitología clásica en la literatura española: consideraciones generales y bibliografía, 2000. p. 35. Disponível em < http://revistas.ucm.es/fll/11319062/articulos/CFCL0000120029A.PDF> 14 Escrito por Enrique de Villena em 1417. ALVAR, Carlos; MEGÍAS, J.M. Lucía. Diccionario Filológico de Literatura Medieval Española. Madrid: Editorial Castalia, Nueva Biblioteca de Erudición y crítica, 2002. p. 459. 15 Também escrita por Enrique de Villena entre 1400 e 1434. Ibid. p. 462. 16 FERNÁNDEZ, Gonzalo. Una obra maestra de la literatura castellana Del siglo XIII: el anónimo Libro de Apolonio, revista Abril, n. 81. E ANÓNIMO. Libro de Apolonio. Introducción, edición y notas de M. ALVAR. Serie Clásicos Universales Planeta. Barcelona:Editorial Planeta. n. 80, 1984. foram atualizados nos séculos XIII e XIV e, principalmente, como o ideal de homem modelo medieval, a despeito dos valores outros que lhe foram acrescentados com o fortalecimento do Cristianismo, foi inspirado em valores antigos. Utilizamos aquelas produções históricas que denunciam como o herói inspirou outros homens ao longo do tempo, para o que nos é essencial tanto o papel da Ilíada e da Odisseia quanto das crônicas ibéricas produzidas nas cortes dos séculos XIII e XIV, pois sustentam o processo de hegemonização do território ibérico, recuperado pela Reconquista.17 Isto posto, no primeiro capítulo, O herói e a dinastia dos reinos de Portugal e Castela, a questão norteadora funda-se sobre o papel da retomada dos valores antigos no processo crescente de unificação na Espanha e em Portugal. Para tal, iniciamos este trabalho tratando da invenção dos reinos da Península Ibérica pautada nas crônicas, na defesa da superioridade das terras e dos homens ibéricos, bem como na apresentação de uma boa imagem real. Da mesma forma, apontamos a tentativa de consolidação das nacionalidades ibéricas, o que, porém, não se confunde ainda com a tomada de consciência nacional dos Estados absolutistas, pois melhor se define como fortalecimento dos sentimentos regionalistas e dinásticos. No caso da Península, encontramos nas crônicas o termo “Espanha” para designar uma comunidade de cristãos que deveria ser conduzida por um soberano, superando a figura daquele que era somente o senhor da terra. Assim, o novo soberano deveria ser letrado e capaz de instaurar as reformas necessárias para a centralização do poder.18 Afonso X, com as Siete Partidas, desempenhou bem este papel, como mostraremos ao longo deste primeiro capítulo. Portugal, por sua vez, é relatado, principalmente na Crônica Geral de Espanha de 1344, quando surge a preocupação de diferenciar seu reino dos reinos espanhóis, afirmando sua autonomia. Desdobramos, ainda, as semelhanças entre as três crônicas no que diz respeito à retomada dos modelos antigos para enaltecer a Península Ibérica, bem como a circulação dos textos entre Espanha e Portugal e sua confecção em língua vulgar. Os heróis homéricos serão retomados na medida em que são apresentados como parte fundamental das origens das dinastias portuguesas e espanholas, perpetuando sua boa descendência aos governantes dos reinados de Espanha e Portugal, para que se legitimasse o conjunto dos reinos que formam Portugal e Espanha através do 17 RUCQUOI. Adeline. História medieval da Península Ibérica. Lisboa: Ed. Estampa, 1995. p.262. 18 LEROY, Beatrice. Sociedade e Poderes políticos na Península Ibérica (séculos XIV – XV).Europa- América, 2001. p.32. desenvolvimento de um sentimento nacional propagado pelas crônicas, que os unisse como pátria comum.19 Depois de termos mapeado como a história afirmou as qualidades da Península por referência ao seu passado antigo e inspirando-se nos valores engrandecedores do passado remoto do território, no subtítulo seguinte, O poder e a escrita, com a finalidade de apontar as relações básicas no âmbito do scriptorium das cortes, que levaram aos cronistas pensar a necessidade da construção de uma boa imagem dos reis e nobres, bem como de se retomar os heróis clássicos para realizar tal enaltecimento, mostraremos como a produção escrita nas cortes dos séculos XIII e XIV é toda ela compromissada em estabelecer uma moral para o rei e formas de regulação da administração e da justiça reais. Num processo que pode ser definido como de secularização da escrita, propaga-se uma escrita pedagógica, inspirada no ideal ciceroniano da história como magistra vitae. Contudo, o público digno de receber os ensinamentos da história escrita é restrito aos nobres, considerados homens bons e virtuosos. É nossa proposta, neste ponto, apontar os privilégios da nobreza e sua relação com a escrita e as figuras heroicas. Para tanto, empreendemos uma reflexão acerca do que foi a nobreza praticante da arte de escrever nas cortes, que buscou retratar a origem como o que há de mais essencial e, ainda, qual foi o papel da sabedoria neste panorama. Uma última questão é o papel da verdade escrita, da autoria e da necessidade do testemunho para dar legitimidade às histórias contadas nas crônicas, onde analisamos o privilégio da Crônica Troiana como testemunho. Procurando desdobrar a função da história magistra vitae de Cícero nas crônicas, com o subtítulo A história magistra vitae e a figura do herói, retomamos a literatura de exempla antiga, para analisar como esta foi reapropriada pelos cronistas, cumprindo a função de moldar as ações e os costumes da corte e do soberano. Assim, apontamos algumas formas de cristianização do passado pagão, já que os textos deviam ser propagadores das virtudes cristãs, virtudes essas, porém, inspiradas no herói clássico. Atentaremos ainda para a relevância do herói, do santo e do sábio como ideais humanos que refletem a importância da trajetória individual em cada época, a despeito da imposição de modelos. 19 Não queremos dizer com isso que Espanha e Portugal tinham consciência de si enquanto pátria nos séculos XIII e XIV, mas que foi-se desenvolvendo um sentimento nacional, principalmente entre aqueles que registravam o passado, os cronistas das cortes castelhanas e portuguesas. No segundo capítulo, intitulado A herança antiga, tratamos do Roman Antique – o ciclo literário que versou sobre o interesse pela mitologia antiga na Península Ibérica – abordamos, especialmente, o interesse pela lenda de Troia nas cortes de Afonso X, Afonso XI e as rupturas e continuidades entre a versão de Homero e os textos do medievo, visando à construção e afirmação da história a partir dos objetivos dos seus governantes, que passavam por um período de instabilidade, devido à luta contra os mouros pela posse de territórios, e a impasses entre os reis e seus herdeiros; de forma que estimular a proteção e a guerra por terras foi tão necessário quanto justificar a vontade real na escolha dos futuros monarcas. Num segundo momento, indicamos a versão da Crônica Troiana utilizada neste trabalho, feita por Ditis e Dayres, bem como a circulação desta versão e seu uso na corte de Afonso X e Afonso XI. Além desses autores antigos, também são tratados os textos de Ovídio, Lucano e Estácio, utilizados pelas crônicas descritas anteriormente. No subtítulo seguinte, A propagação da antiguidade e os novos valores, questionamos como os heróis e os deuses foram reapropriados nas crônicas a partir de um processo de transmissão do conhecimento estabelecido pelos cronistas que contemplavam a Grécia, Roma e a Europa consecutivamente, indicando como a cultura clássica da antiguidade era vista como a autoridade máxima do saber. Buscamos, ainda, uma breve diferenciação da forma de apropriação medieval da antiguidade e forma renascentista de retomada das referências antigas. Mas nossa maior ênfase recairá sobre a adaptação dos valores antigos na Idade Média, em especial sobre a forma como a história escrita redefine esses valores e contribui para estabelecer os modelos de virtude no seu tempo, em que pesam os ideais cavaleirescos, o amor cortês, a religião cristã e suas várias implicações morais. Finalmente, no último capítulo, O exemplo do herói – o homem virtuoso, ainda com o propósito de mostrar como se contornaram as inseguranças dinásticas nos escritos, o mote é pensar qual foi o significado de virtude na Península Ibérica dos séculos XIII e XIV e sua relação com as figuras heroicizadas. Portanto, nosso objetivo é mostrar os modelos fundamentais para a sociedade medieval e como serviram como propagadores das virtudes, em especial a partir da ênfase sobre os papéis do Santo e do Rei. A rigor, comparamos os santos e os heróis no sentido da função modelar que ambos ocuparam na sociedade medieval. No subtítulo seguinte, intitulado O Rei, continuamos a tratar dos homens modelo no medievo e suas inspirações, com destaque para a figura real, figura essa que deveria articular as virtudes dos santos, dos cavaleiros e dos heróis homéricos, para ser merecedora de chefiar em uma unidade os vários reinados que formavam Portugal ou Espanha nos séculos XIII e XIV, representando também a cristandade ibérica em tempos de Reconquista. Apesar de o rei guerreiro estar em voga devido ao panorama de luta constante contra os mouros na Espanha e em Portugal, o rei exemplar é aquele que não usa somente a força, mas que é principalmente sábio, como enfatizará a Crônica Geral de Espanha de 1344. Outras qualidades reais ainda são as que configuraram o Rei Trovador e/ou o Rei Juiz. Nota-se que os melhores exemplos de rei foram afirmados nas crônicas nas figuras de Carlos Magno, Alexandre, Arthur e o Preste João, todos apontados como reis virtuosos. No último subtítulo, O Herói, abordamos inicialmente o herói clássico de Homero, quais eram suas principais características e tipos, a saber: o herói colérico (representado por Aquiles) e o herói sábio (representado por Ulisses). Após esta introdução, nosso foco é o herói do medievo, ou seja, os homens modelos, reconhecidos em figuras diversas como o Cid, Carlos Magno e Santiago, todos propagadores da moral cristã. Por fim, tecemos uma comparação entre os indivíduos excepcionais antigos e os medievais, apontando as parecenças e diferenciações nos seguintes aspetos: fundadores (inventores); conhecedores da escrita, da tática militar; e guerreiros que lutam contra os bandidos, as feras e os monstros. Pretendemos assim mostrar como a ideia de homem modelo, ainda que herdeira de alguns valores antigos, estabelece-se de acordo com as preocupações dos homens das cortes, sendo eles, na verdade, maior inspiração do que os personagens de Homero. Desta forma, o herói clássico reapropriado enquanto salvação para a Península ameaçada pelos mouros e por seus próprios conflitos internos, configura nosso principal objetivo. Vale, por fim, adiantar nesta introdução, que, por ser o herói uma construção feita de acordo com as necessidades de sua época, este se configura como um ser irremediavelmente singular e, por isto mesmo, insubstituível; contudo, como se dá essa construção e, posteriormente, sua apropriação nos textos ibéricos dos séculos XIII e XIV, é o que procuramos examinar e desdobrar neste trabalho.20 20 Todas as citações da Crônica Troiana, da General Estoria e da Crônica Geral de Espanha de 1344 aqui realizadas são feitas a partir de tradução nossa. Destacamos, ainda, que o texto está adequado às novas normas gramaticais firmadas no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa da CLP, em 2009. Capítulo 1 – O Herói e a dinastia dos reinos de Portugal e Castela 1.1 A invenção dos reinados na Península Ibérica E como quer que estas linhagens de Cam e de Jafé ganharam alguma coisa umas das outras por força, nós não queremos falar se não somente dos filhos de Jafé por que destes foi povoada Espanha[...] Filho de Jafé, que teve nome Tubal, deste vieram os espanhóis. E a sua linhagem andou por muitas terras de uma e da outra parte buscando terra de que se pegassem para povoar e chegaram as partes do ocidente[...]E depois de um tempo chegaram onde agora chama-se o Porto umas gentes e naves que eram degradados de sua terra, os quais eram chamados Galeses. E estes povoaram uma grande parte da Galicia que era deserta e esta estava entre dois rios que chamavam a um Doiro e outro Minho. E compuseram estes dois nomes e então puseram nome a terra Portugaleses mas depois o encurtaram e puseram-lhe nome Portugal.1 Esse trecho da Crônica Geral de Espanha de 1344 é apenas um dos vários exemplos na obra que referem a superioridade das terras e dos homens ibéricos. Esta preocupação em enaltecer a Península nos escritos, iniciada no século XIII,2 encontra-se intimamente ligada ao cuidado em construir uma boa imagem real e se configura como um dos recursos utilizados na tentativa de consolidação das nacionalidades ibéricas.3 Tal afirmação, entretanto, não se confunde ainda com a tomada de consciência nacional que caracteriza os Estados absolutistas, mas permite notar o fortalecimento dos sentimentos regionalistas e dinásticos. Isto porque, a partir do século XII, os príncipes dos reinados espanhóis estiveram às voltas com os preceitos do direito romano e consequentemente com a noção de império, o que permitiu que em suas cortes houvesse um ímpeto de 1 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961. Volume II. p. 10-15. 2 Os monarcas até o século XIII, em sua maioria, eram iletrados, de modo que não devemos relacionar a prática da leitura como sinônimo de inteligência e sabedoria, somente o latim estava ligado diretamente às práticas literárias, por isso mesmo é que as línguas vernáculas (“vulgares”) se desenvolvem até então, sobretudo na oralidade. Era de forma oral que se transmitiam as tradições, romances, teatros religiosos, liturgias, provérbios e sermões, elementos mais conceituados para a formação do indivíduo do que propriamente os escritos. A partir desse momento, algumas alterações podem ser notadas nesta configuração do medievo. 3 O termo “nação” gera dificuldade para se restringir a uma única acepção, isso porque há múltiplos significados conferidos a esta palavra, entre eles: território, língua, caráter, consciência comum, pode ser designada ainda como um sentimento que vai criando-se progressivamente até assumir-se conscientemente exercendo-se voluntariamente em determinadas situações de conflito. (CÁRCEL, Ricardo García. Cataluña y el concepto de España en los XVI y XVII in BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. A memoria da nação. Lisboa: Ed. Livraria Sá da Costa, Fundação Calouste Gulbenkain, 1987.p. 441. ) desenvolvimento nos meios fiscais, administrativos, militares e mentais, visando respaldar os seus detentores em um poder raramente contestado e tendente ao centralismo,4 deste modo, a necessidade de um poder central, que representasse a Espanha enquanto terra mãe, começou a superar a diversidade de costumes, língua e sistemas políticos e econômicos dos reinados. Enfim, a uniformização dos territórios fez-se necessária na medida em que se pretendeu legitimar um poder unificado, daí, em todas as crônicas estudadas, encontrarmos o termo Espanha,5 o que mostra uma pretensão de integrar em um mesmo tronco comum todos os cristãos, superando as muitas divisões políticas dos reinados e apelando inclusive a uma espécie de sentimento proto nacional que afirma e retorna ao passado unitário do país.6 Do mesmo modo, os reis portugueses buscaram afirmar o seu poder e centralizar o governo do reino, para que obtivessem o controle tanto do espaço quanto do recurso de suas terras, em detrimento do pertencimento a um “império hispânico”.7 Os cronistas, neste panorama, permitiram a criação de expectativas com relação às características recomendáveis a este “novo” soberano, a quem, para bem comandar um Estado laico, cabia desprender-se da tradição feudal, ou seja, ir além da religiosidade e de valores morais remanescentes do rei cavaleiro. Segundo Béatrice Leroy,8 entre os séculos XI e XIII, e, por vezes, em textos diplomáticos do século XIV, o rei é “o senhor natural”, o “senhor da terra”, do seu reino, sendo, pois, a expressão do interesse coletivo, da defesa e da salvaguarda de todos os seus súbditos cristãos, que lhe são todos fiéis e o ajudam a fortificar o seu solo conquistado ao infiel. Este princípio nunca seria esquecido, de modo que o Rei de um Estado ibérico podia socorrer-se desta imagem quando quisesse reunir todos os seus súditos, todos os homens de seu Estado, para uma cruzada ou uma causa real aparentada a uma cruzada — em nome de um 4 No que diz respeito à Península Ibérica especificamente, Serrão propõe que Portugal, em um século e meio, tornou-se organismo pátrio, “seguindo-se ao longo do século XIV o fortalecimento da consciência nacional que permitiu vencer a crise de independência”. (SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Estado, Pátria e Nação (1080 – 1415). Lisboa: Ed. Verbo, 1979. p.14). Do mesmo modo, Lindley Cintra afirma a crise de 1383-1385 como ponto de viragem pelo contributo para a cristalização do que designa por sentimento de independência e consciência de nacionalidade (CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.) Já no caso espanhol, Afonso X é considerado o protagonista exemplar da organização incipiente do Estado medieval da Península Ibérica, sobretudo por ter criado um código jurídico onde definiu, em termos claros, a superioridade do poder político do rei (MATTOSO, José. Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Ed. Estampa, 1987. p. 78). 5 Como mostramos na citação da página 16. 6 GIMÉNEZ, Manuel González. Alfonso X El Sabio. Barcelona: Ed. Ariel S. A., 2004. p. 428. 7 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica, Lisboa: Estampa, 1995. p.195-215. 8 LEROY, Beatrice. Sociedade e Poderes políticos na Península Ibérica (séculos XIV – XV).Europa- América, 2001. p.32. suposto bem público. Mas, no século XIV, esperou-se do soberano uma outra atitude, uma outra ação, diferente daquela que parecia ser a única essencial a um chefe da Reconquista do século XI. É, nessa altura, pois, que se configura o príncipe letrado,9 empenhado na reforma do reino e, do mesmo modo, atento às novas demandas do seu tempo e preocupado em criar novas expectativas sobre as virtudes régias. Nesse processo, que podemos chamar de processo de secularização de seus reinos,10 Castela e Portugal adiantaram-se em relação a outros reinos. A primeira se encaminha nesse sentido graças, em grande parte, à força de um código jurídico, preparado nos tempos de Afonso X, as Siete Partidas, código que contribuiu decisivamente para definir a superioridade do poder político do rei, bem como graças a um histórico de quadros sólidos de governo e à precedência do cargo de cronista oficial.11 Portugal, por sua vez, com o reinado de D. Dinis implementou uma série de medidas seculares como: estabilização das fronteiras e consolidação do sentimento nacional, organização do governo interno, através do investimento na marinha, na defesa dos castelos e -- da afirmação do lugar da justiça 9 Sobre a designação de letrados e iletrados na Idade Média: “Em um mundo frágil, ameaçado por todos os lados, e em que eles tentavam heroicamente recriar para si uma tradição escrita, os doutos da Idade Média tinham o hábito de classificar seus contemporâneos em dois grupos, litterati e illitterati. Ora esses termos não tinham, no seu espírito, grande coisa a ver com a alfabetização. Letrados e iletrados significavam dois tipos de homem, cujo comportamento diferia, pelo menos em certas circunstâncias, segundo eles colocassem a fonte de autoridade nos poderes racionais ou nos da sensibilidade; segundo a maneira pela qual, espontaneamente, o homem regula seu pensamento e sua conduta pela ordem do corporal ou da escrita [...] A voz não estava ainda subordina a hegemonia da escrita. (FENERICH, Suely; FERREIRA, Jerusa Pires; ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Ed. COSACNAIFY, 2007. p. 57 ). Sobre a questão do latim: O homem comum sabe, como o instruído, que há duas línguas: a do povo e a dos letrados (clerici, litterati). A língua dos letrados, o latim, chamava-se também grammatica e passava no conceito de Dante – quanto já para o romano Varrão – como língua artificial, imutável, criada por sábios. (CURTIUS. Ernest Robert. Literatura Europeia e Idade Média Latina. São Paulo: Ed. Hucitec, 1996. p.59.) Dadas as considerações da complexidade dos termos letrados e iletrados, levando-se em conta os desdobramentos da sociedade medieval no que diz respeito ao conhecimento e a tradição, apontamos ainda a designação de Brocchieri que indicamos como a acepção mais adequada para este trabalho: “Letrados é a categoria mais vasta e necessariamente a menos precisa: eram letrados todos os que sabiam ler e escrever e dominavam o universo das palavras (discurso oral e escrito, sermão, lição ou tratado) e que, naquela época, eram uma pequena minoria relativamente ao grande grupo dos iletrados (também denominados idioti, símplices ou rudes). Iletrado era também um termo de amplo significado: abrangia quem não sabia ler nem escrever (aqueles a quem chamamos analfabetos), mas também aqueles que não sabiam latim, a língua por excelência, ou não o sabiam escrever, embora compreendessem um pouco”. (BROCCHIERI, Mariateresa F. B. O intelectual. In: LE GOFF, Jacques. O Homem medieval. Presença, Lisboa, 1989. p. 126.) 10 Verger aponta que do século XII ao XV a laicização foi uma tendência global, entretanto o autor esclarece que este processo foi passível de variações devido aos ritmos diferentes de indivíduos e países no medievo. (VERGER, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. Bauru: Edusc, 1999. p.246). Já Bühler afirma que “a partir do XIII começa a destacar-se cada vez mais na vida cultural o elemento laico”. (BÜHLER, Johames. Vida y Cultura en La Edad Media. México-Buenos Aires: Fondo de Culrtura Economico, 1957). 11ELIZONDO, María Isabel Ostolaza. La Cancillería y otros organismos de expedición de documentos durante el reinado de Alfonso X (1312-1350). In Anuario de Estudios Medievales, Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas n.16, p.157. real na solução dos problemas – estímulo à cultura, religião e arte, através da fundação de um Estudo Geral, além de mosteiros e escolas; e, principalmente, estabelecimento de regras severas para que o princípio da soberania fosse respeitado pelo poder senhorial.12 Deste modo, neste capítulo, interessa-nos notar como estes príncipes, que mais tarde serão considerados sábios, cercaram-se de letrados e buscaram convencer, através dos escritos, que seus esforços para com o Estado eram satisfatórios, honrados e até mesmo grandiosos. É esse empenho de afirmação dos reinados da Península que demanda a retomada de referências antigas, as quais desempenham um papel relevante no que diz respeito às origens e à moral do homem no medievo. Portanto, pretendemos desdobrar aqui o modo pelo qual a figura heroica antiga foi atualizada pelos cronistas medievais, servindo de exemplo e até mesmo colaborando com o processo crescente da unificação na Espanha e em Portugal, porém, sendo apropriada em um sentido que diz mais respeito ao homem medieval do que ao contexto de onde são extraídas tais referências. Um conjunto específicos de fontes será examinado para que possamos desdobrar tal questão: a General Estoria, a Crônica Geral de Espanha de 1344 e a Crônica Troiana, crônicas que, embora produzidas em ocasiões diversas, resultam todas da escola afonsina. Tal escola é reconhecida por seu papel pioneiro na escrita da história na Península ibérica, ou melhor, pela oficialização do cargo de cronista e pelo apoio ao seu trabalho e engrandecimento de sua figura na corte.13 A General Estoria, que foi produzida na corte do Rei Sábio (Afonso X), apresenta a perspectiva universalista da historiografia castelhana e, escrita em língua vulgar, conta-nos a história de todos os povos que dominaram a Espanha. A obra propõe um saber enciclopédico, amparado na astronomia, na filosofia e nas sete artes liberais, e toma como ponto de partida a criação do mundo, dividindo a história segundo as seis idades estabelecidas por Santo Agostinho,14 o qual defende a unidade da trajetória humana, definida por uma história da redenção e, portanto, por uma história universal. Já a Crônica Geral de Espanha de 12 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Estado, Pátria e Nação (1080 – 1415). Lisboa: Ed. Verbo, 1979. p. 247-248. 13CABRERO, José Luis B. Orígenes Del oficio de cronista real. In: HISPANIA REVISTA ESPAÑOLA DE HISTORIA. Madrid: Instituto Jeronimo Zurita, 1980. n.145.p.395. 14 Santo Agostinho periodizou a história em seis épocas, dispostas em correlação com os seis dias da criação e com as idades da vida humana “As seis idades são, de Adão a Noé, de Noé a Abraão, de Abraão a David, de David ao cativeiro da Babilônia, do cativeiro ao nascimento de Cristo, do nascimento de Cristo ao fim do mundo. O fim do mundo compreenderá três fases: a vinda do Anti Cristo, o regresso de Cristo, o juízo Final. Agostinho acrescenta, para reforçar a teoria das seis idades, um argumento de peso pedido à cultura pagã. As seis idades do mundo existem à margem das seis idades da vida humana. Estas seis idades do homem são: a primeira infância, a infância, a adolescência, a juventude, a idade adulta e a velhice”. (LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 327.) 1344 é atribuída ao conde Pedro de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis e que, por um desentendimento com este, foi expulso do reino e permaneceu por cinco anos na corte castelhana. Acolhido por Afonso X, seu avô, aprendeu o modo de historiar dos cronistas de sua corte, mostrando em sua obra características típicas da escola afonsina, como a história universal, o enaltecimento da Espanha, a constância das referências aos textos genealógicos e a influência dos valores cavalheirescos remanescentes das cruzadas. Por fim, a Crônica Troiana, embora não tenha sido produzida no reinado de Afonso X e, sim, no de Afonso XI, segue também os princípios básicos desta forma de historiar, visto que os ensinamentos de Afonso X foram mantidos e propagados pelos monarcas posteriores da Espanha. A escolha dessas crônicas deveu-se, primeiramente, ao fato de a terceira; configurar-se como o escrito mais abrangente de textos de conteúdo antigo, e as outras duas por serem contemporâneas a essa e pela incidência de imagens heroicas na narrativa, em segundo lugar, porque essas obras têm como identidade o enaltecimento das origens dos reinados da Península Ibérica. Em outras palavras, por buscarem valorizar as figuras reais, elas se predispõem a buscar modelos elogiosos, apelando inclusive para as referências heroicas antigas. Além disso, uma das grandes inovações introduzidas pela Crônica Geral de Espanha de 1344 foi a escrita em língua vulgar, o que também ocorre nas outras duas obras e indicam que foi pensada para um público que ultrapassava o restrito círculo dos clérigos letrados, conhecedores do latim.15 Esta identidade entre as obras nos interessa justamente porque a produção cronística da corte castelhana de Afonso X caracterizou-se pelas traduções de textos que não se restringiam à cristandade ocidental, abarcando sobretudo os escritos do oriente conhecido, devido a um contato nem sempre pacífico, mas normalmente tolerante, no âmbito cultural e religioso, com letrados muçulmanos, judeus ou até mesmo bizantinos; contatos esses decorrentes da conquista e das várias tentativas de reconquista16 Isto possibilitou que textos desconhecidos da cultura da cristandade ocidental, principalmente os textos gregos e árabes, fossem nessa altura traduzidos, quer dizer, passassem por um processo de tradução: uma primeira do grego para o árabe, uma segunda, do árabe para o latim, e ainda uma terceira, do latim para o castelhano. 15 Segundo Zumthor durante meio milênio, a própria existência de uma cultura propagada pelo latim – “dominando, de suas fortalezas eclesiásticas e universitárias, o território das nações europeias em formação – constitui um obstáculo a que as línguas vulgares emergissem fora do estatuto de pura oralidade.” (ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das letras, 1993. p.120). 16 VERGER, Jacques. Cultura ensino e sociedade no Ocidente. Bauru: Edusc, 2001. p.24. Na própria “Crônica Geral de Espanha de 1344”, em seu quarto volume, existe uma passagem que diz respeito à importância da linguagem utilizada por Afonso X: “O Rei dom Afonso, por saber todas as escrituras, as fez tornar do latim em linguagem”.17 Esse fato trouxe notáveis consequências, tendo, sobretudo, permitido a inclusão no texto de fontes épico-lendárias relativas a heróis e feitos da Reconquista que até aí tinham sido menosprezadas pelas histórias latinas compostas pelos eclesiásticos. E mais, as histórias da mitologia antiga, bem como seus heróis, foram propagados nos escritos do medievo em linguagem corrente nos reinos da península. As obras escritas em castelhano visavam expandir a história do reino de Castela para uma vasta perspectiva da história humana, contribuindo principalmente com a promoção de um “sentimento nacional” que se fundava no dever ou missão dos castelhanos de “restaurarem” a Espanha visigótica.18 Em se tratando do contato que Portugal empreendeu com o modelo historiográfico afonsino, veremos que isto foi possível devido a uma relação já anteriormente estabelecida entre Portugal e Castela. O olhar de Portugal para o reino castelhano foi fundamentalmente positivo, visto que, na literatura portuguesa, Castela foi considerada o local “onde se encontravam possibilidades de progredir na escala nobiliárquica e de ganhar as boas graças da realeza, se não mesmo, de obter fortunas em breves estadas”.19 Por isso, Portugal, em grande parte, tradicionalmente seguiu os preceitos da corte castelhana, podendo-se mesmo falar, como faz Rita Costa Gomes, em uma tendência estrutural da sociedade de corte em Portugal de trânsito entre as demais cortes peninsulares, o que significa uma abertura deste meio à presença dos estrangeiros e, em última instância, uma proximidade, no final da Idade Média, entre a entourage dos reis portugueses e a dos castelhanos.20 Outro ponto comum entre os reinados foi a língua, porque, somente no século XVI, houve uma real preocupação em se firmar e propagar o idioma nacional e, antes disso, o bilinguismo na fala e na escrita foi comum e aceito entre Espanha e Portugal. A circulação dos nobres, porém, não deve ser entendida como uma forma de amizade ou de pacto entre as nações. Isto porque a questão das fronteiras entre esses reinos 17 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961. p. 504. 18 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica, Lisboa: Estampa, 1995. p.179. 19 KRUS, Luis. A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-1380). Lisboa: Ed. Fund. Calouste Gulbenkian, 1994. p.191. 20 GOMES, Rita Costa. A Corte dos reis de Portugal no Final da Idade Média. Lisboa: Difel, 1995. p.88. representa certa complexidade, visto que a ideia de nação medieval está ligada ainda mais à questão da raça,21 que se confundia com a divisão social, ou seja, a nobreza das famílias. As fronteiras dos pequenos povoados, portanto, podiam ser mais representativas do que a que separava nações.22 Assim, sobre a questão do espaço (lugar) na Idade Média, vale lembrar que, na alta Idade Média, prevaleceu a ideia de que o espaço não era um bem passível de ser possuído, ou seja, era um dom de deus, o que significava, em última instância, proteção e ajuda mútua nos territórios; porém, a partir da baixa Idade Média, inicia-se uma progressiva conquista do espaço, “uma integração na existência da imagem que se tem dele”,23 devido fundamentalmente ao renascimento do comércio e suas caravanas, bem como à propagação dos escritos e da vontade de classificação e medição. Desse modo, os homens dos séculos XIII e XIV demarcaram seus territórios, mostrando-se preocupados com a origem de seu povoamento e a identidade das pessoas que habitavam esses “lugares”. É nesse novo quadro que se encaixam as preocupações tanto do cronista português quanto do espanhol em tecer comentários elogiosos às suas nações, ainda muito mal delineadas, pois, segundo Genicot, a nação no século XIII é uma imagem confusa, devido fundamentalmente à carência de mapas, por isso, o próprio rei tinha uma ideia pouco clara de seu reino, e apenas uma minoria, que podia viajar ou ler, tinha uma melhor noção espacial dos domínios da nação em construção. Essa minoria era formada pelos funcionários que iam de um posto a outro, pelos nobres que se encontravam nas guerras e nas cortes ou nas assembleias dos Estados, pelos mercadores que frequentavam mercados no país ou no exterior, por eclesiásticos que passavam de uma diocese ou de um monastério a outros e, finalmente, pelos letrados que se agrupavam em nações para o estudo em determinada Universidade, além de alguns escritores e artistas. Tais pessoas, de alguma forma, possibilitavam que um sentimento de nação aos poucos fosse se firmando.24 Na Crônica Geral de Espanha de 1344, Pedro de Barcelos, leitor e viajante, contempla os dois reinados grandiosos da Península, primeiramente, a Espanha: 21 GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV. São Paulo: Edusp, 1981. p.98. 22 MONGELLI, Lênia Márcia. Mudanças e Rumos: O Ocidente medieval (séculos XI – XIII). Cotia, SP: Ed. Íbis, 1997. p.161. ZUMTHOR, Paul. Medida Del Mundo. Ed. Catedra, 1994. p.32-33. 24 GENICOT, Léopold. Europa en El siglo XIII. Barcelona: Ed. Labor, S.A., 1970. p. 129. Espanha sobre todas as terras é engenhosa e atrevida e muito esforçada em batalha, ligeira e forte em vontade e leal com o senhorio, aplicada nos estudos, e em palavras, repleta, e graciosa de todo bem. Não há no mundo terra que assemelhe em abundância nem se iguale a Ela em fortalezas.25 Depois, o povoamento de Portugal: E devedes saber, que, quando a terras começaram a ser povoadas, nas partes da Galiza foi logo povoada próximo ao Doiro e ao castelo de Gaia. E, por isto, os pescadores da Galiza e das outras partes dos arredores entravam pelo Doiro em suas barcas e vinham a Gaia vender o seu pescado. E depois passavam a outra parte, por que era bom lugar e de boa área pera estender as redes e folgar. E por isto puseram-lhe nome, naquele lugar em que assim aportavam, Porto. E depois de um tempo,foi ali povoada uma Vila e chamaram-lhe o Porto. E, despois que ali aportaram os galeses em suas naves, foi posto nome a terra Portugal. E, quando O Rei Dom Afonso deu esta terra ao conde dom Henrique em casamento com sua filha, mandou que lhe chamassem o condado de Portugal.26 É interessante notar, nos escritos, que a origem dos reinados peninsulares é a porta de entrada para a invenção da grandiosidade futura de seu povo, e as crônicas em questão se empenharam justamente em detalhar esse processo originário, de forma que as heranças antigas contribuíssem para engrandecer a tradição ibérica. Pedro de Barcelos sente necessidade, por exemplo, de explicar a origem grega da mãe de Afonso X: “[...]chegou ali uma mulher natural da Grecia, de onde era minha mãe que foi filha de Constantino, imperador da Grécia”.27 A tradição no medievo, a propósito, guiou a conduta social e religiosa das pessoas, pois entendia-se que o passado podia interferir nas formas mais comezinhas da existência, por vezes de forma quase imperceptível;28 e, consequentemente, acreditava-se que se poderia disseminar toda uma forma de “ver” o mundo por longa data através da escrita.29 25 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, vol. II, 1951-1961.p.41. 26 Ibid.,vol. II, p .5. 27 Ibid, Vol . IV, p. 380. 28 GUREVITCH, Aron J. As Categorias da Cultura Medieval, Lisboa: Ed. Caminho, 1990. p.184. 29 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 568. O papel da tradição é louvado abertamente pelos cronistas, “[...] e de tal modo que os que leram pelos livros aprendam a bem falar e tenham conhecimento e sabedoria das coisas antigas”.30 Ela também está intrínseca no próprio processo de compilação que congrega os valores antigos com os estabelecidos no tempo presente.31 Lindley Cintra, na introdução da Crônica Geral de Espanha de 1344, trata dessa atividade relativa aos escritos. Segundo ele, os poemas épicos, os romances e a historiografia se configuraram como gêneros tradicionais da literatura medieval peninsular, em outras palavras, isto quer dizer que, de geração a geração, transferia-se o interesse e o amor por tais obras, resultando no retoque e na adaptação delas segundo as novas correntes do gosto, portanto, esses escritos não estagnavam, pelo contrário, mantinham-se vivos, sempre presentes na memória. Além disso, mantinham-se vivos, porque as histórias tradicionais no medievo foram as grandiosas, povoadas de heróis, guerras e romances, e foram sempre requisitadas quando se queria contar uma nova “grande” história.32 Foi, porém, por muito tempo no medievo, de forma oral33 que se transmitiam as tradições, e os romances, gestas, encenações religiosas, liturgias, provérbios e sermões foram alguns dos instrumentos de transmissão.34 Esta transmissão provavelmente também serviu de base para a elaboração da História troiana, visto que o poema de Sainte-Maure, chamado Roman de Troie, deve ter-se originado e propagado através dos relatos orais da história de Troia, gerando assim a base e o interesse necessários para a elaboração da Crônica Troiana, o autor do Roman, Benoît prestou serviços à corte francesa do século XII, entretendo os nobres, cavaleiros letrados e iletrados, bem como as damas, com a leitura demorada e em voz alta do texto em versos rimados.35 O Roman de Troie conduziu as refundições dos textos épicos gregos, adaptando-os à história e ao gosto medieval. Essa obra, originalmente escrita em versos, originou uma série de versões em prosa, sendo duas dessas ibéricas: uma versão em castelhano e uma em português. Além disso, a versão em versos foi provavelmente utilizada na elaboração da General Estoria de Afonso X, assim como na Crônica Geral de Espanha de 1344, de 30 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961. p.418. 31 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal – Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Ed. Globo, 2006.p.328. 32 REBELO, Luís de Sousa. A tradição clássica na literatura portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982. p.181. 33 Cf. nota 2 deste capítulo. 34 MARQUES, A. H. de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1971. p. 174. 35 DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Estampa, 1994. p.297. Pedro de Barcelos, razão pela qual essas crônicas, a espanhola e a portuguesa respectivamente, também nos interessam como preservadoras dos valores da História Troiana e principalmente como propagadoras do ideal de herói medieval, inspirado em valores antigos. Cabe, portanto, neste primeiro capítulo, desdobrar a tradição propagada em primeira instância nos escritos. O conde Pedro de Barcelos, por exemplo, utilizando-se dos escritos afonsinos, retoma as referências à história troiana, visando enaltecer a Europa conhecida, ou seja, adapta a queda de Troia para justificar o povoamento da Europa: [...] vieram os Iliões que povoaram uma parte da Grécia e da Pérsia e puseram nome Ilion ao castelo onde / morava o rei. E, depois que Troia foi destruída, saíram dali dois irmãos: um havia nome Príamo e o outro, Antônio. E estes vieram por mar a Veneza e moraram ali muito tempo, povoando-a, até que morreu Antônio; e enterrou o seu irmão Príamo em Pádua, uma cidade que está em Lombardia.36 Já a Crônica Troiana remete-se a Júlio César. Segundo esta crônica, graças à expansão do seu vasto império romano, tomamos conhecimento de todas as terras e oceanos do mundo, ou seja, foi a expansão de César que trouxe o conhecimento dos diversos continentes, dentre eles a Europa: E ouviu-se assim que em Roma houve um imperador que chamaram Júlio César. Este imperador foi senhor de todo o mundo, e foi muito entendido e muito sabedor, e fez escrever todas as comarcas que tem o céu, de tal maneira que não teve serra, nem província, nem rio, nem comarca que não fosse escrita, e quanta gente havia no mundo, perto e longe, por tal que depois não se pudesse esquecer. E aqueles a quem o mandou fazer andaram em esta demanda trinta e dois anos, e levaram muito grande esforço em fazer isto. E não era sem razão, porque, como se fala, grande coisa foi trabalhar com homem de tão grande feito como este [...] Disseram também, quero que saibas, como a terra foi dividida. Sabes que a terra está entre o mar e o céu, como vos disse. E são quatro divisões, como // anteriormente contei. Mais outra divisão há e diremos qual: a terra esta partida em três partes. E há uma parte que é chamada Ásia, e a outra parte chama-se Europa, e a terceira puseram nome África.37 36 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.p.12. CRÓNICA Troiana. Introd. e ed. de.Ramón Lorenzo. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1985.p.597. O continente europeu é frequentemente exaltado nos escritos, podendo às vezes substituir os elogios aos reinados. Na Crônica Troiana, por exemplo, é registrado que a melhor cavalaria do mundo é a dos europeus, “pois sabem mais de guerra e nunca param de guerrear”.38 Contudo, em alguns momentos, o cronista aponta elementos que remetem à Espanha especificamente, a saber, pequenos detalhes, como: a procedência do cavalo de uma guerreira amazona, que serve para pequenos enaltecimentos nacionais: “[...] trouxeram-lhe um cavalo baio de Espanha, forte e ligeiro e corredor, e era formoso e valente, mais que qualquer outro que houvesse”;39 ou a origem do tapete que ornamentava a tenda de Aquiles, “[...] foram se assentar todos os quatro sobre um tapete muito formoso, que viera da terra de Andaluzia”.40 Portugal tampouco deixa de ser mencionado. Deidamia, mãe do filho de Aquiles, pertence ao reinado português: Nesta parte diz o conto que houve um rei em Portugal que tinha o nome de Licomedes. E havia uma filha sua que havia nome Deidamia. E esta dona era abadessa do mosteiro que havia nome Achelas. E foi mãe de Aprillus, e vamos dizer o porquê desta ventura [...].41 A bem da verdade, é recorrente na Crônica Troiana tanto referências aos reinos da península quanto a seus valores e normas sociais. Isto porque a obra se apropria de referências do mundo antigo com a finalidade de valorizar a moral medieval, isto é, utilizando-se do contar da Ilíada, da Odisseia e de outros poemas épicos gregos que deram origem à história narrada de todo o processo da guerra de Troia, ela apresenta uma visão que pode ser definida, “visão imaginária do mundo antigo, vista de uma perspectiva totalmente medieval”.42 Esta perspectiva medieval caracteriza-se pela utilização, desde elementos épicos – descrição de armas, combates, guerras – até os elementos relativos ao amor cortês – esquecimento, tormentos, traições, remorsos. Além disso, a crônica também faz referência a estruturas básicas: cidades, comidas, costumes, organizações militares, crenças, instituições; todas as quais são encaradas a partir do 38 CRÓNICA Troiana. Introd. e ed. de.Ramón Lorenzo. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1985. p.244. 39 Ibid, p.604. 40 Ibid., p.522. 41 Ibid., p.611. 42 LANCIANI ,G; TAVIANI, G. Dicionário da Literatura Medieval Galega e portuguesa. Lisboa: Editora Caminho, 1993. p.193. ponto de vista das estruturas da sociedade feudal. A Crônica Geral de Espanha de 1344 e a General Estoria constituem, pois, uma espécie de miscelânea de valores do passado com o presente da elaboração do texto, o que, a propósito, era intrínseco ao próprio processo de compilar. Por isso, nas três obras, encontraremos fortes identidades no que diz respeito ao meio de produção e, consequentemente, em relação às leituras das mesmas. 1.2 O poder e a escrita Um desses pontos comuns resulta do próprio espaço de produção dos textos: a corte,43 e não os mosteiros, ou seja, quem as escreve é um cronista oficial ligado à corte. Do mesmo modo que, na corte dos reis de Portugal ou nas suas proximidades, se situa o início da historiografia em língua portuguesa, na corte dos reis de Castela tem origem a historiografia em língua castelhana. Mesmo que se reconheça o papel dos mosteiros, essa produção cronística das cortes na península ibérica é marcada majoritariamente pelos interesses régios, e resultou na própria consolidação dos escritos históricos, os quais mostraram ser instrumentos privilegiados na formação política, seja no plano pessoal ou coletivo, isto é, seja no que diz respeito à conduta moral do rei, seja no que diz respeito ao seu exercício da administração e da justiça.44 Esse movimento rumo à secularização45 dos escritos é anunciado no próprio texto da Crônica Geral de Espanha de 1344, na qual consta que: “[...] porque nos livros das crônicas, melhor era escrever as nobres cavalarias e as boas façanhas que fizeram os reis e os castigos e exemplos que de si deram a seus povos, do que encher folhas de estórias de bispos e clérigos”.46 Também é ilustrativa dessa mesma secularização o interesse desses cronistas em louvar o seu reinado e louvar seu povo. O que não é uma 43 A corte dos reis medievais é, antes de mais, a casa dos monarcas, residência magnífica ou palácio onde vive com a comunidade doméstica, com a sua família. Também está presente , neste ambiente, a memória da reunião de vários homens para o exercício da tarefa de julgar ou, simplesmente, exercendo em conjunto um poder de origem pública. Finalmente, algumas delas evocam a presença de homens armados. (GOMES, Rita Costa. A Corte dos reis de Portugal no final da Idade Média. Lisboa: Difel, 1995. p.8) 44 CABRERO, José Luis B. Orígenes Del oficio de cronista real. In: HISPANIA REVISTA ESPAÑOLA DE HISTORIA. Madrid: Instituto Jeronimo Zurita, 1980. n.145. p.396. 45 Villanueva aponta que a escola afonsina constituiu um novo humanismo, racional e secularista que admitiu o saber não cristão em pé de igualdade e em completa independência do poder religioso, desligando a ideia de saber do latim. (VILLANUEVA, Francisco Márquez. El concepto cultural alfonsí. Barcelona: Ed. Bellaterra, S. L., 2004. p. 13.) 46 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.Vol.II, p.214. tarefa simples, visto que o cronista faz uma história que diga sobre o seu povo, sobretudo sobre seu soberano e os homens nobres assim, ele cria histórias enaltecedoras que digam sobre as pessoas presentes no seu cotidiano, ao meio que o rodeia, ou seja, a corte.47 Além disso, mostra uma preocupação com o público alvo dos “ensinamentos” propagados em seus escritos que também ilustram a referida tendência à laicização da história. Georges Martin, em La historia alfonsí: El modelo y sus destinos,48 propõe que, visando atingir um bem maior que se tornou a educação política dos reinos, Afonso X declara seus objetivos didático-exemplares, à semelhança da História magistra vitae de Cícero.49 Mas suas lições são restritas a um público seleto, aos homens bons do reino que correspondem às elites políticas (altos homens, grandes homens, homens bons). Na Crônica Troiana, por exemplo, em diversos momentos, encontramos uma exaltação da nobreza desses homens: “[...] e maiormente aqueles que vieram de linhagem de reis (e) sempre deviam de ser bons”;50 e ainda, o mesmo exemplo na negativa: “E era homem muito cruel e de vil linhagem porém demonstrava em seus feitos toda crueldade e vilania, não sendo lembrado de que linhagem era”.51 Afora isso, os cronistas também preocuparam-se em esclarecer quem encomendou o texto, na maior parte das vezes, o próprio monarca. Enquanto na Crônica Troiana consta: Este livro mandou fazer o muito alto e muito nobre e muito excelente rei Don Alfonso, filho do muito nobre rei Don Fernando e da rainha dona Constança. E foi dado para escrever e historiar no tempo que o muito nobre rei dom Pedro reinou, ao qual manteve Deus em seu serviço por muitos tempos e bons. E os sobreditos onde Ele vê, serão herdeiros no reino de Deus, amém. Feito o livro e acabado o postumeiro dia de dezembro, na era de mil e ccclxxxviij anos. Nicolau Gonçalves, escritor dos seus livros, escreveu por seu mandato.52 Na Crônica Geral de Espanha de 1344, é relatado o empenho de D. Afonso para a elaboração da obra: 47 BLANCHARD, Joel; MÜHLETHALER, Jean Claude. Écriture et pouvoir à l’aube dês temps modernes. Paris: Presses Universitaires de France, 2002. 48 MARTIN, Georges. La Historia Alfonsí: El modelo y sus destinos. Madrid: Casa de Velázques, 2000. 49 Para Cícero, a história é reveladora da verdade e por isso mestra da vida, o que significa que ela tem uma função pedagógica, já que o passado serve para ensinar o presente e o futuro. A história magistra vitae será trabalhada mais detalhadamente adiante. 50 CRÓNICA Troiana. Introd. e ed. de.Ramón Lorenzo. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1985. p.736. 51 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Op. cit. vol III. p.231. 52 CRÓNICA Troiana ,op.cit, p .746. [...] e escreveram também as estorias dos príncipes, assim dos que bem fizeram como dos que fizeram o contrario, por que os que depois viessem trabalhassem de fazer o bem pelo exemplo dos bons e que pelo dos maus se castigassem [...] Porém O rei dom Affonso de Castela, que foi filho do rei dom Fernando e da rainha dona Beatriz, mandou juntar quantos livros pudesse haver das estórias antigas em que algumas coisas fossem escritas dos feitos da Espanha.53 Neste último trecho, está implícito que não se trata de um texto feito apenas para a realeza, mas também para os nobres, a quem cabia seguir os bons ou maus exemplos de um príncipe, para que fosse louvado ou castigado consequentemente; embora também não fosse incomum a ideia de que todos os homens do reino eram influenciados diretamente pela ação de seu soberano, seguindo-lhe no bom ou mau exemplo: E, por que todos os homens pelo menos a maior parte se conduz conforme seu Rei, assim nos bons costumes como nos contrários, porém todos concordam com ele na vida e nos costumes, desde o maior fidalgo até o mais pequeno escudeiro e dos grandes bispos até os clérigos paroquiais, e ainda os povos, dos maiores regedores até os pequenos jurados [...].54 Conquanto falassem aos bons homens da corte, as crônicas destinaram-se sobretudo aos monarcas. Em Castela, por exemplo, foi comum ensinar nos escritos o que se esperava de seu soberano, em grande parte devido aos muitos casos de príncipes com pouca idade que assumiam o trono: “Fernando IV tinha um ano em 1295, Afonso XI, dois em 1312; Pedro I reinou com quinze anos em 1350”.55 Mas não só os monarcas tiveram tratamento diferenciado no cotidiano das cortes, Beatrice Leroy aponta que, no século XIV, pertencer à nobreza ibérica “de sangue” é um verdadeiro privilégio, já que era para os nobres de sangue que estavam destinados os altos cargos eclesiásticos, as altas funções da governação, as Ordens Militares que então se formavam e que só para eles se abriam, e a vida da corte, com todos os seus divertimentos. Além disso, gravitavam à sua volta clãs de escudeiros, de negociantes, de artesãos e mesmo de Judeus e Conversos que serviam a esta aristocracia.56 53 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961. Vol. I. p. 5-6. 54Ibid., Vol II, p.291. 55 LEROY, Beatrice. Sociedade e Poderes políticos na Península Ibérica (séculos XIV – XV). Europa- América, 2001. p.33. 56 Ibid., p.258. Este universo da corte é relatado nos escritos sempre com um valor positivo, sendo sua relevância na Crônica Troiana referida quando o rei Príamo convoca os homens da sua corte para se aconselharem sobre uma possível vingança contra os gregos: “[...] O rei Príamo juntou logo suas cortes muito grandes. E não ficou homem no reino, bom de armas, nem poderoso, nem rico, que não viesse a elas, porque ele queria saber suas vontades”.57 O homem da corte é sempre descrito como virtuoso, dignidade esta que não diz respeito somente ao espírito, mas também ao poder, à riqueza e à família. Por isso, a imagem de Ulisses pintada na Crônica Troiana confere a ele feitio, maneiras de um homem cortês: Ulisses venceu a todos preciosamente, e não era muito grande de corpo nem pequeno, mais era, sisudo, e falava muito bem, e entre dez mil não poderia homem achar tão revelador de pretensão, nem tão grande enganador, que ele nunca deveria verdade; mas era muito entendido e muito cortês.58 Seguindo o mesmo raciocínio, Pedro de Barcelos, na Crônica Geral de Espanha de 1344, alerta para a importância das qualidades necessárias aos conselheiros que habitam a corte, de modo que o rei Teodorico aconselha seu neto para que Nunca chegueis a vós e a vosso conselho homens de baixo sangue e vil condição, porque tais como estes não dão bom conselho em feito de armas nem são para grandes feitos, porque estes não sabem aconselhar os reis senão sobre a tirania do povo e desavenças dos fidalgos e todos maus costumes e este por fazerem de si grandes e ricos, a qual coisa eles não são de sua natureza; porque não pode o rei haver mais perigosos inimigos que maus conselheiros. Grande míngua tem o Rei ao conversar com homens vis. E porém vós, meu filho, regei-vos segundo o que vos ei avisado. E preze e honre os fidalgos.59 Esta relação entre o poder e a escrita é contemplada por diversos estudiosos,60 alguns dos quais consideram que, a partir do século XIII, se constituiu uma teoria jurídico-política da soberania, ligada à concentração, territorialização e 57 CRÓNICA Troiana. Introd. e ed. de.Ramón Lorenzo. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1985. p.248. 58 Ibid., p.270. 59 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961. Vol II, p.168. 60 GALA, Elísio; SAMUEL, Paulo. As Linhas míticas do pensamento português. Lisboa: Fundação Lusíada, 1995. CARVALHO, Maria Manuela de. O Poder e o Saber. Porto: Campo das letras Editores, S. A., 2001. institucionalização do poder, na pessoa do rei ou soberano.61 Se admitirmos que a verdade não pode existir fora do poder ou sem poder, porque, partindo do princípio de que a verdade pertence a este mundo, consequentemente está relacionada a múltiplas coerções, produzindo efeitos regulamentados de poder. Em outras palavras, cada sociedade tem os seus “regimes de verdades”, a sua política geral de verdade, assim, é fundamental saber que discursos funcionaram como verdadeiros, que instâncias os veicularam, que procedimentos e técnicas deviam ser utilizados para obter a verdade. Nas sociedades ocidentais, segundo Foucault, a produção de discursos carregados de um valor de verdade (pelo menos durante um determinado tempo) está ligada aos diferentes mecanismos e instituições de poder, pois o exercício do poder demanda a criação de objetos de saber, ou seja, faz com que estes emerjam gerando informações a serem utilizadas. Portanto, a retomada das origens antigas pelos cronistas medievais, legitimando os guerreiros troianos como se fossem cavaleiros, com títulos de nobreza típicos da corte medieval, faz da crônica a portadora de uma verdade, e esta verdade mostra como os humanos tendem a encontrar ou imaginar nas origens o que há de mais precioso e essencial.62 Esta concepção de verdade medieval permite que, por toda a Crônica Troiana, apareçam várias referências da nobreza medieval vinculadas à cavalaria e às “cortes” dos reinos participantes da guerra de Troia, pois foi uma preocupação dos cronistas esclarecer a origem nobre tanto das pessoas que o rodeavam quanto dos “personagens” de seu relato. Sendo assim, os homens de escrita são também enaltecidos nos escritos, e como não poderia deixar de ser, sua nobre origem é explicitada, por isso na Crônica Geral de Espanha de 1344, já no prólogo consta uma exaltação à nobreza dos homens de escrita: Os muito nobres barões e de grande entendimento, que escreveram as historias antigas das cavalarias e dos outros nobres feitos e acharam os saberes e as outras coisas de façanhas por que os homens podem aprender os bons costumes e saber os famosos feitos que fizeram os antigos, tiveram que declinar muito em seus bons feitos e em sua bondade e lealdade se o assim não quisessem fazer para os que haviam de vir depois como para si mesmos e para os outros que viviam em seus tempos.63 61 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Org. Roberto Machado. 20ª Edição. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.116. 62 Ibid., p.18. 63 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.p.3. Possuir o dom da escrita é uma das formas de enaltecimento e poder para a nobreza, consequentemente é um dos fatores que compõe a descrição de um rei poderoso: “Estando a batalha em tal peso, chegou a cidade um rei muito poderoso a quem chamavam Pitroflés d’Alisonja, e era muito bom cavaleiro e muito letrado em todas as artes”.64 No século XIII, no reinado de Fernando III, soberano que fez renascer a força e o ânimo da reconquista espanhola, tornou-se comum utilizarem-se, nos escritos, alguns motivos legitimadores da soberania real, como a invencibilidade física e bélica, a noção de pertença a linhagens de reis especiais e a intermediação entre divindades.65 No caso de Afonso X, até mesmo antes de seu nascimento, já era certo que ele receberia o “título” de rei sábio e, anos depois, este rei será lembrado por ser sobretudo um grande astrólogo e trovador. Mas o que significa a sabedoria no século XIII? Ela é considerada o saber dos saberes, outorgado pelo espírito, e sua busca constitui o fim último dos homens, porque é fonte de salvação e imortalidade. A sabedoria é também vista como uma habilidade nascida da experiência, representativa de um conhecimento orientado para a ação virtuosa, que se enriquece pela experiência pessoal e por todas as formas de educação. O que permite que esta desempenhe um papel civilizacional e moralizante, papel, em Castela, exercido por Afonso X, ao se empenhar em incentivar a recompilação, mapeamaento e desenvolvimento de todos os campos do saber.66 A Crônica Geral de Espanha de 1344, já em seu prólogo, alerta para a relevância de se registrar e propagar os saberes antigos, bem como todas as virtudes inerentes ao homem, que corajosamente escolhe este trabalho. Sobre a importância da memória para os homens, assim discorre Pedro de Barcelos: E entendendo os feitos de Deus, que são espirituais, que os saberes se perderiam morrendo aqueles que os sabiam e não deixando deles lembrança, para que não caísse em esquecimento, mostraram maneira para que os soubessem os que haviam de vir depois deles. E para o bom entendimento conheceram as coisas que haviam de vir. Mas o desdém de não quererem os homens aprender e saber as coisas e o esquecimento em que as deitam depois que as sabem fazer perder 64 CRÓNICA Troiana. Introd. e ed. de.Ramón Lorenzo. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1985. p.98. 65 FERNANDÉZ, Monica. De Fernando III a Afonso X: Quando um Santo rei dá lugar a um rei sábio. Disponível em < http://www.rj.anpuh.org/conteudo/view?ID_CONTEUDO=307> 66 Sobre a sabedoria para a Idade Média: COLEMAN, Janet. Ancient and medieval memories – Studies in the reconstruccion of the past. Cambridge University Press, 1992.p.60. RUCQUOI, Adeline. De los reyes que no son taumaturgos: los fundamentos de la realeza en España. Paris: CNRS. s/d. p.70. malmente o que foi achado com muito trabalho e com grande estudo; e também pela preguiça que é inimiga do saber e faz aos homens que não cheguem a ele nem busquem as carreiras para que o conheçam.67 Sobre esta questão da memória e da história na Idade Média, vale destacar que o século XIII pode ser tomado como marco da existência de uma historiografia propriamente medieval, em outras palavras, como período em que aparecem integrados gêneros anteriores e novos que contribuem para compor o pensamento político e intelectual europeu.68 Embora exista um bom número de escritos que pretendem “guardar” a história, esta, no entanto, nunca teve no medievo um lugar destacado no panorama da cultura, melhor, nunca foi ensinada e aprendida como disciplina acadêmica na península ibérica. Contudo, a partir do século XIV, a história se expande para além dos mosteiros, lugar onde tinha sido registrada em escritos e propagada de forma oral como recreação. Assim, Guenée cita a afirmativa de Hugo de São Vitor de que a história serve como fundadora para qualquer ciência, isto porque, embora ainda não tenha alcançado o status de ciência ou arte, consolidou-se como um conhecimento e uma prática muito utilizada pelos homens de saber, servindo à moral, à teologia e ao direito.69 Enfim, na península ibérica dos séculos XIII e XIV, a história começa a adquirir autonomia e ser mais respeitada, graças à ambição dos reis de exaltar as raízes passadas do seu reino. Portanto, o que se aprendia de fato nas escolas ainda era o legado dos pensadores antigos, tanto pagãos como cristãos, circunscrevendo-se basicamente à gramática, à retórica ou à dialética. A história permeava o ambiente da corte de uma forma muito distinta dos saberes desenvolvidos nas escolas ou universidades, os quais eram conduzidos nos studium general tornados oficiais pelo texto jurídico das Siete Partidas, elaborado por Afonso X.70 Fosse por seu público diferenciado, fosse por suas formas de propagação — tradições orais, lendas e canções de gesta – a história diferia dos demais saberes. Também não era contemplada a noção de desenvolvimento histórico, de forma que o passado era para o historiador o bem convencional e imóvel, incluindo o fabuloso, 67 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.Vol . II , p. 3-4. 68Sobre a evolução da historiografia no medievo, bem como sobre os historiadores do período, ver: ORCÁSTEGUI,Carmen; SARASA Esteban. La historia en La edad media. Madrid: Catedra, 1991. 69 GUENÉE, Bernard. Histoire et culture historique dans l’Occident medieval. Paris: ed. AUBIER MONTAIGNE,1980.p.26. 70 “[...] um studium generale, segundo a substância do texto das Partidas, é um conjunto orgânico de escolas instaladas em uma grande cidade, instituídas pelo papa, o imperador ou o rei, deve-se encontrar ali tanto mestres de artes liberais e doutores em direito civil e canônico [...] quanto estudantes em número suficiente”. (VERGER, Jacques. Cultura Ensino e Sociedade no Ocidente. Bauru: Edusc, 2001. p.252.). mas o bem, por outro lado, poderia ser considerado o presente do autor, daí uma espécie de anacronismo voluntário e necessário ser uma marca indelével da historiografia medieval. Característica que não deve ser entendida como uma forma de distanciamento da verdade, pois, no caso da cronística medieval, a apropriação de valores exteriores como valores próprios é nada mais que parte da própria concepção de verdade na Idade Média, de forma que acusar os historiadores medievais de anacronismo é distanciar-se do universo dos seus possíveis e deslizar por um anacronismo ingênuo.71 Assim, de modo geral, a história, a partir do século XIII, é estimulada e tida como o meio mais confiável para resolver as questões que diziam respeito ao passado das linhagens dos nobres pertencentes aos reinados da Península Ibérica. A compilação é estimulada nas cortes, de modo que os escritores se orgulham em recontar algumas histórias, devido à relevância e sapiência que se acreditava contidas nelas. Além disso, os escritos estão inseridos em um meio fechado que rodeia o príncipe, onde são tomadas e mantidas as decisões políticas, portanto, definitivamente estava destinada a alguns, os homens próximos do poder, a tarefa de escrever, já que não era para todos o poder de construir ou reconstruir uma trama escrita.72 O papel de Afonso X, por exemplo, foi fundamental nesta tarefa de “guardar a história”, porque o monarca pretendeu educar politicamente os reinos, de modo que seus objetivos didático-exemplares remontam à história magistra vitae de Cícero.73 Ele também teve influência direta nos escritos de sua corte, preocupando-se com os assuntos do saber e organizando ele mesmo o meio de produção de obras que foram utilizadas por séculos na Península Ibérica. Lindley Cintra chega até mesmo a dizer que, sem a direção “firme e segura” de Afonso X, talvez o trabalho realizado na câmara dos reis não teria ocorrido ou o teria “segundo critérios diferentes”.74 71 Similarmente a ideia de regimes de verdade de Foucault, referida anteriormente, encontra-se a de concepções de verdade trabalhada por Paul Veyne em seu livro Acreditavam os gregos em seus Mitos? O autor propõe ali que a verdade está estritamente ligada à imaginação, assim, apresentam-se no decorrer dos séculos novas constituições de verdade, ou seja, “programas heterogêneos de verdade”. Isto demanda que se dê uma importância maior à crença de um povo do que ao próprio relato, pois somos nós que estabelecemos se um texto deve ser considerado fictício ou não. Portanto, a busca por uma única verdade histórica é definitivamente contrária ao trabalho creditado ao historiador por Veyne, para quem esta posição anula a reflexão histórica possibilitadora de explicar os programas de verdades e suas variações. (VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? São Paulo: Brasiliense, 1984). 72 BLANCHARD, Joel; MÜHLETHALER, Jean Claude. Écriture et pouvoir à l’aube dês temps modernes. Paris: Presses Universitaires de France, 2002. 73 MARTIN, Georges. La historia alfonsí: el modelo y sus destinos (siglos XIII – XIV). Madrid: Casa de Velázquez, 2000. Volume 68. p.12. 74CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.vol. I, p. CCCXCVII. Sobre o processo de criação das crônicas, duas marcas merecem destaque: primeiramente, o cronista devia usar do “bom senso” para saber quais textos e quais cronistas mereciam credibilidade; em segundo lugar, deveria apresentar-se como autoridade na afirmação da verdade. Exemplarmente, o conde Pedro de Barcelos discorre sobre o primeiro ponto, e sobre a diversidade de versões e as dúvidas decorrentes disso: Mais os escritos são muitos e contamos de muitas maneiras. E, por que a verdade das estorias é as vezes duvidosa, porem o que ler observado e como das melhores escrituras tomei o que devo provar e ler. Mas achamos que Santo Isidoro tomou a primazia de Espanha e as vezes do apostolado, assim como a estória conta.75 Havia, entretanto, alguns nomes mais merecedores de crédito. O cronista Lucas de Tuy, por exemplo, muitas vezes citado como “fonte” na Crônica Geral de Espanha de 1344 pelo conde Pedro de Barcelos, desfruta de toda credibilidade possível, tanto que, desde o começo da obra até o fim da obra, seu nome é citado como amparo da veracidade do texto que está sendo recontado: “E tomou primeiramente da Crônica do arcebispo dom Rodrigo e de dom Lucas, o bispo de Tuy”;76 “E ainda foi tomada a cidade a poucos dias, se estabeleceriam nela, segundo conta dom Lucas de Tuy, se não pelas grandes águas do inverno que se deixaram vir”;77 ou, ainda, “E não ficaram vencidos uns nem os outros. E foram partidos pela noite que lhes veio; se não, Almançor fora vencido ou preso ou morto, segundo diz dom Lucas de Tuy”;78 e finalmente, “Pelo que diz dom Lucas de Tuy, em sua estoria de latim que compôs destas razões, que não fez isto o rei dom Afonso por si só, mas pelo conselho dos altos homens de seu reino[...]”.79 A palavra escrita é, nessa altura, tomada como lei, devido principalmente ao sentido de autoria para o medievo, em outras palavras, ao seu não sentido, tendo em vista que o cronista ainda não gozava do estatuto de autor, pois, segundo Foucault, os textos, os livros e os discursos só tardiamente começaram a ter autores, ou melhor, deixaram os autores de se confundir com “personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes”, e o autor, humanizado, “se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores (final do século XVIII início do 75CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.vol. II, p. CCCXCVII., p. 388. 76 Ibid, Vol. II, p.6. 77 Ibid, Vol. III, p 179. 78 Ibid, Vol. III, p.187. 79Ibid, Vol. III, p.196. XIX)”.80 Assim, o que vale para as crônicas dos séculos XIII e XIV, bem como as anteriores, é a autoridade do cronista em primeiro lugar; isto porque o seu cargo (posição que ocupa na sociedade ou na corte) já basta para dar autoridade para a sua palavra durante séculos no medievo. Não queremos dizer aqui que o cronista não tenha conquistado um certo estatuto pelos seus escritos, contudo, conforme mostramos ao longo do texto, este estatuto não é propriamente de autor, ou seja, não compreende sua obra como uma propriedade sua, mas como um bem. Seu prestígio, portanto, não é decorrente da singularidade da sua escrita, antes resulta de fatores como linhagem, posicionamento na corte, prestígio junto ao soberano e principalmente, da própria legitimidade e destaque do seu ofício em seu reino, seja ele laico ou religioso.81 Quanto à segunda marca, a responsabilidade sobre a veracidade do texto por parte do cronista, apontamos que tal responsabilidade é alcançada pela própria afirmação de sua credibilidade e esta, por sua vez, se firma através de recursos como a suposta presença deste em algumas das situações que narra. Na Crônica Troiana, por exemplo, é constantemente reafirmada a presença de Ditis e Dayres nas batalhas em Troia. Primeiramente, se esclarece que Ditis e Dayres82 foram “autores” das crônicas utilizadas para a composição da Crônica Troiana: “segundo que o escreveu Ditis e Dayres, que foram autores”.83 Depois Dayres conta a participação de Ditis nas batalhas de Troia: Nesta parte diz Dayres que Ditis foi um cavaleiro muito rico e muito brando e muito sisudo, e era da parte dos gregos. E porque viu que nunca tão grande feito fora começado como este, escreveu todos os feitos e as cavalarías e todas [as] outras coisas que era de lembrar.84 Ao longo do relato, muitas vezes foi reafirmada a participação de Ditis nos feitos narrados, “Dites, que estava presente e viu tudo aquilo, conta que, [...]”.85 Além disso, 80 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992. p. 47. 81 CLANCHY, M. T. From Memory to Written. Record. Blackwell, U.S.A, 1993. p.295-299. 82 O Roman de Troie, composto entre 1160 e 1170 por Benoît de Saint-Maure, inspira-se em duas obras antigas traduzidas em latim: a do suposto Dares da Frigia De excidio Trojae historia (séc. VI) que se apresenta como a descrição quotidiana da guerra de Troia por um dos seus combatentes e a do igualmente suposto Dictis de Creta Ephemeris bello Trojani (séc. IV) que pretende ser a história oficial do lado grego. (NUNES, Irene Freire. Cronica Troiana em Limguajem Purtuguesa. Lisboa: Ed. Colibri, 1996. p.6). 83 CRÓNICA Troiana. Introd. e ed. de.Ramón Lorenzo. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1985. p.622. 84 Ibid., p.622. 85 Ibid., p.677. ao fim do relato, somos surpreendidos com a informação de que Dayres também esteve presente em Troia e mais, qual foi seu destino quando foi finda a guerra: De agora em diante não vos contaremos mais desta estoria, porque se acaba aqui tudo, segundo o que escreveu Dites e Dayres, que foram doutores, e estiveram presentes, e não escreveram mais nem menos, senão como passou o feito. E aquele Dayres ficou com Antenor, e foi se depois com ele, e escreveu em sua estoria que a guerra durou dez anos e seis meses e doze dias. E escreveu também que morreram da parte dos gregos oitocentos e oitenta e seis vezes mil homens, e da parte dos troianos foram mortos, até que a vila foi tomada, seiscentos e sessenta e seis vezes Mil homens.86 Finalmente, Nicolau Gonçalves conclui a Crônica Troiana enaltecendo as suas próprias virtudes, ou seja, enaltece a sua própria verdade e lealdade para com os escritos, e por isso dá graças ao senhor agradecido: E de agora em diante vos encomendo a mim e a minha estoria, e rogo a vos que vos não tomem inveja contra mim para que me[a] façades perder, porque, sem fala,eu escrevi o mais sem teimosia e mais verdadeiramente que pude. E a Nosso Senhor dou graças porque me deixou acabar.87 A crônica é considerada de tal forma como a propagadora das verdades antigas, que se configura como fonte atualizada de informação para os pequenos impasses dos reinos. Assim, na própria narrativa da Crônica Geral de Espanha de 1344, vemos um soberano buscar informação e aceitar sem questionamento a resposta contida nas crônicas antigas: E fez logo vir perante si as crônicas dos reis que viveram antes dele, e nas quais foi achado os termos dos arcebispados e quantos e quais bispados eram submetidos a cada um dos arcebispados e como partiram os termos de cada um e ainda os termos das igrejas paroquiais; e isto segundo as partições que antigamente foram feitas.88 A partir desses recursos e de apreciações que lhe foram destinadas, a crônica estabeleceu-se como propagadora das “verdades” dos homens virtuosos dos séculos 86 CRÓNICA Troiana. Introd. e ed. de.Ramón Lorenzo. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1985. p.745. 87 Ibid, p.746. 88 CRÔNICA Geral de Espanha de 1344. Edição crítica do texto português por Luís Filipe Lindley Cintra. 3 volumes. Lisboa : Academia Portuguesa da História, 1951-1961.Vol . II p.26. XIII e XIV e de outrora, servindo como guia para as nações que procuravam identificar e transmitir suas características mais relevantes e obviamente honrosas.89 Portanto, as virtudes dos escritores de alta linhagem da corte permearam a imaginação dos homens por anos e até séculos, deixando a impressão de que eram eles, que já tinham vivido muitas aventuras pelas maravilhosas terras da Península Ibérica, os que estavam aptos para mostrar o caminho a ser percorrido pelos que ainda viveriam tais aventuras, e tudo isso graças à História, mestra da vida. 1.3 A História Magistra Vitae e a figura do herói Esta pesquisa, que toma como fontes três crônicas do mesmo século, Crônica Geral de Espanha de 1344, General Estoria e Crônica Troiana, atem-se ao fato de que todos esses escritos destacam, nas histórias sobre as aventuras de seus antepassados, a heroicidade, ou seja, apresenta-os como heróis consagrados, como modelos a serem seguidos. Costumavam os antigos, muito magnífico senhor, por os feitos dos altos homens e grandes senhores em escrito para que deles ficasse memória para os que deles sucedessem porque o louvor dos seus grandes e famosos feitos não caísse em esquecimento nem em perpétua memória segundo seus merecimentos. E, como quer, muito magnífico senhor, que a providência divina vos tenha dado no fim grande merecimento, assim por notáveis e muito devotos religiosos que aparecem continuamente em vossa casa, como por vosso muito caro engenho, com tudo isso voz aprecias haver notícia das coisas feitas e as esquecidas pelos ínclitos príncipes e grandes senhores que antigamente grande parte do mundo senhorearam.90 Através dos séculos, a ideia da história fornecedora de exemplos foi aceita e até mesmo determinou a escolha e a produção de certas obras. Também uma herança antiga, esta concepção de história tem sua origem em Cícero, que a nomeia magistra vitae e a define como testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida e mensageira do passado.91 Inserida no contexto da oratória antiga, esta história 89 BUESCU, Ana Isabel. Um mito das origens da nacinalidade: O milagre de Ourique. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diego Ramada. A memória da nação. Lisboa: Livraria Sá da Costa Ed, 1987. p.50. 90 NUNES, Irene Freire. Cronica Troiana em Limguajem Purtuguesa. Lisboa: Ed. Colibri, 1996. p.17. 91 CICERO, Marco Túlio. De Partitione Oratoria Cambridge and London: Harvard University Press, 2004. XXI. 71. é apresentada de forma não argumentativa, ou seja, é exemplificada com comportamentos virtuosos, que servem como instrução para a vida. A partir desses pontos, acreditava-se que, através da história, aprendemos com o passado e podemos até mesmo prever o futuro, fazendo da nossa experiência o resultado da experiência dos outros em um tempo diverso. Koselleck, discorrendo sobre o emprego da história magistra vitae, propõe que a sua eficiência estava ligada ao fato de ela poder “conduzir ao relativo aperfeiçoamento moral ou intelectual de seus contemporâneos e de seus pósteros, mas somente se e enquanto os pressupostos para tal foram basicamente os mesmos”.92 Segundo o autor, isto ocorreu até o século XVIII, devido à constância das premissas e pressupostos, bem como da lentidão das transformações sociais. Os exempla,93 amplamente utilizados no gênero Historia magistra vitae, podem ser interpretados como um recurso agregador e carregam uma grande força pedagógica para a edificação da sociedade e do homem. Estão na história e, portanto, ensinam. Carregam um sentido, ou adquirem determinado sentido no seu contexto histórico, ou no contexto em que são recuperados e utilizados.94 A Literatura de exempla, que floresceu na Antiguidade, preocupou-se em registrar e recomendar padrões de comportamento tradicionais, ou seja, os gregos “citavam acontecimentos particulares do passado como motivo para a consolidação ou impulsos para a ação”,95 estes comportamentos tradicionais propagados eram sempre os que levavam ao caminho da virtude em detrimento do vício, "tudo o que está associado à virtude deve ser louvado e tudo o que está associado ao vício deve ser vituperado", diz Cícero.96 Portanto, revivida na Idade Média, a literatura de exempla se direciona no sentido de reger os comportamentos das pessoas que habitam e circundam a corte, bem como, e 92KOSELLECK, Reinhart. Futuro Pasado. Para una semántica de los tiempos historicos. Trad. Noberto Smilg. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 1993. p. 43. Coleman também trabalha a história magistra vitae de Cícero, apontando que nos textos do autor que trataram maiormente sobre a retórica, essa história aparece como luz da verdade, vida da memória, de forma que o orador podia dar um sentido virtuoso para a história. (COLEMAN, Janet. Ancient and medieval memories – Studies in the reconstruction of the past, Cambridge University Press, U.S.A, 1992. p.39-59. ) 93 “Exemplum (paradigma) é um termo da um termo retórica antiga, a partir de Aristóteles, e significa “história em conserva para exemplo”. A isso se juntou Cícero e Quintiliano que recomendam ao orador que tenha à mão exemplos não só da história, como também da mitologia e das lendas heroicas”. (CURTIUS. Ernest Robert. Literatura Europeia e Idade Média Latina. São Paulo: Ed. Hucitec, 1996, p.97.) 94EHRHARDT, Marcos Luis. A Ego-narrativa e a historia magistra vitae no principado romano. Disponível em p.3. 95 MOMIGLIANO, A. Ensayos de historiografia antigua e moderna. México: FCE, 1993. p.149. 96 CICERO, Ma